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CASO RESOLVIDO

A sociedade (A) comprou à sociedade (B) uma máquina industrial. Foi estipulado que o preço
seria pago dentro de três meses e que a propriedade se transferiria com o pagamento integral do
preço. A máquina foi imediatamente entregue a (B).

Antes do pagamento do preço, a máquina foi destruída por um incêndio que lavrou na fábrica
de (A), devido a caso fortuito.

Não tendo (A) realizado o pagamento do preço no prazo fixado, (B) vem exigir judicialmente o
cumprimento da obrigação. (A) contesta, argumentando que, de acordo com o artigo 796.º, n.º 3 do
CC, o risco do perecimento ou deterioração da coisa devido a caso fortuito ou de força maior corre por
conta do vendedor, porque se trata de um contrato com condição suspensiva.

Admitindo que:

1. As regras gerais sobre transferência do risco na compra e venda constam do artigo


796.º do CC;

2. Quando a coisa perece devido a caso fortuito ou a força maior, o comprador continua
obrigado a pagar o preço se o risco correr por sua conta e fica exonerado dessa
obrigação quando o risco correr por conta do vendedor;

3. Em princípio, o risco apenas passa para o comprador com a transmissão da


propriedade (artigo 796.º, n.º 1 do CC);

4. Os n.ºs 2 e 3 do artigo 796.º do CC estabelecem dois desvios a este princípio: antes


da transmissão da propriedade, o risco só passa para o comprador com a entrega da
coisa quando:

i. a coisa, depois da celebração do contrato, continuar em poder do vendedor


em consequência de termo constituído a seu favor;

ii. o contrato estiver “dependente de condição resolutiva”;

5. O contrato celebrado entre A e B é, para efeitos do artigo 796.º, n.º 3, 2.ª parte do CC,
um “contrato dependente de condição suspensiva”, porque a propriedade só se
transmite com o pagamento integral do preço;

6. A doutrina dominante tem entendido que a ideia subjacente ao artigo 796.º do CC é a


de que o risco se transfere para o comprador logo que o vendedor lhe proporcione a
satisfação de um interesse; tal satisfação pode consistir na transmissão da
propriedade ou na entrega do objeto.

Estará (A) obrigado a pagar o preço?


Cenário de resposta:

Na presente hipótese, pretende-se saber se (A) está obrigado a pagar o preço, ou seja, se é
ele (comprador) que responde pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa devido a caso
fortuito, quando nos encontramos perante um contrato de compra e venda em que a transmissão da
propriedade está sujeita a «condição suspensiva» (o pagamento integral do preço) e a coisa foi
entregue ao comprador. Ou seja, pretendemos interpretar o disposto no artigo 796.º, n.º 3, 2.ª parte
do CC, por forma a compreender se essa regra se aplica mesmo após entrega da coisa ao adquirente.
[Identificação do objeto da interpretação]

A título preliminar, cumpre assinalar que, para aferir a finalidade da interpretação, existem duas
teses em confronto: (i) teses subjetivistas (a finalidade da interpretação é determinada de acordo
com a voluntas legislatoris, i.e., a intenção do legislador); e (ii) teses objetivistas (a finalidade da
interpretação é a determinação da voluntas legis, i.e., do significado objetivo da lei). Por sua vez,
relativamente ao momento da interpretação, cumpre destacar as seguintes teses: (i) historicismo (a
interpretação tem por base o momento da feitura da lei); e (ii) atualismo (a interpretação adapta-se ao
momento em que a lei é aplicada).

