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Derecho y Cambio Social N.

° 55

A APLICABILIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL


PRIVADO ÀS RELAÇÕES FAMILIARES
Suelen Rodrigues da Silva Dall’Oglio1
Marcelo Fernando Quiroga Obregon2

Fecha de publicación: 01/01/2019

Sumário: Introdução. 1. Os institutos familiares no direito


comparado. 2. Os institutos do direito de família e a relação com
o direito internacional privado. – Considerações finais. –
Referências.

Resumo: Busca analisar a aplicabilidade do Direito Internacional


Privado às relações familiares brasileiras. Aborda, inicialmente,
os institutos do Direito de Família no Direito comparado, tratando
das peculiaridades do tema no Brasil e na Argentina. Em seguida,
apresenta a relação entre os institutos do Direito de Família e o
Direito Internacional Privado, versando, para tanto, sobre o
casamento e a união estável e, por consequência, o divórcio e o
regime de bens; sobre a guarda e a regulamentação de visitas dos
filhos; e, por fim, sobre os alimentos, fazendo uma análise acerca

1
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV.
suelen.dalloglio@gmail.com
2
Doutor em Direito .Direitos e Garantias Fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória -
FDV, Mestre em Direito Internacional e Comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Especialista em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo,
Coordenador Acadêmico do curso de especialização em Direito Marítimo e Portuário da
Faculdade de Direito de Vitória - FDV -, Professor de Direito Internacional e Direito Marítimo
e Portuário nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória -
FDV.
mfqobregon@yahoo.com.br

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da homologação da sentença estrangeira de alimentos e sua
execução, da ação de alimentos pelo estrangeiro e das convenções
sobre a prestação alimentícia aos filhos. Trata toda a temática por
meio da análise da legislação e dos posicionamentos doutrinários
pertinentes, com a contribuição de autores como Jacob Dolinger,
Yussef Said Cahali e Arnaldo Rizzardo, dentre outros.
Palavras-chave: Direito internacional privado. Relações
familiares. Direito comparado. Institutos do Direito de Família.

INTERNATIONAL PRIVATE LAW APPLICABILITY TO


FAMILIES RELATIONS
Abstract: It seeks to analyze the applicability of private
international law to brazilian family relations. Initially, he
approaches the Institutes of Family Law in Comparative Law,
dealing with the peculiarities of the subject in Brazil and
Argentina. It then presents the relationship between the Institutes
of Family Law and Private International Law, dealing with both
marriage and stable union and, consequently, divorce and the
property regime; on the custody and regulation of children's
visits; and finally on food, by examining the ratification of the
foreign sentence on food and its execution, the action of food
abroad and the agreements on the provision of food to the
children. It deals with the whole thematic through the analysis of
the legislation and the pertinent doctrinal positions, with the
contribution of authors like Jacob Dolinger, Yussef Said Cahali
and Arnaldo Rizzardo, among others.
Keywords: Private international law. Family relationships.
Comparative law. Institutes of Family Law.

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INTRODUÇÃO
O Direito Internacional Privado, na concepção de Jacob Dolinger,
[...] só surge quando ocorre algum fator extraterritorial, seja no plano
subjetivo da relação jurídica, seja em algum aspecto objetivo da mesma.
Quando isto acontece, a situação se encontra ligada a dois sistemas jurídicos,
e há que ser feita a escolha sobre a lei aplicável, o que se soluciona por meio
das regras do Direito Internacional Privado que determinam qual o direito
interno apropriado para a quaestio juris.3
Como exemplo, pode-se citar o caso de quando os nubentes possuem
nacionalidade ou domicílio diferentes no momento do casamento, é
necessário determinar a lei aplicável ao casamento, às suas formalidades, ao
regime de bens e até ao eventual ato de divórcio ou anulação do matrimônio.4
Diante disso, percebe-se que o Direito Internacional Privado visa regular os
conflitos existentes entre diferentes territórios, principalmente com relação
às leis aplicáveis para solucioná-los. Assim, pode-se dizer que a disciplina
em questão “se baseia na análise da relação jurídica e de sua qualificação,
para localizar a conexão ao sistema jurídico mais adequado, visando a sua
aplicação”5.
Visto isso, cabe aqui fazer uma relação entre o Direito Internacional Privado
e o Direito de Família. Pois bem, Arnaldo Rizzardo sustenta que
[...] o conteúdo que envolve o direito de família: cônjuges, prole, casamento,
união estável, entidade familiar (conjunto de pessoas formado por um dos
pais ou ascendentes e seus descendentes), separação, divórcio, parentes,
adoção, filiação, alimentos, bem de família, tutela, curatela, etc. [...].6

3
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 26.
4
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 26/27.
5
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 32.
6
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.
03.

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No entanto, trataremos aqui sobre os institutos mais conhecidos do Direito
de Família, quais sejam, o casamento (ou união estável), a guarda e a
regulamentação de visitas dos filhos, bem como a prestação de alimentos em
favor destes.
Em alguns casos, o casamento pode ser celebrado no exterior; celebrado
entre pessoas de nacionalidades diferentes; ou, ainda, celebrado em um país
entre pessoas nacionais de outro território. Tais acontecimentos necessitam
de intervenção do Direito Internacional Privado para regular qual a
legislação aplicável ao caso concreto. Da mesma forma quando se discute
guarda, visitas e alimentos dos filhos entre pais que residem em territórios
distintos, ou seja, em países distintos.
Por todo exposto, é clara a aplicabilidade do Direito Internacional Privado
às relações familiares, quando estas ultrapassarem as barreiras do território
nacional, passando, assim, a depender de institutos que estabeleçam a lei
aplicável ao caso, de forma a garantir a proteção que estas relações
necessitam.
Visto isso, é necessário esclarecer que, no primeiro capítulo, falaremos sobre
como é o Direito de Família no Brasil, regido, basicamente, pelo Código
Civil de 2002, e sobre o Direito de Família na Argentina, cujo Código Civil
e Comercial foi recentemente promulgado, em 2014, fazendo, assim, uma
breve análise no direito comparado.
Já no segundo, e último, capítulo, buscaremos tratar dos principais institutos
do Direito de Família e relacionando-os com o Direito Internacional Privado.
Para tanto, trataremos sobre o casamento e a união estável celebrados no
Brasil por estrangeiros, ou por brasileiros no estrangeiro, ou entre pessoas de
nacionalidades diferentes, e, após, analisaremos as implicações do instituto,
quais sejam, o divórcio e o regime de bens.
Posteriormente, trataremos sobre a guarda e regulamentação de visitas dos
filhos no caso de pais que residem em países diferentes, bem como sobre as
hipóteses de sequestro ou subtração interparental.
Por fim, analisaremos a prestação de alimentos, caminhando pela análise da
homologação da sentença estrangeira, da execução desta, da ação de
alimentos pelo estrangeiro e uma breve análise sobre as Convenções que
tratam do assunto.
1. OS INSTITUTOS FAMILIARES NO DIREITO COMPARADO
De início, entendeu-se por necessário fazer uma breve abordagem no direito
comparado entre Brasil e Argentina com relação aos institutos do Direito de

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Família regido pelos países, assim, passaremos à análise de cada um
separadamente.
1.1 DIREITO DE FAMÍLIA NO BRASIL
Primeiramente, cabe dizer que a conceituação do termo “família”, no Brasil,
é bem mais ampla do que imaginamos, ou seja, não se restringe ao casal e
respectivos filhos, ao contrário, ela alcança os “ascendentes, descendentes,
colaterais até o quarto grau, aos afins e ao parentesco civil” 7.
Sendo assim, verifica-se que o termo “família” abrange os pais, avós,
bisavós, filhos, netos, bisnetos, tios, primos, sogros, sogras, cunhados, etc.,
seguindo sempre nas respectivas linhas mencionadas por Magalhães.
Com relação à natureza do Direito de Família, a maioria da doutrina entende
que este é pertencente ao Direito Privado, “embora seja um ramo do Direito
Privado marcado fortemente por normas consideradas de ordem pública”8.
Assim sustenta Maria Berenice:
[...] A tendência em afirmar que o direito das famílias pende mais ao direito
público do que ao direito privado decorre da equivocada ideia de que busca
tutelar as entidades familiares mais do que os bseus integrantes.
O fato de permearem as relações familiares, interesses que dizem com a
capacidade e a identidade das pessoas não significa ter o direito das famílias
migrado para o direito público.9
Na mesma linha segue Rolf Madaleno, quando trata das noções de direito de
família, ao dizer que este Direito “respeita ao conjunto de normas jurídicas
que regulam as relações familiares, integra uma parte do Direito Civil, e,
portanto, está em conformidade com o Direito Privado” 10.
Ultrapassadas as bases conceituais, devemos analisar agora, suscintamente,
os principais institutos do Direito de Família. Antes, é válido destacar os três
temas identificadores desse Direito, na concepção de Maria Berenice:
[...] (a) direito matrimonial – cuida do casamento, sua celebração, efeitos,
anulação, regime de bens e sua dissolução; (b) direito parental – volta-se

7
MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Direito de família no novo código civil brasileiro. 2. ed.
rev. e atual. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 23.
8
ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Introdução ao direito de família. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003, p. 19.
9
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 38.
10
MADALENO, Rolf. Direito de família. 7. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2017, p. 37.

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para a filiação, adoção e relações de parentesco; e (c) direito protetivo ou
assistencial – inclui poder familiar, alimentos, tutela e curatela.11
Rolf Madaleno bem aborda que
[...] o Direito de Família codificado só reconhece como entidades familiares
as que preencham os pressupostos do casamento, da união estável e das
relações monoparentais, embora maior extensão venha sendo identificada
pela doutrina e jurisprudência, a reconhecer outras opções de constituição
familiar, como nos casos dos relacionamentos homoafetivos, para não citar
todas as outras formas conhecidas de constituição de família.12
O Direito de Família no Código Civil Brasileiro de 2002 integra a Parte
Especial, Livro IV. Sobre os seus institutos, o presente trabalho abordará os
mais importantes, quais sejam, o casamento, a união estável, a guarda e
regulamentação de visitas e os alimentos em favor dos filhos.
O casamento é conceituado no art. 1.511 do CC/02 da seguinte forma:
Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na
igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
O art. 1.514 do mesmo diploma prevê que “o casamento se realiza no
momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua
vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”.
Existe, ainda, no Direito brasileiro, a possibilidade de o casamento religioso
se equiparar ao casamento civil, desde que atendidas as exigências legais, na
forma dos artigos 1.515 e 1.516 do CC/02.
Sobre a capacidade para o casamento, o Código Civil autoriza o homem e a
mulher, a partir dos 16 anos, a contraírem núpcias, desde que autorizados
pelos pais, é o que dispõe o art. 1.517.
Podem os nubentes, em regra, escolherem o regime de bens que desejam
adotar. Caso não manifestem expressamente o desejo por um regime
específico, o código determina a adoção da comunhão parcial de bens,
conforme artigos 1.639 e 1.640.
É válido apontar, suscintamente, os regimes previstos no Direito de Família
Brasileiro: comunhão parcial de bens (art. 1.658, CC/02); comunhão
universal de bens (art. 1.667, CC/02); participação final nos aquestos (art.
1.672, CC/02); e, separação de bens (art. 1.687, CC/02).

11
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 39.
12
MADALENO, Rolf. Direito de família. 7. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2017, p. 37.

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Sobre a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, o art. 1.571 prevê
que:
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio.
Além do casamento, o CC/02 reconhece a união estável como entidade
familiar, senão vejamos:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Há ainda a previsão de que essa união estável pode ser convertida em
casamento, desde que exista pedido dos companheiros ao juiz e assento no
Registro Civil, na forma do art. 1.726.
Com a dissolução do casamento ou da união estável, em caso de existirem
filhos menores, é imprescindível decidir sobre a guarda, regulamentação de
visitas e alimentos para os mesmos.
Com relação à guarda, o Código Civil prevê duas modalidades no art. 1.583,
a guarda unilateral e a guarda compartilhada. Na forma do §1º deste
dispositivo, a guarda unilateral é aquela concedida a um dos genitores,
enquanto a compartilhada se caracteriza pela responsabilização de ambos os
pais pelo poder familiar dos filhos.
Sobre a regulamentação de visitas, o art. 1.589 dispõe que “o pai ou a mãe,
em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua
companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo
juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.
Os alimentos são regulados pelos artigos 1.694 e seguintes do CC/02, bem
como pela lei nº 5.478/68. O Código prevê que os parentes, cônjuges e
companheiros podem pedir alimentos uns aos outros, de modo compatível
com sua condição social, bem como que deverão ser fixados na proporção
das necessidades de quem pede e dos recursos de quem pagará.
Vale ressaltar que, na forma do art. 1.590, “as disposições relativas à guarda
e prestação de alimentos aos filhos menores estendem-se aos maiores
incapazes”.

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Essas são as principais considerações a se fazer sobre o Direito de Família
no Código Civil Brasileiro, ressaltando que tais institutos serão analisados,
mais profundamente, no próximo capítulo, momento em que será feita uma
análise das relações estrangeiras que os envolvem.
1.2 DIREITO DE FAMÍLIA NA ARGENTINA
Com o fim de fazer um direito comparado, escolhemos contextualizar o
Direito de Família na Argentina, cujo Código foi recém promulgado, em
2014. O Direito de Família no Código Civil e Comercial da Argentina ocupa
o Livro Segundo, intitulado de “Relaciones de familia”.
O título 1 (um) desse livro trata do matrimônio, iniciando-se com os artigos
401 e 402, que aplicam os princípios da igualdade e da liberdade. Dispõe
estes dispositivos que:
a) não se reconhece pretensão para se exigir o cumprimento de promessa de
casamento e nem para se “reclamar perdas e danos decorrentes de sua ruptura,
sem prejuízo da aplicação das regras de enriquecimento sem causa ou da
restituição das doações”; b) não é admitido interpretar ou aplicar norma para
limitar, restringir, excluir ou suprimir a igualdade de direitos e obrigações dos
integrantes do casamento, e os efeitos que este produza, independentemente
do sexo dos nubentes.13
Para que o casamento exista, é necessário o consentimento de ambos os
cônjuges, é o que prevê o art. 406:
ARTÍCULO 406. Requisitos de existencia del matrimonio Para la existencia
del matrimonio es indispensable el consentimiento de ambos contrayentes
expresado personal y conjuntamente ante la autoridad competente para
celebrarlo, excepto lo previsto en este Código para el matrimonio a distancia.
El acto que carece de este requisito no produce efectos civiles. 14
O Código em discussão prevê, ainda, a nulidade do casamento caso haja a
violação de algum impedimento absoluto ou relativo, na forma dos artigos
424 e seguintes15:

13
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.
14
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 12.
15
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.

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ARTÍCULO 424. Nulidad absoluta. Legitimados
Es de nulidad absoluta el matrimonio celebrado con alguno de los
impedimentos establecidos en los incisos a), b), c), d) y e) del artículo 403.
La nulidad puede ser demandada por cualquiera de los cónyuges y por los que
podían oponerse a la celebración del matrimonio.16
Na argentina, a fidelidade é considerada como um dever moral, nascido da
relação matrimonial17. Além disso, os cônjuges têm dever de prestar
assistência mútua, tudo em conformidade com o art. 431, que prevê que “los
esposos se comprometen a desarrollar un proyecto de vida en común basado
en la cooperación, la convivencia y el deber moral de fidelidad. Deben
prestarse asistencia mutua”18.
A extinção do matrimônio pode se dar pelo falecimento de um dos cônjuges,
pela presunção de morte com sentença declaratória de ausência e, por fim,
pela declaração judicial do divórcio.19
Em caso de extinção do casamento, o Código Argentino prevê a
compensação econômica, em seu art. 441, que consiste em concessão de uma
renda, geralmente por prazo determinado, ao cônjuge que apresente
desequilíbrio em decorrência do casamento e sua extinção, desde que isto
implique em piora da sua situação. 20
Sobre o regime de bens, assim como no Brasil, o regime legal na Argentina
é o regime de comunhão, que se aplicará automaticamente se o casal não

16
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 31.
17
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.
18
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 48.
19
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.
20
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.

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optar por outro no pacto antenupcial. Outro regime disponível é o de
separação de bens.21
O código em comento também prevê a existência da união estável, chamada
de “uniones convivenciales”, conceituada no art. 509:
ARTÍCULO 509. Ámbito de aplicación
Las disposiciones de este Título se aplican a la unión basada en relaciones
afectivas de carácter singular, pública, notoria, estable y permanente de
dospersonas que conviven y comparten un proyecto de vida común, sean del
mismo o de diferente sexo.22
Os seus requisitos estão no art. 510 e são:
a) a maioridade de ambos os conviventes; b) não exista entre eles vínculo de
parentesco em linha reta em todos os graus, nem colateral até o segundo grau;
c) não estejam unidos por vínculos de parentesco por afinidade em linha reta;
d) não possuam impedimento e não exista outra convivência registrada de
modo simultâneo; e) o período da convivência deve ser não inferior a 2 anos. 23
A união pode ser extinta pelas seguintes causas:
ARTÍCULO 523. Causas del cese de la unión convivencial
La unión convivencial cesa:
a) por la muerte de uno de los convivientes;
b) por la sentencia firme de ausencia con presunción de fallecimiento de uno
de los convivientes;
c) por matrimonio o nueva unión convivencial de uno de sus miembros;
d) por el matrimonio de los convivientes;
e) por mutuo acuerdo;
f) por voluntad unilateral de alguno de los convivientes notificada
fehacientemente al otro;

21
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.
22
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 190.
23
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.

