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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS


CURSO DE DIREITO
DISCIPLINA: DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
PROFESSOR: MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO

ALUNO: RAUL ALEIXANDRE FERNANDES DE QUEIROZ

A VALIDADE NO BRASIL DE CASAMENTO POLIGÂMICO REALIZADO NO


EXTERIOR

NATAL / RN
DEZEMBRO
Palavras-Chave: casamento, poligamia, direito internacional privado, reconhecimento,
validade, lex loci celebrationis

INTRODUÇÃO

As relações entre pessoas de diferentes países têm se tornado mais comuns a cada dia
em virtude da constante integração entre os povos. Pessoas viajam por tempo determinado ou
fazem migração, passando a ter lar em outros países, muitos dos quais possuem uma base
cultural e costumes diferentes da sua terra natal. A depender do país, até mesmo os costumes e
leis referentes à constituição de famílias podem estabelecer modelos distintos daqueles comuns
e permitidos em outros como o Brasil. Enquanto aqui o ordenamento jurídico estabelece a
monogamia como único modelo de casamento permitido, em alguns países da Afríca e da Ásia
se admite legalmente a poligamia.
Este trabalho visa resenhar com base nos estudos do Direito Internacional Privado de
que forma o ordenamento jurídico brasileiro irá tratar o casamento poligâmico contraído no
estrangeiro para aqueles que venham a habitar no Brasil. Procuraremos expor o posicionamento
de pesquisadoras do Direito Internacional Privado sobre a questão e de que forma a legislação
pátria lidará com o reconhecimento ou não desse tipo de relacionamento.

DESENVOLVIMENTO

O relacionamento entre pessoas de diferentes nacionalidades e provindas de diversos


Estados é fator recorrente na história humana. Seja por meio de turismo, estudo, guerra,
comércio ou migrações, a interação entre cidadãos de países distintos vem há muito ocorrendo.
O mundo moderno, marcado pela globalização, desenvolvimento dos meios de transportes e
maior integração, vem propiciando de sobremaneira as relações e os contatos entre pessoas de
diferentes origens.
No âmbito de seus respectivos países, as pessoas - tanto naturais quanto jurídicas -
constituem direitos, contraem obrigações e firmam contratos, segundo o ordenamento interno
do Estado Soberano no qual habitam. Ao nos depararmos, contudo, com fatos sociais entre
pessoas de diferentes comunidades nacionais, se faz necessário compreender de que forma essas
relações serão regidas. Os contatos havidos entre pessoas de nacionalidades distintas ou
ocorridos em países distintos não fogem ao olhar do Direito. Tais fatos costumam ser
denominados de transnacionais e são multiconectados ou plurilocalizados, podendo ser
regulados por mais de um ordenamento jurídico (FINKELSTEIN e LIMA, 2022).
O estudo desses fatos transnacionais do ponto de vista jurídico cabe ao Direito
Internacional Privado (DIP), o qual segundo Melo (1999, p. 50) pode ser definido como:

[...] um conjunto de normas que qualificando um fato e definindo como o mesmo se


enquadra no ordenamento jurídico nacional e/ou estrangeiro, busca apresentar
soluções para os conflitos de leis divergentes, preservando os direitos privados de
cidadãos de diferentes Estados.

Questão de extrema relevância ao se observar as relações transnacionais está no que diz


