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CAOP Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária

Primeiras leituras da nova Lei de


Improbidade Administrativa
4ª edição, revista e ampliada

Análise das alterações da Lei de Improbidade Administrativa


promovidas pela Lei nº 14.230/2021, publicada em 26 de
outubro de 2021.

7 de fevereiro de 2023
CAOP Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária

Equipe Técnica

Procurador de Justiça Coordenador

Maurício Kalache

Promotor de Justiça

Leonardo Dumke Busatto

Assessoria Jurídica

Claudine Menezes da Silva


Danieli Kotelak de Melo
Eduardo Herzer Corrêa
Giovani Curioletti Pereira
Luis Felipe de Oliveira Azevedo

Secretaria

Libertad Aparecida Riquelme Carvalho

Curitiba-PR
7 de fevereiro de 2023

Como citar esta obra:

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Centro de Apoio


Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Patrimônio
Público e à Ordem Tributária (CAOPPPOT). Primeiras leituras da
nova Lei de Improbidade Administrativa. 4. ed. rev. e ampl.
Curitiba, 2023.
07 de fevereiro de 2023
Sumário
1. Irretroatividade material da Lei nº 14.230/2021......................................................................2
1.1. Posicionamento favorável à retroatividade......................................................................2
1.2. Posicionamento contrário à retroatividade......................................................................4
1.3. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal................................................................9
2. Irretroatividade material da Lei nº 14.230/2021 e as controvérsias ainda não enfrentadas
pelo Supremo Tribunal Federal................................................................................................. 10
2.1. Atos ímprobos revogados que já transitaram em julgado..............................................10
2.2. Atos ímprobos revogados que já foram objeto de negócios jurídicos...........................12
2.3. Atos dolosos de improbidade revogados que estão sendo investigados ou cujas ações
ainda estão tramitando......................................................................................................... 13
2.4. Ressarcimento ao erário nos atos ímprobos revogados que estão sendo investigados
ou cujas ações ainda estão tramitando................................................................................19
3. Irretroatividade processual da Lei nº 14.230/2021................................................................21
3.1. Prazos prescricionais..................................................................................................... 21
3.2. Novo prazo para a conclusão do inquérito civil.............................................................25
4. Acordo de não persecução civil (ANPC)............................................................................... 27
4.1. Oitiva do Tribunal de Contas......................................................................................... 27
4.2. Ausência de dano ao erário ou enriquecimento ilícito...................................................32
5. Indisponibilidade patrimonial................................................................................................. 35
5.1. Irretroatividade da Lei nº 14.230/2021 e medidas de indisponibilidade já realizadas. . .35
5.2. Demonstração do periculum in mora.............................................................................36
5.3. Ordem de preferência para o bloqueio de ativos financeiros........................................43
6. Pedidos nas ações de improbidade administrativa...............................................................51
6.1. Formulação de pedidos subsidiários.............................................................................51
6.2. Cumulação de pedidos.................................................................................................. 56
7. Vedação ao regime de solidariedade.................................................................................... 73
8. Comunicabilidade da absolvição criminal.............................................................................84
9. Controle de convencionalidade, probidade e direitos humanos...........................................95

1
PRIMEIRAS LEITURAS SOBRE AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS
NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PELA LEI Nº 14.230/2021

1. Irretroatividade material da Lei nº 14.230/2021

De todos as controvérsias e incertezas instauradas pelo advento da Lei nº


14.230/2021, aquela relacionada com o comportamento intertemporal que as novas
disposições legais deveriam assumir foi, talvez, a de maior repercussão.

A celeuma se dava, em grande parte, pelo fato de as bases teóricas do Direito


Administrativo Sancionador ainda não estarem bem amadurecidas junto à comunidade
jurídica. Ainda que à época já existissem notáveis estudos sobre o assunto, era
perceptível que tanto a doutrina quanto a jurisprudência oscilavam em sentidos
diametralmente opostos nas premissas mais elementares da matéria, a exemplo do seu
próprio conceito ou de qual seria o regime jurídico preponderante do ramo.

A ausência de um consenso mínimo nesse contexto culminou no surgimento de


duas posições antagonistas: uma favorável e outra contrária à retroatividade das
alterações promovidas no microssistema de proteção à probidade administrativa.

Atualmente, a questão já se encontra decidida pelo Supremo Tribunal Federal no


Tema 1.199 de Repercussão Geral, ao menos em parte.

Não obstante, entendemos que, antes de examinar os fundamentos dessa


decisão, é pertinente expor os motivos jurídicos que cada uma das referidas vertentes
endossou, principalmente porque o julgado paradigma não abordou todas as possíveis
intercorrências temporais da Lei nº 14.230/2021. Desse modo, a exposição detalhada do
tema pode servir de subsídio para a atuação do Ministério Público nos tópicos residuais
ainda não enfrentados expressamente pela Corte.

2
1.1. Posicionamento favorável à retroatividade

Os adeptos da retroatividade tinham como o seu maior alicerce a tese de que não
há uma diferença significativa entre as sanções civis, administrativas e penais, sobretudo
porque o art. 1º, § 4º, da Lei nº 8.429/1992 passou a prever que os princípios
constitucionais do Direito Administrativo Sancionador são aplicáveis aos atos de
improbidade administrativa. Para essa corrente, a proximidade entre tais ramos do direito
seria o bastante para permitir que a lógica da retroatividade das leis penais mais
benéficas, consagrada no art. 5º, XL, da Constituição Federal, fosse aplicada também aos
processos punitivos de cunho administrativo e civil.

O posicionamento não representou exatamente uma inovação no ordenamento


jurídico. Parcela respeitável da doutrina, capitaneada por autores como Celso Antônio
Bandeira de Mello1, Régis Fernandes de Oliveira 2, Sandro Lúcio Dezan 3, Pericles Ferreira
de Almeida4 e Fábio Medina Osório 5, já apontava que o aludido dispositivo constitucional
teria plena vocação para regular as penalidades não criminais, permitindo a retroatividade
da norma mais benéfica em favor de infratores.

1 “Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais”
(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 898).
2 “Não há diferença de conteúdo entre crime, contravenção e infração administrativa. Avém ela de lei exclusivamente. Inexiste
diferença de substância entre pena e sanção administrativa” (OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3.
ed. São Paulo: RT, 2012, p. 29).
3 “Assim, busca-se demonstrar que o direito de punir do Estado, o seu jus puniendi, embora seja dividido em ramos epistemológicos
que buscam proteger específicos e setorizados bens jurídicos, possui uma base ontológica unitária, formada por princípios jurídicos,
expressos e implícitos, de direito sancionador, que delineiam a uniformidade de regras e outros princípios informativos nos mais
variados ramos epistemológicos-punitivos do direito público. [...] Em nosso juízo, não há distinção ontológica entre as diversas
espécies de ilícitos, pois todas as infrações, sejam elas previstas em direito penal, ou em direito tributário e administrativo,
compreendem a desobediência a uma norma estampada em texto de lei que obriga ou que proíbe determinada conduta. E, nisso, não
há que se falar em distinção, em essência, entre as diversas ordens normativas” (DEZAN, Sandro Lúcio. Uma teoria do direito público
sancionador: fundamentos da unidade do sistema punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 37/45).
4 “A identidade ontológica entre os diversos tipos de ilícitos viabiliza que os instrumentos do ramo do ius puniendi teoricamente mais
bem desenvolvido (Direito Penal) sejam transportados para o outro campo (Direito Administrativo Sancionador), o que sempre
pressupõe afastar as normas não coincidentes do direito comum de índole não punitiva. [...] Por isso, a eficácia integradora do direito
Penal só deverá ser contida quando relevantes razões colhidas do Direito Administrativo revelarem alguma incoerência no uso das
categorias jurídicas daquela disciplina na atividade administrativa sancionadora. Inversamente, se constatadas afinidades entre os dois
campos ou que são congêneres os valores tutelados pelas duas espécies do poder punitivo em uma dada situação, ter-se-á de admitir
a transitabilidade dos institutos encontrados em qualquer das esferas. [...] Também no Direito Administrativo Sancionador o princípio da
retroatividade encontra justificativa no superveniente desinteresse do legislador pela punição mais intensa ou no desinteresse pela
própria conduta, de sorte que com a nova valoração das necessidades sociais não mais se revelaria racionalidade em ingerência na
esfera privada em maior intensidade do que a exigida pelo texto normativo atual. [...] Em nosso entender, prevalece no Direito
Administrativo Sancionador o princípio da retroatividade da norma mais benéfica, com configuração fundamentalmente idêntica à do
Direito Penal” (ALMEIDA, Pericles Ferreira de. O princípio da retroatividade da norma mais benéfica no direito administrativo
sancionador. In: OLIVEIRA, José Roberto Pimenta (org.). Direito administrativo sancionador: estudos em homenagem ao professor
emérito da PUC/SP Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 152/154).
5 “O desafio mais difícil consiste em interpretar o silêncio legal na cadeia de normas sucessivas. Uma norma sancionadora mais
favorável nada dispõe sobre o tema, deixando ambígua sua posição. E os valores por ela tutelados são relativamente estáveis,
daqueles que demandam políticas públicas punitivas coerentes e centradas em escolhas racionais, dotadas de vocação à estabilidade,
o que revelaria, a priori, vocação à retroatividade. Em tais casos, não há dúvidas de que as normas retroagem, como se fosse o próprio
Direito Penal, na busca de salvaguardar critérios de justiça e segurança, em homenagem ao tratamento simétrico com a outra principal
vertente do Direito Punitivo. Essa retroatividade está amparada na cláusula constitucional do devido processo legal e nos valores ali
abrigados” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020 [E-book]).

3
Na jurisprudência, esse mesmo entendimento também já tinha sido acolhido pelo
Superior Tribunal de Justiça6, Tribunal Regional Federal da 3ª Região 7 e Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná 8. As Cortes conferiram aos princípios balizadores do Direito
Penal – principalmente aqueles de ordem restritiva ao poder punitivo do Estado –
incidência ao universo das ações punitivas de outras naturezas.

1.2. Posicionamento contrário à retroatividade

Os partidários da irretroatividade defendiam que as alterações promovidas pela


Lei nº 14.230/2021 produziriam efeitos apenas para as situações jurídicas implementadas
posteriormente à sua promulgação, uma vez que, em regra, os fatos são regulados pela
legislação em vigor à época em que foram praticados, nos termos do que apregoa o
princípio do tempus regit actum.

O fundamento dessa abordagem mais clássica do direito intertemporal, a qual


este Centro de Apoio se filiou desde a primeira edição da presente obra, está pautada na
premissa de que a retroatividade das leis é uma hipótese excepcional no ordenamento
jurídico, conforme determinam o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e o art. 6º, caput,
da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Assim, com fulcro nas lições de Flávio Tartuce 9 e Carlos Roberto Gonçalves 10,
salvo se a norma posterior contiver previsão expressa em sentido contrário, as alterações

6 AgInt no RMS 65.486, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. em 17.08.2021; REsp 1.402.893, Rel. Min. Sérgio
Kukina, Primeira Turma j. em 11.04.2019; AgInt no REsp 1.602.122, Relª. Minª. Regina Helena Costa, Primeira Turma do STJ, j. em
07.08.2018; RMS 37.031, Relª. Minª. Regina Helena Costa, Primeira Turma do STJ, j. em 08.02.2018; REsp 1.153.083, Rel. Min.
Sérgio Kukina, Primeira Turma do STJ, j. em 06.11.2014.
7 AC 5006382-50.2018.4.03.6182, Rel. Des. Luis Carlos Hiroki Muta, Terceira Turma do TRF3, j. em 09.11.2020.
8 AC 0006597-49.2018.8.16.0190, Rel. Des. Carlos Mansur Arida, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 20.07.2020; AC 0009398-
26.2009.8.16.0004, Rel. Des. Carlos Mansur Arida, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 26.02.2020; AI 0019472-66.2018.8.16.0185,
Rel. Des. Abraham Lincoln Merheb Calixto, Quarta Câmara Cível do TJPR, j. em 17.03.2020; AI 0009774-72.2019.8.16.0000, Rel. Des.
Nilson Mizuta, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 02.07.2019; e AC 0000589-60.2016.8.16.0179, Rel. Des. Nilson Mizuta, Quinta
Câmara Cível do TJPR, j. em 06.02.2018.
9 “A norma jurídica é criada para valer ao futuro, não ao passado. Entretanto, eventualmente, pode uma determinada norma atingir
também os fatos pretéritos, desde que sejam respeitados os parâmetros que constam na Lei de Introdução e da Constituição Federal.
Em síntese, ordinariamente, a irretroatividade é a regra, e a retroatividade, a exceção. Para que a retroatividade seja possível, como
primeiro requisito, deve estar prevista em lei” (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 10. ed. São Paulo: Método, 2020, p. 20).
10 “Assim, como regra, aplica-se a lei nova aos casos pendentes (facta pendentia) e aos futuros (facta futura), só podendo ser
retroativa, para atingir fatos já consumados, pretéritos (facta praeterita), quando: a) não ofender o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisa julgada; b) quando o legislador, expressamente, mandar aplicá-la a casos pretéritos, mesmo que a palavra
retroatividade não seja usada” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva Jus, 2020,
p. 82).

4
promovidas por determinado diploma normativo não alcançam o ato jurídico perfeito, o
direito adquirido e a coisa julgada, questão não ressalvada pela Lei nº 14.230/2021.

A vertente da irretroatividade também pontuou que a mera incidência dos


princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, prevista no já citado art.
1º, § 4º, da Lei nº 8.429/1992, não significa uma autorização para atrair de modo irrestrito
e automático todos os princípios e garantias do Direito Penal.

Com efeito, doutrinadores como Rafael Munhoz de Mello já chamavam a atenção


para o fato de que, apesar de ambas as matérias envolverem a aplicação de penalidades,
a retroatividade das normas mais benéficas é instituto típico do Direito Penal, cuja
justificativa está lastreada em aspectos humanitários ligados à restrição de liberdade
física, característica que não se faz presente no Direito Administrativo ou nas sanções
elencadas na Lei nº 8.429/1992:

A regra é a irretroatividade das normas jurídicas, sendo certo que as leis são editadas para
regular situações futuras. O dispositivo constitucional que estabelece a retroatividade da lei
penal mais benéfica funda-se em peculiaridades únicas do direito penal, inexistentes no
direito administrativo sancionador. Com efeito, a retroatividade da lei penal mais benéfica tem
por fundamento razões humanitárias, relacionadas diretamente à liberdade do criminoso, bem
jurídico diretamente atingido pela pena criminal. [...] Por tais fundamentos, não se pode
transportar para o direito administrativo sancionador a norma penal da retroatividade da lei
que extingue a infração ou torna mais amena a sanção punitiva. No direito administrativo
sancionador aplica-se ao infrator a lei vigente à época da adoção do comportamento ilícito,
ainda que mais grave que lei posteriormente editada. Diversamente do que ocorre no direito
penal, assim, não há no direito administrativo sancionador o princípio da retroatividade da lei
mais benéfica ao infrator11.