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g) por el cese de la convivencia mantenida. La interrupción de la convivência
no implica su cese si obedece a motivos laborales u otros similares, siempre
que permanezca la voluntad de vida en común.24
Vale ressaltar que a união estável também pode ensejar a compensação
econômica, nos mesmos moldes da concedida em virtude da extinção do
casamento.25
Sobre a prestação alimentícia, o art. 537 dispõe que ela é devida na seguinte
ordem:
a) los ascendientes y descendientes. Entre ellos, están obligados
preferentemente los más próximos en grado;
b) los hermanos bilaterales y unilaterales.
En cualquiera de los supuestos, los alimentos son debidos por los que están
en mejores condiciones para proporcionarlos. Si dos o más de ellos están en
condiciones de hacerlo, están obligados por partes iguales, pero el juez puede
fijar cuotas diferentes, según la cuantía de los bienes y cargas familiares de
cada obligado.26
O art. 541 prevê o conteúdo da obrigação alimentar, senão vejamos:
ARTÍCULO 541. Contenido de la obligación alimentaria
La prestación de alimentos comprende lo necesario para la subsistencia,
habitación, vestuario y asistencia médica, correspondientes a la condición del
que la recibe, en la medida de sus necesidades y de las posibilidades
económicas del alimentante. Si el alimentado es una persona menor de edad,
comprende, además, lo necesario para la educación.27
Estas são as principais considerações quanto ao Direito de Família regido
pelo Direito Argentino. Percebe-se que os Códigos Civis brasileiro e
argentino possuem regulamentações bem parecidas no que tange aos
principais institutos do Direito de Família que estão em análise.

24
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 213.
25
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial
(parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-
05/direito-comparado-argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.
26
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 237.
27
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa. Código civil y comercial
de la nación comentado. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015, p. 244.

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O Direito de Família no Brasil prevê o instituto do casamento, a
possibilidade de conversão do casamento religioso em civil, dispõe que a
capacidade para contrair matrimônio inicia-se aos 16 anos, com autorização
dos representantes legais, o regime de bens legal é o de comunhão parcial de
bens, podendo também optar-se pelo regime de separação total, comunhão
total ou separação final dos aquestos, o casamento se dissolve com a morte,
nulidade/anulação, separação ou divórcio. O ordenamento também
reconhece o instituto da união estável, prevendo, inclusive, a possibilidade
de conversão em casamento. A guarda dos filhos pode ser concedida de
forma unilateral ou compartilhada. E, por fim, a prestação alimentícia é
devida aos ascendentes, descendentes, cônjuges e companheiros, na medida
de suas necessidades.
Já o Direito de Família na Argentina admite o casamento desde que
consentido por ambos os cônjuges, prevê a fidelidade como dever moral,
adota como regime legal também a comunhão parcial, mas existe a
possibilidade de escolha pelo regime de separação total, e a extinção pode se
dar por falecimento, presunção de morte do cônjuge ou divórcio. A união
estável também é reconhecida, mas possui alguns requisitos mais específicos
de configuração, bem como possui a previsibilidade de causas de extinção.
Tanto para o casamento quanto para a união estável é prevista a possibilidade
de compensação econômica, que não é regulada pelo Direito brasileiro. Por
fim, os alimentos são devidos aos ascendentes, descendentes e irmãos.
2. OS INSTITUTOS DO DIREITO DE FAMÍLIA E A RELAÇÃO
COM O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
No presente capítulo, trataremos dos institutos do Direito de Família, mais
especificamente, do casamento e da união estável, e, por consequência, do
divórcio e do regime de bens; da guarda e regulamentação de visitas dos
filhos; e, por fim, da prestação de alimentos, sempre fazendo uma
interligação com o Direito Internacional Privado.
2.1 CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL
O casamento possui regras de conexão concentradas na Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 7º, que dispõe que “a lei do país
em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da
personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”.

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A partir do caput deste dispositivo, verifica-se que o que rege o Direito de
Família é a lei do domicílio.28 Assim, a regra é que, “se o casamento é válido
segundo o direito do país em que foi celebrado, é válido no estrangeiro.
Constitui-se um ato jurídico perfeito e, por conseguinte, é existente, válido e
eficaz”29.
Os dois parágrafos mais importantes do dispositivo são o 1º e o 2º,
destacados abaixo:
§ 1o Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira
quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades da celebração.
§ 2o O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades
diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes. (Redação dada
pela Lei nº 3.238, de 1957)
Na leitura do §1º, percebe-se que ele só se refere ao casamento realizado no
Brasil. No entanto, conforme entendimento de Jacob Dolinger, essa regra
deve ser interpretada de forma bilateral, ou seja, “na hipótese de casamento
realizado no exterior por pessoas domiciliadas no Brasil, serão observadas
as formalidades da legislação local”30.
Com relação ao §2º, verifica-se que “o Cônsul ou diplomata estrangeiro no
Brasil só poderá celebrar o casamento de duas pessoas de sua
nacionalidade”31. Isso, pois, nesse caso, o critério não é o domicílio, mas sim
a nacionalidade, uma vez que trata dos poderes que os consulares ou
diplomatas têm de proteger os seus nacionais, e não os domiciliados naquele
país.32
Jacob Dolinger dá um exemplo que deixa bem clara a situação apontada
acima:
Se um representante estrangeiro oficiar o casamento de indivíduo de sua
nacionalidade com um brasileiro, nosso país não reconhecerá a celebração,
pois terá ocorrido um atentado à nossa soberania. O mesmo se dá na hipótese

28
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 689.
29
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 689.
30
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 336.
31
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 337.
32
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 337.

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de o representante estrangeiro celebrar o casamento de dois estrangeiros, em
que um apenas é de sua nacionalidade. Em ambas as situações, o funcionário
diplomático ou consular terá exorbitado de seus poderes.33
Assim, este é o entendimento da doutrina e jurisprudência, tratando-se de
uma questão de harmonia, onde “não devo dar a meu representante no
exterior poderes mais amplos do que aqueles que reconheço no representante
de soberania estrangeira em meu país”34.
Maria Berenice Dias afirma que, “quer sejam ambos ou somente um dos
noivos brasileiros, o casamento no exterior pode ocorrer tanto perante as
autoridades consulares brasileiras como perante as autoridades locais” 35.
Se realizado perante o consulado brasileiro, vale ressaltar a regra do art.
1.544 do Código Civil de 2002, que dispõe o seguinte:
Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as
respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em
cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao
Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1o Ofício da
Capital do Estado em que passarem a residir.
Sobre o registro, Berenice Dias diz que o efeito é apenas declaratório,
possuindo efeito ex tunc, ou seja, o registro produz efeitos desde a data da
celebração.36
Com relação à regra do artigo supracitado, Stolze e Pamplona entendem que
ela deve ser aplicada somente se um ou ambos dos cônjuges voltarem ao
Brasil para fixarem residência, senão vejamos:
Indo além da discussão se a expressão “volta” seria mais adequada ou não,
parece-nos que o sentido da norma é de prestigiar uma regra de soberania
nacional, com a finalidade de disciplinar as relações jurídicas entre aqueles
que pretendem residir em seu território. [...] Por isso, compreendemos a
expressão volta como ingresso com “animus” de permanência.37

33
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 337.
34
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 337.
35
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 690.
36
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 690.
37
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil,
volume 6: direito de família – as famílias em perspectiva constitucional. 3. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 159/160.

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Conforme entendimento da jurisprudência, é suficiente que um dos nubentes
seja brasileiro para que seja possível transladar o assento de seu casamento
realizado em outro país. 38
Rizzardo ainda afirma que essa permissão de registro se estende ao
casamento de estrangeiros, de brasileiros com estrangeiros, de brasileiros
cuja celebração não se deu perante a autoridade consular e, ainda quando o
casamento foi procedido na forma de lei estrangeira. 39
No entanto, cabe ressaltar o fato de que o registro não dá eficácia ao
casamento, conforme defende Rizzardo:
Com o registro, não adquire eficácia o casamento, eis que o oficial limita-se
unicamente a transcrever os dados constantes da certidão estrangeira. Assim,
não se admite atacar a validade do casamento pelos dados constantes do
registro. A finalidade do registro não é outra senão a sua publicidade.
Qualquer vício ou nulidade deverá ser pesquisada segundo os elementos da
certidão e a lei do país onde se efetuou.40
Já para os estrangeiros que queiram se casar no Brasil, a regra é que o
matrimônio pode ser concebido “perante a autoridade diplomática do país de
origem dos noivos, em que se aplica a legislação do país de ambos” 41.
Ademais, devem ser respeitadas as regras da legislação brasileira, ou seja, “é
necessário que ambos sejam da mesma nacionalidade, pois somente podem
casar perante a autoridade diplomática ou consular de seu país (LINDB 7.º
§1.º)”42.
Com relação à união estável, já mencionamos no capítulo anterior que ela é
reconhecida pelo Código Civil Brasileiro de 2002 no art. 1.723, que possui
como requisitos a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida
com o objetivo de constituição de família.
Rodrigo da Cunha Pereira conceitua a união estável como “[...] a relação
afetivo-amorosa entre duas pessoas, “não adulterina” e não incestuosa, com

38
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 73/74.
39
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 74.
40
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 75.
41
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 690.
42
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 690.

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estabilidade e durabilidade, vivendo sob o mesmo teto ou não, constituindo
família sem o vínculo do casamento civil” 43.
É válido mencionar alguns países que reconhecem e regulamentam o
instituto da união estável, cada um com alguma particularidade, mas que, no
geral, visam o mesmo objetivo de ampliar a incorporação do termo “família”
e se adequar às novas relações familiares que vêm surgindo ao longo do
tempo. São alguns deles: Itália, Cuba, México, Venezuela, Guatemala,
Panamá, Colômbia, Bolívia, França e Portugal.44
Além disso, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona também trazem a Alemanha
como país aceitador do instituto, ao dizerem que “na Alemanha, as uniões de
fato [...] entre pessoas de sexo diferente [...] convivem com aquelas formadas
por pessoas do mesmo sexo [...]. O crescente número de casais em união
estável resultou na aceitação social do instituto” 45.
Agora, é necessário analisar as principais implicações do casamento/união
estável, quais sejam, divórcio/dissolução e regime de bens.
2.1.1 Divórcio
Em primeiro lugar, cabe destacar que “o divórcio é causa terminativa da
sociedade conjugal; porém, este possui efeito mais amplo, pois dissolve o
vínculo matrimonial”46. Entendido o conceito do instituto, devemos passar a
relacioná-lo com o Direito Internacional Privado.
Berenice Dias sustenta que “sendo um ou ambos os cônjuges brasileiros, é
de competência da justiça brasileira a dissolução do casamento realizado no
estrangeiro, quando o casal reside no Brasil e o casamento foi levado a
registro cartorário”47, isto por conta do fato de que o Direito de Família é
regido pela lei do domicílio, conforme já destacado anteriormente.

43
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 8. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 47.
44
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 8. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 37/44.
45
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil,
volume 6: direito de família – as famílias em perspectiva constitucional. 3. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 427.
46
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 905.
47
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 691.

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O art. 7º, §6º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro dispõe o
seguinte:
Art. 7º. § 6º O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges
forem brasileiros, só será reconhecido no Brasil depois de 1 (um) ano da data
da sentença, salvo se houver sido antecedida de separação judicial por igual
prazo, caso em que a homologação produzirá efeito imediato, obedecidas as
condições estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no país. O
Superior Tribunal de Justiça, na forma de seu regimento interno, poderá
reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos
de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de
que passem a produzir todos os efeitos legais. (Redação dada pela Lei nº
12.036, de 2009).
Essa redação foi dada para adequar a norma à Constituição Federal, mas,
após a EC 66/2010, com a modificação do art. 226, §6º da CF/88, tornou-se
inexigível o prazo de 01 (um) ano contado da data da sentença, ou de
qualquer outro.48
Assim, entende-se que “o divórcio obtido no estrangeiro somente terá efeito
no território nacional se homologado pelo STJ”49. Diante disso, é notório
que, ainda que seja classificada como ineficaz a sentença estrangeira não
homologada, o entendimento majoritário é de que seria nulo o casamento
celebrado posteriormente pelo divorciado no exterior, sem a devida
homologação desta sentença.50
Por outro lado, se tratando de estrangeiros divorciados que venham a
estabelecer domicílio no Brasil, Cahali defende a dispensa de homologação,
quando diz que “não será de exigir-se a homologação da sentença quando os
estrangeiros, já divorciados no país de origem, aqui venham a instalar
domicílio, portanto um novo estado conjugal perfeito e acabado” 51.
Ao homologar a sentença, é importante frisar que o magistrado deve se ater
aos termos nela descrito, independentemente do país em que tenha sido
proferida, dessa forma, por exemplo, se a sentença foi proferida em um país
onde o divórcio produz efeitos apenas para a separação de corpos e bens, não

48
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1048.
49
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1049.
50
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1049/1050.
51
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1051.

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dissolvendo efetivamente o vínculo matrimonial, a sua homologação do
Brasil não poderá ampliar o conteúdo para conferir os efeitos de divórcio
deste país.52
Sobre a hipótese de anulação de casamentos realizados no exterior, Jacob
Dolinger sintetiza que, se uma das partes pleiteasse a invalidade perante a
jurisdição brasileira, deveria ser aplicada a lei do local onde se realizou o
casamento, no que diz respeito às formalidades do ato; já se o pedido se
baseasse em aspectos substanciais de validade, a lei aplicável seria a indicada
pelo Direito Internacional Privado do local da celebração; por fim, no caso
de pessoas domiciliadas no Brasil que se casaram no exterior, incorrendo em
alguma vedação imposta por nosso legislador, deve ser decretada a anulação
pela jurisdição brasileira.53
2.1.2 Regime de bens
Conforme já mencionado, o Brasil adota o regime legal de bens como sendo
o de comunhão parcial, mas, querendo, os nubentes podem optar por outros
regimes disponíveis, quais sejam, a comunhão universal, a separação
convencional e a participação final nos aquestos. Visto isso, explicaremos,
de forma sucinta, como funciona esse instituto no direito internacional
privado.
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro dispõe no art. 7º, §4º,
que “o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que
tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio
conjugal”.
Vale ressaltar que, a regra, é que predomina “perante o direito internacional
privado, ser o domicílio, e não a nacionalidade, que determina as regras sobre
os direitos. Prevalece o ordenamento jurídico do país onde as pessoas têm o
domicílio, por um princípio inerente ao direito de soberania das nações” 54.
Desse modo, Rizzardo entende que
[...] prevalece a lei do domicílio para firmar o regime legal de bens, quando
os nubentes têm domicílio no mesmo país estrangeiro, e lá continuam a
residir. Se os nubentes procedem de países distintos, ou têm domicílio

52
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1054.
53
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 344.
54
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 607.

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diverso, e se casam num deles, impor-se-á o regime legal do primeiro
domicílio conjugal, isto é, do país onde forem se estabelecer.55
Ademais, não importa a volta ao Brasil depois de algum tempo, não poderá
o casal optar por um novo regime de bens, desconsiderando o do
casamento.56 No entanto, entende Maria Berenice Dias, pautada no art. 7º,
§5º, da LINDB, que “o estrangeiro casado que se naturalizar brasileiro, pode
adotar o regime da comunhão parcial de bens. Basta haver a concordância
do cônjuge, devendo o pedido ser formulado quando da entrega do decreto
de naturalização”57.
A lei supramencionada também determina, em seu art. 8º:
Art. 8o Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes,
aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.
§ 1o Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto
aos bens moveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros
lugares.
§ 2o O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja
posse se encontre a coisa apenhada.
O caput, na visão de Dolinger, “segue a regra de conexão lex rei sitae – a lei
do local da situação do bem”58. O autor argumenta que esta norma decorre
de um princípio de ordem pública, uma vez que não seria razoável
regulamentar por leis diversas (pessoal de seu proprietário) bens localizados
no mesmo território.59
Sobre o parágrafo primeiro, o autor salienta que “seria uma exceção à regra
geral do caput, referindo-se a bens in transitu com relação aos quais há de se
evitar bruscas mudanças ocasionadas pela mobilidade do bem” 60.
Sobre a partilha de bens imóveis situados no Brasil, Cahali sustenta que

55
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 607.
56
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 608.
57
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 691.
58
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 347.
59
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 347.
60
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 348.

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[...] se perante o juízo competente para o divórcio ficou decidida a partilha
dos bens, ainda que compreendendo bens situados no Brasil, não ofende a
soberania nacional ou a ordem pública a homologação, sem restrições, da
sentença – ressalvada, obviamente, a hipótese em que a sentença a ser
homologada, no estabelecer da partilha, possa ser considerada ofensiva aos
princípios de ordem pública e aos bons costumes.61
No mesmo sentido, não há impedimento ao fato de que, “já homologado
anteriormente o divórcio de brasileira decretado pelo tribunal alienígena, seja
apresentada à homologação partilha de bens da sociedade conjugal
processada posteriormente perante o mesmo tribunal estrangeiro, com
aplicação das leis brasileiras”62.
Ademais, tendo em vista o art. 4º, §2º da Resolução n º 9/2005 do STJ, que
prevê que “as decisões estrangeiras podem ser homologadas parcialmente”,
entende-se que pode ser homologada a sentença estrangeira de divórcio,
ressalvada a partilha de imóveis localizados no Brasil.63
Berenice Dias entende ser a patilha de bens imóveis localizados no Brasil é
de competência exclusiva deste país, baseando-se no art. 12, §1º, da LINDB,
e art. 23, I, do CPC.64
2.2 GUARDA E REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS
A questão da guarda e regulamentação de visitas, assim como os alimentos
em favor dos filhos, que serão tratados no próximo tópico, devem ser
decididos por ocasião do divórcio dos cônjuges, seja consensual ou litigioso.
Sobre o tema, Maria Berenice sustenta que
Como as demandas de família são regidas pela competência territorial
(LINDB 7.º), insere-se neste conceito tudo o que diz respeito aos filhos. No
entanto, a transferência e permanência de uma criança ou adolescente para
outro país, sem que haja o consentimento de um dos genitores, é
equivocadamente nominado de sequestro internacional. Quando ocorre a
subtração de forma ilícita, o procedimento de repatriação é regulado pela

61
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1071.
62
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1071.
63
Ibidem, p. 1072.
64
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 693.

