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PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: O VÍNCULO ALÉM

DO SANGUE

Andreza Murta

Resumo: No presente artigo serão tratados aspectos relativos à discussão


acerca do reconhecimento e dos direitos em favor de filhos havidos em
razão do afeto, demonstrando que a parentalidade socioafetiva é uma
realidade na sociedade brasileira. Para tanto, serão analisados
posicionamentos doutrinários, legais e jurisprudenciais.

Palavras-chave: Direito das famílias. Direito Sucessório. Relações


Familiares. Parentalidade Socioafetiva. Multiparentalidade.
Pluriparentalidade.

Introdução

Foi-se o tempo em que o único formato de família existente era o da família


tradicional, aquele formado por pai, mãe e filhos biológicos.

Com a Constituição Federal de 1988, ampliou-se a aplicação da autonomia


da vontade privada, inclusive, dentro das relações familiares. O conceito de
família que até então era extremamente restritivo e preconceituoso, passou
a ter um conceito plural, com diversos tipos de famílias.

A Constituição Federal, em seu artigo 226, elenca a família como base da


sociedade, merecendo especial atenção do Estado.
” Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.”

A Constituição veio romper o preconceito legal, trazendo uma nova


concepção de família, pois, além de prever a igualdade entre homem e
mulher, ampliou o conceito de família, reconhecendo a união estável e as
famílias monoparentais – formado por apenas um dos pais e os filhos.
Consagrou, ainda, a igualdade entre os filhos, independentemente de serem
havidos ou não do casamento: por adoção ou por laços de afeto, como o
caso da parentalidade socioafetiva.

O que é parentalidade socioafetiva?

A parentalidade socioafetiva é uma forma de parentesco que se dá em


decorrência do afeto e não por meio de laços sanguíneos ou processo de
adoção. Através desse tipo de paternidade são formados núcleos familiares,
gerando efeitos no âmbito jurídico.

A socioafetividade vai muito além dos laços de sangue, são vínculos


emocionais e afetivos na agindo na construção de uma família. Essa forma
de parentalidade reconhece que ser pai ou mãe vai além da biologia e que o
amor, o cuidado e o comprometimento são os pilares fundamentais dessa
relação.

De que forma pode ocorrer?

O processo de reconhecimento da filiação socioafetiva pode ocorrer tanto


pela via judicial, quanto pela via extrajudicial, havendo alguns requisitos
para utilização de cada uma dessas vias, como por exemplo a idade do
filho.

De acordo com os provimentos 63 e 83 do CNJ, a via extrajudicial só pode


ser utilizada quando o filho é maior de 12 anos, quando já pode exprimir
seu consentimento com relação ao processo de reconhecimento de filiação.

O provimento do CNJ assim passou a determinar:


“O reconhecimento voluntário da paternidade ou da
maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos
será autorizado perante os oficiais de registro civil das
pessoas naturais.”

Além disso, o registrador poderá exigir documentos e provas que confirmem


a socioafetiva, como por exemplo, seja a condição do filho como
dependente na declaração de imposto de renda, no plano de saúde,
responsável em registros escolares, comprovantes de residência, casamento
ou união estável com o ascendente biológico, fotografias, testemunhas,
entre outras provas.

A via judicial será a solução para as crianças menores de 12 anos e deve


seguir os trâmites legais como qualquer outra ação judicial. É preciso se
atentar a isso, pois até pouco tempo atrás era possível utilizar a via
extrajudicial em qualquer caso. O conjunto probatório acaba sendo o
mesmo da via extrajudicial, lembrando que nesses casos haverá a
manifestação do Ministério Público, atuando como fiscal da lei e em prol dos
interesses do menor.

Até o ano de 2019 o que regulava o procedimento extrajudicial do


reconhecimento da filiação socioafetiva era o provimento 63 do CNJ, de
2017, mas isso mudou. O reconhecimento da filiação socioafetiva passou
por algumas transformações algum tempo atrás com a edição do
provimento 83 do Conselho Nacional de Justiça.

A principal mudança diz respeito a idade para reconhecimento da filiação


em cartório. Antes era possível que todos se beneficiassem dessa
modalidade, mas as novas regras determinam que a via extrajudicial só
pode ser utilizada pelos filhos maiores de 12 anos.

As partes deverão comprovar a filiação socioafetiva ao registrador, que


poderá requisitar mais documentos que se fizerem necessários, bem como o
consentimento dos filhos menores de 18 anos.
O cartório de registro civil será responsável por encaminhar esse pedido de
reconhecimento e provas para o Ministério Público e aguardar o retorno do
parecer positivo para posterior registro da filiação socioafetiva.