Sob essa perspectiva, alegava-se que, se o Poder Constituinte Originário


desejasse permitir a retroatividade da lei civil ou administrativa mais benéfica, não teria
restringido categoricamente a abrangência do art. 5º, XL, ao universo das leis penais. E,
embora não fosse unânime, tal posicionamento já tinha sido acatado no Superior Tribunal
de Justiça, que negou a possibilidade de retroação de regra mais benéfica do sistema
sancionador de trânsito justamente por ela não ostentar natureza eminentemente penal:

11 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 154/155.

5
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. TRÂNSITO. APREENSÃO E SUSPENSÃO DA
HABILITAÇÃO. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA NORMA MAIS BENÉFICA DE
NATUREZA EMINENTEMENTE PENAL. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA AO CÓDIGO DE
TRÂNSITO BRASILEIRO SOMENTE NO QUE DIZ RESPEITO A CONDUTAS TIPIFICADAS
ENQUANTO CRIME. PRECEDENTE DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA
PROVIMENTO.
1. A aplicação subsidiária das normas de direito material penal se restringe “Aos crimes
cometidos na direção de veículos automotores” (art. 291 do CTB), e não às infrações de
trânsito. Neste sentido: AgRg no REsp 1119091/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2012, DJe 13/06/2012.
2. No entanto, a norma constante no art. 218, III, do Código de Trânsito Brasileiro diz respeito
à infração de cunho administrativo consistente na direção em velocidade superior à máxima
permitida, não sendo tipificada, naquele dispositivo, enquanto crime (os quais estão dispostos
nos arts. 291 e seguintes do Código de Trânsito Brasileiro. Assim, não há que se falar na
aplicação retroativa do referido dispositivo.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg nos EDcl no REsp 1.281.027, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma do
STJ, j. em 18.12.2012).

Também tinham precedentes nesse sentido o Tribunal de Justiça do Estado do


Paraná12, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 13, o Tribunal Regional Federal da
2ª Região14 e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região 15, que, de modo especial, já havia
pacificado o tema em sua 2ª Seção, consolidando a orientação de que a retroatividade da
lei benigna não se aplica às punições de caráter administrativo 16.

O próprio Supremo Tribunal Federal parecia partilhar da ideia de que nem todas
as garantias constitucionais afetas ao Direito Penal, notadamente a retroatividade da
novatio legis in mellius, seriam aplicáveis ao Direito Administrativo Sancionador.
Conquanto não houvesse nenhuma decisão específica sobre o assunto à época, a Corte

12 AI 0021163-83.2021.8.16.0000, Quinta Câmara Cível do TJPR, Rel. Des. Nilson Mizuta, j. em 30.08.2021; AI 026858-
18.2021.8.16.0000, Quinta Câmara Cível do TJPR, Relª. Juíza Cristiane Santos Leite, j. em 30.08.2021; e AI 0001609-
31.2021.8.16.9000, 4ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do TJPR, Rel. Juiz Guilherme Cubas Cesar, j. em 31.08.2021.
13 AC 1002591-25.2021.8.26.0278, Relª. Desª. Maria Laura Tavares, 5ª Câmara de Direito Público do TJSP, j. em 29.20.2021; e AC
1007640-43.2021.8.26.0344, Rel. Des. Vicente de Abreu Amadei, 1ª Câmara de Direito Público do TJSP, j. em 24.08.2021.
14 PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ANP. AUTO DE INFRAÇÃO. COMERCIALIZAÇÃO DE ÓLEO DIESEL B S 1800 EM
DESCONFORMIDADE COM AS ESPECIFICAÇÕES DA AGÊNCIA REGULADORA. MULTA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS
BENÉFICA NO ÂMBITO DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. NÃO CABIMENTO. [...] Por fim, deve ser rejeitada, de
plano, a tese da aplicação retroativa da Resolução ANP 69/2014, eis que esta Eg. Oitava Turma Especializada tem entendimento
consolidado no sentido de que se afigura inaplicável, no âmbito do direito administrativo sancionador, a retroatividade da lei mais
benéfica, a qual se restringe à seara penal (AC 0154434-84.2014.4.02.5101, Relª. Desª. Vera Lúcia Lima, Oitava Turma Especializada
do TRF2, j. em 10.09.2020).
15 AC 5008905-15.2019.4.04.7009, Rel. Des. Rogério Favreto, Terceira Turma do TRF4, j. em 26.10.2021; AC 5027867-
50.2018.4.04.7000, Relª. Desª. Vivian Josete Pantaleão Caminha, Quarta Turma do TRF4, j. em 20.10.2021; AC 5024470-
12.2020.4.04.7000, Rel. Des. Sérgio Renato Tejada Garcia, Quarta Turma do TRF4, j. em 20.10.2021; e AC 5041743-
38.2019.4.04.700, Relª. Desª. Marga Inge Barth Tessler, Terceira Turma do TRF4, j. em 19.10.2021.
16 ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. DIREITO SANCIONADOR. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. MULTA. PRESUNÇÃO DE
LEGITIMIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS. ARTIGO 34, VII, RESOLUÇÃO Nº 3.056/2009/ANTT. EXCESSO DE PESO. CTB.
IRRETROATIVIDADE DA NORMA PUNITIVA MAIS BENÉFICA. JULGAMENTO DO FEITO PELA 2ª SEÇÃO EM RAZÃO DE
AFETAÇÃO [...]. (AC 5058104-24.2019.4.04.7100, Rel. Des. Ricardo Teixeira do Valle Pereira, 2ª Seção do TRF4, j. em 13.05.2021).

6
tinha reiterada jurisprudência de que “é infraconstitucional, a ela se aplicando os efeitos
da ausência de repercussão geral, a controvérsia relativa à aplicação retroativa de lei
mais benéfica referente à sanção de natureza administrativa decorrente do cometimento
de infração de trânsito” (Tema 734 de Repercussão Geral, RE 657.871, Rel. Min. Dias
Toffoli, Plenário do STF, j. em 29.05.2014).

Os defensores da irretroatividade da Lei nº 14.320/2021 não ignoravam, por certo,


que a aplicação do jus puniendi na esfera administrativa sancionadora deveria respeitar
garantias individuais típicas a qualquer Estado Democrático de Direito. Tampouco que
isso acabaria, em alguma medida, aproximando o Direito Administrativo Sancionador do
Direito Penal. Contudo, arguía-se que não era razoável penalizar o Direito Administrativo
ou aplicar-lhe irrestritamente a lógica que estruturou a esfera punitiva criminal e suas
garantias.

A esse respeito, colha-se as observações certeiras de José Roberto Pimenta


Oliveira e Dinorá Adelaide Musetti Grotti 17:

Verdade que coube ao Direito Penal, na sua secular trajetória, desenvolver direitos e
garantias fundamentais para limitar o exercício do jus puniendi estatal in abstracto e in
concreto, na defesa do jus libertatis. Do mesmo modo, o Direito Processual Penal igualmente
consagrou a disciplina processual instrumental para realizar esse objetivo. Neste contexto, o
Direito Administrativo Sancionador pode avaliar com o devido rigor científico as contribuições
desses ramos do Direito Público, sem jamais abandonar a sua índole de regime jurídico-
administrativo instrumental de tutela de interesses públicos.
[...]
Com esta compreensão, o Direito Administrativo Sancionador não está submetido ao Direito
Penal. O Direito Penal pode contribuir na elaboração de um ferramental próprio para o Direito
Administrativo Sancionador. Mas, aqui, a diretriz é contribuir para integrar, e não desnaturar a
índole administrativista dos sistemas sancionadores administrativos. Neste contexto, atribui
ao Direito Administrativo Sancionador o objetivo de institucionalizar modelos dinâmicos,
especializados, sensíveis às demandas e mudanças econômicas, sociais, factuais e
tecnológicas cada vez mais comuns. Modelos que promovam o atendimento aos valores de
coerência, racionalidade e segurança jurídica na tutela dos objetivos de interesse público.

Lembrava-se, também, que o legislador constituinte não alicerçou o sistema de


responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa em normas que
gravitam em torno do Direito Penal. Ao contrário, deu-lhe roupagem própria,
17 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve
evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83/126, mar./abr. 2020.
p. 108 e 116.

7
estabelecendo em regra inserta no capítulo sobre a Administração Pública que “os atos de
improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da
função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (art. 37, § 4º, da
Constituição Federal).

Não fosse o bastante, ventilava-se que deveria ser considerado que a Lei de
Improbidade Administrativa está inserida em um microssistema de tutela à probidade,
que, por sua vez, também encontra fundamento em tratados internacionais, sobretudo na
Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), acolhida no
ordenamento brasileiro pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 200618.

E o referido diploma internacional tem o nítido objetivo de promover o


enfrentamento universal da corrupção a partir de uma postura ativa do Estado, cabendo-
lhe criminalizar uma série de atividades corruptas; adotar medidas eficazes para preveni-
las; promover a integridade nos setores públicos e privados; manter em vigor políticas
coordenadas contra a corrupção; rever instrumentos jurídicos a fim de determinar se são
adequados ao fim a que se destinam; e, ainda, adotar medidas mais severas daquelas
previstas na Convenção (arts. 5 e 65, nº 2).

Nesse contexto, como a própria Lei nº 14.230/2021 menciona expressamente a


referida Convenção de Mérida no novo art. 11, § 1º, da Lei nº 8.429/1992 – embora com
questionável finalidade – pontuou-se que era imperioso compatibilizar a discussão sobre a
retroação da norma mais benéfica com a proteção contra o retrocesso legislativo e com a
regra da proporcionalidade, especialmente sob a vertente da proteção insuficiente dos
direitos fundamentais, entre os quais se inclui a proteção ao direito fundamental à
probidade administrativa.

18 Este trecho e os seguintes sobre a Convenção de Mérida, proteção suficiente e vedação ao retrocesso foram extraídos e adaptados
de manifestação do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e Combate à Sonegação
Fiscal do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) e de peça processual produzida pelo Promotor de Justiça André Luis
Bortolini, da 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de União da Vitória.

8
Logo, mesmo que se considerasse a incidência do art. 5°, XL, da Constituição
Federal – ensejando um conflito aparente de direitos decorrente da retroatividade das
inovações normativas, com impacto sobre direitos fundamentais individuais versus direito
fundamental social à probidade administrativa –, demandava-se do Poder Judiciário o
devido controle de convencionalidade e de constitucionalidade, de modo a se afastar a
possibilidade de retroação da norma sancionadora mais benéfica aos processos e
inquéritos civis em curso, por envolverem fatos praticados ou consumados antes da
publicação da nova lei.

Em suma, sustentava-se que a aplicação imediata e irrestrita das inovações da Lei


nº 14.230/2021 – norma que não trouxe disciplina explícita sobre sua retroatividade, regra
de transição ou período de vacatio legis – era manifestamente desproporcional,
ensejando proteção insuficiente ao direito fundamental à probidade administrativa.

1.3. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal

Em meados de 2022, o Plenário do Supremo Tribunal Federal se manifestou


sobre o mérito dos aspectos intertemporais da Lei nº 14.230/2021 em relação aos atos
culposos de improbidade administrativa. O pronunciamento ocorreu durante o julgamento
do Tema 1.199 de Repercussão Geral e fixou a seguinte tese:

19. Recurso Extraordinário PROVIDO. Fixação de tese de repercussão geral para o Tema
1199:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de
improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do
elemento subjetivo – DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de
improbidade administrativa –, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da
Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem
tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos
praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado,
em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar
eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se
os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

9
Assim, ficou estabelecido que, como regra, a revogação da modalidade culposa
das condutas ímprobas é irretroativa, salvo se elas ainda não tivessem sido objeto de
sentenças condenatórias transitadas em julgado quando do advento da Lei nº
14.230/2021, hipótese na qual é aplicável o novo regramento legislativo.

2. Irretroatividade material da Lei nº 14.230/2021 e as controvérsias ainda não


enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal

Além da modalidade culposa dos atos de improbidade administrativa que causam


prejuízo ao erário, existe uma série de outras condutas que também foram alteradas ou
revogadas pela Lei nº 14.230/2021, a exemplo das que atentam contra os princípios da
Administração Pública, cujo rol teve algumas figuras suprimidas e passou a ser taxativo.

Entretanto, como visto acima, os aspectos intertemporais sobre os quais o


Supremo Tribunal Federal se debruçou no Tema 1.199 estão restritos ao universo das
condutas culposas, o que acaba levantando a questão sobre ser o tratamento jurídico
dado a elas aplicável também aos demais atos de improbidade alterados ou revogados.

2.1. Atos ímprobos revogados que já transitaram em julgado

Nesta matéria não parece existir maiores dúvidas de que se aplica a tese do
Tema 1.199 de Repercussão Geral, pois durante o julgamento foi fixado o entendimento
de que a natureza jurídica das condutas ímprobas como um todo – e não apenas dos atos
culposos de improbidade administrativa – é de ilícito civil.

E, como tal, o dispositivo constitucional mais adequado para regular a sucessão


de leis no tempo no âmbito do Direito Administrativo Sancionador não é o art. 5º, LX – que
permite a retroatividade da lei penal mais benéfica –, mas sim o art. 5º, XXXVI – que põe
o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada a salvo de legislações
supervenientes.

10
Cabe reiterar que o reconhecimento da natureza civil das condutas ímprobas
consiste em premissa fundamental para a tese que veio a ser fixada, aplicando-se a todos
os atos de improbidade, independentemente de terem sido praticados com elemento
subjetivo doloso ou culposo. É o que se verifica da ementa do julgado em voga:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. IRRETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA


(LEI 14.230/2021) PARA A RESPONSABILIDADE POR ATOS ILÍCITOS CIVIS DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI 8.429/92). NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE REGRAS RÍGIDAS DE REGÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS CORRUPTOS PREVISTAS
NO ARTIGO 37 DA CF. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 5º, XL DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL AO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR POR AUSÊNCIA DE
EXPRESSA PREVISÃO NORMATIVA. APLICAÇÃO DOS NOVOS DISPOSITIVOS LEGAIS
SOMENTE A PARTIR DA ENTRADA EM VIGOR DA NOVA LEI, OBSERVADO O RESPEITO
AO ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA JULGADA (CF, ART. 5º, XXXVI). RECURSO
EXTRAORDINÁRIO PROVIDO COM A FIXAÇÃO DE TESE DE REPERCUSSÃO GERAL
PARA O TEMA 1199.
[…]
11. O princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso XL do artigo 5º da
Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) não tem
aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade
administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à
constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e
responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e
enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador.
12. Ao revogar a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, entretanto, a Lei
14.230/2021, não trouxe qualquer previsão de “anistia” geral para todos aqueles que, nesses
mais de 30 anos de aplicação da LIA, foram condenados pela forma culposa de artigo 10;
nem tampouco determinou, expressamente, sua retroatividade ou mesmo estabeleceu uma
regra de transição que pudesse auxiliar o intérprete na aplicação dessa norma – revogação
do ato de improbidade administrativa culposo – em situações diversas como ações em
andamento, condenações não transitadas em julgado e condenações transitadas em julgado.
13. A norma mais benéfica prevista pela Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa
do ato de improbidade administrativa –, portanto, não é retroativa e, consequentemente, não
tem incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de
execução das penas e seus incidentes. Observância do artigo 5º, inciso XXXVI da
Constituição Federal.
[…]
Portanto, a retroatividade das leis é hipóteses excepcional no ordenamento jurídico, sob pena
de ferimento à segurança e estabilidade jurídicas; e, dessa maneira, inexistindo disposição
expressa na Lei 14.230/2021, não há como afastar o princípio do tempus regit actum. A
norma constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal mais benéfica funda-se em
peculiaridades únicas desse ramo do direito, o qual está vinculado à liberdade do criminoso
(princípio do favor libertatis), fundamento inexistente no Direito administrativo sancionador;
sendo, portanto, regra de exceção, que deve ser interpretada restritivamente, prestigiando-se
a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos;
principalmente porque no âmbito da jurisdição civil, impera o princípio tempus regit actum.
(ARE 843.989, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Pleno do STF, j. em 18.08.2022) – destacou-
se.