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Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças,
abreviadamente chamada de Convenção de Haia.65
Diante desse fato, que tramita perante a justiça federal, fica impedida a
deliberação sobre a guarda e visitação definitivos no processo de divórcio,
mas é possível requerer, perante a justiça estadual, a regulamentação
provisória de guarda e visitas dos filhos, até que seja solucionada a questão
internacional.66
Vale ressaltar que “não se trata de ‘sequestro’ como delito previsto no direito
penal. Por isso se costuma chamar de subtração interparental ou
deslocamento ilegal”67. A Convenção de Haia faz as seguintes
determinações:
[...] que os países ratificantes enviem de volta as crianças ilicitamente
retiradas do país de sua residência habitual (1.º, a). Regula a guarda e o direito
de visita aos infantes (5.º e 21). Também serve para dar efetividade ao direito
de visita de um dos pais ou parente, por meio dos mecanismos postos à
disposição das autoridades centrais de cada Estado. É reconhecida como
ilícita a retenção ou remoção quando houver violação do direito de guarda
atribuído a uma pessoa, ou a uma instituição ou qualquer outro organismo, de
forma individual ou conjunta, pela lei do Estado onde a criança tinha sua
residência habitual imediatamente antes da conduta ilícita. O direito de
guarda pode resultar de uma atribuição de pleno direito, de uma decisão
judicial ou administrativa ou de um acordo (3.º).68
Diante disso, tendo em vista que “as autoridades do país de origem
apresentam melhores condições para decidir sobre a guarda e a vida da
criança, é determinado o seu retorno imediato” 69.

65
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 695.
66
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 695.
67
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 695/696.
68
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 696.
69
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 696.

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Para que isto ocorra, é concedido o prazo de seis semanas para que as
autoridades judiciais e/ou administrativas tomem as medidas de urgência
para promoverem o retorno da criança ao país de origem. 70
No entanto, nem sempre a autoridade é obrigada a determinar o retorno da
criança, como nas hipóteses abaixo:
a) quando a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa
da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da
transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado
posteriormente com esta transferência ou retenção; b) havendo risco grave de
a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica,
ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.71
Ademais, poderá “haver recusa quando se verificar que a criança atingiu
idade e grau de maturidade em que seja apropriado levar em consideração as
suas opiniões sobre o assunto”72, bem como “quando não for compatível com
os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais”73.
Em resumo, com fulcro no art. 7º da LINDB, a regulamentação de guarda e
visitas dos filhos menores também deverá ser regida pela lei do domicílio.
2.3 ALIMENTOS
2.3.1 Homologação da sentença estrangeira de alimentos
Assim como no caso do divórcio, se já existe uma sentença fixando os
alimentos, seja por ação própria ou em decorrência da dissolução do vínculo
conjugal, proferida em Estado estrangeiro, compete ao STJ homologá-la,
para que possa ser executada através da Procuradoria-Geral da República, no
Brasil, lugar de domicílio do devedor.74
Vale ressaltar que a homologação deve ser requerida de acordo com a lei do
estado do devedor, com fulcro no art. VI, item 3, da Convenção de Nova

70
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 696.
71
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 698.
72
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 698.
73
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 698.
74
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 820/821.

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York, mas isto não interfere na competência do foro para ação originária em
virtude da nacionalidade ou local de domicílio do alimentando. 75
A regra é que “a homologação não tem eficácia retroativa para ressalvar
ajustes anteriores à sentença homologada”76. No entanto, com relação ao
pedido de revisão de pensão, verifica-se que ele escapa do requerimento de
homologação, pois esta “não se presta para inovar o conteúdo da sentença
estrangeira homologanda, devendo eventuais pretensões revisionais ser
deduzidas por via de ação autônoma”77.
2.3.1.1 Execução da sentença homologada
Sobre a execução dos alimentos, é válido mencionar que
[...] apenas para as execuções de alimentos decorrentes da aplicação da
Convenção sobre a Prestação de Alimentos no Estrangeiro, promulgada pelo
Dec. 56.826/1965, é competente o juízo federal da Capital da unidade
federativa brasileira em que reside o devedor, funcionando a Procuradoria-
Geral da República como Instituição Intermediária nos termos do art. 26,
caput, da Lei 5.478/1968, legitimada, assim, também para pedir a
homologação da sentença.78
Por outro lado, “se o credor reside no Brasil e o devedor no exterior, a
execução se fará igualmente de conformidade com o estabelecido na referida
Convenção, atuando agora a Procuradoria-Geral como Instituição
Remetente, inobstante a omissão do citado art. 26”79.
Ademais, é sabido que “sem a homologação da sentença estrangeira,
necessário se promova a própria ação de alimentos. Com aquele ato, torna-
se a sentença um título executivo, podendo as obrigações do devedor serem
executadas no domicílio dele próprio” 80.
2.3.2 Ação de alimentos pelo estrangeiro

75
Ibidem, p. 821.
76
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 823.
77
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, 823.
78
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 825.
79
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 826.
80
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 771.

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No que tange à ação de alimentos pelo estrangeiro, é sabido que:
Por aplicação da lei domiciliar dos cônjuges, ainda que estrangeiros,
considera-se que, se a sentença de divórcio nada estabeleceu a respeito de
alimentos nem chegou a ser homologada no Brasil, a Justiça brasileira está
livre para decidir sobre tais alimentos, de acordo com os princípios do direito
comum que aqui vigoram, a que e subordinam os litigantes aqui
domiciliados.81
Sendo assim, verifica-se que resta preservada “a ineficácia da sentença
estrangeira de divórcio, se não homologada pelo STJ”82.
Sobre a obrigação alimentar de pessoa residente no exterior, Rizzardo
defende que
Seja nacional ou estrangeiro o devedor de alimentos, se residente no Brasil,
subordina-se à autoridade judiciária brasileira. A ação de alimentos é
promovida, no Brasil, no foro do domicílio do credor, obedecendo-se o
princípio universalmente aceito de que a lei nacional se aplica aos
jurisdicionados de determinado Estado [...]. [...] De igual modo, quando a
obrigação aqui deva ser cumprida. Ou a ação se originar de fato ocorrido ou
de ato praticado no Brasil [...]”.83
A partir do entendimento acima, verifica-se, novamente, a aplicação da lei
do domicílio como forma de regência dos conflitos.
2.3.3 Convenções sobre a prestação alimentícia
A respeito da Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar,
ressalta Dolinger que ela “cobre a obrigação entre cônjuges, bem como entre
pais e filhos”84, e, além disso, dispõe,
[...] em seu art. 6º, que a lei aplicável será a que for mais benéfica para o
credor dos alimentos dentre as leis do país do domicílio ou residência habitual
do credor e do domicílio ou residência habitual do devedor. A lei aplicável
determinará a quantificação do valor dos alimentos, as épocas e condições do

81
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 824.
82
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 825.
83
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011,
p. 769.
84
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 340.

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pagamento, quem pode representar o credor no pedido de alimentos e outras
condições necessárias para o exercício do direito aos alimentos (art. 7º).85
Ressalta-se que o Brasil também faz parte da Convenção de Nova York, que
trata da prestação de alimentos no estrangeiro, e tem como finalidade
possibilitar que alguém que está em país membro obtenha alimentos de
pessoa que se localiza em outro país membro e, para tanto, tal instrumento
inseriu formas específicas como complementação aos meios já existentes nos
direitos internos e no direito internacional. 86
Por fim, é importante mencionar que recentemente, em 19 de outubro de
2017, o Decreto n 9.176 promulgou a Convenção sobre a Cobrança
Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família e o
Protocolo sobre a Lei Aplicável às Obrigações de Prestar Alimentos.
A Convenção tem como objeto as disposições do artigo 1º, quais sejam:
A presente Convenção tem por objeto assegurar a eficácia da cobrança
internacional de alimentos para crianças e outros membros da família,
principalmente ao:
a) estabelecer um sistema abrangente de cooperação entre as autoridades dos
Estados Contratantes;
b) possibilitar a apresentação de pedidos para a obtenção de decisões em
matéria de alimentos;
c) garantir o reconhecimento e a execução de decisões em matéria de
alimentos; e
d) requerer medidas eficazes para a rápida execução de decisões em matéria
de alimentos.
Já o Protocolo, consoante disposições do artigo primeiro, “definirá a lei
aplicável à obrigação de prestar alimentos resultante de relações de
parentesco, filiação, casamento ou afinidade, inclusive a obrigação de prestar
alimentos em relação a crianças, independentemente do estado civil dos
pais”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, fez-se um breve estudo do direito comparado entre as
regulamentações do Direito de Família no Brasil e na Argentina e, assim,
percebeu-se que os institutos são bem parecidos, ressalvados alguns detalhes

85
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 340.
86
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio de Janeiro,
Forense: 2014, p. 340.

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que são tratados de forma mais profunda no Direito brasileiro do que no
Direito argentino
No segundo capítulo analisou-se os institutos do Direito de Família a partir
da aplicação do Direito Internacional Privado. Sobre o casamento e a união
estável, percebeu-se que o Direito em análise é regido, em regra, pela lei do
domicílio. Viu-se, ainda, que os casamentos celebrados no consulado só são
válidos quando ambos os nubentes forem da nacionalidade deste órgão, bem
como que os casamentos celebrados no exterior devem ser homologados pela
justiça brasileira.
Após, analisou-se as regras sobre o divórcio e percebeu-se que, se o
casamento celebrado no estrangeiro foi homologado pela justiça brasileira e
o casal aqui reside, é de competência de esta processar o julgar o divórcio.
Viu-se, ainda, que o divórcio de brasileiros realizado no estrangeiro só tem
efeito no Brasil se for homologado pelo STJ, não aplicando-se esta regra aos
divorciados estrangeiros. Sobre o regime de bens, entendeu-se que, em regra,
prevalece a lei do local de domicílio dos nubentes.
No que tange à guarda e regulamentação de visitas, percebeu-se que vigora,
também para o caso, a competência territorial, bem como foram analisadas
as questões sobre a chamada “subtração interparental”, ou sequestro, a partir
da Convenção de Haia.
Por fim, com relação à prestação de alimentos, viu-se que a sentença de
alimentos proferida no estrangeiro deve ser homologada pelo STJ, assim
como a de divórcio, formando, assim, um título executivo que pode ser
cobrado no domicílio do devedor. Ademais, analisou-se suscintamente os
preceitos da Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar, da
Convenção de Nova York, da Convenção sobre a Cobrança Internacional de
Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família e do Protocolo sobre
a Lei Aplicável às Obrigações de Prestar Alimentos.
REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2012.
CAHALI, Yussef Said. Separações conjugais e divórcio. 12. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
CARAMELO, Gustavo; PICASSO, Sebastián; HERRERA, Marisa.
Código civil y comercial de la nación comentado. 1. ed. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: Infojus, 2015.

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DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11 ed. Rio
de Janeiro, Forense: 2014.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de
direito civil, volume 6: direito de família – as famílias em perspectiva
constitucional. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.
JUNIOR, Otavio Luiz Rodrigues. Argentina promulga seu novo Código
Civil e Comercial (parte 3). Consultor Jurídico. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2014-nov-05/direito-comparado-
argentina-promulga-codigo-civil-comercial-parte>. Acesso em: 08 de
mar. de 2018.
MADALENO, Rolf. Direito de família. 7. ed. rev., atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Forense, 2017.
MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Direito de família no novo código civil
brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira,
2003.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 8. ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 8. ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Forense, 2011.
ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Introdução ao direito de família. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

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A GUARDA DOS FILHOS NO ÂMBITO INTERNACIONAL: UMA
ANÁLISE DOS DIVÓRCIOS DE CASAIS DE BRASILEIROS COM
ESTRANGEIROS QUE RESULTARAM EM GUARDA
UNILATERAL CONFLITUOSA
Raquel Reinke1
Victor Araújo de Menezes2
Ariane Simioni3

RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar a questão do divórcio e da guarda dos filhos em âmbito
internacional proveniente de uniões entre brasileiros e estrangeiros na contemporaneidade,
que é promovida, geralmente, através de sites ou redes de relacionamento da Internet, união
que se tornou cada vez mais comum nos últimos anos. Quando é configurado o matrimônio
seguido de um eventual divórcio, a definição da guarda de eventual prole do casal é permeada
pelas divergências entre os interesses particulares dos cônjuges, além dos desafios próprios
das questões transnacionais entre eles. É de grande relevância jurídica, portanto, o estudo da
caracterização desse tipo de relacionamento, dos trâmites legais e das problemáticas sociais
que a dissolução dessas uniões podem promover.
Palavras-chave: Direito Internacional. Direito Civil. Divórcio. Guarda unilateral.

INTRODUÇÃO
As origens da instituição da família remotam aos primeiros agrupamentos sociais.
Conforme define João de Matos Antunes Varela,
A família é o núcleo social primário mais importante que integra a estrutura
do Estado. Como sociedade natural, corresponde a uma profunda e transcendente
exigência do ser humano, a família antecede nas suas origens o próprio Estado.
Antes de se organizar politicamente através do Estado, os povos mais antigos
4
viveram socialmente em famílias.
Em razão do acesso facilitado à Internet e da globalização, instrumento de
aprofundamento das relações de integração entre os países, a presença de usuários em redes
sociais diversas aumentou consideravelmente. Com isto a, ocorrência de relacionamentos

1
Autora. Estudante do Curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas. Endereço eletrônico:
raquel.reinke@gmail.com
2
Autor. Estudante do Curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas. Endereço eletrônico:
victormenezesx3@gmail.com
3
Orientadora. Advogada, Professora na Universidade Federal de Pelotas, Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade de Santa Cruz do Sul e Mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho/Portugal.
Endereço eletrônico: arianesimioni@ibest.com.br
4
VARELA, João de Matos Antunes. Direito de Família. In.: Czajkowoski, Reiner. União Livre à luz das Leis
8.971/94 e 9.278/96. Curitiba: Juruá, 1997, p. 21.
plurinacionais tornou-se muito mais frequente do que outrora. Consequentemente, a
constituição de famílias com membros de diversos países deixou de ser raridade e tornou-se
algo mais comum, portanto, premente a necessidade de ser objeto de estudo e proteção
jurídica. Acontece que, nesse âmbito do matrimônio em âmbito internacional, quando há
dissolução do mesmo, é comum haver disputas que envolverão aspectos de diversos
ordenamentos jurídicos diferentes. Diante desta situação, havendo conflitos entre quais
sistemas jurídicos devem prevalecer para regular as relações provenientes das contendas entre
particulares plurinacionais, o prumo que equilibrará o que está em tela será o Direito
Internacional, através dos instrumentos normativos cabíveis e da cooperação mútua entre os
Estados.
Acontece que, nos últimos anos, um fenômeno surgiu dentro desse novo aspecto social
de globalização: a busca de parceiros em sites de relacionamento pela Internet é, hoje, algo
extremamente comum, e esta busca não se limita a residentes do mesmo país, em virtude da
própria amplitude e alcance da rede. É crescente, embora ainda minoritária em face do todo, a
procura de parceiros com nacionalidade diversa da sua. Surge, então, a possibilidade das
uniões, dos casamentos e das suas respectivas dissoluções com eventuais problemáticas delas
decorrentes.
Diante desta perspectiva internacional, não obstante, deve-se ter em mente a
multiculturalidade dos envolvidos e suas respectivas particularidades: se, por um lado, temos
duas partes litigiosas que desejam ter a guarda de seus filhos, também temos um choque
cultural e jurídico.
Faz-se necessário, portanto, o estudo dessas novas formas de relação, assim como seus
possíveis desdobramentos jurídicos, sob uma ótica da internacionalização e do
multiculturalismo, afim de que o direito possa atender melhor a essa demanda social.

