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C VIII

DOS CONTRATOS ALEATÓRIOS

Sumário: 1. Conceito e espécies. 2. Venda de coisas futuras.


2.1. Risco concernente à própria existência da coisa: emptio
spei. 2.2. Risco respeitante à quantidade da coisa esperada:
emptio rei speratae. 3. Venda de coisas existentes, mas
expostas a risco.
1. CONCEITO E ESPÉCIES
Contratos bilaterais são os que geram obrigações para ambos os
contratantes, como a compra e venda, a locação, o contrato de
transporte etc. Essas obrigações são recíprocas, estando a de um
dos contratantes atrelada à do outro. Por isso são sempre onerosos.
No entanto, considerando-se as expectativas de vantagens ou
benefícios que as partes aguardam e alimentam por ocasião de sua
celebração, os contratos bilaterais e onerosos podem revelar-se
comutativos ou aleatórios.
Comutativos são os contratos de prestações certas e
determinadas, como foi dito no Capítulo III, concernente à
Classificação dos contratos, n. 4, retro. As partes podem antever as
vantagens e os sacrifícios, que geralmente se equivalem,
decorrentes de sua celebração, porque não envolvem nenhum risco.
Na ideia de comutatividade está presente a de equivalência das
prestações, pois em regra, nos contratos onerosos, cada contraente
somente se sujeita a um sacrifício se receber, em troca, uma
vantagem equivalente. Todavia, pode não haver equivalência
objetiva, mas subjetiva, existente apenas no espírito dos
contraentes, e não necessariamente na realidade, visto que cada
qual é juiz de suas conveniências e interesses. Assim, na compra e
venda, por exemplo, o vendedor sabe que irá receber o preço que
atende aos seus interesses, e o comprador, que lhe será transferida
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a propriedade do bem que desejava adquirir .
Contrato comutativo é, pois, o oneroso e bilateral, em que cada
contraente, além de receber do outro prestação relativamente
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equivalente à sua, pode verificar, de imediato, essa equivalência .
Contrato aleatório é o bilateral e oneroso em que pelo menos um
dos contraentes não pode antever a vantagem que receberá, em
troca da prestação fornecida. Caracteriza-se, ao contrário do
comutativo, pela incerteza, para as duas partes, sobre as vantagens
e sacrifícios que dele podem advir. A equivalência não está entre as
prestações estipuladas, mas “dans la chance de gain ou de perte
pour chacune des parties”, como preceitua o Código Civil francês.
Segundo S R , “aleatórios são os contratos em que
o montante da prestação de uma ou de ambas as partes não pode
ser desde logo previsto, por depender de um risco futuro, capaz de
provocar sua variação”. Neles, aduz, “as prestações oferecem uma
possibilidade de ganho ou de perda para qualquer das partes, por
dependerem de um evento futuro e incerto que pode alterar o seu
montante. O objeto do negócio está ligado à ideia de risco. Isto é,
existe uma álea no negócio, podendo daí resultar um lucro ou uma
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perda para qualquer das partes” .
O vocábulo aleatório é originário do latim alea, que significa sorte,
risco, azar, dependente do acaso ou do destino, como na célebre
frase de J C , ao atravessar o rio Rubicão: alea jacta est (a
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sorte está lançada) . Daí o fato de o contrato aleatório ser também
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denominado contrato de sorte . São exemplos dessa subespécie
os contratos de jogo, aposta e seguro. Já se disse que o contrato de
seguro é comutativo, porque o segurado o celebra para se acobertar
contra qualquer risco. No entanto, para a seguradora é sempre
aleatório, pois o pagamento ou não da indenização depende de um
fato eventual.
A propósito, preleciona C M : “Há uma corrente doutrinária
tradicional que situa a noção de contrato aleatório na existência da
álea bilateral. Mas a evolução desse tipo de negócio o desautoriza.
Basta que haja o risco para um dos contratantes. Com efeito, em
vários contratos em voga como o seguro, a aposta autorizada nos
hipódromos, a loteria explorada pela Administração ou pelo
concessionário, existe álea apenas para um dos contratantes, ao
passo que o outro baseia a sua prestação em cálculos atuariais ou
na dedução de percentagem certa para custeio e lucro, de tal
maneira que se pode dizer perfeitamente conhecida, e lhe não traz
risco maior do que qualquer contrato comutativo normal”.
Aduz o emérito civilista: “Se é certo que em todo contrato há um