11
Portanto, considerando que os atos culposos revogados que já transitaram em
julgados ocupam posição jurídica e fática semelhante aos demais atos ímprobos
revogados com sentença definitiva, é bastante razoável aplicar o mesmo tratamento
jurídico para ambos, qual seja, a irretroatividade das alterações da Lei nº 14.230/2021
tratadas no Enunciado II do Tema 1.199.

2.2. Atos ímprobos revogados que já foram objeto de negócios jurídicos

Considerações da mesma ordem do tópico anterior parecem ser cabíveis também


aos atos de improbidade revogados que foram objeto de negócios jurídicos, tenham sido
eles instrumentalizados mediante termo de ajustamento de conduta ou por meio de
acordo de não persecução civil.

É que, uma vez devidamente celebradas, as soluções consensuais se tornam


atos jurídicos perfeitos, recebendo proteção jurídica idêntica à coisa julgada, porquanto a
tutela constitucional de ambas advém do mesmo dispositivo: o art. 5º, XXXVI, da
Constituição Federal.

Embora o Supremo Tribunal Federal não tenha se posicionado expressamente


acerca da irretroatividade no contexto negocial da improbidade administrativa, a
proximidade topográfica e circunstancial da coisa julgada e do ato jurídico perfeito
recomendam a utilização da mesma abordagem, isto é, o reconhecimento da
irretroatividade da Lei nº 14.230/2021.

O fato de o novo art. 17-B, § 1º, III, da Lei nº 8.429/1992 ter passado a exigir a
homologação judicial dos acordos não infirma essa lógica, pois sendo um requisito de
cunho processual reforça-se ainda mais a incidência do princípio do tempus regit actum,
positivado no art. 14 do Código de Processo Civil: “A norma processual não retroagirá e
será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais
praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

12
Salienta-se que a presente conclusão encontra amparo na jurisprudência. O
Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já decidiu, embora no âmbito do Direito
Ambiental, que o termo de ajustamento de conduta constitui ato jurídico perfeito e deve
observância às normas vigentes à época de sua celebração:

PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. TERMO DE


AJUSTAMENTO DE CONDUTA (TAC) CELEBRADO ANTES DA VIGÊNCIA DO NOVO
CÓDIGO FLORESTAL. TEMPUS REGIT ACTUM.
[...]
4. Uma vez celebrado, e cumpridas as formalidades legais, o Termo de Ajustamento de
Conduta – TAC constitui ato jurídico perfeito, imunizado contra alterações legislativas
posteriores que enfraqueçam as obrigações ambientais nele estabelecidas. Deve, assim, ser
cabal e fielmente implementado, vedado ao juiz recusar sua execução, pois do contrário
desrespeitaria a garantia da irretroatividade da lei nova, prevista no art. 6º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942). Precedentes do STJ.
5. Recurso Especial provido.
(REsp 1.802.754, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ, j. em 08.10.2019) 19.

O Tribunal de Contas do Estado do Paraná também já se manifestou nesse


sentido, no contexto de Termo de Ajustamento de Conduta cujas obrigações implicavam
possível conflito com inovações da Lei Complementar nº 173/2020 20.

Desse modo, e seguindo a lógica estabelecida nos fundamentos do Enunciado II


do Tema 1.199, se os negócios jurídicos foram formalizados e perfectibilizados sob a
égide da antiga Lei de Improbidade Administrativa, a alteração legislativa superveniente
não tem o condão de infirmar a higidez do título executivo celebrado de boa-fé e de modo
consensual entre as partes.

2.3. Atos dolosos de improbidade revogados que estão sendo investigados ou


cujas ações ainda estão tramitando

A situação fático-jurídica dos atos de improbidade revogados que estavam sob


investigação ou cujas ações ainda estavam tramitando é muito semelhante à das

19 Assim também AgInt no PDist nos EDcl no REsp 1.735.167, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma do STJ, j. em 30.08.2021.
20 “O Termo de Ajustamento de Conduta com disposições no mesmo sentido, firmado antes da vigência da referida lei complementar,
deve ser cumprido ainda que acarrete o aumento de gastos com pessoal, pois é instrumento que possui eficácia de título executivo
extrajudicial e consiste em ato jurídico perfeito, estando imune às alterações legislativas supervenientes” ( Acórdão 80/2021, Rel. Cons.
Fernando Augusto Mello Guimarães, Pleno do TCE-PR, j. em 10.02.2021).

13
condutas ímprobas culposas sem sentença definitiva, em face das quais o Supremo
Tribunal Federal determinou a incidência da Lei nº 14.230/2021.

Em razão disso, algumas Cortes como o Tribunal de Justiça do Estado do


Paraná21, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais 22 e o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul23 têm aplicado analogicamente o Enunciado III do Tema
1.199 de Repercussão Geral aos demais atos ímprobos revogados que ainda não
transitaram em julgado, reconhecendo sua atipicidade.

O Poder Judiciário Gaúcho, aliás, afirmou que por uma questão de isonomia e de
coerência com o que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, e considerando que é
um dever dos tribunais uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente,
nos termos do art. 926, caput, do Código de Processo Civil, não seria cabível discutir sob
o viés constitucional os aspectos intertemporais das condutas ímprobas revogadas sem
trânsito em julgado, sendo-lhes aplicável as mesmas premissas do ARE 843.989:

AGRAVO INTERNO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. IMPROBIDADE


ADMINISTRATIVA. LEI 14.230/2021. RETROATIVIDADE.
4. Em 20/08/2020, o Ministério Público ingressou com ação civil pública por atos de
improbidade administrativa contra o réu, em razão da prática de condutas tipificadas nos
artigos 10, IX e XI, e 11, caput e inc. I, da Lei nº 8.429/92.
5. A Lei nº 14.230/2021 trouxe importantes modificações no tocante à tipificação dos atos de
improbidade administrativa. Na data de 18/02/2022 o Supremo Tribunal Federal julgou o ARE
843989 (TEMA 1199), fixando as seguintes teses: "1) É necessária a comprovação de
responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa,
exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A
norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de
improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da
Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem
tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei
14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na
vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da
revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por

21AI 0045686-28.2022.8.16.0000, Rel. Des. Luiz Taro Oyama, Quarta Câmara Cível do TJPR, j. em 11.12.2022; AC 0000038-
29.2015.8.16.0078, Rel. Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau Antonio Franco Ferreira da Costa Neto, Quinta Câmara Cível do
TJPR, j. em 28.11.2022; AI 0064915-42.2020.8.16.0000, Rel. Des. Leonel Cunha, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 24.10.2022.
22AC 1.0000.21.128337-9/002, Rel. Des. Bitencourt Marcondes, Décima Nona Câmara Cível do TJMG, j. em 15.12.2022; AC
1.0140.16.000914-2/001, Relª. Desª. Áurea Brasil, Quinta Câmara Cível do TJMG, j. em 15.12.2022; AC 1.0000.22.236321-0/001, Relª.
Desª. Magrid Nauef Láuar, Sétima Câmara Cível do TJMG, j. em 29.11.2022; AC 1.0390.07.018127-1/005, Rel. Des. Alberto Vilas
Boas, Primeira Câmara Cível do TJMG, j. em 22.11.2022; AC 1.0439.15.012917-9/001, Relª. Desª. Magrid Nauef Láuar, Sétima
Câmara Cível do TJMG, j. em 25.10.2022.
23 AI 51326504720228217000, Relª. Desª. Denise Oliveira Cezar, Primeira Câmara Cível do TJRS, j. em 12.12.2022; AC
50176603820208210008, Rel. Des. Voltaire de Lima Moraes, Quarta Câmara Cível do TJRS, j. em 23.11.2022.

14
parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é
IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei".
6. Não se mostra plausível suscitar incidente de inconstitucionalidade nesta via, tendo em
vista que a matéria está em análise pelo Supremo Tribunal Federal. Vale destacar que o
incidente de inconstitucionalidade, previsto no artigo 948 do Código de Processo Civil está
integrado ao sistema do Código de Processo Civil dos Processos nos Tribunais e dos Meios
de Impugnação das Decisões Judiciais (Livro III), cujo artigo 926 inseriu importantes
valores jurídico-processuais, ao disciplinar que os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Suscitar o incidente de
inconstitucionalidade neste TJRS iria na contramão de tais valores jurídico-processuais,
inclusive, aumentando o grau de insegurança jurídica em matéria de tamanha
controvérsia, o que não é aconselhável em termos de política judiciária.
7. A consequência, portanto, com relação às normas de conteúdo material, reside na
impossibilidade de impor condenação por atos de improbidade administrativa no que
tange aos tipos e espécies de improbidade que não mais figuram como tais no sistema
normativo da Lei nº 8.429/92, por força das alterações da Lei nº 14.230/21. AGRAVO
INTERNO PROVIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(AI 51227114320228217000, Rel. Des. Leonel Pires Ohlweiler, Terceira Câmara Cível do
TJRS, j. em 24.11.2022) – destacou-se.

Não obstante essa posição tenha se mostrado a tendência no contexto


jurisprudencial, também se afigura possível defender que o Tema 1.199 de Repercussão
Geral não encontra aplicação às condutas ímprobas revogadas sem trânsito em julgado.

Isso porque, conquanto os Ministros tenham formado maioria para definir que a
Lei nº 14.230/2021 é aplicável aos atos culposos revogados ainda em trâmite, não houve
convergência entre os fundamentos jurídicos apresentados – diferentemente do que
ocorreu com relação aos atos culposos revogados transitados em julgados, em que a
ratio decidendi da maioria foi a mesma.

De fato, para os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux, a aplicação da Lei nº


14.230/2021 aos atos culposos sem sentença definitiva se deve em virtude do princípio da
não ultra-atividade, com o propósito de evitar a incidência de dispositivo legal já revogado
no momento presente, qual seja, a antiga redação do art. 10, caput, da Lei nº 8.429/1992:

Ressalte-se, entretanto, que apesar da irretroatividade, em relação a redação anterior da LIA,


mais severa por estabelecer a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa em
seu artigo 10, vige o princípio da não ultra-atividade, uma vez que não retroagirá para aplicar-
se a fatos pretéritos com a respectiva condenação transitada em julgado, mas tampouco será
permitida sua aplicação a fatos praticados durante sua vigência mas cuja responsabilização
judicial ainda não foi finalizada. Isso ocorre pelo mesmo princípio do tempus regit actum, ou
seja, tendo sido revogado o ato de improbidade administrativa culposo antes do trânsito em
julgado da decisão condenatória; não é possível a continuidade de uma investigação, de uma

15
ação de improbidade ou mesmo de uma sentença condenatória com base em uma conduta
não mais tipificada legalmente, por ter sido revogada. Não se trata de retroatividade da lei,
uma vez que todos os atos processuais praticados serão válidos, inclusive as provas
produzidas – que poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal –; bem como a
ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao erário. Entretanto, em virtude ao
princípio do tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com
base em norma legal revogada expressamente (ARE 843.989, Voto do Min. Alexandre de
Moraes).

Já para os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Gilmar


Mendes e Ricardo Lewandowski, a razão pela qual a Lei nº 14.230/2021 deveria se
aplicar às condutas culposas sem condenação transitada em julgado é o princípio da
retroatividade da norma mais benéfica, com fulcro no art. 5º, XL, da Constituição Federal.

Por fim, para os Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e
Cármen Lúcia, a Lei nº 14.230/2021 sequer deveria se aplicar aos atos ímprobos
culposos sem condenação definitiva, uma vez que, por ser um ilícito civil, o princípio do
tempus regit actum impõe, na forma do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, a
aplicação da lei vigente ao tempo em que o ato foi praticado, não no instante em que
porventura venha a ser sentenciado:

Peço vênia ao eminente Relator para apresentar divergência ao voto de V. Excelência em um


único ponto. No voto apresentado, no que diz respeito à improbidade culposa, Vossa
Excelência interpreta a irretroatividade como a preservação das condenações por
improbidade administrativa culposa transitadas em julgado. Explicito meu entendimento, com
todas as vênias para as compreensões no sentido oposto, que em um regime democrático a
lei de natureza não estritamente penal não pode retroagir, ante o risco de se violar o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (CRFB, art. 5º, XXXVI), cânones do
conceito maior que é a segurança jurídica. [...] Reconhecida a natureza civil das ações de
improbidade administrativa, aplica-se a este sistema o postulado tempus regit actum: a lei
vigente à época dos fatos regulamenta sua entrada no mundo jurídico e seus efeitos nesse
mundo. Ao meu ver, reconhecer a irretroatividade da nova lei de improbidade administrativa
significa reconhecer que ela não se aplica às condutas culposas praticadas antes de sua
vigência, não havendo importância a existência de investigação, processo, sentença ou
trânsito em julgado. […] Assim, reconhecido a natureza civil da improbidade administrativa
não vislumbro forma de aplicar a irretroatividade das suas alterações de forma parcial. A
irretroatividade deve ser total (ARE 843.989, Voto do Min. Edson Fachin).

Percebe-se, então, que embora tenha formado maioria de 7 x 4 votos quanto ao


resultado – aplicação da Lei nº 14.230/2021 aos atos culposos sem sentença definitiva –,
o Supremo Tribunal não formou maioria quanto aos fundamentos que o embasaram, haja
vista que 5 Ministros o fizeram pela retroatividade e 2 Ministros pela não ultra-atividade.