1 DOS SITES E APLICATIVOS DE RELACIONAMENTOS E AS NOVAS


MANEIRAS MODERNAS DE SE ENCONTRAR UM PAR
Durante o século XX, houve um intenso desenvolvimento tecnológico na área da
comunicação. Tais avanços influenciaram e causaram profundas transformações nas relações
sociais, e, consequentemente, no próprio mundo jurídico. Primeiramente através do rádio, e,
posteriormente, através da televisão; essa revolução tecnológica culminou com o surgimento
da Internet até a evolução da rede para a chamada Web 2.05 e a consagração das novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Dito isto, temos, além da presença de
serviços gigantes como o Google e o YouTube, a ascensão das redes sociais, que se
popularizaram com o surgimento do Orkut – serviço que, aos poucos, foi perdendo espaço
para o Twitter e o Facebook, redes mais modernas e com recursos mais atrativos para os
usuários.
Acompanhando a própria evolução da rede, aplicativos e sites de relacionamentos
como o Badoo e OkCupid se popularizaram com uma facilidade gigantesca: a busca por outro
alguém especial leva milhares de pessoas a passarem horas e horas à procura do par ideal. Há,
até mesmo, aplicativos mais claros e explícitos, como o aplicativo de encontros Tinder: com
um simples toque, o usuário diz se interessa ou não pelas pessoas que o programa indica –
previamente cadastradas no aplicativo – e, ao também receber uma resposta positiva da outra
parte, pode iniciar uma conversa privada.
A popularidade desse tipo de aplicativo evidencia que as transformações tecnológicas
atingiram não só os meios de comunicação, mas a própria dinâmica das relações sociais
interpessoais – uma clara evidência da “liquidez pós-moderna” de Zygmunt Bauman, que
compara as ideologias e relações contemporâneas com fluidos que “não se atêm muito a
qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la.” 6.
Dito isto, é leviano pensar que essas novas formas de interação não constituem
relacionamentos amorosos que antes eram impossíveis ou improváveis. Mais do que isso; a
constituição civil de matrimônios provenientes desse tipo relação é uma realidade, e não mais
uma probabilidade jurídica, uma mera exceção casuística com previsão legal.
Se, por um lado, temos uma sociedade cada vez mais atenta às transformações e
reinvindicações sociais em diversos lugares do globo, temos sociedades extremamente
religiosas, misóginas e diferentes da nossa. Em alguns países, por exemplo, os direitos das
mulheres são reduzidos e tal postura conservadora das leis é evidente; em outros, a proteção
dos nacionais ou das situações de fato é que é favorecida. Trata-se, portando, não apenas de
uma questão de conflitos pessoais, mas sim de sociedades milenares e dogmáticas existindo e
coexistindo com sociedades dinâmicas e diferentes nesse cenário neoglobalizado.
5
Termo que significa o surgumento de uma nova geração de comunidades e serviços online, que evidenciou a
utilização da rede como uma nova plataforma de comunicação.
6
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 8.
2 MULTICULTURALISMO, PLURALISMO JURÍDICO E O CONTEXTO
INTERCULTURAL
Para entender melhor esse âmbito globalizado e internacional que promove o encontro
e interação entre pessoas e culturas diferentes, é necessário fazer uma abordagem
multicultural das partes envolvidas. Para isso, usar-se-á a abordagem de Fleuri (2001):
A perspectiva intercultural reconhece e assume a multiplicidade de práticas
culturais, que se encontram e se confrontam na interação entre diferentes sujeitos. E
isto coloca um problema de conhecimento: como entender logicamente esta relação
de unidade e pluralidade? Cada sujeito constrói sua identidade a partir de histórias e
de contextos culturais diferentes. A relação entre diferentes sujeitos constitui um
7
novo contexto intercultural.
É a partir desse novo contexto intercultural descrito por Fleuri, portanto, que se
formam essas novas relações sociais. Através desse novo viés pluralista, convive a
diversidade de gênero, classe social, padrões culturais e linguísticos, e cada um desses fatores
é o que marca a identidade de um indivíduo ou sociedade. O projeto multicultural vê na
diversidade e diferença um ponto central e necessário para compreender o mundo e ter a
percepção que este se encontra num projeto constante de descentralização, construção e
desconstrução.
Tratando-se de direito e sistemas jurídicos, a importância do multiculturalismo reside
no seguinte: a fim de sedimentar as relações pacíficas de cooperação entre as nações, faz-se
necessário ouvir a voz da ampla maioria sobre assuntos contemporâneos, firmando tratados
internacionais que posteriormente poderão receber a ratificação. Isto é um avanço tremendo
em relação ao passado, onde um país desafiava a soberania do outro tentando fazer prevalecer
à lei do mais forte. Conforme Antonio Carlos Wolkmer, o pluralismo jurídico,
(…) comprometido com a alteridade e com a diversidade cultural projeta-se como
instrumento contra-hegemônico, porquanto mobiliza concretamente a relação mais
direta entre novos sujeitos sociais e poder institucional, favorecendo a radicalização
de um processo comunitário participativo, definindo mecanismos plurais de
exercício democrático e viabilizando cenários de reconhecimento e de afirmação de
8
Direitos Humanos.
Portanto, torna-se impossível ignorar esse contexto de pluralidade jurídica e cultural
no âmbito internacional, uma vez que a diferença existente entre os estados nacionais irá
influenciar diretamente nas relações entre esses indivíduos. Há de se observar, ainda, que não

7
FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura: estudos emergentes. Ijuí. Ed. Unijuí-RS, 2001, p. 142.
8
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Seqüência, nº
53, p. 113-128, dez. 2006
só os princípios e características gerais dos relacionamentos podem ser diferentes em países
diversos: a própria forma de se relacionar pode ser distinta.

2.1 Do casamento
O casamento entre um brasileiro e uma pessoa de nacionalidade diversa é permitido
pela legislação brasileira e pode ser feito no Brasil, aplicando-se a lei brasileira quanto aos
impedimentos e às formalidades da celebração ou celebrado em outro país e aqui
homologado. Admite-se, aqui, até mesmo a aplicação do regime de bens estrangeiro9. A
homologação depende de certidão expedida pelo Consulado ou Embaixada brasileira quanto
ao registro ou de documento expedido pela própria repartição estrangeira, sendo o seu
casamento regido pelo país onde reside, no caso de ser casado e residente no exterior.10
Entretanto, para se tornar válido no Brasil, o casamento deve ser registrado no cartório do
domicílio da parte brasileira ou no cartório do Distrito Federal, inclusive através de
procuração, conforme o Art. 1544 do Código Civil.11
Por outro lado, há entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de que, mesmo não
havendo homologação no Brasil, o casamento no exterior é válido para fins legais,
independentemente de seu registro12. Conforme escreve Jacob Dolinger,
não foi intenção do legislador obrigar o registro; sua necessidade só ocorre para
efeitos de provar o casamento celebrado no exterior, mas o reconhecimento de sua
13
validade no Brasil se dá independentemente do registro local
Entende-se, então, que não há violação legal do artigo citado nos casos da ausência de
homologação, em face da situação de fato. Tal observação é bastante importante no estudo
dos divórcios ou impedimentos do casamento para se constatar o vínculo matrimonial anterior
das partes, pois haveria um conflito jurídico muito grande no caso do não reconhecimento

9
Conforme Art. 7, § 4º, Lei de Introdução ao Código Civil.
10
Casamento de Brasileiro no Exterior. Casamento Civil. Disponível em:
<https://www.casamentocivil.com.br/casamento-de-estrangeiro/casamento-de-brasileiro-no-exterior> Acesso em:
30 mai. 2015.
11
“O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules
brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao
Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º ofício da capital do estado em que passarem a
residir.”
12
STJ - RECURSO ESPECIAL nº 280.197 - RJ (2000/0099301-8), Rel.Min. Ari Pargendler. Julgado em
11/06/2012.
13
DOLINGER, Jacob. Direito Civil Internacional, volume I: a família no direito internacional privado - Rio de
Janeiro: Renovar, 1997, p. 49.
dessa relação. Portanto, uma vez que tenha sido realizado casamento no estrangeiro, ele torna-
se válido em território nacional.

2.2 Das formas de união no direito comparado


É interessante, também, averiguar algumas das demais formas de união utilizadas ao
redor do mundo além do casamento, a forma mais tradicional de união conhecida.
Primeiramente, tratando do Brasil, cabe citar que
em razão da origem católica da sociedade e do Direito brasileiro, durante muito
tempo a legitimidade da família esteve condicionada ao casamento, sendo ignoradas
14
as demais uniões, formadas à sua revelia .
Para corroborar tal afirmação, basta averiguar que até 1977 o divórcio não estava
instituído na legislação brasileira, dado o tamanho apego à religiosidade e ao sacramento que
o casamento representa. A Constituição Federal de 1988, através da emenda nº 65/201015 ao
seu artigo 226, no qual foi incluído um parágrafo terceiro, foi inovadora em face do histórico
do país quando mencionou a “união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar”, acrescendo ainda que a lei deve facilitar a sua conversão em casamento.
Na Escócia, historicamente, há o casamento “por hábito e por reputação”, que se
assemelha ao trinômio “trato, nome e fama”, associado à união estável. O trato diz respeito ao
comportamento de casados, a fama à publicidade, e quanto ao nome, é muito comum que a
convivente utilize-se do patronímico do outro.16
Na Inglaterra, o que nos interessa é o casamento de fato, ou common lawmarriage.
Esta união dispensava licença e cerimônia e foi difundida em muitos estados americanos, à
época em que já se encontravam independentes, como Alabama, Colorado, Georgia, Idaho,
Iowa, Kansas, Montana, Ohio, Oklahoma, Pensilvânia, RhodeIsland, Carolina do Sul e Texas.
Quanto à América Latina, o México já legislou sobre a união estável no Código Civil para os
Distritos e Territórios Federais deste país em 192817

14
CUNHA, Matheus Antonio da. Conceitos e Requisitos da União Estável. Âmbito Jurídico. Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9024>. Acesso em:
30 mai. 2015.
15
BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional n.º 65, de 13 de julho de 2010.
16
. NICOLAU, Gustavo Rene. Breve análise da união estável no direito comparado. Revista Intermas. Vol 15.
Disponível em:
<http://intertemas.toledoprudente.edu.br/revista/index.php/INTERTEMAS/article/viewFile/2776/2557> Acesso
em: 30 mai. 2015.
17
Idem.
Tangendo à América do Sul, a Venezuela, por exemplo, em 1982, o Tribunal Supremo
da Venezuela reconheceu a presunção do esforço mútuo para adquirir bens no curso da união
do casal. A Bolívia concedeu direitos protetivos e sucessórios aos conviventes já em 1940,
corretamente aceitando que o Direito não deve se distanciar da realidade fática. No Peru, a
Constituição de 1993 equiparou em seu texto o regime de bens da união estável ao do
casamento. Em alguns países, porém, o reconhecimento à união demanda alguns outros
fatores. No Panamá, por exemplo, é necessário que os companheiros convivam por dez anos
“em condição de singularidade e estabilidade” para que se reconheça a legitimidade da
união.18

2.3 Do divórcio
Entretanto, ao mesmo tempo em que o ser humano busca constantemente um par, seja
de forma “tradicional”, seja virtualmente, as taxas de divórcio continuam elevadas, ao menos
no que tange ao Brasil.19 Apesar da alegria de encontrar alguém para relacionar-se
amorosamente nas mais diversas formas (namoro, união estável, casamento), aumenta na
população o receio de sofrer uma separação ou divórcio traumáticos, ainda mais quando este
envolve a partilha de bens e a guarda de filhos.
Para os romanos, assim como para os povos germânicos da época, era possível a
dissolução do casamento e também o pleno rompimento do vínculo conjugal. A partir da
aceitação do Cristianismo como religião estatal, a intolerância ao divórcio foi consolidada
através do Direito Canônico, que levantou a bandeira de um matrimônio sacramental,
indissolúvel. Esta observância persistiu por muito tempo no mundo ocidental.
No Oriente Médio, o divórcio segue sendo tabu. Na Cisjordânia, por exemplo, os
homens palestinos podem divorciar-se livremente de suas esposas sem a necessidade de juntar
provas para convencimento dos juízes. As mulheres, até 2012, não podiam propor uma ação
com pretensão de divórcio. Podiam somente pedir ao marido que o fizesse. A alternativa a isto
seria a alegação de sofrer maus tratos, mas estas ações se prolongavam por anos a fio devido a
impossibilidade da mulher trazer aos autos provas dos abusos que sofria. O panorama mudou:

18
Idem.
19
POLIANA, Milan; FAVRETTO, Angélica. Brasil alcança a maior taxa de divórcio dos últimos 26 anos.
Gazeta do Povo, 1 dez. 2011. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/brasil-alcanca-
a-maior-taxa-de-divorcio-dos-ultimos-26-anos-9szdzdv8sv55ridijb022yn2m>. Acesso em: 30 mai. 2015.
o divórcio tornou-se possível em caso de não consumação do casamento, ou se descobrirem
previamente que o cônjuge tem/terá uma segunda esposa. 20
Ocorreu semelhante fenômeno no Irã:
A taxa de divórcio, por sua vez, também disparou, triplicando, a partir de
50 mil divórcios registrados em 2000 para 150 mil em 2010. Atualmente, há um
divórcio para cada sete casamentos em todo o país, mas nas grandes cidades a taxa
fica significativamente maior. Em Teerã, por exemplo, a proporção é de um divórcio
para cada 3,76 casamentos – quase comparável à Grã-Bretanha, onde 42 por cento
21
dos casamentos terminam em divórcio.
Tratando-se de América do Sul, o último país a incorporar o divórcio em seu
ordenamento jurídico foi o Chile, em 200422, sendo que no Brasil este dispositivo foi
incorporado em 1977 através da Emenda Constitucional nº 9 de 28/06/1977. Para facilitar e
desburocratizar o divórcio, surgiu a Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que possibilitou
aos casais sem filhos, ou com filhos maiores de idade e capazes, o divórcio por escritura
pública lavrada em Tabelião de Notas, extrajudicialmente. Além disto, em 2010, a Emenda
Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010 alterou o texto do artigo 226, § 6º, da CF/88,
liberando aqueles que pretendem se divorciar de agir conforme os antigos requisitos – prévia
separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois
anos.
Retornando à ênfase ao Direito Internacional Privado, no exterior são as autoridades
consulares brasileiras que estão investidas de autoridade para celebrar a separação e o
divórcio consensuais de brasileiros no exterior, conforme o art. 18 da Lei de Introdução ao
Direito Brasileiro.23
É a lei nacional dos cônjuges que determina a aceitação ou não do divórcio, conforme
princípio estabelecido em Bruxelas no ano de 1948, pelo Instituto de Direito Internacional. Só
é válida a lei do domicílio quando o requerente do divórcio é anacional. Tangendo à

20
Nova legislação sobre divórcio dá mais liberdade à mulher palestina. Terra, 16 set. 2012. Disponível em:
<http://noticias.terra.com.br/mundo/oriente-medio/nova-legislacao-sobre-divorcio-da-mais-liberdade-a-mulher-
palestina,da1b8978358da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html> Acesso em: 30 mai. 2015.
21
SHAH, Afshin. O irã já não é mais o mesmo. Trad. WANDERLEY, Marco. Disponível em:
<http://mamwanderley.blogspot.com.br/2013/06/o-ira-ja-nao-e-mais-o-mesmo.html> Acesso em: 30 mai. 2015.
22
BENEVIDES, Cassuça. Último país sem divórcio deve aprovar lei em 2003. BBC, 29 dez. 2002. Disponível
em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/021225_chilepoliti.shtml> Acesso em: 30 de mai. 2015
23
“Tratando-se de brasileiros, são competentes as autoridades consulares brasileiras para lhes celebrar o
casamento e os mais atos de Registro Civil e de tabelionato, inclusive o registro de nascimento e de óbito dos
filhos de brasileiro ou brasileira nascido no país da sede do Consulado.”
admissibilidade do divórcio, é a lei do local onde tramita a ação que a regerá, princípio
também formulado pelo Instituto. 24
Quanto a casamento e divórcio de brasileiros realizado no exterior, tal ato jurídico é
aceito no reconhecimento feito através do processo de homologação de sentença estrangeira,
proposto perante o STJ. Portanto, casamento realizado no exterior não homologado no Brasil
não é nulo; apenas é ineficaz até que se dê a homologação. No caso de estrangeiro divorciado,
não há a necessidade da homologação do divórcio, contanto que o primeiro casamento não
tenha sido com brasileiro.25
Não é necessário ao brasileiro o retorno ao Brasil para fazer a homologação. Basta
constituir advogado via procuração feita no consulado brasileiro. É possível, principalmente
em casos onde o cônjuge anacional não concorda com o divórcio, proceder com o seu pedido
aqui no Brasil. “Sabendo o endereço (ainda que comercial) do cônjuge no exterior, pede-se a
citação por carta rogatória (equivalente à carta de citação). Sem o endereço, a citação é feita
via edital.”26

2.4 Da guarda dos filhos


Sobre a guarda em si, o Código Civil, lei 10.406/2002, estabelece no art. 1583,
parágrafos 1º e 2º, que a guarda será unilateral, quando exercida por apenas um dos genitores
ou alguém que o substitua ou compartilhada, quando há a responsabilização conjunta e o
exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto – ou país,
reservados o poder familiar aos filhos comuns. Quando os pais vivem em países diferentes,
entretanto, a realidade da guarda compartilhada torna-se cada vez mais distante. Nos últimos
anos um fenômeno que vem sendo observado: a efetivação de fato da guarda unilateral sem a
anuência do outro genitor. Por se tratar de um tema bastante complexo e difícil no âmbito do
Direito Internacional Privado, as esperanças que nutre alguém que perdeu a guarda – de

24
OLIVEIRA, Luiz Antonio. Direito da família. Disponível em:
<www.loveira.adv.br/material/dip_direitodafamilia.doc> Acesso em: 30 mai. 2015
25
BOTINHA, Sérgio Pereira; CABRAL, Manuella Bambirra. Eficácia no Brasil de casamento e divórcio
realizados no Exterior Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9360&revista_caderno=16>. Acesso em: 30 mai.
2015.
26
PAULA, Sofia Jacob de. Casamento e Divórcio no exterior – União de Brasileiros e Extrangeiros. JusBrasil.
Disponível em: <http://sofiadepaula.jusbrasil.com.br/artigos/113730121/casamento-e-divorcio-no-exterior-
uniao-de-brasileiros-e-estrangeiros?ref=topic_feed> Acesso em: 30 mai. 2015.
direito ou de fato – de seu próprio filho para seu cônjuge ou ex-cônjuge é bastante reduzida
em face ao processo burocrático, lento e ineficiente encontrado na busca pelo reencontro.
Só na Justiça Federal, entre os anos de 2002 de 2011 a Secretaria Nacional de Direitos
Humanos da Presidência da República registrou 488 casos de disputa internacional da guarda
27
dos filhos entre os 87 países signatários do Tratado de Haia. A Convenção determina,
através do chamado princípio da residência habitual, que, quando uma criança é levada para
outro país sem a autorização dos pais ou de um deles, ela deve retornar imediatamente ao país
onde vivia anteriormente ou que está melhor habituada até que a disputa seja resolvida, e é lá
que deve ser iniciado o processo onde será decidido a guarda do menor28. No entanto, são
grandes as dificuldades de se julgar um processo desse nível; por se tratarem de processos que
abordam temáticas delicadas e pessoais de conflitividade emocional latente o litígio ultrapassa
a seara meramente jurídica. Ademais em virtude das distâncias torna-se ainda mais difícil para
o Judiciário ter contato direto com ambas as partes. Além disso, a própria burocracia interna e
internacional pode retardar o processo e estender o sofrimento dos pais e das próprias
crianças.
Não é uma questão apenas de ausência ou ineficiência de acordos internacionais que
tratem do assunto, mas do próprio desinteresse nas negociações entre os Estados nacionais das
partes em litigiarem por causas que não tem uma relevância tão grande em virtude do
desconforto entre as nações que isso pode causar; a questão da soberania rapidamente aparece
e desestimula o conflito.

