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Considerações sobre o Princípio da Culpa no Direito das Contraordenações

Sandra Isabel Braga Fernandes

PG49577

Trabalho realizado no âmbito da Unidade Curricular de Direito das Contraordenações,


do Mestrado em Direito Judiciário (Direitos Processuais e Organização Judiciária)

Braga, 2023
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 2
1. A génese do Direito das Contraordenações: a influência alemã ........................................ 2
2. O atual Direito das Contraordenações ................................................................................. 3
2.1. Conceito ........................................................................................................................ 3
2.2. Autonomia face ao Direito Penal .................................................................................. 4
2.3. Repercussões de uma autonomia dogmática ................................................................. 5
3. O princípio da culpa nas contraordenações......................................................................... 6
3.1. A culpa como fundamento da coima, sanção típica contraordenacional ....................... 7
3.1.1. O dolo: linhas gerais .............................................................................................. 8
3.2. A culpa como limite da coima....................................................................................... 8
4. O erro sobre as proibições: breves notas ............................................................................. 9
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 11

1
INTRODUÇÃO
O Direito das contraordenações é um ramo do Direito que, não obstante uma
crescente e indubitável relevância prática, se tem visto debatido quanto à sua autonomia
dogmática. Nesta senda, o princípio da culpa surge-nos simultaneamente como fator de
autonomização e como fator de aproximação – especificamente ao Direito penal, no qual
este é um princípio de caráter basilar.

Veremos, no decorrer deste trabalho, que quaisquer considerações sobre o princípio


da culpa devem vir delineadas por um enquadramento da evolução e estado atual do
Direito das contraordenações. Partindo dessa conjuntura, o pretendido é a compreensão
de que se, por um lado, o princípio da culpa possui esse referido papel aproximador, no
sentido em que – tal como no Direito penal – funciona como fundamento e limite da
sanção; por outro lado, que não deixa de ser possível, através desse mesmo princípio,
traçar uma linha de distinção entre as duas áreas do Direito, graças às particularidades
que a culpa assume num ilícito contraordenacional.

1. A génese do Direito das Contraordenações: a influência alemã


A constituição do Direito das contraordenações como um efetivo ramo do direito
sancionatório português teve início com a instituição, pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24
de julho, da figura do ilícito de mera ordenação social.

Historicamente, e nas palavras de EDUARDO CORREIA, «o espírito do Estado


social conduziu, como é sabido, a uma larga intervenção, quer através da lei quer da
Administração, nos mais variados domínios, desde o económico, social ou cultural até ao
do tráfego»1. Atribuiu-se embrionariamente ao Direito Penal a tutela das sanções para as
injunções da Administração2, no entanto, o inicialmente Direito Penal de polícia
contravencional revelou-se insuficiente e falível para responder a estas preocupações3,

1
CORREIA, Eduardo, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, in Boletim da Faculdade de
Direito, Vol. XLIX, Coimbra, 1973, p. 259, disponível em https://pt.scribd.com/doc/299357495/Eduardo-
Correia-Direito-Penal-e-Direito-de-Mera-Ordenacao-Social [13/03/2023].
2
CRESPO, Ana Marta, Surgimento e expansão da figura da contraordenação: breve enquadramento,
Leiria: Instituto Politécnico de Leiria – Escola Superior de Tecnologia e Gestão, 2012. pp. 406-426.
Comunicação apresentada no I Congresso Internacional de Ciências Jurídico-Empresariais, 2009, p. 407,
disponível em https://iconline.ipleiria.pt/handle/10400.8/780 [14/03/2023].
3
A tese de FEUERBACH assentava sobretudo numa distinção qualitativa entre um ilícito criminal e um de
polícia, ambos sob tutela do Estado, a quem caberia a tutela de direitos inerentes ao conceito de crime –
consubstanciando razões de justiça –, mas também de condutas que, não cabendo nesse conceito em si
mesmas, ultrapassassem limites criados pelo Estado, consequentemente merecedores de prevenção – razão

2
pelo que, no século XX, novos pensamentos permitiram falar num Direito Penal
Administrativo. Esta iniciativa resultou, contudo, num fenómeno de hipertrofia do
Direito Criminal4, evidente que se tornava a exaustão da lei penal através da
criminalização de contravenções e reações de tutela de interesses de bem-estar social5.