16
A ausência de consenso na motivação apresentada retira da decisão o seu
caráter de precedente. Conforme explica Luiz Guilherme Marinoni, não é possível se falar
em ratio decidendi quando a Corte não converge quanto aos motivos que efetivamente
lastrearam o julgado:

Seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo, ambos não se
confundem, só havendo sentido falar de precedente quando se tem uma decisão dotada de
determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma
para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados. […] Um precedente exige definição,
ao menos por maioria, da questão de direito. De modo que a decisão que resolve o
recurso por maioria de votos, mas soluciona a questão de direito com base em
fundamentos compartilhados por minorias, não constitui precedente. No direito
estadunidense, causam espanto as decisões proferidas por uma maioria que compartilha de
dois ou mais fundamentos sustentados por minorias – ditas decisões plurais. Nesses casos,
afirma-se que não há precedente se a Suprema Corte profere uma decisão em que um
fundamento é subscrito por três e outro por dois Justices, na medida em que, embora o
resultado tenha sido declarado por cinco a quatro, os fundamentos foram negados por seis a
três e sete a dois. No direito brasileiro, da mesma forma, há que se distinguir decisão do
recurso e precedente, na medida em que o (des)provimento do recurso nem sempre
configurará precedente. Só há precedente quando o fundamento (não apenas o
resultado) for compartilhado pela maioria dos membros do colegiado. […] Portanto, uma
decisão pode não ter os caracteres necessários à configuração de precedente, seja por não
tratar de questão de direito ou não sustentar um fundamento por maioria, seja por se limitar a
afirmar a letra da lei ou a reafirmar precedente. Outrossim, um precedente requer a análise
dos principais argumentos pertinentes à questão de direito, além de poder necessitar de
inúmeras decisões para ser definitivamente delineado. Nesta dimensão, é possível dizer que
o precedente é a primeira decisão que, ao menos por maioria, decide a questão de direito ou
é a decisão que, igualmente ao menos por maioria, definitivamente a delineia, deixando-a
cristalina. […] Uma ratio decidendi, enquanto significado que revela o sentido de um
texto legal ou mesmo constitui regra editada pela Corte para resolver um caso, só pode
ser formada pela maioria do colegiado. Lembre-se que o common law clássico não
concebia uma ratio decidendi que não contasse com a adesão clara da maioria dos membros
da Corte. Quer dizer que os tribunais inferiores sequer indagavam sobre uma ratio decidendi
quando se deparavam com decisões cujos resultados foram alcançados a partir de
fundamentos não compartilhados por uma maioria. Rationales dotadas de autoridade,
capazes de regular casos futuros, dependiam do suporte da maioria da Corte 24 - destacou-se.

O fato de o ARE 843.989 não ser um precedente propriamente dito acaba por
mitigar o seu poder persuasivo em relação a circunstâncias semelhantes que não foram
expressamente enfrentadas, sobretudo porque não ficou claro aos jurisdicionados qual
deve ser a postura a ser adotada nessas hipóteses.

24 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022 [E-book].

17
Vale dizer, mesmo partindo do pressuposto de que, por uma questão de
similaridade com os atos culposos revogados sem sentença definitiva, a Lei nº
14.230/2021 deveria regular também os atos dolosos de improbidade revogados que
ainda não transitaram em julgado, qual deve ser a justificativa adotada para tanto? O
princípio da não ultra-atividade da norma revogada, defendida pelos Ministros Alexandre
de Moraes e Luiz Fux? Ou o princípio da retroatividade, endossada pelos Ministros André
Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski?

Ainda que na prática as duas fundamentações conduzam a resultados parecidos,


a abordagem delas é profundamente diferente. Enquanto a primeira linha de raciocínio
encara os atos de improbidade administrativa como ilícitos civis, regulados pelo art. 5º,
XXXVI, da Constituição Federal, a segunda vertente aplicou às condutas ímprobas a
mesma lógica que permeia o Direito Penal, regulando a sucessão intertemporal de leis
com base no art. 5º, XL, da Constituição Federal.

Esse ponto em particular demonstra o quão dissonantes foram as


fundamentações do julgado. Por um lado, a maioria da Corte, formada pelos Ministros
Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Roberto Barroso, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa
Weber, entendeu que os atos de improbidade administrativa são ilícitos civis, não sendo
aplicável a eles os princípios do Direito Penal. Por outro lado, a incidência da Lei nº
14.230/2021 aos atos culposos sem trânsito em julgado se deu em virtude da formação
de uma maioria não absoluta, composta pelos Ministros André Mendonça, Nunes
Marques, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que utilizaram para tanto
princípios retroativos típicos do Direito Penal.

Em outras palavras, não existe uma ratio decidendi no tocante à aplicação da Lei
nº 14.230/2021 aos atos culposos sem sentença definitiva. Embora esse resultado tenha
contado com a anuência de 7 Ministros, a fundamentação com mais adeptos obteve
apenas 5 votos, o que não qualifica uma maioria e não tem o poder de vincular casos
semelhantes.

18
Portanto, apesar de as Cortes estarem aplicando o Enunciado III do Tema 1.199
de Repercussão Geral aos atos dolosos de improbidade revogados sem sentença
definitiva, também é possível que os membros do Ministério Público aleguem que a
referida tese não constitui um precedente adequado para disciplinar outros casos que não
os atos culposos sem trânsito em julgado, com base no que foi exposto até aqui.

2.4. Ressarcimento ao erário nos atos ímprobos revogados que estão sendo
investigados ou cujas ações ainda estão tramitando

Caso prevaleça a aplicação analógica do Enunciado III do Tema 1.199 de


Repercussão Geral aos atos de improbidade revogados pela Lei nº 14.230/2021 e que
ainda não transitaram em julgado, nos moldes apresentados no capítulo anterior, haverá
invariavelmente o reconhecimento da atipicidade da conduta.

Haveria, guardadas as devidas proporções, uma abolitio criminis, ensejando a


retroatividade da Lei nº 14.230/2021 – ou a não ultra-atividade da redação antiga da Lei nº
8.429/1992, nos termos utilizados na ementa do ARE 843.989.

Tal circunstância, no entanto, não afeta o dever de os agentes ímprobos


ressarcirem o erário, se as suas condutas ocasionaram dano a ele, pois, por disposição
analógica do art. 2º do Código Penal, a abolitio criminis atinge apenas os aspectos
eminentemente punitivos, não alcançando as consequências civis dos ilícitos praticados.

Por conseguinte, o ressarcimento integral do dano não pode ser afastado, uma
vez que sua natureza não é genuinamente punitiva, mas mera consequência do prejuízo
patrimonial causado ao erário, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça 25,
de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves26 e Hugo Nigro Mazzili27.

25 AgInt nos Edcl no AgInt no Resp 1.676.600, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma do STJ, j. em 28.06.2021; REsp
622.234, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma do STJ, j. em 01.10.2009.
26 “[...] observa-se que a reparação dos danos, em seus aspectos intrínsecos, não representa uma punição para o ímprobo, pois tão-
somente visa a recompor o status quo” (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco Alves. Improbidade Administrativa. 6 ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 526/529).
27 “O ressarcimento ao erário não é pena, e sim mera consequência do ato ilícito” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses
difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e patrimônio público. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 260).

19
Essa constatação, aliás, foi reforçada com o advento da Lei nº 14.230/2021, cujas
alterações afirmaram categoricamente que a reparação do dano e as sanções são
institutos jurídicos distintos e que devem ser tratados de forma desvinculada.

De fato, a recente reforma legislativa modificou os incisos I, II, e III do art. 12 da


Lei nº 8.429/1992, retirando a reparação do dano do seu universo de sanções. Ela
também deu nova redação ao caput do dispositivo, que é enfático ao determinar que o
ressarcimento ao erário se dará de forma independente e autônoma em relação à
aplicação de penalidades: “independentemente do ressarcimento integral do dano
patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e
administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de
improbidade sujeito às seguintes cominações [...]”.

Além do mais, a Lei nº 14.230/2021 tornou a ação de improbidade administrativa


um instrumento marcadamente punitivo, afastando do seu bojo de regulamentação os
aspectos ressarcitórios e secundários ao ilícito ímprobo.

Isso fica bem evidenciado no novel art. 17, § 16, da Lei nº 8.429/1992, que prevê
que quando determinado ilícito administrativo não ensejar a imposição das penalidades
dos atos de improbidade, por não estarem presentes todos os requisitos necessários para
tanto, o feito deve ser convertido em ação civil pública, com o propósito de que os demais
aspectos da irregularidade constatada sejam sanados por essa via.

Tal escolha política também foi retratada com a inclusão do art. 17-D, parágrafo
único, na Lei nº 8.429/1992, cujo teor dispõe que as ações de improbidade não podem ser
utilizadas para a proteção do patrimônio público ou para apurar a responsabilidade pelos
danos a ele causados. Ficou definido que essas pretensões, bem como a discussão sobre
eventuais consequências civis ou administrativas que permeiam os atos ímprobos, a
exemplo do ressarcimento ao erário ou do controle de legalidade do ato administrativo,
devem se dar no campo da ação civil pública.

20
O cenário jurídico inaugurado pela Lei nº 14.230/2021, portanto, instituiu uma nova
roupagem ao microssistema da proteção da probidade: enquanto os demais aspectos do
ilícito administrativo devem ser tutelados por meio da ação civil pública, os ditames da Lei
nº 8.429/1992 ficam reservados apenas para um viés punitivo, pois, nos termos do caput
do já citado art. 17-D, a ação de improbidade administrativa se torna “repressiva, de
caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas
nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade
de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público”.

Por uma opção do próprio legislador, a Lei nº 14.230/2021 não tem por escopo
disciplinar o ressarcimento ao erário, que tem sua regência dada pela Lei de Ação Civil
Pública, mais especificamente no art. 1º, VIII:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: […]
VIII – ao patrimônio público e social;

Desse modo, a responsabilidade pelos danos causados ao patrimônio público pode


ser sanada pela via da ação civil pública, seja ela oriunda de um ato ímprobo ou não, de
modo que eventual atipicidade de determinada conduta por revogações promovidas pela
Lei nº 14.230/2021 não tem o condão de impedir a consecução do regular ressarcimento
ao erário, ainda que por outra via.

3. Irretroatividade processual da Lei nº 14.230/2021

3.1. Prazos prescricionais

A Lei nº 14.230/2021 alterou profundamente as normas sobre a prescrição dos


atos de improbidade administrativa, consolidando entre suas inovações: i) prazo de 8
anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do
dia em que cessou a permanência (art. 23, caput); ii) suspensão do curso do prazo
prescricional por, no máximo, 180 dias corridos, decorrente da instauração de inquérito
civil ou de processo administrativo para apuração dos ilícitos (art. 23, § 1º); iii) interrupção

21
da prescrição pelo ajuizamento da ação, publicação da sentença condenatória ou
publicação de decisão ou acórdão que confirme sentença condenatória ou que reforme
sentença de improcedência (art. 23, § 4º), o qual, uma vez interrompido, começa a correr
pela metade, isto é, pelo prazo máximo de quatro anos (art. 23, § 5º).

Logo após a promulgação da reforma legislativa, houve debates de toda a sorte


sobre qual deveria ser o seu comportamento intertemporal, tal como ocorreu com as
disposições materiais do novo diploma legal.

Atualmente a questão está decidida pelo Supremo Tribunal Federal, mas, à


época, este Centro de Apoio prontamente defendeu que a nova sistemática dos prazos
prescricionais não deveria incidir sobre as condutas que se materializaram antes de 26 de
outubro de 2021, pois, partindo das premissas já expostas na presente obra, a
irretroatividade é a regra adotada pelo ordenamento jurídico em se tratando de direito
intertemporal.

Apontou-se que a diminuição dos prazos pela metade e a implementação da


prescrição intercorrente aos processos em curso ensejaria evidente violação ao princípio
do devido processo legal substantivo (substantive due process of law), da boa-fé das
partes, da proteção da confiança, da segurança jurídica, da proporcionalidade e da
eficiência, além de caracterizar proteção deficiente ao direito fundamental à probidade e
evidente retrocesso no microssistema de combate à corrupção.

Chamou-se atenção para a incongruência de o legislador – mesmo sabendo que


as investigações e ações de improbidade frequentemente envolvem questões complexas
que alongam a instrução do feito – deliberadamente consagrar a prescrição intercorrente
e diminuir para até quatro anos o prazo prescricional após a sua interrupção, penalizando
o Ministério Público pela inércia ou procrastinação que poderia ser imputada a outros
atores do processo. E isso, coincidentemente, após pesquisa publicada pelo Conselho

22
Nacional de Justiça (CNJ)28 reconhecer que o tempo médio para julgamento das ações de
improbidade pelo Poder Judiciário brasileiro é de 1.548,6 dias ou 4,2 anos.

Foi também explicitado que as ações de improbidade que estavam em curso


deveriam adotar os prazos prescricionais da antiga redação do art. 23 da Lei nº
8.429/1992, sobretudo considerando que elas foram submetidas a um rito bifásico
significativamente distinto do novo rito processual.

Afirmou-se, ainda, que a Lei nº 14.230/2021 se reporta expressamente ao Código


de Processo Civil em diversas disposições, do que seria possível depreender que a
aplicação deste último é supletiva ou subsidiária às novas normas, devendo ser
considerado ao menos como vetor interpretativo. O Código de Processo Civil, a esse
respeito, consagra a observância da boa-fé (art. 5º), da proporcionalidade e da eficiência,
indicando que o juiz deverá atender aos fins sociais e às exigências do bem comum na
aplicação do ordenamento (art. 6º), e ainda se refere à segurança jurídica e à proteção da
confiança como questões a serem prestigiadas em caso de alteração de entendimentos
que possam afetar a jurisprudência e as normas (arts. 525, § 13, 535, § 6º, 927, §§ 3º e
4º, 976, II, 982, § 3º, e 1029, § 4º).

O Superior Tribunal de Justiça 29 já entendia pela não aplicação de novos prazos


prescricionais reduzidos pela vigência do atual Código Civil a situações materializadas no
ordenamento anterior, porque tal panorama implicaria violação ao princípio da segurança
jurídica e à regra da irretroatividade da lei.

Adicionalmente, ponderou-se que a proporcionalidade, a vedação ao retrocesso e


a proteção eficiente ao princípio da probidade, abordados no primeiro capítulo e cujos
fundamentos se reitera, devem ser devidamente valorados para impedir o esvaziamento
do sistema de combate à corrupção no país.

28 Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel
Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida. et al. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. p. 19.
29 AgRg no REsp 1.567.594, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma do STJ, j. em 07.03.2017; REsp 948.600, Relª. Minª. Maria
Thereza de Assis Moura, Sexta Turma do STJ, j. em 29.11.2007.

23
A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida),
acolhida no ordenamento brasileiro pelo Decreto nº 5.687/2006, e mencionada na nova
Lei de Improbidade Administrativa, vai em sentido oposto às inovações vigentes, ao
estabelecer em seu art. 29 que “Cada Estado Parte estabelecerá, quando proceder, de
acordo com sua legislação interna, um prazo de prescrição amplo para iniciar processos
por quaisquer dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção e
estabelecerá um prazo maior ou interromperá a prescrição quando o presumido
delinquente tenha evadido da administração da justiça”.

Desse modo, mudanças repentinas provocadas pelo Poder Legislativo, aptas a


diminuir prazos prescricionais que ensejariam a não responsabilização de agentes que
cometeram possíveis ilícitos em prejuízo da Administração Pública, violariam diretamente
o princípio do devido processo legal substantivo (substantive due process of law), por
meio do qual se controla o arbítrio do Legislativo e a discricionariedade dos atos do Poder
Público, ao se proceder ao exame da razoabilidade (reasonableness) e da racionalidade
(rationality) das normas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral 30.