2.5 Da perda da guarda e o embate cultural e jurídico


De acordo com artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, previsto na lei
8.089/9029, “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores,
cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as
determinações judiciais”. A perda da guarda não implica apenas em uma lesão aos direitos e

27
CARDOSO, Letícia; LIRA, Rodrigo. Disputa de pais em processos de guarda internacional desafia a Justiça.
Gazeta Online, 29 jun. 2012. Disponível em:
<http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/06/noticias/especiais/1291797-disputa-de-pais-em-processos-
de-guarda-internacional-desafia-a-justica.html>. Acesso em: 30 mai. 2015.
28
BRASIL. Decreto nº 3413 de 14 de Abril de 2000. Promulga a Convenção sobre os Aspectos Civis do
Seqüestro Internacional de Crianças, concluída na cidade de Haia, em 25 de outubro de 1980.
29
BRASIL. Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
providências.
obrigações, mas influi também na ausência de contato afetivo, que é nociva tanto para os
progenitores, quanto para a o desenvolvimento pessoal da criança ou adolescente.
Como exemplo, ficou conhecido o caso de Erica Acosta, carioca e professora de
Inglês, a qual se casou com um estrangeiro e teve um filho ainda em território brasileiro,
conforme publicação da sua advogada, Claudia Vieira, no blog Sair do Brasil30. Um anó após
mudarem-se para a Holanda, ela foi tratada com violência pelo marido, desencadeando assim
um processo de divórcio. Na época do relato à advogada, Erica residia na Alemanha, uma vez
que ela já morava neste país com o marido no momento da separação. Ao iniciar o processo
de divórcio, Erica foi novamente agredida, ficou sem dinheiro e sem lugar para morar, sendo
acolhida por um amigo.
Ao relatar a sua situação ao cônsul brasileiro adjunto na Alemanha, recebeu a seguinte
resposta: “isto acontece muito por aqui”, demonstrando o descaso do mesmo. Ou seja, o
governo brasileiro não pode alegar desconhecimento da forma como as mulheres brasileiras
são tratadas no exterior. Só parece incapaz de tomar medidas eficientes capazes de protegê-
las.
Não existe um serviço de apoio à mulher quando ela enfrenta esse tipo de problema no
exterior. Ademais, Erica sofreu para manter a guarda do filho, que havia sido raptado pelo ex-
marido. Foi necessário ir a julgamento para que a mesma comprovasse ter capacidade para
cuidar da criança. Na publicação do blog, a advogada comenta que os juízes alemães estavam
mais preocupados em saber se Erica sabia falar outros idiomas, se tinha curso universitário,
dentre outras coisas, do que em verificar que em nenhum momento ela deixou de priorizar o
cuidado à criança e jamais faltou com seus deveres de mãe.
Caso parecido foi noticiado no jornal Opera Mundi31. A brasileira Vitória Alves
Jesumary se refugiou com a filha pequena na embaixada brasileira em Oslo, na Noruega, para
não perder a guarda da criança. O Barnevern, serviço norueguês de proteção às crianças e
adolescentes, pretendia recolher a criança e colocá-la em um lar adotivo. Seu ex-marido é
chileno com nacionalidade norueguesa e ambos tiveram um divórcio difícil. Quando se

30
VIEIRA, Claudia M. Mulher no exterior é discriminada SIM!. Sair do Brasil, 13 fev. 2012. Disponível em: <
http://sairdobrasil.com/2012/02/13/mulher-brasileira-no-exterior-e-discriminada-sim/> Acesso em: 30 mai. 2015.
31
MONTANINI, Marcelo. Noruega: Após brasileira se refugiar em embaixada, mais famílias dizem ter sido
separadas por governo. Opera Mundi. 8 dez. 2013. Disponível em:
<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/32847/noruega+apos+brasileira+se+refugiar+em+embaixada+
%20mais+familias+dizem+ter+sido+separadas+por+governo.shtml> Acesso em: 30 mai. 2015.
separaram, Vitória tentou retornar ao Brasil com a criança, mas sem a autorização do outro
genitor não conseguiu. Essa atitude por parte do governo norueguês gerou indignação de
outras famílias brasileiras, que se reuniram em um protesto, conforme a publicação citada:
Na manhã de sábado (07/12), cerca de 20 brasileiras com cartazes
protestaram contra o Barnevernet. O ato, organizadopelo CCBN (Conselho de
Cidadãos Brasileiros na Noruega), se concentrou em frente à embaixada brasileira e
seguiu pelas ruas de Oslo até o Stortinget, o parlamento do país. Elas criticavam a
política do órgão de retirar os filhos das famílias biológicas e levá-los a famílias
32
norueguesas adotivas, além da situação da brasileira Vitória.
Serve como exemplo, ainda, outro caso, noticiado pelo jornal Achei USA: a brasileira
Rachel Christie foi para os EUA como turista em 1988. Nesta época estava casada com outro
brasileiro e grávida. No quinto mês de gestação foi avisada pelos médicos americanos que seu
filho teria múltiplas deficiências, sendo aconselhada a realizar um aborto. Não o fez, e deu a
luz à Joseph Lucas em 1989. O menino nasceu com hidrocefalia. Segundo a mãe, "os médicos
falaram que ele seria cego, não andaria e que não sobreviveria. Ele passou por diversas
cirurgias e dificuldades, mas hoje é um jovem saudável com suas limitações".33
Entretanto, em 2004 Rachel precisou retornar ao Brasil porque estava em processo de
adquirir o greencard, o cartão de residência permanente dos Estados Unidos. Teve problema
com advogados e nunca mais conseguiu retornar ao país. O filho ficou com o pai, que alegou
às autoridades judiciárias brasileiras o abandono da mãe, adquirindo a guarda do rapaz.
Rachel foi punida com deportação e por cinco anos não pôde solicitar a entrada nos EUA,
conseguindo o visto anos apenas anos depois.
A partir a análise desses casos concretos, observa-se a dificuldade da tramitação
desses processos que envolvem partes internacionais. Seja quando eles são acionados na
jurisdição brasileira ou de estados estrangeiros, o dano emocional parece ser uma constante
tanto nos pais quanto nas crianças, que sofrem tanto com a mudança busca de ambiente
quanto da ausência da outra parte fraternal, além das nuâncias dos processos em si.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É evidente que a internacionalização das formas de comunicações vai trazer novas
formas de relacionamentos entre pessoas de lugares diferentes, ainda mais no contexto das

32
Idem.
33
FRANCO, Ana Paula. Drama de brasileira que tenta ver o filho nos EUA está perto do fim. Achei USA, 16
mai 2015. Disponível em: <http://www.acheiusa.com/Noticia/Drama-de-brasileira-que-tenta-ver-o-filho-nos-
EUA-esta-perto-do-fim-16829> Acesso em: 30 mai. 2015.
comunicações móveis e das redes sociais atuais. Dito isto, é cada vez mais comum o
surgimento de casais em âmbito internacional. É necessário, portanto, estudar os casos
concretos onde essa união gera filhos que podem se tornar alvo de disputa de guarda; analisar
a jurisdição e a jurisprudência a fim de que as diferenças culturais e jurídicas entre os países
sejam evidenciadas é essencial para facilitar na mediação desse tipo de situação, que, por
envolver estados nacionais e suas respectivas soberanias e jurisdições, legislações e tradições,
tendem a ser demorados e burocráticos.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BENEVIDES, Cassuça. Último país sem divórcio deve aprovar lei em 2003. BBC, 29 dez.
2002. Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/021225_chilepoliti.shtml> Acesso em: 30
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BOTINHA, Sérgio Pereira; CABRAL, Manuella Bambirra. Eficácia no Brasil de casamento


e divórcio realizados no Exterior Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9360&revista_caderno=16>.
Acesso em: 30 mai. 2015.

BRASIL, Decreto nº 3413 de 14 de Abril de 2000. Promulga a Convenção sobre os


Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças, concluída na cidade de Haia, em 25
de outubro de 1980.

______, Decreto-lei nº 4.657 de 7 de Setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do


Direito Brasileiro.
______, STJ. REsp nº 280.197 - RJ (2000/0099301-8), Rel.Min. Ari Pargendler. Julgado em
11/06/2012.

______. Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências.

______. Código civil, 2002. Código civil. 53.ed. São Paulo: Saraiva; 2002.

______. Constituição (1988). Emenda constitucional n.º 65, de 13 de julho de 2010.

CARDOSO, Letícia; LIRA, Rodrigo. Disputa de pais em processos de guarda


internacional desafia a Justiça. Gazeta Online, 29 jun. 2012. Disponível em:
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pais-em-processos-de-guarda-internacional-desafia-a-justica.html>. Acesso em: 30 mai. 2015.
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<https://www.casamentocivil.com.br/casamento-de-estrangeiro/casamento-de-brasileiro-no-
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CUNHA, Matheus Antonio da. Conceitos e Requisitos da União Estável. Âmbito Jurídico.
Disponível em:
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DOLINGER, Jacob. Direito Civil Internacional, volume I: a família no direito


internacional privado - Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

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fim. Achei USA, 16 mai. 2015. Disponível em: <http://www.acheiusa.com/Noticia/Drama-
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POLIANA, Milan; FAVRETTO, Angélica. Brasil alcança a maior taxa de divórcio dos
últimos 26 anos. Gazeta do Povo, 1 dez. 2011. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/brasil-alcanca-a-maior-taxa-de-divorcio-
dos-ultimos-26-anos-9szdzdv8sv55ridijb022yn2m>. Acesso em: 30 mai. 2015.

SHAH, Afshin. O irã já não é mais o mesmo. Trad. WANDERLEY, Marco. Disponível em:
<http://mamwanderley.blogspot.com.br/2013/06/o-ira-ja-nao-e-mais-o-mesmo.html> Acesso
em: 30 mai. 2015.

VARELA, João de Matos Antunes. Direito de Família. In.: Czajkowoski, Reiner. União
Livre à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Curitiba: Juruá, 1997.

VIEIRA, Claudia M. Mulher no exterior é discriminada SIM!. Sair do Brasil, 13 fev. 2012.
Disponível em: <http://sairdobrasil.com/2012/02/13/mulher-brasileira-no-exterior-e-
discriminada-sim> Acesso em: 30 mai. 2015.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico, direitos humanos e interculturalidade.


Revista Seqüência, nº 53, dez. 2006.
136

CLÁUSULA DE HARDSHIP: A POSSÍVEL SOLUÇÃO PARA ASSEGURAR


RELAÇÕES CONTRATUAIS INTERNACIONAIS EM TEMPOS DE CRISE COMO
A BRASILEIRA

HARDSHIP CLAUSE: THE POSSIBLE SOLUTION TO ENSURE INTERNATIONAL


CONTRACTUAL RELATIONS IN TIMES OF CRISIS SUCH AS THE BRAZILIAN ONE

André Luiz Rigo Costa dos Santos

Resumo: Este artigo trata da análise da Cláusula de Hardship. A citada cláusula é estudada
como um instrumento para trazer maior segurança aos contratos internacionais privados em
tempos de crise, com enfoque no Brasil. Para isso, destacam-se índices e demonstrativos que
apresentam a crise brasileira. Além disso, estuda-se a citada cláusula nos seus requisitos, na
visão do Direito Comparado, bem como de forma comparativa a institutos similares. Assim,
são expostas as mazelas e os efeitos que a crise estão gerando no país, bem como a utilidade da
Cláusula de Hardship para trazer maior segurança às relações contratuais no âmbito
internacional. E, assim, por fim se concluir pela efetividade do instrumento para o objetivo que
aqui se analisa.

Palavras-chave: Cláusula de Hardship – Direito Internacional Privado – Contratos – Força


Maior.

Abstract: This article analyzes the Hardship Clause. The mentioned clause is considered as an
instrument to bring greater security to private international contracts in times of crisis. The
clause will be analyzed with a focus on Brazil. In addition, the aforementioned clause is studied
in its requirements, in the perspective of the law from other countries, as well as in a
comparative way to similar institutes. Beyond that will be also studied the problems and effects
that the crisis are generating in the country, as well as the usefulness of the Hardship Clause
to bring greater security to the contractual relations in the international scope. Therefore,
finally, we conclude on the effectiveness of the instrument for the purpose that it is analyzed in
this article.

Keywords: Hardship Clause – Private International Law – Contracts – Force Majeure.

Sumário: INTRODUÇÃO - 1 BREVE ANÁLISE DE ASPECTOS DA CRISE


BRASILEIRA - 2 TEORIA DA IMPREVISÃO E FORÇA MAIOR - 2.1 TEORIA DA
IMPREVISÃO - 2.2 CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR - 3 CLÁUSULA DE HARDSHIP -
3.1 FONTES, REQUISITOS E APLICAÇÃO - 3.2 FORMAÇÃO DA CLÁUSULA DE
HARDSHIP - 3.3 DIFERENÇA ENTRE HARDSHIP, FORÇA MAIOR E TEORIA DA
IMPREVISÃO - 3.3.1 Força Maior e Cláusula de Hardship - 3.3.2. Teoria da Imprevisão e
Cláusula de Hardship - 4 CLÁUSULA DE HARDSHIP E DIREITO COMPARADO - 4.1
DO DIREITO BRITÂNICO - 4.2 DO DIREITO FRANCÊS - CONCLUSÃO -
REFERÊNCIAS.

Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
6284
137

INTRODUÇÃO

Nos noticiários se viu por muito tempo a crise econômica mundial. Durante todo esse
período houve a manutenção de uma imagem na qual o Estado brasileiro não sofreu qualquer
dano com a mesma. Todavia, hoje, em momentos de instabilidade política e econômica tal
lógica se vê alterada.
Após uma série de denúncias de escândalos políticos, sobretudo relacionados à
Operação Lava Jato, ocasionando forte golpe à maior estatal do Brasil, a Petrobrás, percebe-se
que a crise enfim se alastra por vários setores estratégicos da nação.
O Direito busca, sobretudo, a pacificação e segurança das relações jurídicas. Além disso,
em regra, tal regramento deve estar submetido à custódia de um Estado, o qual possibilitará
aplicação de sanções em prol da pacificação e segurança. Contudo, tal premissa perde parte de
seu sentido quando se é aplicado a relações jurídicas internacionais privadas. Como é possível
a edição, manutenção, resolução ou alteração de contratos dos quais as partes estão submetidas
a regimes jurídicos distintos?
A crise política e econômica traz como uma de suas mazelas as alterações bruscas
vividas pelas relações contratuais. Tal percepção se verifica tanto no âmbito interno quanto
externo da economia de um Estado; naquele por percepções tais como a inflação; já neste a
verificação é alcançada por alterações bruscas das estruturas contratuais tais como a valorização
da moeda, instabilidade política, epidemias em plantações e criação de semoventes.
A solução verificável para tais problemáticas são das mais diversas. A renegociação dos
contratos prejudicados por tais alterações bruscas que geraram uma onerosidade excessiva a
uma das partes é uma possibilidade. Tais soluções encontram seu espaço solidificado no Direito
Civil Brasileiro; sobretudo pelo fato do Poder Estatal estar presente para a solução de conflitos.
Contudo, no Direito Internacional Privado se verifica uma lógica diversa. Relações
jurídicas são baseadas, sobretudo, na autonomia da vontade das partes; na qual se minimiza a
intervenção estatal; sobretudo pela relação de particulares submetidos a regramentos jurídicos
distintos; o que dificulta tal controle estatal.
O presente estudo busca analisar a efetividade ou não do Direito Internacional Privado
para a garantia da segurança jurídica de contratos internacionais entre particulares em tempos
de crise, sobretudo, pela ótica de uma importante ferramenta ao Direito Internacional para a
renegociação de contratos; a Cláusula de Hardship. Será que o Direito Internacional Privado,
instrumentalizado pela Cláusula de Hardship, possibilita a segurança jurídica em tempos de
crise econômica e política como a vivida atualmente pelo Brasil?
Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
6284
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1 BREVE ANÁLISE DE ASPECTOS DA CRISE BRASILEIRA

A crise econômica, como o próprio nome diz, traz a recessão econômica consigo; a
insegurança por parte de investidores, e, sobretudo, a incerteza que se dá sobre as relações
contratuais com Estados que vivem esta situação. Esta é a situação que se vive a economia
brasileira. Um cenário cercado por insegurança no mercado, bem como uma forte crise política
e de identificação da população com seus representantes.
Para melhor ilustração da crise vivida pelo Brasil se destacam alguns indicadores.
Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Pnad
Contínua1 – a taxa de desemprego no país no quarto trimestre de 2016 foi de 12%. Já em 2015
e 2014 se alcançou 9% e 6,5%, respectivamente. Isto representa que em relação à população na
força de trabalho, ou seja, com idade superior a 14 (catorze) anos com força de trabalho, 12%
está desocupada.
O Produto Interno Bruto – PIB – sofreu recessão no ano de 2016, chegando a reduzir
3,6%2 em seu 4º Trimestre em relação ao mesmo período em 2015. Além disso, a inflação
medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA - em 2015 alcançou 10,67% no
seu acumulado, sendo que em 2013 e 2014 se alcançou um aumento de 5,91% e 6,41%,
respectivamente. Contudo, especificamente neste ponto, há uma redução atualmente, chegando
ao aumento de 6,29% em 20163.
Empresas fechando, empregos sendo extintos, investimentos estrangeiros reduzidos e
aumento da inflação. Estes bem como outros fatores confirmam o fato da crise econômica que
o Brasil vive/viveu nos últimos anos.
Tais efeitos repentinos causam insegurança e, além disso, afetam diretamente as
relações contratuais internacionais.
Em suma, o que se retira de todas as ponderações feitas até o momento é o fato de que
a crise em si traz consigo um ambiente de incertezas, inseguranças, as quais não devem atingir
os contratos internacionais, ou pelo menos não deveriam. Quais as sistemáticas cabíveis para
se amenizar tais incertezas no plano internacional?