respeito à constituição das famílias por meio do casamento. Várias dúvidas podem surgir ao se
indagar sobre o tema à luz das relações internacionais, seja aquela referente ao casamento entre
pessoas de nacionalidade distintas, seja sobre o casamento realizado em país distinto daquele
nos quais os cônjuges irão habitar, ou mesmo no que se refere à validade e ao reconhecimento
de um casamento realizado em um Estado perante outro. As diferentes ordens jurídicas
existentes podem dispor de forma diferente sobre o tema, o que leva à necessidade de verificar
se o casamento civil realizado em determinada região do planeta pode vir a ser reconhecido por
pessoas que venham a morar em outra localidade. Entre as possíveis abordagens diferentes
sobre casamento adotados por países distintos podemos destacar o reconhecimento ou não de
casamentos homoafetivos, necessidade de casamento religioso para reconhecimento da união
civil, idades mínimas dos nubentes, possibilidade de casamentos poligâmicos, além de outras
circunstâncias que possam ser observadas de formas variadas por cada ordenamento jurídico.
Iremos nos deter sobre o casamento poligâmico.
O Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (2015, p. 388), define poligamia como “a
união conjugal de uma pessoa com várias ao mesmo tempo”. Trata-se de um tipo de casamento
que foi comum em determinados períodos históricos do Ocidente, conforme se verifica em
passagens do Velho Testamento bíblico, e que ainda é socialmente aceito em países de religião
islâmica e em certas culturas africanas.
Ao se observar a questão da poligamia, encontraremos tratamento distinto entre as várias
ordens jurídicas do globo. Segundo levantamento das Organização das Nações Unidas (2011),
a poligamia era legal em 33 países no ano de 2009 e também era aceita para determinados
grupos populacionais em ao menos 41 países. Segundo a mesma publicação, em 26 dos países
com dados sobre a poligamia, entre 10 por cento e 53 por cento das mulheres entre os 15 e os
49 anos estavam em casamentos nos quais o marido tinha ao menos mais uma esposa.
Apesar desse número expressivo, a maior parte dos países-membros da ONU não
reconhece esse tipo de relação. Ocorrendo, porém, a poligamia legalizada em mais de três
dezenas de nações, é factível supor a migração de uma família poligâmica para países no qual
esse tipo de relação não seja admitido em lei. Tal cenário permite conjecturar ainda se haveria
a possibilidade ou não de validação de casamento poligâmico realizado no exterior em território
brasileiro, em caso de recebermos imigrantes nessa condição originados de lugar no qual a
poligamia é permitida.
A primeira ressalva que poderia ser levantada quanto ao reconhecimento poligâmico no
Brasil está na forma como o ordenamento jurídico nacional lida com a situação. Olhando
inicialmente as disposições de validade do casamento entre mais de uma pessoa, temos que o
Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), ao dispor sobre os impedimentos para
o casamento, determinou em seu art. 1521, inciso I, que entre as pessoas proibidas de se casar
estão aquelas que já são casadas. Além disso, mesmo que eventualmente alguém conseguisse
ludibriar os sistemas de registros e contrair um novo matrimônio no Brasil ainda estando
casado, tal ato seria considerado nulo, por força do art. 1548, inciso II, do próprio Código Civil.
Além da proibição da poligamia no plano cível, o ordenamento jurídico brasileiro faz
outra grave reprovação ao casamento entre mais de uma pessoa por meio da instituição do crime
de bigamia no Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), o qual
determina em seu art. 235 a pena de reclusão, de dois a seis anos, para aquele que contrair,
sendo casado, novo casamento. Dessa forma, fica claro que o Brasil não só não admite como
pune em seu ordenamento jurídico a tentativa de casamento entre mais de dois cônjuges.
Necessário se faz averiguar como o país tratará o casamento poligâmico realizado no exterior.
Se países meramente não reconhecessem os atos jurídicos praticados fora de seu
território, seria simples a resposta para questões sobre casamentos realizados no estrangeiro:
qualquer casamento efetuado fora de um determinado país não seria por ele reconhecido. A
realidade, todavia, demonstra o contrário, visto que os ordenamentos jurídicos das diversas
nações estabelecem regras concernentes às relações jurídicas de direito privado com conexão
internacional, regras estas que determinarão qual será o direito aplicável, nacional ou
estrangeiro, ao caso concreto (RECHSTEINER, 2022).
Para resolver questões que envolvam ordens jurídicas distintas, necessário se faz
analisar qual o elemento de conexão que indicará a ordem jurídica (nacional ou estrangeira) a
ser utilizada para a resolução do conflito. Segundo Mazzuoli (2018), elementos de conexão são
aqueles que ligam, contatam ou vinculam ou vinculam internacionalmente a questão de Direito
Internacional Privado, tornando possível saber qual lei deverá ser efetivamente aplicada ao caso
concreto. Os elementos de conexão a serem utilizados dependerão de cada ordenamento
jurídico. No caso do Brasil, os elementos de conexão poderão ser determinados em leis
específicas, porém estão em grande parte previstos na Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942). Tal instrumento legal traz soluções
e disposições pertinentes não só ao direito interno, mas sobre qual norma a ser aplicada em
situações transnacionais. Deve-se recorrer aos dispositivos da Lei de Introdução (LINDB) a fim
de averiguarmos a recepção do casamento realizado no exterior.
Ao tratar sobre os direitos de personalidade e família, a LINDB estabelece no caput de
seu art. 7º que a lei de domicílio da pessoa determinará as regras sobre o direito de família. Mais
à frente, no caput de art. 9º, estabelece que para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a
do país em que se constituírem. A leitura dessas disposições aduz ser possível então o
reconhecimento no Brasil de casamento poligâmico contraído de forma legal no exterior.
Nessa perspectiva, Mazzuoli (2018, pág. 244) expressa que “se a lei brasileira deve ser
aplicada para o casamento realizado no Brasil, é evidente que para os casamentos celebrados
no exterior há de se aplicar a lei do local de sua celebração”. Nesse caso, a realização do
casamento observaria a lex loci celebrationis, a qual é um elemento de conexão relativo à lei
do local de celebração do ato jurídico.
Melo (1999, p. 199) vai ao encontro da possibilidade de reconhecimento no Brasil de
casamento poligâmico estrangeiro, comentando que “um mulçumano que pretenda casar-se no
Brasil na constância de pelo menos um casamento, não poderá fazê-lo. Todavia, mesmo sendo
casado com três ou quatro mulheres e estes casamentos se realizarem em seu país, aqui serão
reconhecidos como direito adquirido”.
Observadas as considerações dos dois doutrinadores em prol do reconhecimento do
casamento poligâmico realizado no exterior no Brasil, resta ainda uma questão a ser levantada
em contrário. O art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve que “as
leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão
eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons
costumes”. Seria então válido questionar se não estaria a poligamia não restaria enquadrada
como ofensa à ordem pública e à soberania nacional.
Rechsteiner (2022, pág. 188) ao tecer comentários sobre o art. 17 da LINDB destaca:
No Brasil, a legislação refere-se expressamente à soberania nacional e aos bons
costumes para caracterizar a ordem pública. Esse conceito, entretanto, já abrange os
casos de violação da soberania nacional e dos bons costumes pela aplicação do direito
estrangeiro no País, o que torna juridicamente irrelevante a sua introdução na lei. A
ordem pública é um conceito relativo com variações no tempo e no espaço. É também
um conceito aberto que, necessariamente, precisa ser concretizado pelo juiz, quando
este julga uma causa de direito privado com conexão internacional.