risco, pode-se contudo dizer que no contrato aleatório este é da sua
essência, pois que o ganho ou a perda consequente está na
dependência de um acontecimento incerto para ambos os
contratantes. O risco de perder ou de ganhar pode ser de um ou de
ambos; mas a incerteza do evento tem de ser dos contratantes, sob
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pena de não subsistir a obrigação” .
Todavia, os contratos aleatórios não se confundem com os
contratos condicionais. Enquanto nestes a eficácia do contrato
depende de um evento futuro e incerto, nos aleatórios o contrato é
perfeito desde logo, surgindo apenas um risco de a prestação de
uma das partes ser maior ou menor, ou mesmo não ser nenhuma245.
A distinção entre contratos comutativos e aleatórios é de
indiscutível importância, como já dissemos anteriormente (v.
Capítulo III, Classificação dos contratos, n. 4, retro), visto que estão
submetidos a regimes legais diversos. Assim, por exemplo, o
Código Civil, ao cuidar da evicção, restringe--a ao campo dos
contratos comutativos; os vícios redibitórios apresentam-se,
exclusivamente, nos contratos comutativos (CC, art. 441); criou-se
um regime especial para os contratos aleatórios, nos arts. 458 a
461; a rescisão por lesão não ocorre nos contratos aleatórios, mas
apenas nos comutativos.
Com efeito, a possibilidade de oferecimento de suplemento
suficiente, prevista no art. 157 do atual Código Civil, reforça a ideia
defendida pela doutrina de que a lesão só ocorre em contratos
comutativos, em que a contraprestação é um dar e não um fazer, e
não nos aleatórios, pois nestes as prestações envolvem risco e, por
sua própria natureza, não precisam ser equilibradas.
A propósito, assevera H T J , com arrimo
nas lições de O G e C G , que da
“especial essência do contrato aleatório decorre que a eventual
disparidade entre prestação e contraprestação jamais poderá ser
considerada como ‘lesão’ para a parte frustrada na sua expectativa
de ganho ou lucro no negócio convencionado sob cláusula de risco.
Inocorre, in casu, locupletamento indevido ou enriquecimento sem
causa, porque as partes, ao pactuarem o contrato aleatório,
assumiram conscientemente a probabilidade de prestações
desproporcionais”246.
A jurisprudência francesa é toda no sentido de que “em princípio,
os contratos aleatórios se livram das sanções da lesão”, por vários
fundamentos, entre os quais o de que, nesse tipo de negócio
jurídico, “as partes aceitaram voluntariamente o risco, a submissão
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ao azar, que constitui um dos elementos do contrato” .
Somente se poderá invocar a lesão nos contratos aleatórios,
todavia, excepcionalmente, como assinala A B “quando
a vantagem que obtém uma das partes é excessiva,
desproporcional em relação à álea normal do contrato”248. A
situação se aproximaria, neste caso, do fortuito e da força maior.
Do mesmo modo, se a intenção das partes transparece de modo
a não sugerir dubiedade alguma, o recurso ao princípio da boa-fé
esbarra em outros princípios igualmente relevantes, dentre eles o da
“especificidade do objeto da obrigação” e o da “força obrigatória dos
contratos”. Na verdade, como sublinha H T
J , a boa-fé funciona como meio de interpretar a vontade
contratual, nunca como fonte de criar vínculo obrigacional
anteriormente estabelecido sem vício ou defeito de espécie alguma.
Citando H P , afirma o mencionado jurista mineiro que o
princípio da boa-fé não tem outro escopo que o de “préciser
l’interprétation que le juge peut faire d’un contrat”. O intérprete,
obviamente, jamais poderá deformar a convenção, a pretexto de
aplicar a teoria da boa-fé249.
Além dos aleatórios por natureza, há contratos tipicamente
comutativos, como a compra e venda, que, em razão de certas
circunstâncias, tornam-se aleatórios. Denominam-se contratos
acidentalmente aleatórios.
Os contratos acidentalmente aleatórios são de duas espécies: a)
venda de coisas futuras; e b) venda de coisas existentes, mas
expostas a risco. Nos que têm por objeto coisas futuras, o risco
pode referir-se: a) à própria existência da coisa; e b) à sua
quantidade.
Do risco respeitante à própria existência da coisa trata o art. 458
do Código Civil. Tem-se, na hipótese, a emptio spei ou venda da
esperança, isto é, da probabilidade de as coisas ou fatos existirem.
O art. 459 cuida do risco respeitante à quantidade maior ou menor
da coisa esperada (emptio rei speratae ou venda da coisa
esperada). A venda de coisas já existentes, mas sujeitas a
perecimento ou depreciação, é disciplinada nos arts. 460 e 461.
2. VENDA DE COISAS FUTURAS