1Fonte: IBGE. Disponível em:


<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pnad_continua/>. Acesso em: 04 abril
2017.
2
Fonte: IBGE. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/pib-vol-
val_201604_3.shtm >. Acesso em: 04 abril 2017.
3
Fonte: IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/precos/inpc_ipca/ipca-
inpc_201702_3.shtm>. Acesso em: 04 abril 2017.
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2 TEORIA DA IMPREVISÃO E FORÇA MAIOR

Como bem delineado no tópico anterior, percebe-se a gama de fatores e frentes em que
a crise atinge um país. Assim sendo, o Direito deve possibilitar algum tipo de resposta para que
se possa trazer segurança ao meio jurídico.
Em análise ao cenário internacional, local esse de extrema insegurança para alguns
dependendo com quem se negocia, formato, etc., aparecem alguns instrumentos para buscar
amenizar a questão, ou seja, almeja-se o retorno ao mínimo de segurança às partes contratadas.
Destacam-se a Teoria da Imprevisão e a Cláusula de Força Maior, as quais serão mencionadas
neste tópico, bem como a Cláusula de Hardship, objeto central deste artigo, a qual será
esmiuçada adiante.

2.1. TEORIA DA IMPREVISÃO

A Teoria da Imprevisão possui previsão expressa no Código Civil Brasileiro em seus


artigos 478 e seguintes:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de
uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para
a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá
o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar
equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes,
poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de
executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva4.
A Teoria da Imprevisão possui os seguintes requisitos, segundo Bruna Lyra Duque5:
[...]são pressupostos que devem estar presentes no momento da aplicação da
teoria da imprevisão: 1) configuração de eventos extraordinários e
imprevisíveis; 2) comprovação da onerosidade excessiva que causa a
insuportabilidade do cumprimento do acordo para um dos contratantes; 3) que
o contrato seja de execução continuada ou de execução diferida.

4
BRASIL. Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 20 maio 2016.
5
DUQUE, Bruna Lyra. A Revisão dos Contratos e a Teoria da Imprevisão uma releitura do direito contratual à luz
do princípio da socialidade. Panóptica - Direito, Sociedade e Cultura, [S.l.], v. 2, n. 4, jun. 2007. Disponível em:
<http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/view/Op_2.4_2007_258-277>. Acesso em: 14 maio 2016.
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Ou seja, retira-se então a existência de três requisitos para sua aplicação, em suma: i)
ocorrência de evento extraordinário e imprevisível; ii) comprovação da onerosidade excessiva;
iii) contrato seja de execução continuada ou diferida.
Seguindo tal linha, discorre Orlando Gomes6:
[...] quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no
estado de fato, contemporâneo à celebração do contrato, acarretando
consequências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no
cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a
requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando
o equilíbrio desfeito.
A citada teoria traz o enfoque na possibilidade de relativização do poder contratual,
contudo em situações específicas. Em contratos de relação contínua ou diferida em que
verifique a onerosidade excessiva a uma das partes em decorrência de evento extraordinário ou
excessivo é possível que uma das partes requeira a busca do equilíbrio contratual mediante
renegociação, ou caso não seja possível que ocorra inclusive a extinção da relação.
Destaca-se o fato de que não se trata neste ponto que o contrato se torne impossível de
ser cumprido, visto que estaria se discutindo desta forma situações de força maior, o que se
adentrará no tópico seguinte. Neste momento, ou seja, quanto à Teoria da Imprevisão, o que se
discute é a existência de relação que onere excessivamente uma das partes. “Porque se trata de
dificuldade, e não de impossibilidade, decorre importante consequência, qual seja a da
necessidade de verificação prévia, que se dispensa nos casos de força maior7”.
Em suma, verifica-se na Teoria da Imprevisão a aplicação clara e concreta do princípio
rebus sic stantibus. Busca-se a relativização de padrões fixos de um contrato, em virtude da
manutenção do mesmo; lógica esta seguida pela Cláusula de Hardship, da qual se fará as
devidas comparações em momento oportuno.

2.2 CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR

Após as considerações realizadas nos tópicos anteriores, chega-se à Cláusula de Força


Maior, a qual, de plano já se afirma ser diferente do objeto que aqui se discute, ou seja, a
Cláusula de Hardship, o que será debatido mais à frente.
A Cláusula de Força Maior, assim como a de Hardship, são cláusulas excludentes de
responsabilidade. Os requisitos para se verificar a ocorrência de uma situação de aplicação da

6
GOMES, Orlando. Contratos. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.42.
7
GOMES, Orlando. Contratos. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.41.
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citada cláusula variam entre doutrinadores, destaca-se colocação de José Cretella Neto sobre a
caracterização do evento de força maior:
São impossíveis de prever à época do contrato;
Não são causadas pelas partes, ou seja, lhes são exteriores;
Independem da vontade das partes, isto é, estas não tem qualquer influência
sobre esses eventos ou circunstâncias;
São incontroláveis pelas partes (beyond the control of the parties ou beyond
the reasonable control of the parties, ou ainda, outside the control of the
parties);
São inevitáveis;
São extraordinários, excepcionais;
Tornam a execução do contrato impossível ou o retardam exageradamente8.
Já Luiz Olavo Baptista9 apresenta a colocação em três requisitos para caracterizar a força
maior: “a imprevisibilidade, a inevitabilidade e a exterioridade em relação à vontade das partes,
de que resulta a impossibilidade de ser cumprida a obrigação”.
Em suma, retiram-se dos trechos destacados de que não há uma homogeneidade para se
constatar a ocorrência da situação de força maior. Contudo, para este artigo, tomar-se-á a linha
de raciocínio da forma como destacada por Luiz Olavo Baptista, ou seja, dos três requisitos, o
que pode haver uma omissão ou outra de determinado entendimento ou legislação.
Vale destaque às previsões internacionais para se delimitar a matéria pertinente à
Cláusula de Força Maior, incialmente quanto ao artigo 7.1.7. dos Princípios do UNIDROIT de
2010.
Inicialmente vale menção ao instituto. O UNIDROIT é um instituto internacional que
possui como objetivo a harmonização do direito internacional privado, para que assim se possa
uniformizar o mesmo em âmbito internacional. Como apontado anteriormente, destaca-se o
artigo. 7.1.7 dos Princípios do UNIDROIT sobre a temática da Cláusula de Força Maior:
(ARTIGO 7.1.7)
(Força maior)
(1) A parte inadimplente isenta-se de responsabilidade se provar que o
inadimplemento foi causado por um obstáculo que escapa ao seu controle e
que não poderia, razoavelmente, tê-lo levado em conta ao tempo da formação
do contrato, ou ter-lhe evitado ou superado as consequências.
(2) Quando o impedimento é apenas temporário, a isenção produz efeitos pelo
prazo que for razoável, tendo em vista os efeitos do obstáculo sobre a
execução do contrato.
(3) A parte inadimplente deve notificar a outra parte do obstáculo e de seus
efeitos sobre sua aptidão para adimplir. Se a notificação não for recebida pela
outra parte em prazo razoável, contado a partir do momento em que a parte
inadimplente sabia ou deveria ter sabido do
obstáculo, essa responderá pelas perdas e danos resultantes da falta do
recebimento.

8
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p. 533.
9
BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex, 2011. p.231.
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(4) As disposições deste artigo não impedem que as partes exerçam o direito
de extinguir o contrato ou suspender seu adimplemento ou, ainda, reclamar
juros sobre o valor devido10.
Além do documento internacional destacado anteriormente, também é possível se
destacar o Artigo 79 da Convenção de Viena de 1980, a qual foi promulgada no Brasil pelo
Decreto N.º 8.327 de 2014:
Artigo 79
(1) Nenhuma das partes será responsável pelo inadimplemento de qualquer de
suas obrigações se provar que tal inadimplemento foi devido a motivo alheio
à sua vontade, que não era razoável esperar fosse levado em consideração no
momento da conclusão do contrato, ou que fosse evitado ou superado, ou
ainda, que fossem evitadas ou superadas suas consequências.
(2) Se o inadimplemento de uma das partes for devido à falta de cumprimento
de terceiro por ela incumbido da execução total ou parcial do contrato, esta
parte somente ficará exonerada de sua responsabilidade se:
(a) estiver exonerada do disposto no parágrafo anterior; e
(b) o terceiro incumbido da execução também estivesse exonerado, caso lhe
fossem aplicadas as disposições daquele parágrafo.
(3) A exclusão prevista neste artigo produzirá efeito enquanto durar o
impedimento.
(4) A parte que não tiver cumprido suas obrigações deve comunicar à outra
parte o impedimento, bem como seus efeitos sobre sua capacidade de cumpri-
las. Se a outra parte não receber a comunicação dentro de prazo razoável após
o momento em que a parte que deixou de cumprir suas obrigações tiver ou
devesse ter tomado conhecimento do impedimento, esta será responsável
pelas perdas e danos decorrentes da falta de comunicação.
(5) As disposições deste artigo não impedem as partes de exercer qualquer
outro direito além da indenização por perdas e danos nos termos desta
Convenção11.
Conclui-se, portanto a necessidade de três requisitos chaves para a consagração da
situação de Força Maior: a imprevisibilidade, a inevitabilidade e a exterioridade em relação à
vontade das partes, de que resulta a impossibilidade de ser cumprida a obrigação.
Na construção da cláusula deve se elencar as hipóteses de aplicabilidade da mesma, as
quais José Cretella Neto aponta uma série de fatos divididos em quatro grupos: Catástrofes
Naturais, Conflitos armados nacionais ou internacionais, Conflitos Trabalhistas e Fato do
Príncipe. Destacam-se:
Catástrofes naturais – são as mais frequentemente mencionadas, como
tremores de terra, tufões, tempestades, aluviões, incêndios, inundações, seca,
elo, forças da natureza, perigos da navegação, epidemias, deslizamentos de
terra, raios, tempestades, tsunamis (tidal waves), congelamento de linha. A

10
UNIDROIT. Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais 2010. Tradução: Lauro
Gama Jr. Disponível em:
<http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2010/translations/blackletter2010-
portuguese.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2016.
11
BRASIL. Decreto nº 8.327, de 16 de outubro de 2014. Promulgação do Tratado de Viena. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8327.htm>. Acesso em 26 mar. 2016.
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expressão inglesa acts of God é bastante utilizada para englobar a maior parte
desses fenômenos naturais. Nos contratos celebrados com países socialistas,
era muitas vezes substituída por acts of elements.
Conflitos armados nacionais ou internacionais – as expressões são inúmeras
e variadas: guerra, preparação para a guerra, guerra civil, operações militares,
atos de guerra, revoluções, rebeliões, insurreições, beligerância, mobilizações
populares, demonstrações populares, comoção civil, bloqueio militar, invasão,
atos de inimigos externos, usurpação violenta de poderes, desordem, ruptura
da ordem pública.
Conflitos trabalhistas – greves, “operação-tartaruga”, lock-out, litígios no
local de trabalho, disputas com sindicatos.
Fato do Príncipe – conjunto de dificuldades ou obstáculos à execução das
obrigações contidas no contrato, resultantes de intervenção do Poder Público,
em geral da seguinte natureza: proibição à exportação ou à importação;
impossibilidade de obtenção de todas as permissões, licenças ou autorizações
dos órgãos públicos; vedação à transferência de divisas para outros países;
cortes no fornecimento de energia ou de água. A referência geral é
representada pela expressão acts of Government ou acts of governamental
authority12.
Tais colocações destacadas no trecho anterior demonstram uma série de questões que
podem ser abordadas na cláusula de Força Maior. Como já delineado, tratam-se de eventos que
impossibilitem a uma das partes a prestação obrigacional; o que claramente se verifica em
alguns dos exemplos citados anteriormente, tais como: furacões, guerras, proibições
governamentais, entre outras.
Contudo, não necessariamente a cláusula deve versar sobre todos os elementos que a
mesma abarcará. É possível se realizar uma conceituação genérica e se deixar a cargo de um
árbitro ou juiz para que verifique o encaixe ou não do evento ao conceito estipulado.
Após a definição ou estipulação das formas de se delimitar o evento de força maior
devem ser estabelecidos os passos a serem seguidos pelas partes, tais como:
[...] notificação do evento danoso, a forma da prova de sua ocorrência, a
sanção, a exoneração da responsabilidade do devedor, a suspensão da
execução do contrato ou a extensão de seu termo, a responsabilidade pelas
despesas, a obrigação de tentar contornar os efeitos da força maior, seu
término e os casos em que caberá rescisão ou renegociação13.
A notificação deve ser realizada no período mais rápido possível, devendo estar
estabelecido na cláusula o prazo para sua alegação, bem como termo inicial a ser adotado,
exemplo: como a da data do evento ou do conhecimento do mesmo. Além disso, o meio que tal
notificação será realizada.
“Exige-se quase sempre que a notificação vá acompanhada da prova do fato de força
maior. A forma dessa prova deve ser [...] estabelecida na cláusula regulamentar. O uso corrente

12
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p. 537-
538.
13
BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex, 2011, p. 234.
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é a de certidões de autoridades competentes14”. Tais estipulações devem estar expressamente


previstas no contrato. A prova neste momento, preferencialmente, deve estar inundada por
entidades confiáveis que comprovem tal evento. A notificação o quanto antes ser realizada
evitará maiores danos à relação contratual, podendo dar a possibilidade de que as partes
contornem a mesma. Por isso se colocam tais ponderações para que se agilize a constatação e
comprovação do evento.
Após a notificação, as partes verificarão se de fato o evento é algo passageiro e que
possibilite a suspensão do contrato, ou caso se trate de situação de rescisão do mesmo. Como
já dito, a cláusula de força maior versa sobre situações irresistíveis, caso contrário, não há que
se falar na utilização da mesma, e sim de outras modalidades.
Por fim, “da mesma forma que existe obrigação de notificar a ocorrência da força maior,
também é necessário prever a obrigação de notificar o final da força maior, ou seja, do
desaparecimento dos efeitos da ocorrência do risco15”. Tal dever se dá pela clara lógica de que
tal suspensão do contrato, caso se verifique um evento passageiro não pode se estender ad
eternum. Tanto é que, caso se verifique o transcorrer de longo prazo após a notificação do
evento de força maior e não consiga se minimizar ou eliminar o evento, chegam-se as soluções:
“a) renegociar o contrato; b) remeter o contrato a árbitros, que estabeleçam por equidade, suas
novas condições; ou c) rescindir o contrato16”.
Após extenso discorrimento sobre a Cláusula de Força Maior, para a consagração do
abordado até o momento, destaca-se exemplo de uma cláusula de força maior na qual se busca
abranger grande número de eventos:
If either Party is hindered or prevented from performing any of its obligations
under this Contract by reason of strikes or other industrial action, floods, fire,
riot, civil war or commotion, bad weather or acts of God, central or local
legislation, decrees or orders, trade embargoes or boycotts by central
government r others, shortage of transport to or from the place of delivery or
port of shipment, inability to obtain warehouse space or other storage facilities
at the place of delivery of shipment or elsewhere, non-performance by any
manufacturer or other supplier of any contract with either Party due to any of
the aforesaid causes or to any other causes or contingency whatsoever outside
the reasonable control of either Party (whether or not at the port of shipment,
place of delivery or manufacture or elsewhere) which prevents, restricts or
interferes with the manufacture, procurement, delivery of any of the goods,
then in any such case either Party may give written notice of any cause or
contingency to the other Party (and, in the case of the buyer, shall give such
notice, in advance of actual shipment) and the delivery period shall be
extended for a period of time equivalent to the extent of such hindrance or
prevention. Should either Party claim the delivery period be extender under

14
BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex, 2011, p. 235.
15
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p. 542.
16
Ibid.
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this clause for more than 120 days, than the other Party shall be entitled at any
time to cancel the contract1718.
Na cláusula apresentada é possível se verificar: a) a estipulação dos eventos de força
maior; b) a obrigação de notificação; e c) o prazo limite para perpetuação da relação contratual
enquanto se verificar a ocorrência do evento de força maior. Faz-se crítica em relação a não
estipulação dos meios comprobatórios para a verificação do evento danoso, o que já foi possível
demonstrar ser de extrema importância.
Após extensiva delimitação e passos da formação da Cláusula de Força Maior, bem
como a Teoria da Imprevisão, torna-se possível a análise do objeto principal que se busca
discutir, a Cláusula de Hardship.