Não por acaso, quando apreciou o mérito da matéria, o Supremo Tribunal Federal
estabeleceu no julgamento do Tema 1.199 de Repercussão Geral que o regime
prescricional previsto na Lei nº 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos
temporais apenas a partir de sua publicação (25 de outubro de 2021):

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de


improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do
elemento subjetivo – DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de
improbidade administrativa –, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da
Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem
tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos
praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado,
em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar
eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO,
aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. - destacou-se.

30 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora.
4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 214.

24
Os fundamentos apresentados pela Corte 31 na ocasião foram muito semelhantes
aos então endossados por este Centro de Apoio.

3.2. Novo prazo para a conclusão do inquérito civil

O art. 23, § 2º, da Lei de Improbidade Administrativa agora estabelece que “O


inquérito civil para apuração do ato de improbidade será concluído no prazo de 365
(trezentos e sessenta e cinco) dias corridos, prorrogável uma única vez por igual período,
mediante ato fundamentado submetido à revisão da instância competente do órgão
ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica”.

Uma vez findo esse prazo, a ação deverá ser proposta no prazo de 30 dias, se
não for caso de arquivamento do inquérito civil (art. 23, § 3º).

Este Centro de Apoio entende que o prazo de 365 dias, por ter caráter
procedimental, teve início apenas a partir da data de vigência da Lei nº 14.230/2021, não
levando em conta o prazo pretérito de tramitação do procedimento.

Portanto, se o inquérito civil foi instaurado, por exemplo, há mais de dois anos, o
prazo para seu encerramento, prorrogável, tem contagem iniciada não por ocasião de sua
instauração no biênio antecedente, mas apenas a partir de 26 de outubro de 2021.

Diante desse novo panorama, há que se atentar para a necessidade de conferir


andamento célere às investigações, saneando-se adequadamente os inquéritos civis, o
que significa ordenar diligências pertinentes e correlacionadas ao objeto investigatório,
além da adoção de um cronograma razoável para conclusão das etapas e diligências, o

31 “Sem INÉRCIA não há PRESCRIÇÃO. Sem INÉRCIA não há sancionamento ao titular da pretensão. Sem INÉRCIA não há
possibilidade de se afastar a proteção à probidade e ao patrimônio público. A PRIMEIRA TURMA dessa CORTE, reiteradamente, tem
afirmado que se o Estado não está inerte, há necessidade de se interromper a prescrição para o cumprimento do devido processo legal
[…] A inércia nunca poderá ser caracterizada por uma lei futura que, diminuindo os prazos prescricionais, passe a exigir o impossível,
ou seja, que, retroativamente o poder público – que foi diligente e atuou dentro dos prazos à época existentes – cumpra algo até então
inexistente. […] Na aplicação do novo regime prescricional, há necessidade de observância dos princípios da segurança jurídica, do
acesso à Justiça e da proteção da confiança, com a irretroatividade da nova lei, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados
validamente antes da alteração legislativa, sob pena de consequências absurdas. […] Em conclusão, o novo regime prescricional
previsto na Lei 14.230/21 NÃO RETROAGE, em respeito ao ato jurídico perfeito e em observância aos princípios da segurança
jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da
alteração legislativa” (fls. 78/81).

25
qual deverá ser fiscalizado rigorosamente por quem preside o procedimento. Em virtude
sobretudo do disposto no art. 31 da Lei nº 13.869/2019 32, faz-se também imprescindível
que a prorrogação da investigação seja devidamente motivada.

A não observância desse prazo, porém, não acarreta consequências substantivas


à investigação, pois não se trata de prazo decadencial, prescricional ou que comine
nulidades. Constitui, em verdade, prazo com caráter impróprio, entendido como aquele
que não enseja a invalidade ou ineficácia do feito caso não respeitado, figurando apenas
como um indicativo do período razoável para a realização das investigações.

O inquérito civil, além do mais, tem natureza de procedimento administrativo, não


sendo condição de procedibilidade para o ajuizamento das ações a cargo do Ministério
Público, conforme art. 8º, § 1º, da Lei nº 7.347/1985, art. 1º da Resolução nº 23/2007-
CNMP e art. 15 do Ato Conjunto nº 01/2019-PGJ/CGMP33.

Essas afirmações, além de serem chanceladas pela doutrina 34, estão em


consonância com o entendimento das Cortes brasileiras de que os prazos estabelecidos
para que a Administração Pública realize algum ato nos procedimentos administrativos
têm natureza imprópria e sua inobservância não acarreta nulidade, salvo se comprovado
prejuízo, conforme diversos julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná 35,
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais 36 e Tribunal Regional Federal da 4ª
Região37.

32 Art. 31. Estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado:


Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma
imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado.
33 Também com essa orientação: AgInt no AREsp 1.455.101, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma do STJ, j. em 01.10.2019.
34 “Prazos impróprios são aqueles fixados na lei apenas como parâmetro para a prática do ato, sendo que seu desatendimento não
acarreta situação detrimentosa para aquele que o descumpriu, mas apenas sanções disciplinares. O ato praticado além do prazo
impróprio é válido e eficaz” (NERY, Rosa Maria Barreto B. Andrade; JUNIOR, Nelson Nery. Código de Processo Civil Comentado e
Legislação Extravagante. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006).
35 AI 0001142-52.2021.8.16.9000, Rel. Juiz de Direito Guilherme Cubas Cesar, Quarta Turma Recursal do TJPR, j. em 09.08.2021;
AC 1.687.292-3, Relª. Juíza Substituta em Segundo Grau Ângela Maria Machado Costa, Segunda Câmara Cível do TJPR, j. em
20.06.2017; AC 1.421.641-0, Rel. Des. Luiz Mateus de Lima, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 10.11.2015; RI 0000553-
19.2013.8.16.0148, Relª. Juíza de Direito Fernanda Orsomarzo, Primeira Turma Recursal do TJPR, j. em 17.08.2015; AC 1.076.344-3,
Rel. Des. Nilson Mizuta, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 26.11.2013.
36 AC 1.0000.17.097568-4/002, Rel. Des. Afrânio Vilela, Segunda Câmara Cível do TJMG, j. em 02.02.2021; AC 1.0024.05.898169-
7/002, Rel. Des. Albergaria Costa, Terceira Câmara Cível do TJMG, j. em 06.09.2007.
37 AC 5024811-19.2012.4.04.7000, Rel. Des. Sérgio Renato Tejada Garcia, Quarta Turma do TRF4, j. em 30.06.2021; AI 5052065-
34.2020.4.04.0000, Rel. Des. Rômulo Pizzolatti, Segunda Turma do TRF4, j. em 10.02.2021.

26
O Superior Tribunal de Justiça, aliás, tem orientação sumulada nesse sentido 38.

E nem poderia ser diferente, porque a própria Lei de Improbidade Administrativa,


ao fixar os prazos prescricionais para o exercício da pretensão punitiva, consagra com as
novas alterações o lapso de até oito anos para a atuação do Ministério Público, conforme
art. 23, caput, de modo que este dispositivo deve ser interpretado conjunta e
sistematicamente com seus parágrafos 2º e 3º.

Aliás, é pertinente apontar que a conclusão ora exposta não seria afastada nem
mesmo se os princípios do Direito Penal fossem aplicados irrestritamente ao Direito
Administrativo Sancionador – tese que já foi expressamente afastada pelo Supremo
Tribunal Federal no Tema 1.199 de Repercussão Geral. Isso porque na esfera criminal
também é pacífico que os prazos de conclusão estabelecidos para os inquéritos policiais
têm natureza imprópria, conforme decisões do Superior Tribunal de Justiça 39 e do Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná 40.

4. Acordo de não persecução civil (ANPC)

4.1. Oitiva do Tribunal de Contas

O art. 17-B, § 3º, da Lei nº 8.429/1992, em decorrência das inovações instituídas


pela Lei nº 14.230/2021, estabelece que, para fins de apuração do valor do dano a ser
ressarcido no âmbito do acordo de não persecução civil, “deverá ser realizada a oitiva do
Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros
utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias”.

38 Súmula 592 do STJ - “O excesso de prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar só causa nulidade se houver
demonstração de prejuízo à defesa”. Ainda: “O excesso de prazo para o processamento de inquérito civil público, em princípio, não
prejudica o investigado; a este cabe comprovar que tal dilação lhe traz prejuízos pois, do contrário, incidirá o reconhecimento de que,
inexistindo prejuízo, não resta dano ou nulidade (pas de nulité sans grief). […] (AgRg em RMS 25.763, Rel. Min. Humberto Martins,
Segunda Turma do STJ, j. em 02.09.2010).
39 AgRg no HC 614.321, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma do STJ, j. em 15.12.2020; RHC 58.138, Rel. Min. Gurgel de Faria,
Quinta Turma do STJ, j. em 15.12.2015.
40 HC 0043871-30.2021.8.16.0000, Rel. Des. Paulo Edison de Macedo Pacheco, Primeira Câmara Criminal do TJPR, j. em
21.08.2021; ReSE 0012817-84.2020.8.16.0031, Rel. Des. Mario Nini Azzolini, Terceira Câmara Criminal do TJPR, j. em 29.04.2021; HC
0056816-20.2019.8.16.0000, Rel. Des. Naor Ribeiro de Macedo Neto, Primeira Câmara Criminal do TJPR, j. em 30.01.2020; ACrim
1.512.362-7, Rel. Des. Renato Naves Barcellos, Quarta Câmara Criminal do TJPR, j. em 11.08.2016.

27
O Ministério Público do Estado do Paraná, no entanto, perfilha o entendimento
institucional de que esse dispositivo somente será constitucional se for interpretado no
sentido de que é facultativa a consulta ao Tribunal de Contas para fins de apuração do
dano, e que a realização ou dispensa da diligência deve ser objeto de deliberação
fundamentada pelo(a) agente ministerial que preside o procedimento investigatório ou é
responsável pela condução da ação de improbidade administrativa.

O Ato Conjunto nº 01/2022 – PGJ/CGMP/CSMP, ao acrescer o art. 140 ao Ato


Conjunto nº 01/2019 – PGJ/CGMP, assim estabeleceu:

Art. 140. É facultativa a consulta ao Tribunal de Contas para fins de apuração do dano,
especialmente quando este já estiver delimitado ou for possível fazê-lo por simples cálculo
aritmético ou com o prévio auxílio dos serviços de apoio técnico do próprio Ministério Público,
e sua dispensa deverá ser fundamentada.

De acordo com a Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos 41, o


art. 17-B, § 5º, da Lei de Improbidade Administrativa reconhece a iniciativa exclusiva do
Ministério Público para celebrar o acordo de não persecução civil, de modo que este
instrumento se submete aos princípios da independência e da autonomia funcionais da
instituição (art. 127, § 1º e § 2º, da Constituição Federal). A autonomia tem dimensão
institucional, assegurando ao Ministério Público capacidade de autoadministração imune à
ingerência de outros órgãos ou Poderes. Já a independência funcional se dirige aos
membros da instituição, livrando seus atos finalísticos de intervenções externas.

Logo, a única interpretação congruente com a ordem constitucional é a de que a


oitiva do Tribunal de Contas nesta esfera de atuação do Ministério Público não pode ser
compreendida como etapa imprescindível. Primeiro, porque haverá hipóteses em que a
quantificação do dano se procederá por mero cálculo aritmético. Segundo, porque haverá
casos em que a extensão do dano e da indenização correspondente estará resolvida no
inquérito civil por outras vias, em especial pelas perícias contábeis realizadas pelo setor
técnico do próprio Ministério Público ou de outras instâncias.

41 Manifestação do Núcleo Cível da SubJur no Protocolo nº 16553/2021 – MPPR, cujos fundamentos são parcialmente reproduzidos.

28
A ouvida do Tribunal de Contas se mostra desnecessária e protelatória nessas
situações, pois o dano já está delineado. Ora, se a lei afirma que a diligência serve para
“fins de apuração do dano”, resta sem sentido a consulta à Corte de Contas 42. Aqui se
aloja o ataque à independência funcional, pois é o membro do Ministério Público quem
detém atribuição constitucional para presidir o inquérito civil e, por conseguinte, decidir se
o dano ficou suficientemente quantificado – ou não – durante a investigação. Se a
Constituição outorga ao Ministério Público o inquérito civil e seu monopólio, também lhe
concede os meios necessários e adequados para sua condução.

Nessa perspectiva, compete apenas aos órgãos de execução do Ministério


Público a decisão – necessariamente fundamentada (art. 43, III, da Lei nº 8.625/1993) – a
respeito das diligências pertinentes à investigação, ambiente decisório que não pode ser
compartilhado com o Tribunal de Contas.

Convém recordar precedente do Supremo Tribunal Federal em que se declarou a


nulidade de decisão do Conselho Nacional do Ministério Público que invalidara ato
finalístico praticado por órgão de execução do Ministério Público do Espírito Santo:

MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO.


ANULAÇÃO DE ATO DO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DO ESPÍRITO SANTO EM TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. ATIVIDADE-FIM DO
MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. INTERFERÊNCIA NA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E
NA INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NO ESPÍRITO SANTO – CSMP/ES. MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO.
(MS 28.028, Relª. Minª. Cármen Lúcia, Segunda Turma do STF, j. em 30.10.2012).

A ratio decidendi da decisão se aplica a esta discussão, porque haveria um


condicionamento ex ante, resultando na subtração de parcela do poder decisório do
Ministério Público: a este caberia a identificação do ato de improbidade administrativa,
mas a métrica do ressarcimento seria transferida ao Tribunal de Contas. Tal intelecção
não se mostra compatível com a Constituição Federal porque, em termos práticos,
significaria que uma parte da cognição do inquérito civil migraria do Ministério Público
para o Tribunal de Contas, em nítida afronta à autonomia e à independência ministeriais.
42 Também se pode cogitar de inconstitucionalidade material por violação ao princípio da proporcionalidade, pois a medida legislativa
não ultrapassaria o subprincípio da necessidade: o Tribunal de Contas não é o único órgão estatal com capacidade para apurar danos
ao erário.

29
A participação obrigatória do Tribunal de Contas em investigação ou ação
proposta pelo Ministério Público ofenderia a ordem constitucional também por implicar a
criação de atribuição institucional não contemplada pelo art. 71 da Constituição Federal. O
rol de competências da Corte de Contas não inclui a interferência nas atividades fins dos
Poderes ou de outras instituições, como é o caso do Ministério Público, de modo que o
legislador ordinário não poderia instituir intervenção dessa natureza.