Consequentemente, um movimento de descriminalização e a criação de um novo


panorama jurídico para estas novas áreas de intervenção administrativa e de ordem social,
as quais não bebiam da componente de um mínimo ético6 que já se entendia caracterizar
as sanções criminais, potenciaram a elaboração da primeira Lei-Quadro alemã do Direito
de Mera Ordenação social – Ordnungswidrigkeiten Gezetz – de 1952.

Em Portugal, um recuo histórico-comparativo leva-nos a reconhecer a influência da


evolução do direito alemão7 na elaboração de um direito contraordenacional português.
O Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho materializou o debate lançado por EDUARDO
CORREIA nos anos 60, numa “reação contra o uso indiscriminado das penas criminais
como meio de proteger toda e qualquer espécie de fins ou interesses do Estado”8.
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro9, revogou o anterior e cunhou
em Portugal o Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social e Respetivo Processo,
doravante R.G.C.O, o qual atua em modelo subsidiário face a regimes setoriais
contraordenacionais laborais, rodoviários, ambientais, entre outros.

2. O atual Direito das Contraordenações


2.1. Conceito
Na mais recente redação do artigo 1.º do R.G.C.O, a contraordenação vem definida
como “todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma

de utilidade. Para mais desenvolvimentos, veja-se PEREIRA, Ana Marta Dias Crespo, Algumas
considerações sobre o princípio da culpa enquanto factor de autonomização do Direito das Contra-
ordenações (Dissertação de Mestrado não publicada), Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga,
2015, pp. 2 e ss, disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/40892 [14/03/2023]
4
Como cunhado por CORREIA, Eduardo, cit., p. 257.
5
Idem, p. 260.
6
Idem, p. 266.
7
Não obstante as referências, no seio do nosso ordenamento jurídico, a esta modalidade de ilícito,
remontando ao séc. XVIII.
8
Idem, p. 257.
9
Note-se que este Decreto-Lei foi sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 10 de outubro,
pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de dezembro e, ainda,
pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro.

3
coima”, desde logo manifestando princípios de legalidade tipicidade10. O ilícito
contraordenacional vem ainda consagrado no artigos 32.º, n.º 10 da Constituição.

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA identificam um


conjunto de características ínsitas de um facto contraordenacional – deve ser uma conduta
humana (seja ela uma ação ou omissão), voluntária e culposa que preencheu um dos tipos
em que a lei arrolou bens jurídicos merecedores de tutela e onde previu a aplicação de
uma coima. A imputação de uma sanção à prática contraordenacional põe em evidência
a necessidade de um caráter de censurabilidade11.

Apontou ainda FIGUEIREDO DIAS que o legislador adiantou uma distinção


conceitual-formal entre crimes e contraordenações, uma vez que, se entendeu certo facto
como contraordenação, “tem forçosamente de lhe aplicar, como sanção, uma coima”12.

2.2. Autonomia face ao Direito Penal


O Direito das contraordenações atual é um que, não obstante reconhecidamente
autónomo dos demais ramos do Direito, não é imune a perspetivas que evidenciem a
fragilidade dessa autonomia. Debrucemo-nos, nesta secção, sobre a relação entre este e o
Direito penal, partindo da ideia de NUNO LUMBRALES, para quem nem mesmo a
doutrina ou a jurisprudência conseguiram discernir com clareza se este ramo do Direito
“deve ser visto como um ramo de direito quase-penal ou para-penal, ou pelo contrário,
essencialmente autónomo e dotado de uma dogmática própria”13.

Não me parece, de todo, descabido reconhecer um denominador comum entre estes


dois ramos do Direito14 – já a doutrina maioritária reconhece uma faceta sancionatória ao

10
Para densificações a respeito da manifestação destes princípios, veja-se SANTOS, Manuel Simas e
SOUSA, Jorge Lopes de, Contra-ordenações. Anotações ao Regime Geral, 6ª edição, Lisboa, Áreas
Editora, 2011, pp. 48-50.
11
Idem, p. 53.
12
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos da Doutrina Penal, pp. 144-152, Coimbra, Coimbra Editora,
2001, p. 145.
13
LUMBRALES, Nuno Botelho Moniz, Sobre o conceito material de contra-ordenação, Lisboa,
Universidade Católica Editora, 2006, p. 7.
14
Esta posição não é, contudo, inteiramente consensual na doutrina. A discussão da relação entre o Direito
contraordenacional ao Direito penal vem sempre de mão dada com uma outra, que aproxima o primeiro ao
ramo do Direito administrativo, com base nas finalidades de bem-estar social que o Direito administrativo
visa garantir e que conduzem o ilícito de mera ordenação social à jurisdição administrativa. Para detalhadas
considerações a esse respeito, veja-se, a título de exemplo, AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito
Administrativo – Vol. I, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2008, p. 189; OLIVEIRA, Mário Esteves de, Direito
Administrativo I, Lisboa, Almedina, 1980, pp. 78-82.