2.1. RISCO CONCERNENTE À PRÓPRIA EXISTÊNCIA DA


COISA: EMPTIO SPEI
Do risco respeitante à própria existência da coisa trata o art. 458
do Código Civil, nestes termos:
“Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos
futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes
assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi
prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa,
ainda que nada do avençado venha a existir”.
Tem-se, na hipótese, a emptio spei ou venda da esperança, isto é,
da probabilidade de as coisas ou fatos existirem. Caracteriza-se, por
exemplo, quando alguém vende a colheita futura, declarando que “a
venda ficará perfeita e acabada haja ou não safra, não cabendo ao
comprador o direito de reaver o preço pago se, em razão de geada
ou outro imprevisto, a safra inexistir”. Se o risco se verificar, “sem
dolo ou culpa do vendedor, adquire este o preço; se não houver,
porém, colheita por culpa ou dolo do alienante, não haverá risco, e o
contrato é nulo”250.
Costuma-se mencionar, como exemplo da espécie ora tratada, o
da pessoa que propõe pagar determinada importância ao pescador
pelo que ele apanhar na rede que está na iminência de lançar ao
mar. Mesmo que, ao puxá-la, verifique não ter apanhado nenhum
peixe, terá o pescador direito ao preço integral, se agiu com a
habitual diligência.
S R chama a atenção para a desproporção das
prestações, no exemplo clássico figurado, lembrando que poderá
ela ser acentuada em sentido contrário, quando o pescador colhe
quantidade de peixe em muito superior ao preço recebido. Do fato,
extrai a seguinte ilação: “É a possível desigualdade entre as
prestações, bem como a impossibilidade de se verificar desde logo
o montante da prestação de uma ou de outra parte, que caracteriza
o contrato aleatório”251.

2.2. RISCO RESPEITANTE À QUANTIDADE DA COISA


ESPERADA: EMPTIO REI SPERATAE
O art. 459 cuida do risco respeitante à quantidade maior ou menor
da coisa esperada (emptio rei speratae ou venda da coisa
esperada):
“Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o
adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade,
terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua
parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir
em quantidade inferior à esperada.
Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação
não haverá, e o alienante restituirá o preço recebido”.
Assim, se o risco da aquisição da safra futura limitar-se à sua
quantidade, pois deve ela existir, o contrato fica nulo se nada puder
ser colhido. Porém, se vem a existir alguma quantidade, por menor
que seja, o contrato deve ser cumprido, tendo o vendedor direito a
todo o preço ajustado. Ou, voltando ao exemplo do pescador, se o
terceiro comprou o produto do lanço de sua rede, assumindo
apenas o risco de ele conseguir apanhar maior ou menor
quantidade de peixes, o proponente se liberará se a rede vier
vazia252.
3. VENDA DE COISAS EXISTENTES, MAS EXPOSTAS A RISCO
A venda de coisas já existentes, e não futuras, mas sujeitas a
perecimento ou depreciação é disciplinada no art. 460, como segue:
“Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas
expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o
alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em
parte, ou de todo, no dia do contrato”.
Menciona J L A , como exemplo, a venda de
mercadoria que está sendo transportada em alto-mar por pequeno
navio, cujo risco de naufrágio o adquirente assumiu. É válida,
mesmo que a embarcação já tenha sucumbido na data do contrato.
Se, contudo, o alienante sabia do naufrágio, a alienação “poderá ser
anulada como dolosa pelo prejudicado”, como prescreve o art. 461
253
do Código Civil, cabendo ao adquirente a prova dessa ciência .
Neste caso, o adquirente não terá guardado, na celebração do
contrato, os princípios da probidade e boa-fé, exigidos no art. 422 do
atual diploma.

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