Essas mudanças obrigam que filhos menores de 12 anos se socorram do


poder judiciário para obter o reconhecimento da parentalidade, evitando
assim situações de fraude e irregularidades no processo de registro.

Parentalidade socioafetiva requisitos:

Para solicitar a Paternidade Socioafetiva extrajudicialmente, são necessários


os requisitos previstos nos Provimentos nº 63 e nº 83 do CNJ:

 Existência de Vínculo de Filiação: aquele filho ou filha precisa, de


fato, ser considerando como tal pelo pretenso pai ou pretensa mãe;

 Inexistência de decisão judicial: não pode haver decisão judicial


que impeça a filiação;

 Maioridade do pretenso pai ou mãe: é necessário que a pessoa


seja maior de 18 anos;

 Deve haver a diferença de 16 anos entre o pai e o filho: é


preciso que tenha diferença de 16 anos entre a pessoa paterna e o
pretenso filho;

 Consentimento caso o filho tenha entre 12 e 18 anos: será


necessário o consentimento do pretenso filho para solicitar a
paternidade.

Nos casos em que o filho tiver menos de 12 anos ou não for preenchido
qualquer dos requisitos acima, o reconhecimento da paternidade
socioafetiva deverá ser feito por meio de processo judicial.

O que diz a lei sobre paternidade socioafetiva:


No Brasil, a jurisprudência e a doutrina reconhecem a importância dessa
forma de parentalidade, mas não há uma lei específica, sendo
regulamentada pelos atos normativos do CNJ na via extrajudicial.

A parentalidade socioafetiva é mencionada no artigo 1.593 do Código Civil:

“Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme


resulte de consanguinidade ou outra origem”.

Ao trazer as palavras “outra origem”, o legislador reconhece que o


parentesco possa se dar de outras formas que não apenas a relação de
sangue.
Logo, conclui-se que é permitido por lei a paternidade com fundamento no
afeto, sendo, portanto, a paternidade socioafetiva uma forma de parentesco
civil.

No mesmo sentido prevê o Enunciado nº 256 da III Jornada de Direito Civil


do Conselho da Justiça Federal:

“A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva)


constitui modalidade de parentesco civil”.

A parentalidade socioafetiva é reconhecida pelo Poder Judiciário com base


nas decisões judiciais e nos princípios basilares como o melhor interesse da
criança.

Importante ressaltar que, a paternidade socioafetiva não impede o


reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem
biológica. Vamos imaginar que uma determinada pessoa não tenha nenhum
pai em seu registro de nascimento, com seus 12 anos de idade tem uma
paternidade socioafetiva reconhecida, aos 15 anos conhece seu pai
biológico, nada impede a possibilidade dessa pessoa ou pai biológico
buscarem o reconhecimento desse vínculo futuramente.
Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva

No campo jurídico, essa forma de filiação vem ganhando reconhecimento

significativo nas últimas décadas. A jurisprudência e a legislação em muitos

países têm acompanhado essa evolução, reconhecendo os direitos e

deveres dos pais socioafetivos em relação às crianças, com importantes

implicações legais:

1. Direitos e Deveres: A parentalidade socioafetiva confere ao indivíduo os


direitos e deveres parentais, permitindo-lhes, por exemplo, tomar decisões
em relação à educação, saúde e bem-estar da criança, independentemente
de qualquer relação biológica.

2. Herança e Sucessão: Os filhos socioafetivos têm direitos à herança e


sucessão como se fossem filhos biológicos, desde que sejam reconhecidos
legalmente como tal.

3. Pensão Alimentícia e Responsabilidade Financeira: Em casos de divórcio


ou separação, os pais socioafetivos podem ser legalmente obrigados a
pagar pensão alimentícia para o filho socioafetivo, da mesma forma que os
pais biológicos.

5. Nome e Registro Civil: O nome da criança pode ser alterado para incluir o
sobrenome do pai ou mãe socioafetivos, e seu registro de nascimento pode
ser atualizado para refletir a nova filiação.
6. Guarda e Visitas: Os tribunais podem conceder a guarda de uma criança
a um pai ou mãe socioafetivo, permitindo-lhes tomar decisões importantes
em relação à vida da criança. Além disso, eles têm direito a convivência em
caso de separação.