3 CLÁUSULA DE HARDSHIP

3.1 FONTES, REQUISITOS E APLICAÇÃO

Inicialmente, vale destaque à conceituação realizada por Cristiano Chaves e Nelson


Rosenvald19 acerca da Cláusula de Hardship:
A cláusula de hardship encontra assento no direito contratual internacional.
Durante a execução do contrato, circunstâncias econômicas, políticas ou
sociais podem alterar de maneira fundamental o equilíbrio econômico do
contrato. Dependendo da extensão dos efeitos de tal evento, os contratantes
poderiam ver-se impossibilitados de executar as suas obrigações nos moldes
avençados. Nestes casos, a cega obediência ao princípio da força obrigatória
do contrato conduziria a objetivo contrário à proteção do interesse dos
contratantes envolvido em decorrência de alteração fundamental das
circunstâncias contratuais.

17
GARCEZ, José Maria Rossani apud CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas.
Campinas: Millennium, 2011. p. 535 - 536.
18
"Se uma das Partes for impedida de cumprir qualquer de suas obrigações derivadas deste Contrato em razão de
greves ou outra ação industrial, inundações, fogo, revolta, guerra civil ou comoção, mau tempo ou atos de Deus,
legislação central ou local, decretos ou ordens embargos ao comércio ou boicotes pelo governo central ou por
outros, falta de transporte para ou a partir do local de entrega ou porto de embarque, impossibilidade de obter
espaço em armazéns ou em outras instalações de armazenamento no local de entrega ou de embarque ou qualquer
outro lugar, não-cumprimento por parte de qualquer fabricante ou outro fornecedor de qualquer contrato com
qualquer das Partes devido a qualquer das causas anteriormente mencionadas ou a quaisquer outras causas ou
situações além do razoável controle das Partes (ocorrendo ou não no porto de embarque, local de entrega ou de
fabricação ou em qualquer outro lugar) que impeça, restrinja ou interfira com a a fabricação, a aquisição ou a
entrega de quaisquer mercadorias, a outra Parte poderá informá-la por escrito à outra Parte (e, no caso do
comprador, deverá informar antes do efetivo embarque) e o período de entrega deverá ser estendido por um período
de tempo equivalente ao período em que perdurar tal impedimento ou dificuldade. Se qualquer das Partes solicitar
que o período de entrega seja adiado, com base nesta cláusula, por mais de 120 dias, a outra Parte terá o direito de,
a qualquer tempo, cancelar o contrato". (Ibid., Tradução por José Cretella Neto).
19
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direito dos Contratos. Vol. 4.
4 ed. Salvador: Juspodivm, 2014. p.240.
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[...] Os princípios relativos aos contratos internacionais de comércio Unidroit


(Institut International pour l’Unification du Droit Privé) facultam às partes a
inclusão da cláusula de hardship, estabelecendo dever de readequação
contratual para fatos supervenientes que alterem substancialmente as
circunstâncias, gerando desequilíbrio do conteúdo econômico do contrato.
Em apertada síntese do trecho citado, retira-se que a cláusula de hardship se caracteriza
pela convenção entre as partes de cláusulas expressas que excepcionem o cumprimento do
contrato em situações pré-definidas. Ou seja, trata-se de uma mitigação do pacta sunt servanda.
Seguir-se-á uma melhor delimitação e análise das fontes, requisitos e aplicações deste
instrumento que é a cláusula de hardship.
Além do conceito anteriormente delineado, destaca-se conceituação realizada pelo
doutrinador francês Bruno Oppetit20:
Aquela nos termos da qual as partes poderão solicitar um rearranjo do contrato
que as liga se ocorrer uma mudança nos dados iniciais com vistas aos quais
elas se tinham obrigado que modifique o equilíbrio contratual ao ponto de
fazer com que umas delas sofra um endurecimento injusto.
A Cláusula de Hardship possui previsão normativa que dá base à mesma, tratam-se dos
artigos 6.2.1. ao 6.2.3. da UNIDROIT. Veja-se o artigo 6.2.2:
There is hardship where the occurrence of events fundamentally alters the
equilibrium of the contract either because the cost of a party's performance
has increased or because the value of the performance a party receives has
diminished, and
(a) the events occur or become known to the disadvantaged party after the
conclusion of the contract;
(b) the events could not reasonably have been taken into account by the
disadvantaged party at the time of the conclusion of the contract;
(c) the events are beyond the control of the disadvantaged party; and
(d) the risk of the events was not assumed by the disadvantaged party.21
Vale destacar que não necessariamente a cláusula deve se restringir aos parâmetros por
aqui elencados. Como já dito anteriormente, trata-se de uma clara manifestação da autonomia
vontade dos contratantes, na qual ambos terão a possibilidade de estabelecer as diretrizes que
melhor satisfaçam e auxiliem a manutenção da relação contratual. A título de melhor
norteamento e consonância com a tendência no Direito Internacional, utilizar-se-á o artigo

20
OPPETIT, Bruno, apud BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex, 2011. p. 241 -
242.
21
Tradução Livre:
6.2.2. Há hardship quando surgem acontecimentos que alteram fundamentalmente os equilíbrio das prestações
quer por aumento do custo de cumprimento das obrigações quer por diminuição do valor da contraprestação, e:
a) que tais eventos tenham ocorrido ou chegado ao conhecimento da parte
lesada após a celebração do contrato;
b) que a parte lesada não tenha podido, à época da celebração do contrato,
razoavelmente levar em consideração tais eventos;
c) que tais eventos escapem ao controle da parte lesada; e
d) que o risco da ocorrência de tais eventos não tenha sido assumido pela
parte lesada.
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citado acima como parâmetro. Assim sendo, os requisitos para a construção de uma cláusula de
hardship, são: a) alteração fundamental das condições econômicas; b) superveniência do
evento; e c) imprevisibilidade do evento.
Vale destacar de que no âmbito do Direito Internacional a Autonomia da Vontade
impera. Portanto, não necessariamente tais requisitos ou orientações devem ser seguidos, ou
sequer deve haver a cláusula de hardship em um contrato. Contudo, tais posições denotam a
vertente e caminho coincidente que se segue para a constatação e definição da cláusula de
hardship. Segue definição do doutrinador Frederico Glitz22 sobre o termo hardship:
O termo hardship significa na prática contratual internacional a alteração de
fatores políticos, econômicos, financeiros, legais ou tecnológicos que causam
algum tipo de dano econômico aos contratantes. Tais eventos têm, em comum,
a possibilidade de poder alterar fundamentalmente as condições econômicas
em que se desenvolvem os contratos. Esses efeitos são, especialmente,
danosos naqueles contratos de longa duração, prejudicando lhes o equilíbrio
das prestações e, mesmo, o próprio adimplemento das prestações recíprocas.
Tal entendimento destacado segue exatamente a lógica apontada durante esta exposição.
A dificuldade que o evento causa a uma das partes que onere excessivamente a mesma.
Outra fonte que se pode destacar para melhor elucidação do que se trata a Cláusula de
Hardship é a definição trazida pela International Chamber of Commerce – ICC, a Câmara
Internacional de Comércio:
ICC HARDSHIP CLAUSE 2003
[1]
A party to a contract is bound to perform its contractual duties even if events
have rendered performance more onerous than could reasonably have been
anticipated at the time of the conclusion of the contract.
[2]
Notwithstanding paragraph 1 of this Clause, where a party to a contract proves
that:
[a] the continued performance of its contractual duties has become excessively
onerous due to an event beyond its reasonable control which it could not
reasonably have been expected to have taken into account at the time of the
conclusion of the contract; and that
[b] it could not reasonably have avoided or overcome the event or its
consequences, the parties are bound, within a reasonable time of the
invocation of this Clause, to negotiate alternative contractual terms which
reasonably allow for the consequences of the event.
[3]
Where paragraph 2 of this Clause applies, but where alternative contractual
terms which reasonably allow for the consequences of the event are not agreed

22
GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship, 1 ed.
Curitiba: Juruá, 2012. p.175.
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by the other party to the contract as provided in that paragraph, the party
invoking this Clause is entitled to termination of the contract2324.
Há uma tendência em convergência para os requisitos da cláusula de hardship, sendo
verificável tal afirmação pelas diversas fontes aqui apontadas, como, por exemplo, a destacada
acima pela ICC. Contudo, apesar das fontes apontadas e toda a base doutrinária, não se pode
negar e relembrar que tal cláusula nada mais é do que fruto da autonomia da vontade das partes.
Portanto, apesar de todos os conceitos e termos adotados, pode haver diferenças que
alterem em parte o que foi aqui exposto. Por óbvio que alterações fundamentais iriam desvirtuar
a própria natureza da cláusula, transformando-a em outra diversa como a de força maior, ou até
mesmo algo anômalo. Destaca-se trecho de Frederico Glitz:
A cláusula de hardship permitira que os contratantes estabelecessem quais
seriam os eventos que caracterizariam sua incidência, podendo, inclusive,
excluir expressamente alguns. Permitira, ainda, estabelecer-se detalhadamente
a constatação do evento e os procedimentos para a revisão. Os critérios da
imprevisibilidade e da inevitabilidade poderiam ser acrescidos ou diminuídos.
Enfim, este tipo de cláusula permitirIa grande margem de atuação das partes
visando-se à manutenção do vínculo contratual25.
Enfim, o que se vale frisar é a importância da autonomia da vontade das partes para a
construção desta cláusula. Sendo este o tópico que se adentra.

23
INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE. ICC Force Majeure Clause 2003. ICC Hardship Clause
2003. Disponível em: <
http://www.derecho.uba.ar/internacionales/competencia_arbitraje_iic_force_majeure_and_hardship_clauses_200
3.pdf>. Acesso em: 19 maio 2016.
24
Tradução Livre:
[1]
A parte no contrato, é obrigada a cumprir as suas obrigações contratuais, mesmo se os acontecimentos tornaram
o cumprimento das mesmas mais onerosas do que poderia ter sido razoavelmente previsto no momento da
celebração do contrato.
[2]
Não obstante o parágrafo 1 do presente Artigo, onde uma parte de um contrato prova que:
[a] o desempenho contínuo dos seus deveres contratuais tornou-se excessivamente oneroso devido a um evento
fora de seu controle razoável, que não poderia ter sido razoavelmente esperado para ter tido em conta no momento
da celebração do contrato; e essa
[b] não poderia razoavelmente ter evitado ou ultrapassado o evento ou as suas consequências, as partes são
obrigadas, dentro de um prazo razoável a invocação desta Cláusula, para negociar os termos contratuais
alternativos que levem em conta as consequências do evento.
[3]
Onde o parágrafo 2 da presente cláusula aplica-se, mas as cláusulas contratuais alternativas que levam em conta
as consequências do evento não são acordadas pela outra parte no contrato, conforme previsto neste parágrafo, a
parte que invocar esta cláusula tem o direito de rescisão do contrato.
25
GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship, 1 ed.
Curitiba: Juruá, 2012. p.167.
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3.2. FORMAÇÃO DA CLÁUSULA DE HARDSHIP

A formação da cláusula deve buscar a definição de dois elementos: a definição do que


constitui um evento de hardship e o método por meio do qual será realizada a adaptação do
contrato.
A cláusula possui como escopo fundamental a renegociação do contrato em decorrência
dos requisitos já delineados anteriormente, quais sejam: a) alteração fundamental das condições
econômicas; b) superveniência do evento; e c) imprevisibilidade do evento.
Todavia, caso não venha a ocorrer tal renegociação, ai sim, se torna justificável a
extinção da relação contratual. A ideia central da cláusula é a manutenção do vínculo, e não só,
mas também buscar maior segurança às partes. “Haveria uma dupla finalidade nessa cláusula:
evitar dissolução do contrato (negativa) e renegociação das cláusulas (positiva)26”.
Inegável que a relação capitalista, sobretudo a atividade empresarial por sua essência
permeia constantemente o risco em prol do lucro. Todavia, nada impede que tal caminho possa
transcorrer de maneira mais segura entre as partes.
Como destacado, deve se definir dois elementos centrais para a formação da cláusula.
Sendo um destes a definição do evento de hardship em conformidade com os três requisitos: a)
alteração fundamental das condições econômicas; b) superveniência do evento; e c)
imprevisibilidade do evento.
Após a utilização dos três requisitos se chegará à definição do que seria o evento de
hardship. Assim, chega-se à segunda etapa da cláusula, qual seja: a definição do método por
meio do qual será realizada a adaptação do contrato.
Os Princípios do UNIDROIT em seu art. 6.2.3 estipulam os efeitos da cláusula de
Hardship. Veja-se:
ARTIGO 6.2.3
(Efeitos da hardship)
(1) Em caso de hardship, a parte em desvantagem tem direito de pleitear
renegociações. O pleito deverá ser feito sem atrasos indevidos e deverá indicar
os fundamentos nos quais se baseia.
(2) O pleito para renegociação não dá, por si só, direito à parte em
desvantagem de suspender a execução.
(3) À falta de acordo das partes em tempo razoável, cada uma das partes
poderá recorrer ao Tribunal.
(4) Caso o Tribunal considere a existência de hardship, poderá, se for razoável,
(a) extinguir o contrato, na data e condições a serem fixadas, ou

26
GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship, 1 ed.
Curitiba: Juruá, 2012. p. 167.
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(b) adaptar o contrato com vistas a restabelecer-lhe o equilíbrio27.


O artigo demonstra o caminho a ser definido no caso de ocorrer uma situação de
hardship. Inicialmente a parte que alega a desvantagem deve requerer a renegociação do
contrato em razão da situação ocorrida. Caso não seja frutífera esta renegociação, ai sim se deve
utilizar terceiros para atuar no conflito.
O artigo 6.2.3. dos Princípios da UNIDROIT faz menção ao Tribunal para solucionar o
conflito, para assim extinguir o contrato ou adaptar o mesmo para que o equilíbrio retorne.
Trata-se não somente de um órgão jurisdicional estatal como nossos Tribunais, mas também de
Câmaras Arbitrais. Todavia, como bem destaca o artigo, refere-se a uma faculdade em se
utilizar essa intervenção exterior. Nada impede que haja a resolução do contrato pelo fato do
insucesso das renegociações.
A autonomia da vontade reina nesta cláusula. Assim sendo, pode se estipular um tempo
para que possa se alegar a situação de hardship. Pode se estipular o período máximo para
tentativas de solução mediante a renegociação. Pode se estipular uma cláusula arbitral, já se
estabelecendo quem solucionará possíveis conflitos. Ou ainda, até se estipular qual a jurisdição
que será aplicada.
As possibilidades são das mais diversas. Todavia, não se retira o esqueleto do
instrumento que é a cláusula de hardship, qual seja: estipulação da situação de hardship;
tentativa de renegociação, resolução do contrato e/ou utilização da intervenção de terceiros para
solução da lide.
A cláusula busca maior segurança a um terreno tão incerto quanto o comércio
internacional. Refere-se a um instrumento que tem como seu escopo primordial a manutenção
da relação contratual. Após o exposto, torna-se inegável a importância de tal cláusula para o
comércio internacional, e de importante instrumento para situações de crise como as vividas
hoje no país.
Não se trata da panaceia para o cenário econômico e político caótico que passa o Estado
brasileiro. Mas com total certeza é possível se afirmar que é uma ferramenta a mais para maior
segurança nas relações contratuais internacionais.

27
UNIDROIT. Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais 2010. Tradução: Lauro
Gama Jr. Disponível em:
<http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2010/translations/blackletter2010-
portuguese.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2016.
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3.3 DIFERENÇA ENTRE HARDSHIP, FORÇA MAIOR E TEORIA DA IMPREVISÃO

Após a definição da cláusula de hardship algumas dúvidas surgem em relação a outros


institutos similares, tais como a Força Maior e a Teoria da Imprevisão. Imprescindível a
distinção entre estes, para que assim se possa delinear de forma clara a cláusula de hardship, e
suas implicâncias e aplicações distintas em comparação às demais citadas:

3.3.1 Força Maior e Cláusula de Hardship

Inicialmente deve se realizar a comparação entre a cláusula de hardship e a Força Maior.


A Força Maior se caracteriza, sobretudo, pela onerosidade excessiva a uma das partes, de tal
maneira que torne impossível sua continuidade, por consequência, seria uma possibilidade,
teoricamente, de extinção da relação contratual. Veja-se posicionamento do doutrinador
Frederico Glitz28:
Dependendo da extensão dos efeitos de tal evento, os contratantes poderiam
ver-se impossibilitados de executar suas obrigações nos moldes avençados. Se
reconhecida a impossibilidade de execução da obrigação, estar-se-á diante de
hipótese de força maior ou frustration, dependendo do sistema jurídico
envolvido, que teria por consequência a desoneração do devedor e a extinção
do contrato.
Como no citado trecho, é visível a distinção entre a força maior e cláusula de hardship.
Apesar da tênue diferença, pode se argumentar no seguinte sentido pela distinção entre ambas:
a cláusula de hardship versa sobre situações excepcionais, que fujam dos poderes das partes de
se evitar, onerando excessivamente uma das partes, já a força maior se trata da situação em que
torne insuportável a uma das partes a continuação da obrigação. Vejamos trecho do doutrinador
Pierre Yves Gautier, o qual segue a mesma lógica delineada:
A distinção entre as duas situações seria o fato de que o contratante, na
hipótese de hardship, não estaria impedido de cumprir a obrigação, mas, se o
fizesse, estaria assumindo prejuízo exacerbado. Admitir a execução do
contrato dessa forma desequilibrado não só seria injusto como atentaria contra
a justiça e contra a própria vontade das partes29.