O Supremo Tribunal Federal, a propósito, em mais de uma oportunidade já


assentou a inconstitucionalidade de dispositivos legais que criaram atribuições ao Tribunal
de Contas distintas daquelas previstas na Constituição Federal:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO. TRIBUNAL DE CONTAS. NORMA


LOCAL QUE OBRIGA O TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL A EXAMINAR PREVIAMENTE
A VALIDADE DE CONTRATOS FIRMADOS PELA ADMINISTRAÇÃO. REGRA DA SIMETRIA.
INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO SEMELHANTE IMPOSTA AO TRIBUNAL DE CONTAS DA
UNIÃO. 1. Nos termos do art. 75 da Constituição, as normas relativas à organização e
fiscalização do Tribunal de Contas da União se aplicam aos demais tribunais de contas. 2. O
art. 71 da Constituição não insere na competência do TCU a aptidão para examinar,
previamente, a validade de contratos administrativos celebrados pelo Poder Público. Atividade
que se insere no acervo de competência da Função Executiva. 3. É inconstitucional norma
local que estabeleça a competência do Tribunal de Contas para realizar exame prévio de
validade de contratos firmados com o Poder Público. Ação Direta de Inconstitucionalidade
conhecida e julgada procedente. Medida liminar confirmada.
(ADI 916, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno do STF, j. em 02.02.2009).

Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Inconstitucionalidade das expressões “ou do Tribunal


de Contas do Estado” e “ou pelo Tribunal de Contas do Estado”, contidas no art. 38, inciso I, §
1º, da Constituição do Estado do Amapá. 3. Atribuição de competência ao Tribunal de Contas
do Estado para intervenção estadual em município. 4. Violação aos artigos 34 e 36 da
Constituição Federal. Precedentes: ADI 614 e ADI 2.631. 5. Ação direta de
inconstitucionalidade julgada procedente.
(ADI 3029, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno do STF, j. em 27.03.2020).

Além do mais, o Supremo Tribunal Federal entende que apenas projetos de lei de
iniciativa do próprio Tribunal de Contas podem tratar de sua organização e
funcionamento, sob pena de inconstitucionalidade formal (ADI 4191, Rel. Min. Roberto
Barroso, Tribunal Pleno, j. em 22.05.2020; ADI 4643, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j.
em 15.05.2019; ADI 5323, Relª. Minª. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. em 11.04.2019; e
ADI 4418, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. em 15.12.2016).

30
A inconstitucionalidade do art. 17-B, § 3º, da Lei nº 8.429/1992 se manifesta,
portanto, de duas formas: ao desrespeitar a independência e autonomia funcionais do
Ministério Público na condução de suas investigações e ações, e ao conceder ao Tribunal
de Contas competência que a Constituição Federal não lhe reservou.

É evidente que, na instrução de investigações relativas à prática de atos de


improbidade administrativa, os membros do Ministério Público poderão solicitar o apoio do
Tribunal de Contas para a realização de diligências, dentre as quais a quantificação do
dano para se fixar o valor do ressarcimento correspondente. A cooperação entre
instituições de controle é algo desejável, pois os elementos produzidos por uma poderão
ser aproveitados pela outra. Iniciativas dessa natureza são racionais, na medida em que
evitam a repetição do mesmo trabalho, por órgãos distintos, além de estimularem a
produção de decisões coesas e evitarem áreas de sobreposição.

A ação coordenada entre os órgãos de controle, porém, é positiva quando for


oportuna. Impor sua obrigatoriedade pode gerar justamente o oposto, vale dizer, a
inviabilização do exercício de competências constitucionais do Ministério Público em
virtude de sua usurpação pelo Tribunal de Contas.

Por conta desses motivos, o Supremo Tribunal Federal recentemente suspendeu


de forma liminar nas ADIs 7.236 e 7.237 43 a eficácia do referido art. 17-B, § 3º, da Lei nº
8.429/1992. Desde 17 de janeiro de 2023, o feito se encontra concluso ao relator, Ministro
Alexandre de Moraes, aguardando julgamento de mérito.

43 “Nada obstante, ao regulamentar esse instrumento de consensualidade administrativa, o dispositivo questionado estabelece a
obrigatoriedade da oitiva do Tribunal de Contas competente, que deverá se manifestar, com a indicação dos parâmetros utilizados, no
prazo de 90 (noventa) dias. Ao assim dispor, a norma aparenta condicionar o exercício da atividade-fim do Ministério Público à atuação
da Corte de Contas, transmudando-a em uma espécie de ato complexo apto a interferir indevidamente na autonomia funcional
constitucionalmente assegurada ao órgão ministerial. Eventual desrespeito à plena autonomia do Ministério Público, em análise
sumária, consiste em inconstitucionalidade perante a independência funcional consagrada nos artigos 127 e 128 da Constituição
Federal. Além de inúmeras incertezas que circundam a aplicação da regra (v.g. vinculatividade do cálculo realizado e procedimentos
para sua oitiva), portanto, a própria fixação de prazo para a manifestação, mediante lei ordinária de autoria parlamentar, afeta o gozo
das prerrogativas de autonomia e de autogoverno das Cortes de Contas” (fls. 22 e 23).

31
4.2. Ausência de dano ao erário ou enriquecimento ilícito

As alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 no corpo da Lei nº 8.429/1992


trouxeram questionamento sobre a possibilidade de celebrar acordo de não persecução
civil para os atos de improbidade administrativa que não causaram dano ao erário ou que
não implicaram enriquecimento ilícito. A dúvida decorre dos requisitos estabelecidos pelo
art. 17-B, I e II:

Art. 17-B. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar
acordo de não persecução civil, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes
resultados:
I – o integral ressarcimento do dano;
II – a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de
agentes privados – destacou-se.

O dispositivo assevera que o integral ressarcimento do dano e a reversão à


pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida são resultados necessários para que
o acordo seja firmado. Considerando apenas a literalidade do texto legal, não se
vislumbra nenhuma exceção para esse comando, o que poderia conduzir à conclusão
precipitada de que se trata de uma regra absoluta e inafastável.

No entanto, uma análise sistemática do ordenamento jurídico revela que esta não
é a interpretação mais adequada a se extrair do referido art. 17-B, I e II, da Lei nº
8.429/1992, haja vista que nem todos os atos ímprobos têm o condão de causar lesão ao
erário ou ensejar o enriquecimento ilícito.

É cediço que o legislador ordinário, ao estabelecer o microssistema da proteção à


probidade administrativa, optou por tipificar os ilícitos dessa seara em três grandes
grupos: os que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), os que causam prejuízo ao erário
(art. 10) e os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).

Sob essa perspectiva, se por um lado é certo que determinada conduta pode se
enquadrar simultaneamente nas três espécies acima elencadas, também é inequívoco
que pode se subsumir em apenas uma, de sorte que é absolutamente possível a

32
configuração de algum ato de improbidade administrativa sem a presença de dano ao
erário ou de enriquecimento ilícito.

Essa constatação é particularmente reforçada no tocante à figura do art. 11 da Lei


nº 8.429/1992, conforme fica patente com a inclusão do art. 11, § 4º, e da nova redação
do art. 18, caput, ambos do mesmo diploma legal:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da
administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de
imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: [...]
§ 4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem
jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento
da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos.
Art. 18. A sentença que julgar procedente a ação fundada nos arts. 9º e 10 desta Lei
condenará ao ressarcimento dos danos e à perda ou à reversão dos bens e valores
ilicitamente adquiridos, conforme o caso, em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo
ilícito – destacou-se.

Partindo dessas premissas, fica evidente que o integral ressarcimento do dano e


a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida são circunstâncias a
serem exigidas tão somente quando o ato ímprobo tenha lesado o erário ou provocado o
enriquecimento ilícito, respectivamente.

A ausência de disposição expressa nesse sentido não deve ser entendida como
empecilho para a celebração de acordos de não persecução civil para condutas que não
ensejem tais resultados, mas sim como mera atecnia legislativa.

Até porque o novel art. 10, § 1º, da Lei nº 8.429/1992 é categórico ao determinar
que não haverá imposição de ressarcimento ao erário quando o ilícito administrativo não
tiver ocasionado efetiva perda patrimonial:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação
ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio,
apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no
art. 1º desta Lei, e notadamente: [...]

33
§ 1º Nos casos em que a inobservância de formalidades legais ou regulamentares não
implicar perda patrimonial efetiva, não ocorrerá imposição de ressarcimento, vedado o
enriquecimento sem causa das entidades referidas no art. 1º desta Lei.

Não por acaso, tão logo o art. 17-B, I e II, da Lei nº 8.429/1992 entrou em vigor, a
doutrina capitaneada por Fernando da Fonseca Gajardoni prontamente afirmou que tais
requisitos não são aplicáveis aos casos em que não haja dano ao erário ou
enriquecimento ilícito:

O acordo em tema de improbidade deverá observar alguns requisitos obrigatórios


cumulativos, sem os quais a avença, a rigor, não será homologada pelo Poder Judiciário, a
quem competirá, nos termos do art. 17-B, § 1º, III, da LIA, fazer o controle da presença deles.
Além dos requisitos genéricos da legislação civil de qualquer negócio jurídico (art. 104 do
CC), há, também, requisitos específicos dos acordos em improbidades, alguns de validade
(art. 17-B, caput e § 1º, I), outros de eficácia (art. 17-B, § 1º, II e III, da LIA). […] Do acordo
deve necessariamente, resultar: a) o integral ressarcimento do dano; e b) a reversão à
pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.
Não resultando a convenção é nula. Evidentemente, só há de se falar nessa
imperiosidade [...] nos casos em que haja enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário.
Quando ele não tenha ocorrido, ou mesmo nas hipóteses do art. 11 da Lei 8.429/1992
(violação dos princípios da administração), não há de cogitar do não cabimento do
acordo porque inexiste prejuízo a reparar ou vantagem indevida a reverter 44 – destacou-
se.

Esse entendimento, aliás, já era defendido ainda antes da promulgação da Lei nº


14.230/2021, época em que o regramento das soluções negociais na seara da
improbidade administrativa era timidamente regulado pela antiga redação do art. 17, § 1º,
da Lei nº 8.429/199245, dada pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019).

Restringir a via da solução consensual apenas para os casos mais complexos


contrariaria a própria lógica do sistema jurídico e, em alguma medida, atentaria contra o
princípio da celeridade processual, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

Como bem destacado pela doutrina, “os casos em que não há prejuízo a reparar
ou prejuízo a reverter – ordinariamente menos graves –, são exatamente aqueles onde os

44 GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários à nova lei de improbidade administrativa: lei 8.429/1992, com as alterações
da lei 14.320/2021. 5 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021 [E-book, RL-1.9].
45 Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro
de trinta dias da efetivação da medida cautelar. § 1º As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não
persecução cível, nos termos desta Lei.

34
acordos em improbidade são mais recomendáveis do ponto de vista da política
institucional do Ministério Público”46.

Partindo dessas premissas, se é permitida a celebração de negócios jurídicos


para casos de maior lesividade, em que existem consequências nocivas ao patrimônio
público e à ordem jurídica como um todo, também podem ser firmados acordos para
ilícitos de menor repercussão, por estar a segunda hipótese contemplada implicitamente
na primeira.

O art. 17-B, I e II, da Lei nº 8.429/1992, desse modo, é aplicável apenas para os
atos de improbidade que causem prejuízo ao erário ou que acarretem enriquecimento
ilícito, não sendo exigido o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica
lesada da vantagem indevida obtida para as condutas ilícitas que, por sua própria
natureza, não tenham o condão de apresentar esses resultados.

5. Indisponibilidade patrimonial

5.1. Irretroatividade da Lei nº 14.230/2021 e medidas de indisponibilidade já


realizadas

As inovações legislativas agora condicionam o pedido de indisponibilidade de


bens à “demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao
resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência
dos atos descritos na petição inicial” (art. 16, § 3º) e vedam a inclusão do valor da multa
civil ou do acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita (art. 16, § 10).

As medidas de indisponibilidade patrimonial já materializadas não devem sofrer


alteração em decorrência desta alteração de requisitos legais, ainda que o processo
esteja em curso, pois são atos processuais efetivados com base na anterior redação da
Lei nº 8.429/1992 (arts. 7º e 16, § 2º) e avalizados pela jurisprudência do Superior

46 GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários à nova lei de improbidade administrativa: lei 8.429/1992, com as alterações
da lei 14.320/2021. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021 [E-book, RL-1.9].

35
Tribunal de Justiça, inclusive em julgamento repetitivo, como no caso do Tema 701
(desnecessidade de perigo de dano) e Tema 1055 (inclusão da multa civil).

Aplica-se também a essas hipóteses a lógica do tempus regit actum e a


disposição do art. 14 do Código de Processo Civil, segundo o qual “A norma processual
não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os
atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da
norma revogada”, consagrando-se a proteção da confiança e a segurança jurídica.

É possível, contudo, que o acervo patrimonial tornado indisponível seja agora


substituído por caução idônea, por fiança bancária ou por seguro-garantia judicial, a
requerimento do réu (art. 16, § 6º), porque essas novas opções apenas alteram a forma
como a garantia de ressarcimento será assegurada ao Ministério Público.

5.2. Demonstração do periculum in mora

Além das questões tratadas no item precedente, a alteração legislativa que


passou a exigir a demonstração do periculum in mora como condição necessária à
concessão da indisponibilidade de bens nas ações de improbidade (art. 16, § 3º) esvazia
o comando do art. 37, § 4º, da Constituição Federal, que prevê o seguinte:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a
perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

A norma constitucional estipula expressamente que a indisponibilidade de bens é


consequência da prática dos atos de improbidade, constatação que pode ser facilmente
observada no tempo verbal empregado na redação do dispositivo: o futuro do presente.
Isto é, a palavra “importarão” deixa nítido o mandamento do poder constituinte originário
ao parlamento para que preveja que os atos ímprobos ensejarão a indisponibilidade dos

36
bens. O art. 37, § 4º, da Constituição Federal, assim, alberga genuíno comando de que na
esfera da improbidade não é necessário demonstrar o periculum in mora.

Eventuais escolhas políticas em contrário são absolutamente irrelevantes, pois


não há margem para que o legislador ordinário exerça juízo de valor sobre a opção
tomada pelo Constituinte. A ele cabe apenas e tão somente agir no estrito espaço de
conformação delineado pela Constituição Federal, cujo conteúdo é indisponível.