7. Proteção contra Abandono: A parentalidade socioafetiva pode servir como


uma proteção legal para a criança em caso de abandono ou negligência por
parte dos pais biológicos.

8. Seguro de Saúde e Benefícios: Em muitos sistemas de seguro de saúde e


programas de benefícios sociais, os filhos socioafetivos podem ser incluídos
como dependentes, garantindo acesso a cuidados médicos e outros
benefícios.

Nosso Ordenamento Pátrio já tem se posicionado em relação aos efeitos


sucessórios da parentalidade afetiva, vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE


RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA/RELAÇÃO AVOENGA C/C PETIÇÃO
DE HERANÇA. DECISÃO DE EXTINÇÃO PARCIAL
DO FEITO POR FALTA DE LEGITIMIDADE ATIVA.
IMPUGNÁVEL POR AGRAVO DE INSTRUMENTO.
POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RELAÇÃO
AVOENGA SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE DE
PETIÇÃO DE HERANÇA. I. A decisão que julga
parcialmente extinto o feito, por falta de legitimidade
ativa, é impugnável via agravo de instrumento, por
força do parágrafo único, do art. 354. do CPC. II. O
reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido não
tem o intuito de dizer, de plano, o direito, julgando
procedente o pedido autoral, mas, tão somente, apurar
se o fato afirmado pela parte se mostra compatível com
a possibilidade de eventual entrega de tutela
Jurisdicional, seja em face da existência de regulação
normativa que, em tese, possa amparar a pretensão,
seja em razão da inexistência de vedação legal. III. Os
netos, assim como os filhos, possuem direito de agir,
próprio e personalíssimo, de pleitear declaratória de
relação de parentesco em face do avo, ou dos herdeiros
se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à
identidade e a origem genética estão intimamente
ligados ao conceito de dignidade da pessoa humana.
IV, O direito à busca da ancestralidade é personalíssimo
e, dessa forma, possui tutela jurídica integral e
especial, nos moldes dos arts. 5° e 226, da CF/88. V. A
pretensão dos netos no sentido de estabelecer. por
meio de ação declaratória, a legitimidade e a certeza da
existência de relação de parentesco com o avô, não
caracteriza hipótese de impossibilidade jurídica do
pedido; a questão deve ser analisada na origem, com a
amplitude probatória a ela inerente. VI. In casu, se
comprovada ao fim da instrução probatória a relação
avoenga socioafetiva entre as autoras/agravadas e o de
cujus não há dúvidas de que elas terão direito ao seu
quinhão hereditário, por representação, como se netas
biológicas fossem vistas que essa distinção - entre
netos biológicos ou por socioafetividade - não é possível
juridicamente. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO
E IMPROVIDO

Avosidade ou relação avoenga socioafetiva

A justiça brasileira tem reconhecido o vínculo socioafetivo entre o


cônjuge/companheiro dos avós e os netos destes.

Essas hipóteses ocorrem quando a avosidade é exercida de forma estável,


decorrendo daí um forte vínculo afetivo e de afinidade entre as partes do
processo.

Entende-se como requisito para o deferimento desses pedidos que, em


relação aos efeitos práticos, o vínculo afetivo existente entre essas pessoas,
que já era público e notório, apenas será oficializado. Em relação às
prerrogativas legais decorrentes da formalização de tal vínculo, podemos
entender que a decisão judicial 'desburocratiza' a questão. Como exemplo,
podemos citar que determinada avó e neta que façam esse pedido
judicialmente e a avosidade socioafetiva seja reconhecida, poderão
posteriormente, viajar sem necessidade de autorização judicial. O
interessante na questão é que, por meio da declaração da socioafetividade é
criado um vínculo de parentesco de primeiro grau entre avós e netos, por
exemplo.

As decisões que acolhem a possibilidade da avosidade socioafetiva estão


em harmonia com a moderna jurisprudência do STF - Supremo Tribunal
Federal, que prestigia a multiparentalidade, fenômeno que ocorre quando
se mantêm os vínculos biológicos, reconhecendo e acrescentando os
vínculos socioafetivos, afastando qualquer hierarquização entre eles,
entendimento sedimentado.

