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I

No dia 1 de janeiro de 2021, foi publicado no Diário de Notícias o Decreto


Regulamentar n.º A/2021 do Conselho de Ministros, com o seguinte conteúdo: “Na falta
de fixação do dia, os atos legislativos e os outros atos de conteúdo genérico entram em
vigor, em todo o território nacional e no estrangeiro, no 2.º dia após a publicação”.
Em 2 janeiro de 2021, foi publicada a Lei n.º 1/2021 que estabelecia um conjunto
de normas relativas à utilização de funiculares, proibindo que neles se transportassem
animais. Adicionalmente, estabelecia que a sua entrada em vigor seria no próprio dia da
publicação.
Em 22 de janeiro de 2021, a Assembleia da República faz publicar a Lei n.º
2/2021, que disciplinava o “Novo Regime Jurídico dos transportes”, no qual, não obstante
um denso travejamento jurídico e um capítulo destinado aos transportes coletivos de
passageiros, nada se dizia sobre a proibição de transporte de animais.
Em 30 de janeiro, é publicada a Lei n.º 3/2021 que revoga a Lei n.º 2/2021, e
dispunha, no seu último artigo: “A presente lei apenas poderá ser modificada por
Portaria do Ministro da Administração Interna”.

1. Pronuncie-se sobre a vigência dos vários atos normativos referidos e informe o


seu colega António se poderá, no dia 10 de fevereiro, levar o seu cão Rex a passear
no funicular. (5 valores)
Cenário de resposta:

A presente hipótese faz referência a diversos atos normativos. Primeiramente, temos o


Decreto Regulamentar n.º A/2021, que constitui uma lei em sentido material (enunciado linguístico
do qual se retira uma regra jurídica geral e abstrata), mas não lei em sentido formal, pois não se trata
de um ato legislativo (cf. artigo 112.º/1 da CRP), mas simplesmente de um ato regulamentar (cf. artigo
112.º/6 e 7 da CRP), emanado no âmbito da competência administrativa – e não legislativa – de um
órgão. Quanto aos demais atos normativos – Lei n.º 1/2021, Lei n.º 2/2021 e Lei n.º 3/2021 –, estes
consistem não apenas em leis em sentido material (de natureza geral e abstrata), mas igualmente leis
em sentido formal, uma vez que estamos perante atos emanados pela Assembleia da República no
âmbito da sua competência legislativa (cf. artigo 112.º/1 da CRP).

O Decreto Regulamentar n.º A/2021, tendo sido publicado no Diário de Notícias e não em
Diário da República, torna-se ineficaz e, como tal, não é obrigatório nem produz efeitos jurídicos (cf.
artigo 119.º/2 da CRP; artigo 5.º/1 do CC; e artigo 1.º/1 da LF). Quanto aos demais atos normativos,
presume-se que estes foram corretamente publicados em Diário da República, tornando-se eficazes e,
consequentemente, suscetíveis de entrar em vigor.

Acresce ainda que o Decreto Regulamentar n.º A/2021, tratando-se de ato regulamentar, não
poderia estabelecer um prazo supletivo de vacatio legis distinto daquele que decorre do artigo 2.º/2 da
LF, que consiste num ato legislativo. Assim, e sem prejuízo da sua ineficácia por falta de publicação,
o Decreto Regulamentar n.º A/2021 não poderia revogar a Lei Formulária (LF), pois uma lei apenas
pode ser revogada por outra de hierarquia idêntica ou superior, o que não sucederia.

Por sua vez, a Lei n.º 1/2021 fixa um prazo ad hoc de vacatio legis (cf. artigo 5.º/2/1.ª parte
do CC; e artigo 2.º/1/1.ª parte da LF), determinando o seu início de vigência no dia da publicação. Ora,
a vigência imediata de um ato normativo é proibida, nos termos da parte final do artigo 2.º/1 da LF.
Contudo, deve-se atentar no facto de a Lei Formulária não ser uma lei de valor reforçado (cf. artigo
112.º/3 da CRP), mas sim de valor ordinário, podendo ser revogada (parcialmente) por outra lei que
tenha hierarquia idêntica ou superior, tal como sucede com a Lei n.º 1/2021 (cf. artigo 112.º/1 da CRP).
Logo, a Lei n.º 1/2021 iniciou a sua vigência no próprio dia da publicação, i.e., a 2 de janeiro de 2021.

Quanto à Lei n.º 2/2021, e na falta de fixação, aplica-se o prazo supletivo de vacatio legis,
pelo que esta entra em vigor no quinto dia contado após a data da publicação (cf. artigo 2.º/2 e 4 da
LF), i.e., a 27 de janeiro de 2021. Ademais, ao estabelecer o “Novo Regime Jurídico dos transportes”,
a entrada em vigor da Lei n.º 2/2021 determina a cessação da vigência da Lei n.º 1/2021 por revogação
(cf. artigo 7.º/1/2.ª parte do CC). Estamos perante uma revogação tácita (decorre da incompatibilidade
da lei anterior com a lei nova – cf. artigo 7.º/2/2.ª parte do CC), substitutiva (a lei nova introduz um
novo regime jurídico para os transportes, em substituição do regime da lei anterior), total (a lei anterior
cessa a sua vigência, na íntegra) e global ou de sistema (a lei nova regula todo o regime jurídico e a
matéria da lei anterior – cf. artigo 7.º/2/3.ª parte do CC). Segundo a posição adotada pelo Professor
Pedro Romano Martinez, a revogação global é, simultaneamente, uma revogação total (e não parcial,
ou “norma a norma”), pelo que o facto de a Lei n.º 2/2021 nada dizer sobre a proibição de transporte
de animais não implica que a Lei n.º 1/2021 permanece (parcialmente) em vigor no que diz respeito a
essa matéria. De notar ainda que a revogação global constitui uma exceção à regra que, de modo geral,
decorre do artigo 7.º/3 do CC, i.e., a de que uma lei especial (sobre funiculares) não pode ser revogada
por lei geral (transportes coletivos de passageiros) – in casu, ao fixar-se o “Novo Regime Jurídico dos
transportes”, haveria intenção inequívoca do legislador no sentido contrário.