4
Direito contraordenacional –, tendo inclusive o próprio artigo 32.º do R.G.C.O
consagrado a subsidiariedade do Direito penal na fixação do regime substantivo
contraordenacional, em caso omisso sobre tudo o que não for contrário ao regime geral15.

2.3. Repercussões de uma autonomia dogmática


A natureza específica do ilícito de mera ordenação social culmina na autonomia
dogmática do Direito das contraordenações. Nesta senda, FIGUEIREDO DIAS afirma
que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu
conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se
contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se
verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele
tipo”16.

O cerne desta distinção está, portanto, na componente da ilicitude, sobre a qual o


autor se debruça ao considerar que, enquanto no crime a conduta é, independentemente
de proibição legal, axiológico-socialmente relevante, na contraordenação, essa conduta
entende-se como axiológico-socialmente neutra.

Por outro lado, se nos crimes o bem jurídico a proteger se contém na própria conduta
em si mesma, nas contraordenações, encontramo-lo fora dessa mesma conduta, ou seja,
na conexão da mesma com a lei que a proíbe17. Assim, reconheço que a absoluta
irrelevância da ilicitude contraordenacional começou já a ser ultrapassada, e bem,
conquanto existem contraordenações axiologicamente relevantes que, embora não exijam
a aplicação de uma pena, conforme aconteceria em sede do Direito penal, carecem de
uma sanção, a qual será contraordenacional. Fará sentido, portanto, reconhecer uma
autonomia entre o Direito contraordenacional e o penal e, simultaneamente, uma
aproximação entre as duas áreas.

Ainda nesta linha, veja-se o que diz o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
44/2018, Proc. n.º 1076/15 (LINO RODRIGUES RIBEIRO): “Da autonomia do ilícito

15
SANTOS, Manuel Simas, e SOUSA, Jorge Lopes de, cit., p. 287. Note-se ainda que esta mesma linha é
seguida relativamente â tramitação processual, porquanto o artigo 41.º, n.º 1 do R.G.C.O consagra uma
remissão, a título subsidiário e adaptado, para os preceitos do Código de Processo Penal. As normas do
processo criminal constituem-se assim como integradoras do processo contraordenacional, salvo haja lugar
ao seu afastamento pelo próprio R.G.C.O ou por legislação especial.
16
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos…, p. 146.
17
Idem, pp. 146-147.

5
de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das
contraordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio
concurso de infrações (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit., pág. 150)”.

Do ponto de vista da sanção, destaque-se o seu caráter exclusivamente


patrimonial18, na modalidade de coima19, fruto da diferente natureza e função que a culpa
adquire na sede contraordenacional. É possível falar ainda numa autonomia processual,
caracterizada por um processo mais célere e simples diante do tipo de infração de que se
trata20, bem como especificidades no que concerne à sanção competência judicial e
medidas de coação21.

3. O princípio da culpa nas contraordenações


A compreensão específica do princípio da culpa no Direito das Contraordenações
deve iniciar-se com o reconhecimento de que a censurabilidade da conduta é um elemento
da noção legal do artigo 1.º do R.G.C.O22, vedando desde logo espaço a uma
responsabilidade contraordenacional objetiva23. Esta terá sido uma opção do legislador
ordinário, porquanto não se observa qualquer norma expressa constitucionalmente sobre
a culpa, nem mesmo relativamente ao ilícito criminal.