Ora, autores como JOSÉ LAMEGO, JOSÉ ALBERTO VIEIRA e JOÃO PEDRO MARCHANTE
tendem adotar uma conceção subjetivista historicista, à luz do dever de vinculação do juiz à lei (artigos
203.º da CRP e 8.º, n.º 2 do CC), enquanto corolário do princípio da separação de poderes. Por outro
lado, por imperativo do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), pelo facto de a vontade do
legislador histórico não ser sempre possível de se determinar, ou então por forma a adaptar a lei
mesmo nos casos em que o respetivo contexto de aplicação tiver alterado substancialmente, a doutrina
maioritária, designadamente PEDRO ROMANO MARTINEZ, BAPTISTA MACHADO, OLIVEIRA
ASCENSÃO, MENEZES CORDEIRO e TEIXEIRA DE SOUSA tendem a adotar uma tese objetivista
atualista, que também por nós é defendida, pelos motivos referidos supra. [Finalidade da interpretação:
tomada de posição fundamentada]

Na ausência de interpretação autêntica (i.e., mediante lei interpretativa, de hierarquia idêntica


ou superior à lei interpretada, que fixa o significado da fonte), teremos de recorrer à interpretação
doutrinal e, portanto, aos elementos de interpretação que resultam da conceção de SAVIGNY e do
artigo 9.º, n.º 1, do CC: o elemento gramatical (“letra da lei”, “textos”); sistemático (“unidade do
sistema”); histórico (“as circunstâncias em que a lei foi elaborada”) e teleológico (“pensamento
legislativo”, “condições específicas do tempo em que é aplicada”). LARENZ, por sua vez, identifica os
seguintes critérios de interpretação: (i) sentido literal; (ii) contexto significativo; (iii) intenção reguladora
do legislador histórico; e (iv) critérios teleológico-objetivos. [Interpretação autêntica? Em caso negativo,
identificação dos elementos de interpretação: artigo 9.º, n.º 1 do CC]

A doutrina maioritária considera que não existe uma hierarquia rígida entre os vários elementos
de interpretação, adotando uma ideia de “sistema móvel”, em que a relevância de cada elemento ou
critério de interpretação é casuística. Ainda assim, ao nível do resultado da interpretação, os elementos
lógicos (sistemático, histórico e teleológico) tendem a prevalecer perante o elemento literal, visto que
a interpretação visa “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo” (artigo 9.º, n.º 1, do CC),
não obstante a primazia do elemento literal numa perspetiva metodológica (neste sentido, cfr. MIGUEL
TEIXEIRA DE SOUSA). [Hierarquia dos elementos de interpretação: “sistema móvel”]

Quanto ao elemento gramatical, que funciona como ponto de partida (“a partir dos textos”),
mas também como limite da interpretação (“mínimo de correspondência verbal”, cf. artigo 9.º, n.º 2 do
CC), temos que, num contrato sujeito a condição suspensiva (como é o caso), o risco corre por conta
do alienante (B, vendedor) durante a pendência da condição (antes do pagamento integral do preço),
conforme dispõe o artigo 796.º, n.º 3, 2.ª parte, do CC.

O elemento sistemático, que visa garantir a coerência e “unidade do sistema”, conduz-nos à


necessidade de interpretar o preceito normativo em causa, articulando-o com outras fontes, regras e
princípios, e atendendo ainda ao seu contexto significativo e à sua inserção sistemática. Esse contexto
pode englobar ainda o recurso a argumentos lógicos e a lugares paralelos.

Ora, atendendo ao nexo estabelecido entre os diversos preceitos constantes do artigo 796.º
do CC, verifica-se que a regra geral consta do n.º 1, estabelecendo-se que o risco se transfere com a
«transferência do domínio sobre certa coisa», não sendo, porém, evidente que a noção de «domínio»
se confunda com a de propriedade. Temos então que o artigo 796.º, n.ºs 2 e 3 do CC, enquanto desvios
ao regime-regra, consubstanciam normas substancialmente excecionais, que formam um verdadeiro
ius singulare, sendo, portanto, vedada a sua aplicação analógica (artigo 11.º do CC).

In casu, verifica-se que ainda não houve transmissão da propriedade, devido à pendência da
condição suspensiva. No caso de a expressão «domínio» ser sinónima de «propriedade», temos então
que, regra geral, e aplicando um argumento a contrario sensu, seria ainda imputável ao alienante (B,
vendedor) o risco de perecimento ou deterioração da coisa. Todavia, se a noção de «transferência do
domínio» abranger não apenas a propriedade, mas sobretudo a posse ou o ato de entrega da coisa,
então o risco seria, nesse caso, imputado ao adquirente (A, comprador).