28
GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship, 1 ed.
Curitiba: Juruá, 2012. p. 155.
29
GAUTIER, Pierre Yves apud GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e
Cláusula de Hardship, 1 ed. Curitiba: Juruá, 2012. p. 160.
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Por conseguinte, verificável de tal maneira distinção clara entre a cláusula de hardship
e a Força Maior. Anota-se mais uma base doutrinária a qual coaduna com o exposto até o
momento, feitas por José Cretella Neto30 e Luiz Olavo Baptista31 respectivamente:
Não basta que ocorram eventos imprevisíveis para que as cláusulas de força
maior e de hardship entrem em ação. É necessário que causem desequilíbrio
contratual de tal ordem que impeçam a execução das obrigações (força maior),
temporária ou permanentemente, ou que tornem a execução do contrato
excessivamente onerosa para uma das partes (hardship). Assim, por exemplo,
pode eclodir uma insurreição militar, ser praticado um ato terrorista, ou elevar-
se desproporcionalmente o preço de determinada matéria-prima sem que o
contrato deixe de ser executado, mas, em regra, em diferente patamar de
equilíbrio econômico.
O conceito de cláusula de hardship, que alguns traduzem por cláusula de
adaptação, assemelha-se à cláusula de força maior no tocante à
imprevisibilidade e à inevitabilidade do evento. Dela se distancia porque o
evento gerador do hardship, ou “endurecimento das condições”, apenas torna
mais onerosa a execução econômica do contrato, rompendo,
significativamente, em detrimento de uma das partes, o equilíbrio inicial.
Tanto a Cláusula de Força Maior quanto a Cláusula de Hardship são importantes
instrumentos para a segurança jurídica nos contratos internacionais. O cerne diferencial entre
ambas está voltado exatamente quanto ao evento causador do desequilíbrio contratual. O evento
de força maior caracteriza por sua própria natureza a impossibilidade de manutenção da relação
contratual para uma das partes; já o de hardship se caracteriza pela onerosidade excessiva, mas
não ao ponto de se tornar impossível a prestação contratual.
As diferenciações realizadas aqui não se referem a um comparativo para se analisar qual
a mais eficiente no Direito contratual internacional. Trata-se exclusivamente de delinear os
instrumentos, para melhor compreensão de ambos, sobretudo, a Cláusula de Hardship.

3.3.2. Teoria da Imprevisão e Cláusula de Hardship

A Teoria da Imprevisão possui previsão expressa no Código Civil Brasileiro em seus


artigos 478 e seguintes, como já destacado em exposição anterior. Retira-se então a existência
de três requisitos para sua aplicação, em suma: i) ocorrência de evento extraordinário e
imprevisível; ii) comprovação da onerosidade excessiva; iii) contrato seja de execução
continuada ou diferida.

30
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p. 522
- 523.
31
BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex Editora, 2011. p. 239 - 240.
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Num primeiro olhar é possível se questionar inclusive pela própria semelhança com a
Força Maior, além da cláusula de hardship. Todavia, Bruna Lyra Duque esclarece tal dúvida
em relação à Força Maior. Veja-se:
Precisamos compreender também que muitos autores confundem a teoria da
imprevisão com a ocorrência da força maior e do caso fortuito. A força maior
e o caso fortuito referem-se ao fato de que a prestação ajustada no negócio
jurídico não poderá ser cumprida e o devedor não responderá pelos prejuízos
daí resultante, por se tratar de uma hipótese de excludente de responsabilidade
(artigo 393). Por outro lado, para os casos do artigo 317 aí sim aplicamos a
teoria da imprevisão, nos acordos exequíveis a médio ou longo prazo, se uma
das partes ficar em nítida desvantagem econômica32.
A teoria da imprevisão versa sobre a possibilidade de revisão contratual; já a força maior
dispõe sobre a possibilidade de extinção do contrato. A Teoria da Imprevisão trata de situações
que tornaram insuportáveis a uma das partes a relação contratual, cabendo assim a renegociação
dos termos para que busque melhor equilíbrio, já a força maior versa sobre situações em que
não se é mais possível a manutenção da relação.
Cria-se assim então uma maior problematização, qual seria então a diferença entre a
Teoria da Imprevisão e a Cláusula de Hardship? Para introduzir à distinção segue trecho do
doutrinador Frederico Glitz33:
A cláusula de hardship permitiria que os contratantes estabelecessem quais
seriam os eventos que caracterizariam sua incidência, podendo inclusive,
excluir expressamente alguns. Permitiria, ainda, estabelecer-se
detalhadamente a constatação do evento e os procedimentos para a revisão.
Os critérios da imprevisibilidade e da inevitabilidade poderiam ser acrescidos
ou diminuídos. Enfim, este tipo de cláusula permitiria grande margem de
atuação das partes visando-se à manutenção do vínculo contratual.
Em suma, a cláusula de hardship é de fato uma cláusula. É a clara manifestação de
vontade entre as partes, na qual serão convencionadas as possibilidades de revisão contratual.
E não só isso; suas possíveis soluções, como por exemplo, o direcionamento a uma arbitragem,
ou seja, em contato assim com a Cláusula de Arbitragem, ou definindo a lei de qual Estado será
aplicada àquele caso ou o órgão julgador.
Enfim, o que se pode afirmar é o óbvio, a cláusula de hardship, é uma cláusula. Sua
função é de extrema importância, exatamente pelas inseguranças do âmbito internacional. A
Teoria da Imprevisão dá uma enorme abertura subjetiva à resolução de possíveis conflitos, sem
qualquer tipo de limitação mais clara. A cláusula de hardship restringe tais possibilidades,

32 DUQUE, Bruna Lyra. A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.
Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2216>. Acesso em: 14 nov.
2015.
33
GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship, 1 ed.
Curitiba: Juruá, 2012. p.167.
Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
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154

dando maior segurança aos contratantes, e ainda assim permitindo sua manutenção mediante a
revisão. Orlando Gomes se manifesta no seguinte sentido:
[...] é uma cláusula que permite a revisão do contrato se sobrevierem
circunstâncias que alterem substancialmente o equilíbrio primitivo das
obrigações das partes. Não se trata de aplicação especial da teoria da
imprevisão à qual alguns querem reconduzir a referida cláusula, no vezo
condenável de ‘transferir mecanicamente os institutos do armário civilístico
clássico aos novos contratos comerciais’. Trata-se de nova técnica para
encontrar uma adequada reação à superveniência que alterem a economia das
partes para manter [...] sob o controle das partes, uma série de controvérsias
potenciais e para assegurar a continuação da relação em circunstâncias que
segundo os esquemas jurídicos tradicionais, poderíamos levar a resolução do
contrato34.
A posição aludida acima pelo doutrinador denota crítica àqueles que compreendem pela
semelhança entre os institutos, compreensão esta também seguida por Frederico Glitz, o qual
compreende que: “A cláusula de hardship parece se afastar da noção da teoria da imprevisão.
Isso porque visa à manutenção do contrato e não exigiria outro de seus requisitos tradicionais,
como o lucro desproporcional35”. Insere-se assim, portanto, segundo o citado doutrinador, de
que se estaria diante de outra elementar da teoria da imprevisão. Não se trataria unicamente de
uma onerosidade excessiva a uma das partes, mas que diante desta houvesse um lucro
demasiado à parte contrária.
A temática é recente na ciência do Direito. Como qualquer novo instituto, não há clara
pacificação sobre suas delimitações. Darcione Spolaor36 diverge quanto à particularização dos
institutos. Note-se:
Apesar de inúmeras diferenças as cláusulas de força maior e hardship derivam
da teoria da imprevisão, sendo necessário para a aplicação da força maior que
esteja caracterizado a impossibilidade de adimplemento da obrigação
contratual e para a hardship mesmo que seja possível cumprir com o contrato,
bastará que seja demasiadamente oneroso cumprir com a obrigação contratual,
colocando o devedor em situação ruinosa.
A Teoria da Imprevisão decorre de uma lógica principiológica pautada no rebus sic
stantibus visando, sobretudo, se resolver a situação que causou turbulência na relação
contratual. Já a cláusula de hardship possui seu objeto mais delimitado, principalmente em
razão do ato de se convencionar a mesma entre as partes. Pelas pontuações e demonstrações
realizadas deve se compreender que se tratam de institutos distintos.

34
GOMES, Orlando apud BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex Editora, 2011,
p.240.
35
GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship. 1 ed.
Curitiba: Juruá, 2012, p.166.
36
SPOLAOR, Darcione. Contratos comerciais internacionais: Cláusula de Hardship e o Reequilíbrio Contratual.
Âmbito Jurídico – Disponível em: < http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14130>. Acesso em: 15 maio 2016.
Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
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155

4 CLÁUSULA DE HARDSHIP E DIREITO COMPARADO

O Direito Internacional, por sua excelência, versa sobre relações entre Estados e partes
de nacionalidades distintas. Por tal fato, utiliza-se deste espaço para a análise da Cláusula de
Hardship no Direito Comparado.

4.1 DO DIREITO BRITÂNICO

No Direito Britânico há em suma uma mesma conceituação para os termos de hardship


e frustration of contract confundindo as mesmas na prática.
Na Inglaterra a teoria do frustration teve início baseada no caso Taylor v. Caldwell37.
Na citada lide, o demandado – Caldwell - alugou o imóvel para o demandante – Taylor -
por £100 (cem libras esterlinas) por dia, no qual este iria promover quatro grandes concertos.
Todavia, seis dias antes da primeira apresentação, a sala de concertos foi destruída por um
incêndio. Com base na citada teoria, ambas as partes ficaram exoneradas de cumprir com suas
partes do contrato, ou seja, de se pagar o aluguel e de se deixar um prédio à disposição para os
concertos.
Sobre a teoria do frustration discorre José Cretella Neto:
Essa teoria que se desenvolveu na Inglaterra a partir do referido caso Taylor
v. Caldwell, aplica-se não apenas quando o objeto do contrato tiver sido
destruído, mas também quando a obrigação de uma das partes ficar impossível
de cumprir, mediante a ocorrência de evento para o qual não contribuiu e sobre
o qual não pode exercer qualquer influência, tendo-se tornado ilegal o contrato
e, em alguns casos extremos, também àqueles cuja finalidade econômica tiver
desaparecido. A frustration of contract encontra aplicação não apenas a casos
de impossibilidade de cumprimento, mas, também, às vezes, quando ocorre
alteração fundamental de circunstâncias que levam à “frustração do fim” do
contrato38.
“Em suma, a Teoria do frustration desenvolveu-se e é aceita pelos tribunais ingleses,
que não admitem, no entanto, reescrever o contrato, pois entendem que devem interpretar o
contrato e não redigi-lo em lugar das partes39”.

37
Disponível em: <http://www.lawandsea.net/1documents/1863_EWHC_QBJ1_Taylor_v_Caldwell.pdf>. Acesso
em: 15/05/2016.
38
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p.560.
39
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p.526.
Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
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4.2 DO DIREITO FRANCÊS

A história de formação das bases da sociedade francesa é marcada pela desconfiança em


relação ao poder estatal. Os alicerces do direito contratual francês se pautam fortemente no
pacta sunt servanda, sobretudo, para que se impere a vontade das partes, não se possibilitando
tanto a intervenção estatal para a relativização das cláusulas. Toma-se tal afirmativa pelo art.
1.134 Código Civil Francês:
Article 1134. Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux
qui les ont faites. Elles ne peuvent être révoquées que de leur consentement
mutuel, ou pour les causes que la loi autorise. Elles doivent être exécutées de
bonne foi40.
Tal rigidez de manutenção das cláusulas contratuais causou algumas reações, das quais
discorre Cretella:
Doutrina: em especial após a Primeira Guerra Mundial juristas franceses
desenvolveram a Théorie de l’Imprévision, que procurava equilibrar o
princípio do pacta sunt servanda com a cláusula rebus sic stantibus.
Entendiam que, em contratos de longa duração, essa cláusula estaria implícita
e que, com base nos princípios da boa-fé e da equidade, os contratos poderiam
ser revistos, ampliando-se a noção de force majeure para abranger casos de
dificuldades na execução.
Legislação: também nos períodos de pós-guerra registra-se atividade
legislativa em prol da flexibilização dos casos de exoneração por ocorrência
de hardship; a chamada Loi Falliot de 21.01.1918 autorizava os tribunais a
rescindir ou suspender certas espécies de contratos concluídos antes da
Primeira Guerra Mundial.
Prática contratual: a mais eficaz reação à rigidez judicial foi adotada pelas
partes contratantes, que passaram a incluir uma cláusula específica no contrato
– clauses d’adaptation automatique e clauses de révision – contendo
dispositivos materiais e processuais, ou remetendo eventuais litígios à
arbitragem, autorizados a adaptar o contrato a modificações nas circunstâncias
com base no princípio da boa-fé. Essa prática se disseminou, principalmente
nos contratos internacionais, de modo a criar a possibilidade de modificação
das cláusulas, estabelecidas em contrato já desde o início, propiciando um
clima mais confortável entre os contratantes e permitindo que inúmeros outros
contratos pudessem ser concluídos, por acreditar-se que essas cláusulas de
adaptação ou de revisão conferiram maior estabilidade aos negócios
jurídicos41.
A rigidez trazida pelos tribunais franceses causaram reações como as destacadas no
trecho. Destaca-se a pontuação feita em relação aos contratos. Os contratos passam a incluir as

40 FRANÇA. Código Civil Francês. Tradução livre de:


Artigo 1.134 - As convenções legalmente formadas têm força de lei entre as partes. Elas não podem ser revogadas
senão pelo consentimento mútuo das partes, ou pelas causas que a lei autorizar. Elas devem ser executadas de boa
fé. Disponível em:
<https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=78959C7D78C4294194D8FA779BA880D6.tpdila08
v_2?idSectionTA=LEGISCTA000006150240&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20160518>.
Acesso em: 17 maio 2016.
41
CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas: Millennium, 2011. p. 583.
Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
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cláusulas de adaptação para a realização de negociações e flexibilização das mesmas. Assim,


verifica-se que de fato há um forte apego ao princípio do pacta sunt servanda no Direito
Francês. Contudo, mesmo assim, os próprios contratantes passam a prever possibilidades de
flexibilização para se alcançar maior segurança.

CONCLUSÃO

O ambiente vivido por empresários é permeado pelo risco. A atividade empresarial se


trata disso, a busca por ganhos em contraposição ao risco do empreendimento.
A crise econômica e/ou política é a materialização de um fato que causa influência direta
aos contratos, tanto internos quanto internacionais. Esta realidade é a qual a sociedade brasileira
hoje vive. Tal cenário se mostra marcado por inseguranças, o que traz efeitos como a redução
de investimentos estrangeiros, e uma maior cautela no país.
A cláusula de hardship entra neste contexto para se buscar maior segurança para as
relações contratuais. Eventos imprevisíveis que causem grande onerosidade a uma das partes
podem ter seus efeitos reduzidos para a relação.
Não se trata de um abandono completo do princípio do pacta sunt servanda, pelo
contrário. A relativização do acordo mediante a aplicação da cláusula busca a preservação do
principal objeto, ou seja, o contrato.
E não só isso. A cláusula traz para as partes maior segurança do procedimento adequado
para contornar tais situações de dificuldade (hardship). Retira-se uma proposta de interpretação
do contrato de forma tão aberta, limitando-se ao acordado. A cláusula de hardship nada mais é
do que a autonomia da vontade na sua forma mais essencial.
Por meio da cláusula se busca passar pelas situações de dificuldade mediante a
renegociação do contrato entre as partes. O que se deve realizar inicialmente é a definição se
houve de fato o evento de hardship ou não. Caso as partes não consigam chegar a este acordo,
que seja acordado previamente que um terceiro solucione tal impasse; que seja por um árbitro
ou juiz. E ai sim, caso não se chegue a uma solução, que se dê fim ao contrato.
Conclui-se pelo exposto que a cláusula de hardship demonstra ser um instrumento
eficaz para se trazer maior segurança aos contratos internacionais, frente a crises tais como a
vivida atualmente pelo Brasil. Além disso, destaca-se o fato de possuir grande aceitação no
âmbito internacional.
Não se trata da medida fatal contra tal problemática; não é uma panaceia. Mas, é possível
se afirmar que de fato é um instrumento útil para o que se propõe.
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REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex Editora, 2011.

BRASIL. Decreto nº 8.327, de 16 de outubro de 2014. Promulgação do Tratado de Viena.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2014/Decreto/D8327.htm>. Acesso em 26 mar. 2016.

BRASIL. Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 20 maio 2016.

CRETELLA NETO, José. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas:


Millennium, 2011.

DUQUE, Bruna Lyra. A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do


Consumidor. Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2216>. Acesso em:
14/11/2015.

_____, _________. A Revisão dos Contratos e a Teoria da Imprevisão uma releitura do direito
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Recebido em: março de 2017


Aprovado em: abril de 2017
André Luiz Rigo Costa dos Santos: andrerigoo@gmail.com

Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526-
6284

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