FIGUEIREDO DIAS vem a alinhar-se com esta posição24, e SIMAS SANTOS e


LOPES DE SOUSA dizem ainda que, sendo o princípio da culpa um pilar do Direito
penal e até mesmo do Direito das contraordenações, “optou-se legislativamente por fazer
valer também aqui o princípio da culpabilidade (nulla poena sine culpa) nos termos do

18
Sem prejuízo da possibilidade de que o mesmo facto constitua simultaneamente crime, conforme previsto
no artigo 20.º do R.G.C.O, ou de que venham a ser aplicadas sanções acessórias (cfr. artigo 21.º do
R.G.C.O).
19
Não obstante o legislador ter já chegado a tipificar contraordenações puníveis com outras sanções que
não a coima, como sucede em matérias de consumo de drogas (cfr. PEREIRA, Ana Marta Dias Crespo, cit.,
p. 61).
20
Nesta esteira, veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, cit., p. 152-153.
21
Destaquem-se, a título de exemplo, os artigos 1.º, 17.º e 18.º do R.G.C.O (em contraste com os artigos
41.º e 47.º do Código Penal) e a inexistência de prisão preventiva prevista no R.G.C.O.
22
Note-se que a versão originária deste artigo, no seu n.º 2, previu em tempos o sancionamento da conduta
contraordenacional independentemente da sua censurabilidade.
23
Não obstante, existem ainda normas setoriais que contemplam o sancionamento de contraordenações sem
um pressuposto de culpabilidade, como é o caso do artigo 551.º do Código do Trabalho e do artigo 226.º
do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social.
24
DIAS, Jorge de Figueiredo, O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, in
Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume I: Problemas Gerais, Instituto de
Direito Penal Económico e Europeu, FDUC, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 29.

6
qual toda a sanção contra-ordenacional tem por base uma culpa concreta”25. Com efeito,
o núcleo do regime da culpa no seio do R.G.C.O encontra-se plasmado nos artigos 8.º a
11.º, 18.º e 21.º, sem prejuízo de outras normas virem a mencioná-la ao longo do
diploma26.

O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 679/2006, Proc. 228/06


(MÁRIO TORRES) coloca-se nesta posição, dispondo que “não existem razões
substanciais, nem legais nem constitucionais, inerentes à menor gravidade do ilícito
contravencional que tornem inadequada ou injustificada a aplicação daqueles princípios,
sobretudo na medida em que eles se exprimam numa acentuação das garantias do
arguido”27.

3.1. A culpa como fundamento da coima, sanção típica contraordenacional


Com base no artigo 8.º, n.º 1 do R.G.C.O, onde consta que “Só é punível o facto
praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”,
confirma-se a ideia já trazida de que a culpa é fundamento e condição da coima28.
Naturalmente que, como aponta o Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de
11/03/2009, Proc. n.º 529/08.2TBTMR.C1 (JORGE GONÇALVES), para que se fale em
culpabilidade do agente no cometimento do facto, deve ser possível imputar-lhe esse
mesmo facto a título de dolo ou negligência. SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA
definem dolo como o “propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional”
e a negligência como a “falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização
do facto proibido por lei”29.

Perante a centralidade da culpa na aplicação de uma coima, coloco-me do lado da


doutrina que imputa à responsabilidade contraordenacional um caráter intransmissível.
Nesta contenda, diz-nos TIAGO LOPES DE AZEVEDO que, na hipótese de transmissão

25
SANTOS, Manuel Simas, e SOUSA, Jorge Lopes de, cit., p. 50.
26
Por exemplo, os artigos 16.º, n.º 2, 26.º, alínea a) e 51.º do R.G.C.O.
27
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26/04/2007, Proc. n.º
01168/06 (JORGE LINO), disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7b27c217fdfa6c13802572dd0050e10e?
OpenDocument&ExpandSection=1, entre outros.
28
Sem prejuízo da aplicação de eventuais sanções acessórias.
29
SANTOS, Manuel Simas, e SOUSA, Jorge Lopes de, cit., p. 135. Os autores ressalvam ainda que estes
conceitos podem ser encontrados no artigo 14.º do Código Penal, aqui subsidiariamente aplicável por força
do artigo 32.º do R.G.C.O.

7
da responsabilidade, o indivíduo que vai suportar a sanção “não teve culpa na conduta
praticada pelo infrator (…). Há por isso uma evidente violação do princípio da culpa
sancionatório e da presunção de inocência”30.