Quanto ao elemento histórico, o enunciado não nos fornece informações suficientes para a
resolução do caso sub judice, nomeadamente: trabalhos preparatórios, exposição de motivos,
anteprojetos, debates parlamentares, preâmbulos, precedentes normativos e doutrinários, occasio
legis (“as circunstâncias em que a lei foi elaborada”), entre outros. No limite, poder-se-á considerar que
a referência à doutrina maioritária consubstancia um precedente doutrinário, através do qual se
concluiria que o risco deverá ser imputado ao adquirente a quem já tenha sido entregue a coisa,
conforme melhor explicado infra.

Por fim, o elemento teleológico, referente aos fins e aos valores que a norma visa proteger,
parece-nos indicar, segundo a doutrina dominante, que o artigo 796.º do CC tem como ratio legis
(“razão de ser”) atribuir o risco ao comprador logo que o vendedor lhe proporcione a satisfação de um
interesse; podendo tal satisfação consistir na transmissão da propriedade ou na entrega do objeto. Ou
seja, neste caso, como houve entrega do objeto, então seria o adquirente (A, comprador) quem
responderia pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa. [Análise detalhada dos elementos de
interpretação: em particular, relação com a hipótese sub judice]
Face ao exposto, parece-nos que a letra da lei é mais ampla do que o pensamento legislativo.
Teríamos, à partida, de recorrer a uma interpretação restritiva do artigo 796.º, n.º 3, 2.ª parte do CC,
de modo a assegurar que: “quando for suspensiva a condição, o risco corre por conta do alienante
durante a pendência da condição, se a coisa ainda não tiver sido entregue ao adquirente”.

Sucede que tal interpretação não é admissível porque não tem um “mínimo de correspondência
verbal” com a letra da lei (artigo 9.º, n.º 2, do CC). De facto, o pensamento legislativo, “ainda que
imperfeitamente expresso”, tem de ter algum apoio semântico nos textos, presumindo-se, aliás, que o
legislador soube expressar o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3 do CC). Ora, não
é possível, com base nos textos, interpretar o artigo 796.º, n.º 3, 2.ª parte do CC, no sentido de afastar
a regra do risco (que correria por conta do alienante, B) em contratos dependentes de condição
suspensiva, como se verifica na presente hipótese. [Resultado da interpretação. Mínimo de correspondência
verbal: artigo 9.º, n.ºs 2 e 3 do CC]

Por conseguinte, conclui-se que não é possível resolver a hipótese sub judice por via das
regras de interpretação, sendo necessário avançar para os processos de integração de lacunas (artigo
10.º do CC) ou de desconsideração da regra jurídica, cujo resultado vai além da letra da lei. Ora, na
presente hipótese não nos interessa aplicar a analogia ou quaisquer outros instrumentos de integração
de lacunas, previstos no artigo 10.º do CC, mas sim afastar a aplicação do artigo 796.º, n.º 3, 2.ª parte
do CC ao caso concreto, uma vez que o fim da norma não justifica que a mesma se aplique quando
ao adquirente (comprador) houver sido entregue a coisa.

In casu, não se procedem as razões que justificam que o risco seja imputável ao alienante
(vendedor) durante a pendência de condição suspensiva (artigo 10.º, n.º 2, do CC, a contrario). Por
isso, parece-nos que a solução deve ser a de afastar, por redução teleológica, a aplicação do artigo
796.º, n.º 3, 2.ª parte do CC ao caso concreto, em que o comprador já detém a coisa. A admissibilidade
da redução teleológica, ainda que contestada por alguma doutrina (e.g., TEIXEIRA DE SOUSA, JOSÉ
LAMEGO, JOÃO PEDRO MARCHANTE), tem sido admitida por autores como MENEZES CORDEIRO,
PEDRO ROMANO MARTINEZ e JOSÉ ALBERTO VIEIRA enquanto meio de desenvolvimento do
Direito para além da letra da lei. [Desconsideração da regra jurídica: admissibilidade e fundamentação]

Em suma, A (adquirente) responde pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa


por caso fortuito, logo também estará obrigado a pagar o preço. [Conclusão / resposta ao caso prático]

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