Além do Supremo Tribunal Federal 47, essa é a posição do Superior Tribunal de


Justiça, segundo o qual a desnecessidade de comprovar o perigo de dano irreparável ou
de risco ao resultado útil na concessão da indisponibilidade de bens em ações de
improbidade administrativa deflui de determinação da própria Constituição Federal:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. MEDIDA CAUTELAR. INDISPONIBILIDADE DE BENS. LEGITIMIDADE
ATIVA AD CAUSAM. COMPETÊNCIA. ACÓRDÃO RECORRIDO ASSENTADO EM
FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA N. 126/STJ. INCIDÊNCIA. INÉPCIA DA INICIAL.
ABRANGÊNCIA DOS DANOS. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 07/STJ.
INCIDÊNCIA. APROVEITAMENTO DE PROVAS. ESFERA PENAL. ARTS. 313 E 315,
CPC/2015. AUSÊNCIA DE COMANDO NORMATIVO EM DISPOSITIVO LEGAL APTO A
SUSTENTAR A TESE RECURSAL. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INCIDÊNCIA,
POR ANALOGIA, DA SÚMULA N. 284/STF. TUTELA DE EVIDÊNCIA. DECRETAÇÃO.
REQUISITOS. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 07/STJ. INCIDÊNCIA.
ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA.
APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015.
DESCABIMENTO. [...] Por outro lado, este Tribunal Superior, ao proceder à exegese do art.
7º da Lei n. 8.429/1992, firmou jurisprudência assentando a possibilidade de o juízo decretar,
fundamentadamente, a indisponibilidade ou bloqueio de bens do indiciado ou demandado,
quando presentes fortes indícios de responsabilidade pela prática de ato ímprobo que cause
lesão ao patrimônio público ou importe enriquecimento ilícito, prescindindo da comprovação
de dilapidação de patrimônio, ou sua iminência. Isso porque o periculum in mora, nessa
fase, milita em favor da sociedade, encontrando-se implícito no comando legal que
rege, de forma peculiar, o sistema de cautelaridade da ação de improbidade
administrativa, no intuito de garantir o ressarcimento ao erário e/ou devolução do produto do
enriquecimento ilícito, decorrente de eventual condenação, nos termos estabelecidos no
art. 37, § 4º, da Constituição.
(AgInt no REsp 1.761.052, Relª. Minª. Regina Helena Costa, Primeira Turma do STJ, j. em
27.09.2021) – destacou-se.

47 Agravo regimental no recurso extraordinário. Improbidade administrativa. Decretação de indisponibilidade de bens. Acórdão em que
se afastou a necessidade de demonstração do periculum in mora e se concedeu a tutela de evidência. [...] 1. O acórdão objurgado não
eliminou propriamente a exigência do periculum in mora para a concessão da medida cautelar. Em verdade, o julgado presumiu sua
existência ao considerar que o regime jurídico da cautelar nas ações de improbidade, da forma como determinado pelo art. 37, § 4º da
Lei Fundamental, traz implícito o perigo da demora (RE 944.504 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma do STF, j. em 20.10.2017).

37
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO.
APLICAÇÃO DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CAUTELAR DE INDISPONIBILIDADE DOS
BENS DO PROMOVIDO. DECRETAÇÃO. REQUISITOS. EXEGESE DO ART. 7º DA LEI N.
8.429/1992, QUANTO AO PERICULUM IN MORA PRESUMIDO. MATÉRIA PACIFICADA
PELA COLENDA PRIMEIRA SEÇÃO. [...] 2. Em questão está a exegese do art. 7º da Lei n.
8.429/1992 e a possibilidade de o juízo decretar, cautelarmente, a indisponibilidade de bens
do demandado quando presentes fortes indícios de responsabilidade pela prática de ato
ímprobo que cause dano ao Erário. 3. A respeito do tema, [...] no comando do art. 7º da Lei
8.429/1992, verifica-se que a indisponibilidade dos bens é cabível quando o julgador entender
presentes fortes indícios de responsabilidade na prática de ato de improbidade que cause
dano ao Erário, estando o periculum in mora implícito no referido dispositivo,
atendendo determinação contida no art. 37, § 4º, da Constituição, segundo a qual 'os
atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da
função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação
previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível'. O periculum in mora, em verdade, milita
em favor da sociedade, representada pelo requerente da medida de bloqueio de bens,
porquanto esta Corte Superior já apontou pelo entendimento segundo o qual, em casos de
indisponibilidade patrimonial por imputação de conduta ímproba lesiva ao erário, esse
requisito é implícito ao comando normativo do art. 7º da Lei n. 8.429/92. [...] 5. Portanto, a
medida cautelar em exame, própria das ações regidas pela Lei de Improbidade
Administrativa, não está condicionada à comprovação de que o réu esteja dilapidando
seu patrimônio, ou na iminência de fazê-lo, tendo em vista que o periculum in mora
encontra-se implícito no comando legal que rege, de forma peculiar, o sistema de
cautelaridade na ação de improbidade administrativa, sendo possível ao juízo que preside a
referida ação, fundamentadamente, decretar a indisponibilidade de bens do demandado,
quando presentes fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa. [...] 7.
Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e do art. 8º da Resolução n. 8/2008/STJ
(REsp 1.366.721, Rel. Min. Og Fernandes, Primeira Seção do STJ, j. em 26.02.2014) –
destacou-se.

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. ART. 7º DA LEI
8.429/1992. PERICULUM IN MORA PRESUMIDO. MATÉRIA PACIFICADA. JULGADO DA
PRIMEIRA SEÇÃO/STJ. RESP 1.319.515/ES. APLICAÇÃO DA SÚMULA 168/STJ. 1. A
Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que,
de acordo com o disposto no art. 7º da Lei 8.429/1992, a indisponibilidade dos bens é
cabível quando o julgador entender presentes fortes indícios de responsabilidade na
prática de ato de improbidade que cause dano ao Erário, estando o periculum in mora
implícito no referido dispositivo, atendendo determinação contida no art. 37, § 4º, da
Constituição. Precedente: REsp 1.319.515/ES, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA
FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO,
julgado em 22/08/2012, DJe 21/09/2012. 2. Incide, na hipótese, a Súmula 168 do STJ,
segundo a qual “não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se
firmou no mesmo sentido do acórdão embargado”. 3. Agravo regimental não provido (AgRg
no EDV em REsp 1.315.092, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção do STJ, j.
em 22.05.2013) – destacou-se.

A doutrina chancela esses julgados, como se observa pelas lições de Pedro


Roberto Decomain e Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, respectivamente:

38
A indisponibilidade de bens pode ser decretada mesmo que não se esteja diante de alguma
daquelas situações de desaparecimento do requerido, ou de dissipação do seu patrimônio, ou
concessão de direitos reais de garantia, ou de sua insolvência. A própria Constituição Federal,
ao afirmar que a prática de atos de improbidade administrativa importará na
indisponibilidade de bens (art. 37, parágrafo 4º), já deixa claro que a indisponibilidade,
embora assemelhada ao arresto, quando motivada por enriquecimento ilícito e
principalmente por prejuízo patrimonial ao Erário, pode ser tomada independentemente da
existência de alguma das situações de risco consignada nos três primeiros incisos do art. 813
do CPC [de 1973] [...] Em suma, segundo nosso ponto de vista, não há necessidade de outros
elementos, além da indicação da provável ocorrência de ato de improbidade administrativa que
tenha importado em ganho patrimonial ilícito ou em prejuízo patrimonial para o ente administrativo,
para que se torne viável a decretação da indisponibilidade de bens dos requeridos 48 – destacou-se.

Quanto ao periculum in mora, parte da doutrina se inclina no sentido de sua implicitude, de sua
presunção pelo art. 7º da Lei de Improbidade, o que dispensaria o autor de demonstrar a intenção
de o agente dilapidar ou desviar o patrimônio com vistas a afastar a reparação do dano. [...] a
indisponibilidade prevista na Lei de Improbidade é uma daquelas hipóteses nas quais o próprio
legislador dispensa a demonstração do perigo de dano. Desse modo, em vista da redação
imperativa adotada pela Constituição Federal (art. 37, §4º) e pela própria Lei de Improbidade
(art. 7º), cremos acertada tal orientação49 – destacou-se.

Em nenhum momento a Constituição Federal determina que a medida deve ser


precedida da comprovação de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do
processo, exigência que decorre unicamente da indevida inovação trazida pelo já citado
art. 16, § 3º, da Lei nº 8.429/1992.

É verdade que a expressão “na forma e gradação previstas em lei” conferiu certa
dose de liberdade ao Poder Legislativo para disciplinar o modo pelo qual a
indisponibilidade de bens seria aplicada no contexto da improbidade administrativa.

Não obstante, a Constituição Federal é categórica ao definir limites para essa


atuação. Aliás, esse fato já foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
ocasião em que foi consignado que o campo de atuação do legislador nessa seara não é
ilimitado e está adstrito ao disposto no aludido art. 37, § 4º:

O art. 37 da CF, em seu caput, dispõe expressamente sobre o dever de observância dos
princípios regentes da atividade estatal, enquanto que o § 4º do mesmo dispositivo conferiu
ao legislador uma certa liberdade regrada de conformação do delineamento da improbidade

48 DECOMAIN, Pedro Roberto. Improbidade administrativa. São Paulo: Dialética, 2007, p. 276/277 e 288.
49 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1105.

39
(AC 0004126-41.2015.8.16.0004, Voto convergente do Des. Carlos Mansur Arida, Quinta
Câmara Cível do TJPR, j. em 02.07.2019).

A previsão da suspensão dos direitos políticos, da perda da função pública, da


indisponibilidade dos bens e do ressarcimento ao erário constituem o conjunto mínimo de
consequências a serem potencialmente aplicadas aos atos de improbidade administrativa.
Trata-se de verdadeiro standard constitucional a ser observado pelo legislador ordinário.

Nesse aspecto, o art. 16, § 3º, da Lei nº 8.429/1992 ultrapassa os limites de


conformação permitidos ao legislador ordinário nessa matéria, sobretudo porque veicula
conteúdo que viola o princípio da proibição da proteção deficiente.

O referido postulado, como se sabe, apregoa que o Poder Público deve atuar
para que os bens jurídicos que estão sob sua tutela sejam concretizados. A postura
omissiva nessa tarefa equivale a uma conduta que viola direito fundamental:

Poderá o Estado frustrar seus deveres de proteção atuando de modo insuficiente, isto é,
ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos ou mesmo
deixando de atuar [...] É nesse sentido – como contraponto à assim designada proibição de
excesso – que expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência
daquilo que se convencionou chamar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente
implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão) 50.

O Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de
tutela, que levem – considerando os bens conflitantes – ao alcance de uma proteção
adequada e, como tal, efetiva (proibição de insuficiência). Para tanto, é necessário um projeto
de proteção que combine elementos de proteção preventiva e repressiva 51.

É importante ressaltar que a probidade administrativa ocupa a posição de direito


fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. O art. 37, § 4º, da Constituição Federal
traduz a nítida opção do constituinte originário em rechaçar as condutas de má gestão da
coisa pública, determinando que os atos de improbidade sejam severamente punidos. O
próprio caput de tal dispositivo menciona a moralidade e a eficiência como vetores
axiológicos que orientarão a atuação da Administração Pública.

50 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2021, p. 399.
51 BVERFGE 88, 203, Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Excerto retirado da obra Cinquenta Anos de Jurisprudência do
Tribunal Constitucional Alemão. Acesso em: 10 jan. 2022.

40
Para Roberto Lima Santos, não é apenas esse dispositivo constitucional que visa
a resguardar a probidade administrativa, pois a proteção dela também decorre:

(i) do princípio republicano (art. 1º, caput); (ii) do princípio democrático (art. 1º, par. único); (iii)
de seus fundamentos (art. 1º, incisos I a V: soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa
humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político); (iv) dos
objetivos fundamentais da República (art. 3º, incisos I a IV: construir uma sociedade livre,
justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); (v) da
prevalência dos direitos humanos e da defesa da paz nas suas relações internacionais (art.
4º, I e VI); e (vi) dos demais princípios constitucionais administrativos, previstos no caput do
art. 37 (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) 52.

A Constituição Federal prestigia a probidade da Administração Pública também


nos arts. 14, § 9º, 15, V, e 85, V, razão pela qual a doutrina contemporânea tem defendido
veementemente o seu caráter de direito fundamental, a exemplo de Waldo Fazzio Júnior 53,
Ingo Sarlet54, Juarez Freitas55, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves56.

Essa constatação não é uma realidade apenas no ordenamento jurídico


doméstico, pois como demonstra André de Carvalho Ramos “a tutela da probidade
administrativa não é mais um imperativo meramente nacional, mas sim internacional,
baseado na análise de diplomas normativos internacionais, explicitando o fundamento
atual dessa internacionalização do combate a práticas de corrupção, que é a
implementação de direitos humanos”57.

52 SANTOS, Roberto Lima. Direito fundamental à probidade administrativa e as convenções internacionais de combate à corrupção.
Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012. Acesso em: 10 jan. 2022.
53 Os direitos subjetivos a prestações estatais em sintonia com os direitos republicanos incluem o direito de todos à administração da
coisa pública secundum legem, sob o referencial da probidade (FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina,
legislação e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 14-15).
54 SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
55 Para o autor, o direito à probidade é composto pelo “direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de
seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade
por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações
administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem” (FREITAS, Juarez. Discricionariedade
administrativa e o direito fundamental à boa administração. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 22 e 42).
56 “Os Poderes Legislativo e Executivo, no Brasil, teimam em não aceitar aquilo que o nosso texto constitucional tem de mais
contemporâneo, vale dizer, o seu forte conteúdo normativo, a sua vocação para criar direitos fundamentais de plena e imediata fruição
– no caso, o direito fundamental à probidade – e a consagração, fruto da experiência constitucional norte-americana, de ampla
possibilidade de intervenção do Poder Judiciário na garantia de tais direitos fundamentais” (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério
Pacheco. Improbidade administrativa. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 859).
57 RAMOS, André de Carvalho. O combate internacional à corrupção e a lei da improbidade. In: SAMPAIO, José Adércio Leite et al.
(org.). Improbidade Administrativa: comemoração pelos 10 anos da Lei 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 7.

41
Sob essa perspectiva, ao ter exigido a demonstração do periculum in mora como
pressuposto para concessão da indisponibilidade de bens em ações de improbidade, o
art. 16, § 3º, da Lei nº 8.429/1992 confere proteção deficiente à Administração Pública.

Para o Superior Tribunal de Justiça, a exigência de prova cabal desse requisito


comprometeria sobremaneira a tutela da probidade administrativa, uma vez que a
sociedade contemporânea obteve consideráveis avanços tecnológicos que propiciam
formas de transações patrimoniais rápidas até então inexistentes:

Assim, a Lei de Improbidade Administrativa, diante dos velozes tráfegos, ocultamento ou


dilapidação patrimoniais, possibilitados por instrumentos tecnológicos de
comunicação de dados que tornaria irreversível o ressarcimento ao erário e devolução
do produto do enriquecimento ilícito por prática de ato ímprobo, buscou dar efetividade
à norma afastando o requisito da demonstração do periculum in mora (art. 823 do CPC),
este, intrínseco a toda medida cautelar sumária (art. 789 do CPC), admitindo que tal requisito
seja presumido a preambular garantia de recuperação do patrimônio do público, da
coletividade, bem assim do acréscimo patrimonial ilegalmente auferido (REsp 1366721, Rel.
Min. Og Fernandes, Primeira Seção do STJ, j. em 26.02.2014) – destacou-se.

É desnecessário aguardar que os réus efetuem a dilapidação (ou simulação de dissipação)


do seu patrimônio para só então se proceder à decretação da indisponibilidade. Não foi essa
a intenção do legislador ao prever a possibilidade de adotar a providência em tela (AgInt no
REsp 1.857.927, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ, j. em 21.09.2020).