3.1.1. O dolo: linhas gerais


Reconhecido que está que o dolo pertence ao foro interno do agente31, reconhece-
se também que o dolo acaba por ser suscetível de direta apreensão da materialidade dos
factos ao abrigo da experiência comum32. Essa materialidade dolosa reside no
“conhecimento intelectual dos elementos do tipo e no desrespeito pelas proibições ou
obrigações tuteladas pelas normas contra-ordenacionais”33.

3.2. A culpa como limite da coima


Consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/03/2004, Proc. n.º
504/04 (DR. OLIVEIRA MENDES) que a aplicação da coima só é justificável “enquanto
resposta a um facto censurável, violador da norma jurídica, cuja imputação se dirige à
responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das
imposições legais”. A determinação da medida da coima deve, portanto, ser feita em
função de finalidades preventivas gerais, e a culpa deve ser o seu limite inultrapassável34.

Destaque-se, por um lado, o artigo 17.º do R.G.C.O, o qual dispõe os limites


quantitativos das coimas, apenas passiveis de afastamento por lei35; por outro lado, o
artigo 18.º, n.º 1 do R.G.C.O, nos termos do qual “A determinação da medida da coima

30
AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da subsidiariedade no Direito das Contra-ordenações: problemas, críticas
e sugestões práticas, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 143-145.
31
Esta afirmação impõe-se em sede contraordenacional não obstante o entendimento tradicional de que, no
ilícito de mera ordenação social, a culpa não radica na formulação de uma censura do tipo ético-social –
mas meramente numa imputação do facto à responsabilidade social do agente.
32
PEREIRA, Ana Marta Dias Crespo, Algumas considerações…, pp. 136-137.
33
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da
Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2011, p. 62.
34
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos…, pp. 150-151. O autor ressalva que, no que concerne à culpa,
e tal como acontece na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição surge como
irrelevante, de modo que as finalidades da coima são apenas preventivas, desprendidas de finalidades
preventivas especiais ou de (re)socialização). Note-se ainda que esta não é uma posição absolutamente
consensual na doutrina – advogando pela irrelevância da culpa na sede contraordenacional e pela sua
incorreta colocação enquanto limite máximo de determinação da coima, encontramos doutrina como a de
ANTÓNIO LEONES DANTAS.
35
Emanada pela Assembleia da República ou por Decreto-Lei do Governo baseado em alteração legislativa,
cfr. SANTOS, Manuel Simas, e SOUSA, Jorge Lopes de, cit., p. 175.

8
faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do
agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”36.

Porém, que esta não é uma regra absoluta. Basta observar o n.º 2 deste mesmo artigo
– referente aos casos em que o agente retirou benefício económico calculável superior ao
limite máximo da coima – para concluir pela possibilidade de determinação de um valor
máximo da coima acima do preceituado no artigo 17.º do R.G.C.O. Por outro lado, artigos
de regimes setoriais, como o artigo 26.º do Regime Geral das Infrações Tributárias e o
artigo 620.º do Código do Trabalho, adotam outros limites especiais, passiveis de exceder
o estipulado no regime geral37.

O mesmo pode ser dito dos próprios critérios de determinação concreta da coima
adotados pelos regimes setoriais, mais ou menos consonantes com os critérios gerais
adotados no artigo 18.º do R.G.C.O – enquanto artigos como o 27.º do Regime Geral das
Infrações Tributárias contempla em si mesmo a culpa do agente, esta já não consta da
formulação de outros, como o artigo 625.º do Código do Trabalho.

4. O erro sobre as proibições: breves notas


Por fim, a figura do erro sobre as proibições adquire relevância para efeitos de
eventual exclusão do dolo, cumprindo traçar uma breve linha a este respeito. Tendo
sempre em mente que a sanção contraordenacional pressupõe a culpa, os artigos 8.º, n.º 2
e 3 e 9.º do R.G.C.O estabelecem, respetivamente, a possibilidade de exclusão da culpa
mediante erro sobre a proibição ou sobre a ilicitude. Sobre esta questão, doutrina na
esteira de FIGUEIREDO DIAS vem a reconhecer um regime semelhante de exclusão da
culpa entre os referidos artigos e os artigos 16.º e 17.º do Código Penal38, salvo diferenças
na sua redação39.