Relativamente à Lei n.º 3/2021, e uma vez que esta também não fixa nenhum prazo ad hoc,
aplicar-se-ia igualmente o prazo supletivo de vacatio legis (cf. artigo 2.º/2 e 4 da LF), acima referido,
pelo que a entrada em vigor ocorreria a 4 de fevereiro de 2021. Como estamos perante lei posterior e
de hierarquia idêntica e não existe qualquer nexo de especialidade, a entrada em vigor da Lei n.º 3/2021
determina a cessação da vigência, por revogação (cf. artigo 7.º/1/2.ª parte do CC), da Lei n.º 2/2021.
In casu, a revogação é expressa (resulta de declaração explícita por parte do legislador – cf. artigo
7.º/2/1.ª parte do CC), simples (que se saiba, a lei nova apenas revoga a lei anterior, e não introduz
qualquer regime jurídico em substituição do anterior), total (a lei antiga cessa a sua vigência na íntegra)
e individualizada (a lei nova não regula todo um regime ou instituto jurídico). A revogação da Lei n.º
2/2021 não importa o renascimento da Lei n.º 1/2021 que havia sido anteriormente revogada (cf. artigo
7.º/4 do CC), pelo que apenas se encontra em vigor a Lei n.º 3/2021. De assinalar, todavia, que o seu
último artigo é inconstitucional, porquanto nenhuma lei pode conferir a um ato regulamentar – como
é o caso da portaria – o poder de, com eficácia externa, revogar qualquer dos seus preceitos (cf. artigo
112.º/5 da CRP). A inconstitucionalidade implicaria a invalidade (cf. artigo 3.º/3 da CRP) do último
artigo da Lei n.º 3/2021, mas não de todo o diploma legal.

Em suma, a 10 de fevereiro, apenas estaria em vigor a Lei n.º 3/2021, que, tanto quanto se
sabe, nada diz quanto à proibição de transporte de animais. Assim, nos termos do instituto jurídico da
autonomia privada, segundo o qual as pessoas são livres de praticar quaisquer atos que não sejam
proibidos por lei (e.g., artigo 405.º do CC), é de concluir que António poderia levar o seu cão Rex a
passear no funicular, pois não estaria em vigor qualquer norma que o proibisse.

2. Imagine que é publicado no dia 10 de janeiro, o Decreto-Lei n.º 4/2021, que


estabelecia um conjunto de normas relativas à utilização transportes públicos,
permitindo o transporte de animais de companhia. Pode António, no dia 20 de
janeiro, passear Rex no funicular? (3 valores)
Cenário de resposta:

O Decreto-Lei n.º 4/2021 consiste numa lei em sentido material (de natureza geral e abstrata)
e em sentido formal, sendo emanado pelo Governo no âmbito da sua competência legislativa (cf. artigo
112.º/1 da CRP). Presume-se igualmente que foi corretamente publicado em Diário da República, sob
pena de ineficácia (cf. artigo 119.º/2 da CRP; artigo 5.º/1 do CC; e artigo 1.º/1 da LF).

Na falta de fixação de um prazo ad hoc, aplica-se o prazo supletivo de vacatio legis (cf. artigo
2.º/2 e 4 da LF), pelo que o Decreto-Lei n.º 4/2021 entra em vigor no quinto dia contado a partir do
dia a seguir ao da sua publicação, i.e., a 15 de janeiro de 2021. Logo, a 20 de janeiro de 2021, estariam
apenas em vigor, potencialmente, o Decreto-Lei n.º 4/2021 e a Lei n.º 1/2021.

Sendo certo que o Decreto-Lei n.º 4/2021 é lei posterior e de hierarquia idêntica à da Lei n.º
1/2021 (cf. artigo 112.º/2 da CRP), a verdade é que existe um nexo de especialidade entre estes dois
diplomas: ao regular apenas a utilização de funiculares, a Lei n.º 1/2021 é lei especial (i.e., de âmbito
mais restrito e delimitado) face ao Decreto-Lei n.º 4/2021, que é lei geral (i.e., de âmbito mais alargado
e vasto), regulando a utilização de transportes públicos em geral.

Não havendo qualquer elemento que nos permita, inequivocamente, concluir que a intenção
do legislador era a contrária, temos então que lei geral posterior não revoga lei especial anterior (cf.
artigo 7.º/3 do CC), pelo que se aplicaria a proibição constante da Lei n.º 1/2021 e, como tal, António
não pode levar Rex a passear no funicular durante o dia 20 de janeiro de 2021.

3. Suponha que a Lei n.º 1/2021 não foi, até hoje, revogada e que, verificando o
encerramento e a destruição de todos os funiculares em Portugal, o seu amigo
António pretende saber se a Lei n.º 1/2021 ainda se encontra em vigor. Qual seria
a sua resposta? (2 valores)

Cenário de resposta:

Verificando-se o encerramento e a destruição de todos os funiculares em Portugal, haveria


uma perda do objeto ou falta dos pressupostos de aplicação da Lei n.º 1/2021, que regulava a utilização
de funiculares. Deste modo, conclui-se que a Lei n.º 1/2021 cessaria a sua vigência, não por revogação,
mas por caducidade (cf. artigo 7.º/1/1.ª parte do CC), pelo que já não se encontraria em vigor.

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