O autor destaca que o conceito de ordem pública pode variar no tempo e no espaço e
que caberá ao juiz no caso concreto observar sua aplicação. Gil (2008) se manifesta de forma
similar, afirmando que não é possível negar de forma genérica a possibilidade de se reconhecer
qualquer efeito ao casamento poligâmico, e fazendo um resgate histórico que a adoção do não
reconhecimento ao casamento poligâmico nos primórdios da jurisprudência inglesa teve
“efeitos perversos e virou-se contra as mulheres e filhos, as vítimas desta instituição”.
Um fator importante a ser levado em conta ao analisar a situação se dá pela liberdade
religiosa garantida pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) em seu art. 5º, inciso VIII,
segundo o qual ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa. Não é
demasiado constatar que os países que admitem o casamento poligâmico o fazem por ser
previsto em sua cultura religiosa. O não reconhecimento de casamento poligâmico contraído no
estrangeiro poderia assim se confundir com discriminação a pessoas de outras crenças que
venham a ter domicílio no Brasil. Necessário ainda destacar que o inciso XXXVI do mesmo
art. 5º da Carta Magna assevera a proteção ao direito adquirido, no qual estaria enquadrado o
casamento realizado em países que admitem a poligamia.
Nesses termos, Medeiros, Sousa e Raposo (2021, pág. 195) também apontam a
necessidade de reconhecimento do casamento poligâmico contraído no estrangeiro como
situação assentada nos direitos fundamentais ligados à cultura e à religião dos envolvidos e
também no direito adquirido:

A união poligâmica, assim como qualquer outro direito inerente ao homem, tem
princípios que a fundamentam, como é o caso do respeito pela identidade cultural das
pessoas de estatuto poligâmico, visando à proteção da própria identidade pessoal; o
princípio da paridade de tratamento das leis, que busca o tratamento digno de todas as
leis, colocando os diferentes sistemas jurídicos em pé de igualdade; o respeito pelos
direitos adquiridos e a continuidade das relações privadas, uma vez que esse é um dos
princípios mais importantes a ter em conta nos casos de validação de casamento
contraído no exterior.

A partir dessas exposições se torna possível concluir que o reconhecimento jurídico do


casamento poligâmico celebrado no exterior não estaria em desacordo com a ordem pública
nacional, posto que o ordenamento jurídico brasileiro protege a liberdade religiosa dos
indivíduos e o direito adquirido.

CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, em nossa análise concluímos que, não obstante a poligamia
seja proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro, o casamento poligâmico realizado no
exterior será reconhecido no Brasil em conformidade com o princípio da lex loci celebrationis
em respeito ao princípio do direito adquirido. O reconhecimento e a validade de tais relações
não poderão ser afastadas por suposta ofensa à ordem pública nacional, posto que a Constituição
Federal e o ordenamento jurídico preservam o direito adquirido, bem como a liberdade religiosa
dos indivíduos.

REFERÊNCIAS

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