Não obstante, outra posição como a de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE


entende o erro sobre as proibições como uma especialidade dentro do regime

36
À semelhança daquilo que dispõem os artigos 41.º e 47.º do Código Penal, consta do artigo 17.º do
R.G.C.O uma moldura legal de determinação do montante da coima, primeira operação de determinação
da sanção. Quaisquer alterações às molduras constantes do R.G.C.O devem obedecer aos preceitos do artigo
165.º, n.º1, alínea d) da Constituição.
37
SANTOS, Manuel Simas, e SOUSA, Jorge Lopes de, cit., pp. 175-177.
38
A este respeito, veja-se DIAS, Figueiredo, O Movimento…, pp. 29 e 30.
39
Enquanto, por exemplo, o artigo 8.º do R.G.C.O refere “erro sobre os elementos do tipo”, o artigo 16.º
do Código Penal refere-se ao “erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime”.

9
contraordenacional – pegando na neutralidade do objeto do ilícito contraordenacional, o
R.G.C.O efetua um “tratamento logo ao nível do dolo do tipo de situações de erro em que
o Direito Penal trata, em regra, ao nível do dolo da culpa”40. Neste contexto, o
conhecimento da proibição legal é indispensável para que o agente possa aferir da
existência da ilicitude da sua conduta.

Quanto à eventual exclusão do dolo contraordenacional, contrariamente ao que


acontece no ilícito criminal – em que o erro sobre as proibições não releva uma vez que
o conhecimento da ilicitude anda lado a lado com os elementos de facto que compõem a
conduta –, a relevância do erro sobre as proibições é inquestionável, até porque a própria
natureza eticamente neutra do ilícito contraordenacional torna expectável que este
instituto aconteça mais frequentemente do que no Direito penal 41, em que existe
normalmente uma consciência ético-moral do agente sobre a conduta.

CONCLUSÃO
Ficou cunhado que a autonomização do Direito das contraordenações não assenta
numa irrelevância do princípio da culpa no ilícito de mera ordenação social. Pelo
contrário, essa conceção enfrenta um fenómeno de crescente ultrapassagem, conquanto
se começa a reconhecer que a culpa é pressuposto da sanção contraordenacional.

Em vários aspetos, os regimes penal e contraordenacional poderão ser vistos como


praticamente idênticos, contudo, seria precipitado ignorar por completo que a diferente
natureza do ilícito contraordenacional não teria quaisquer consequências ao nível do
estabelecimento de um regime de imputação da culpa – bem como da sua eventual
exclusão, sobretudo por erro na proibição – que se adaptasse à sanção tipicamente
contraordenacional e aos bens jurídicos que o Direito das contraordenações visa proteger.

Reconhecido que está que a culpa integra o foro interno do agente, uma necessária
distinção está na apreensão da sua materialidade que, nas contraordenações, reside
nuclearmente no desrespeito pelo agente de proibições legais, e não na censura sobre
conduta em si mesma que enforma a culpa tradicionalmente penal.

40
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário…, p. 63.
41
A este respeito, vejam-se as considerações mais extensas de PEREIRA, Ana Marta Dias Crespo, Algumas
considerações…, pp. 122 a 131.

10
REFERÊNCIAS
Bibliografia

ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Regime Geral das Contraordenações


à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011.

AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da subsidiariedade no Direito das Contra-ordenações:


problemas, críticas e sugestões práticas, Coimbra, Coimbra Editora, 2011.

CORREIA, Eduardo, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, in Boletim da


Faculdade de Direito, Vol. XLIX, Coimbra, 1973, disponível em
https://pt.scribd.com/doc/299357495/Eduardo-Correia-Direito-Penal-e-Direito-de-
Mera-Ordenacao-Social [13/03/2023].

CRESPO, Ana Marta, Surgimento e expansão da figura da contraordenação: breve


enquadramento, Leiria: Instituto Politécnico de Leiria – Escola Superior de Tecnologia e
Gestão, 2012. pp. 406-426. Comunicação apresentada no I Congresso Internacional de
Ciências Jurídico-Empresariais, 2009, disponível em
https://iconline.ipleiria.pt/handle/10400.8/780 [14/03/2023].

DIAS, Jorge de Figueiredo, O movimento de descriminalização e o ilícito de mera


ordenação social, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários – Volume
I: Problemas Gerais, Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, FDUC, Coimbra,
Coimbra Editora, 1998, p. 29.

DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos da Doutrina Penal, pp. 144-152, Coimbra,
Coimbra Editora, 2001.

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