Nesse sentido:

“A decisão está em consonância com o atual


entendimento do Supremo Tribunal Federal – STF. O
Supremo Tribunal Federal, apreciando o tema 622 da
repercussão geral, fixou a tese que: A paternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não
impede o reconhecimento do vínculo de filiação
concomitante baseado na origem biológica, com os
efeitos jurídicos próprios (STF, REx nº 898.060, Rel.
Min. Luiz Fux, Plenário, publ. 24/08/2017)”

No entanto, ainda falando de avós, é preciso ressaltar que estes não podem
reconhecer parentalidade socioafetiva por via extrajudicial. O CNJ reforçou a
impossibilidade de ascendentes biológicos, ou seja, avós e avôs,
reconhecerem extrajudicialmente a maternidade ou paternidade afetiva de
netas e netos.

Irrevogabilidade da parentalidade socioafetiva

A parentalidade socioafetiva é considerada irrevogável por diversos


motivos, um deles é relacionado a proteção da personalidade humana.
Permitir a revogação desse vínculo afetivo poderia afetar a formação da
identidade do indivíduo, uma vez que na maioria das vezes temos menores
envolvidos.

É frequente encontrar situações em que pais que, inicialmente


reconheceram um filho como seu de forma voluntária, posteriormente, após
a dissolução da relação com a mãe da criança, busquem negar a
paternidade através de exames de DNA.

No entanto, em casos baseados no critério socioafetivo de filiação, a


jurisprudência tem mantido o vínculo afetivo estabelecido entre pai e filho,
uma vez que, o motivo que levou ao término do relacionamento entre a
genitora e o pai registrado não pode afetar o filho.

A filiação socioafetiva, estabelecida por meio da posse de estado de filiação,


não depende da vontade consciente das partes envolvidas para ser
reconhecida, pois é considerada um ato-fato jurídico.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, julgou em 05 de


outubro de 2016:

DIREITO CIVIL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE.


ANULAÇÃO DE REGISTRO. VÍCIO DE CONSENTIMENTO
AUSÊNCIA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
CARACTERIZADA. I - O reconhecimento espontâneo da
paternidade somente pode ser desfeito quando
demonstrado vício de consentimento. II - Não logrando
comprovar o alegado vício de consentimento quando do
registro de nascimento da criança, tampouco a
ausência de vínculo afetivo entre as partes, julga-se
improcedente a negatória de paternidade. II - Negou-se
provimento ao recurso (BRASÍLIA, 2016,
https://bd.tjmg.jus.br).

Nesse contexto, a ausência de uma vontade consciente não permite a


alegação de indução a erro, pois tal argumento não é aplicável às relações
de filiação. A filiação socioafetiva se baseia em elementos concretos e na
realidade vivenciada, superando questões de vontade individual.
Portanto, não é possível questionar ou anular essa filiação com base em
informações enganosas ou falta de conhecimento por parte do genitor
socioafetivo.

Conclusão

A Constituição Federal trouxe muitas mudanças no Direito das Famílias,


entre elas, a possibilidade de constituir uma família baseada nos laços de
afeto, não somente por meio de laços consanguíneos.
É uma grande conquista para a nossa sociedade, uma vez que, com tal
instituto, mais famílias são protegidas e são reservados os direitos a todos
os filhos, independente da natureza dessa filiação.
Não podemos confundir o reconhecimento de filiação socioafetiva com o
instituto da adoção. A filiação socioafetiva pode ocorrer havendo pai
biológico registrado ou não, ela existe concomitante aos pais biológicos,
gerando o que chamamos de Multiparentalidade, ou seja, existência de três
ou mais genitores na certidão de nascimento.

A parentalidade socioafetiva é uma demonstração do poder do amor e do


afeto na formação das famílias modernas. Ela reconhece que o vínculo entre
pais e filhos não é exclusivamente biológico, mas baseia-se na dedicação,
carinho e cuidado mútuo. À medida que nossa compreensão da
parentalidade continua a evoluir, é essencial promover o respeito e a
aceitação das diversas formas de família, valorizando sempre o bem-estar
das crianças acima de tudo.

Referencias:

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório da consulta pública: metas


nacionais 2020. Brasília: CNJ, [2019].

Fontes: TJ-SP, TJ-MG, TJ-RJ


IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, Família e Sucessões. A
Parentalidade e suas Diversas Vertentes.

JUSBRASIL. Disponível em:... . Acesso em 24 set. 2023.

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil,


Brasília,
DF:PresidênciadaRepública,[2018].Disponívelem:https://www.planalto.gov.b
r/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 23 aset. 2023.

Teles, Ana Terra. Paternidade Socioafetiva: o Direito à Inclusão do Pai


Socioafetivo no Registro Civil Brasileiro. Editora Dialética, 2021.

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