Essa percepção é partilhada por Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:

De fato, exigir a prova, mesmo que indiciária, da intenção do agente de furtar-se à efetividade
da condenação representaria, do ponto de vista prático, o irremediável esvaziamento da
indisponibilidade perseguida no âmbito constitucional e legal 58.

Ademais, ainda que se invoque a proteção ao direito patrimonial daqueles que


serão atingidos pelas medidas de indisponibilidade, tem-se que as ações de improbidade
administrativa são regidas por um conjunto normativo próprio e bastante peculiar, cujo
objetivo é proteger a lisura do funcionamento da máquina pública – seja resguardando o
erário de desvios ou gastos desnecessários, ou preservando a moralidade e a eficiência
na sua atuação –, de modo que a proteção do patrimônio público tem prevalência sobre
eventuais direitos de ordem exclusivamente individuais:

58 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1.105.

42
De forma correlata ao extenso rol de normas constitucionais consagradores de direitos
fundamentais, o Constituinte originário, no art. 37, §4º, da Constituição, conferiu autorização
expressa ao legislador infraconstitucional para que estatuísse restrições aos referidos direitos
sempre que fosse identificada a prática de atos de improbidade, os quais estariam igualmente
sujeitos à reserva de lei. [...] Com isso, teve-se uma nítida colisão entre direitos fundamentais
do agente público (cidadania, patrimônio e livre exercício da profissão) e bens jurídicos do
Estado (patrimônio público e normatização disciplinadora da conduta dos agentes públicos),
colisão esta que foi objeto de prévia valoração pelo legislador, o qual terminou por
prestigiar o interesse coletivo em detrimento do individual59 – destacou-se.

Portanto, o art. 16, § 3º, da Lei nº 8.429/1992, ao ter criado indevida exigência de
comprovação do periculum in mora, viola o art. 37, § 4º, da Constituição Federal e
desrespeita o princípio da proibição da proteção deficiente.

5.3. Ordem de preferência para o bloqueio de ativos financeiros

O art. 16, § 11, da Lei nº 8.429/1992 prevê que o bloqueio de contas bancárias
constitui a última medida a ser adotada no contexto da indisponibilidade de bens em
ações de improbidade administrativa:

Art. 16. Na ação por improbidade administrativa poderá ser formulado, em caráter
antecedente ou incidente, pedido de indisponibilidade de bens dos réus, a fim de garantir a
integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento
ilícito. […]

§ 11. A ordem de indisponibilidade de bens deverá priorizar veículos de via terrestre, bens
imóveis, bens móveis em geral, semoventes, navios e aeronaves, ações e quotas de
sociedades simples e empresárias, pedras e metais preciosos e, apenas na inexistência
desses, o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do acusado e a
manutenção da atividade empresária ao longo do processo.

O dispositivo legal destoa do que ordinariamente se verifica em outros ramos do


direito, uma vez que o Código de Processo Civil estabelece uma ordem de preferência
diferente, conforme o seu art. 835, I, e § 1º:

Art. 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:


I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
II – títulos da dívida pública da União, dos Estados e do Distrito Federal com cotação em
mercado;
III – títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;
IV – veículos de via terrestre;

59 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 169.

43
V – bens imóveis;
VI – bens móveis em geral;
VII – semoventes;
VIII – navios e aeronaves;
IX – ações e quotas de sociedades simples e empresárias;
X – percentual do faturamento de empresa devedora;
XI – pedras e metais preciosos;
XII – direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária
em garantia;
XIII – outros direitos.
§ 1º É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a
ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto – destacou-se.

Além do diploma processualista afirmar que suas disposições são aplicáveis


supletiva e subsidiariamente aos outros campos do direito na ausência de leis especiais
(art. 15), na execução fiscal os ativos financeiros também são tidos como prioritários, nos
termos do art. 11 da Lei nº 6.830/1980 60. O mesmo se verifica com o Direito do Trabalho,
que adota a ordem de preferência do Código de Processo Civil, consoante dispõe o art.
882 da Consolidação das Leis do Trabalho 61.

Veja-se que a alteração legislativa criou, pela via reflexa, dois regramentos
distintos quanto à preferência na constrição patrimonial. Um aplicável apenas às ações de
improbidade administrativa, no qual os ativos financeiros são tidos como a espécie de
bem menos desejável, ainda que o dano pecuniário seja vultoso e prejudicial aos
interesses da administração pública e da sociedade. E outro destinado às ações de índole
civil, trabalhista e fiscal, em que o dinheiro é considerado como o item prioritário ao
credor, ainda que o débito seja de pequena monta.

Essa modificação legislativa, para além de significar um manifesto retrocesso


para as instituições do Estado e o combate à corrupção, é flagrantemente inconstitucional,
uma vez que viola o princípio da isonomia consagrado na Constituição Federal.

60 Art. 11. A penhora ou arresto de bens obedecerá à seguinte ordem: I – dinheiro; II – título da dívida pública, bem como título de
crédito, que tenham cotação em bolsa; III – pedras e metais preciosos; IV – imóveis; V – navios e aeronaves; VI – veículos; VII –
móveis ou semoventes; e VIII – direitos e ações.
61 Art. 882. O executado que não pagar a importância reclamada poderá garantir a execução mediante depósito da quantia
correspondente, atualizada e acrescida das despesas processuais, apresentação de seguro-garantia judicial ou nomeação de bens à
penhora, observada a ordem preferencial estabelecida no art. 835 da Lei n o 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo
Civil.

44
O Supremo Tribunal Federal já apontou que o Poder Legislativo não pode instituir
diferenciações normativas de modo descomedido. Como evidenciado no julgamento da
ADI 758, ADI 4.868, RE 656.089 e RE 657.686, a Corte foi categórica ao afirmar, a partir
das balizas desenvolvidas por Celso Antônio Bandeira de Mello na obra “O Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade”, que para uma desequiparação legal ser considerada
compatível com o postulado da isonomia devem ser superados três testes: o fator de
discrímen residir no próprio objeto a ser diferenciado; a discriminação guardar pertinência
lógica com a finalidade pretendida com a desequiparação; e a finalidade do tratamento
distinto ser consonante com os valores constitucionalmente protegidos.

Com relação ao primeiro teste, tem-se que, ao conferir tratamento jurídico


diferente para determinadas situações, o legislador deve adotar como critério de
discrímen algo que resida na própria pessoa ou coisa a ser distinguida, mas nunca em
elemento que seja externo a elas. A afirmação se justifica sobretudo em face da vertente
material do princípio da isonomia, que defende tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

Por essa máxima, se a equalização dos desiguais deve se dar na exata proporção
de suas desigualdades, é justamente ela que deve ser utilizada como parâmetro
diferenciador, não o contexto fático específico a que estão submetidos os sujeitos em
questão. Enquanto a desigualdade reside no próprio indivíduo desigual, o contexto fático
é algo externo a ele. Não é razoável utilizar elemento extrínseco às pessoas como critério
de diferenciação, pois, por se tratar de algo exterior, consistente em algo aplicável a todos
que eventualmente se encontrem no âmbito de sua sujeição, o que reflete o seu caráter
neutro em relação à situação de desigualdade.

Sob esta perspectiva, ao ter estabelecido ordem de preferência de


indisponibilidade para as ações de improbidade distinta daquela aplicável aos demais
réus em ações diversas, a Lei nº 14.230/2021 erigiu como critério de discrímen um fator
externo (ser parte demandada em uma ação de improbidade administrativa). Ocorre que
isso é algo potencialmente aplicável a qualquer pessoa, seja natural ou jurídica: toda a

45
coletividade e a indeterminação de sujeitos que a compõe estão submetidos aos ditames
da Lei nº 8.429/1992. A referida legislação se revela como verdadeiro fator neutro no
tocante aos seus destinatários, sendo aplicável a todos a despeito das eventuais
diferenças e desigualdades existentes entre eles.

Com relação ao segundo teste, defende-se que a lei só pode estabelecer


diferenciação entre os indivíduos quando o fator de desequiparação eleito tiver correlação
lógica com o tratamento desigual suscitado. Isto é, se o critério diferenciador tiver
pertinência racional e se apresentar como justificativa coerente para selecionar quem e
porquê usufruirá dos benefícios ou desvantagens do regime jurídico distinto:

O ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside
na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a
discriminação legal decidida em função dele. [...] Ocorre imediata e intuitiva rejeição de
validade à regra que, ao apartar situações, para fins de regulá-las diversamente, se calça em
fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado.
Tem-se, pois, que é o vínculo de conexão lógica entre os elementos diferenciais
colecionados e a disparidade das disciplinas estabelecidas em vista deles o quid
determinante da validade ou invalidade de uma regra perante a isonomia. Segue-se que
o problema das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da igualdade não se
adscreve aos elementos escolhidos como fatores de desigualação, pois resulta da conjunção
deles com a disparidade estabelecida nos tratamentos jurídicos dispensados. Esclarecendo
melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério
discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço
desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função
da desigualdade afirmada. [...] Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada,
procede afirmar: é agredida a igualdade quanto o fator diferencial adotado para
qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a
inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do
gravem imposto. Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério
especificador escolhido pela lei a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica –
a dizer: o fator de descriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia,
necessita inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que
dele resulta. [...] Em síntese, a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou
desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadores de uma categoria
de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o
regime dispensado aos que se inserem na categoria diferençada62 – destacou-se.

62 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 37/39.

46
O Ministro Alexandre de Moraes63 e José Joaquim Gomes Canotilho64 também são
partidários da tese de que as distinções estabelecidas por lei devem encontrar justificativa
razoável à luz da finalidade pretendida com a desequiparação. Assim também a posição
do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 640.905:

[…] 2. A isonomia sob o ângulo da desigualação reclama correlação lógica entre o fator de
discrímen e a desequiparação procedida que justifique os interesses protegidos na
Constituição (adequada correlação valorativa). 3. A norma revela-se antijurídica, ante as
discriminações injustificadas no seu conteúdo intrínseco, encerrando distinções não balizadas
por critérios objetivos e racionais adequados (fundamento lógico) ao fim visado pela
diferenciação (RE 640.905, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário do STF, j. em 15.12.2016).

A esse respeito, o próprio art. 16, § 11, in fine, da Lei nº 8.429/1992, fornece qual
foi a correlação lógica adotada e o fim pretendido pela norma: o bloqueio de contas
bancárias deve ser a última opção na indisponibilidade de bens como forma de “garantir a
subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo”.

A justificativa dada, todavia, não representa um vínculo racionalmente razoável


entre o regime jurídico distintivo (nova ordem de preferência para constrição) e o critério
de discrímen escolhido (ser réu em ação de improbidade), pois a subsistência da parte
demandada e a manutenção da atividade empresária são valores que também estão
presentes no cotidiano do devedor que é réu em uma ação de natureza diversa.

Vale dizer, um empresário que responde a um passivo trabalhista também goza


do direito à subsistência pessoal e à manutenção de sua atividade empresária, pois tais
valores são constitucionalmente tutelados como faceta do princípio da dignidade da
pessoa humana e das diretrizes da ordem econômica nacional (arts. 1º, III, e 170, caput,
da Constituição Federal).

63 A desigualdade na lei produz-se quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas
diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma
justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em
relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso razoável relação de proporcionalidade entre os
meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos
(MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 112/113).
64 Existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não
tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer distinção jurídica sem um fundamento razoável (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 419).

47
O fundamento apresentado pela lei não se consubstancia em nexo de
causalidade lógico que tenha o condão de justificar o porquê do benefício ser extensível
apenas aos réus em ações de improbidade, até porque a indisponibilidade de bens não
consiste em medida executória propriamente dita 65.

Por fim, com relação ao terceiro teste, tem-se que o regime jurídico desigual
estabelecido por lei deve promover os valores tutelados constitucionalmente. Ou seja, a
desequiparação estatuída pela lei deve ser feita visando a prestigiar determinada norma
da Constituição Federal, conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão
somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial
acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida,
desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na
Constituição [...] As vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser
conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis
com os interesses acolhidos no sistema constitucional. [...] Deveras, a lei não pode atribuir
efeitos valorativos ou depreciativos a critério especificador em desconformidade ou
contradição com os valores transfundidos no sistema constitucional ou nos padrões
ético-sociais acolhidos neste ordenamento. [...] De logo, importa, consoante salientado,
que haja correção lógica entre o critério desigualador e a desigualdade de tratamento.
Contudo, ainda se requer mais, para lisura jurídica das desequiparações. Sobre existir nexo
lógico, é mister que este retrate concretamente um bem – e não um desvalor – absorvido no
sistema normativo constitucional [...] Não é qualquer fundamento lógico que autoriza
desequiparar, mas tão só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na
ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário 66
– destacou-se.

A alteração promovida no art. 16, § 11, da Lei nº 8.429/1992 não se coaduna com
o texto da Constituição Federal. Ao contrário, quando mitigou a efetivação das medidas
cautelares que visam garantir o ressarcimento ao erário, acabou por se distanciar do
mandamento do art. 37, caput e § 4º, que traduz nítida opção do constituinte originário em

65 “A medida de indisponibilidade de bens, prevista no art. 7º, parágrafo único, da Lei 8.429/1992, não se equipara a expropriação do
bem, muito menos se trata de penhora, limitando-se a impedir eventual alienação” (REsp 1.260.731, Relª. Minª. Eliana Calmon,
Segunda Turma do STJ, j. em 19.11.2013). “O estado de indisponibilidade significa a paralisação de quaisquer possibilidades de
alienação de bens (venda, permuta, dação em pagamento, doação, etc.), sua estagnação provisória, preventiva, de eventual
consumição ou transmissão, com o fito de assegurar o definitivo perdimento (se de enriquecimento ilícito provierem) ou o
ressarcimento integral do dano (nas hipóteses do art. 10). (FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina, legislação e
jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 366/367).
66 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 17, 18, 42,
43 e 44. Nesse mesmo sentido: MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 9. ed. São
Paulo: Atlas, 2013, p. 112-113; EFFTING, Patrícia Uliano. A finalidade do princípio da igualdade: a nivelação social – interpretação dos
atos de igualar. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 88/89.

48
rechaçar as condutas de má gestão da coisa pública, tanto que o próprio caput menciona
a moralidade e a eficiência como vetores axiológicos.

Nesse cenário, não é minimamente coerente sustentar que o art. 37, § 4º, da
Constituição Federal seja compatível com ideias que em alguma medida enfraqueçam a
proteção da probidade, pois o comando que dele emana é diametralmente oposto. Há
verdadeira ordem do constituinte ao legislador infraconstitucional para que sejam editadas
leis que efetivamente ofereçam instrumentos de garantia nessa seara.

Como a indisponibilidade de bens é medida que reflete diretamente na


recomposição de dano causado ao erário, fato aliás reconhecido pelo próprio caput do art.
16 da Lei nº 8.429/1992, não pode o Poder Legislativo se valer de estratagemas ou
subterfúgios hermenêuticos para se afastar do mandamento constitucional, ainda que sob
a alegação de tutelar a subsistência pessoal e a manutenção da atividade empresária.

Para Roberto Lima Santos, não é apenas o art. 37, § 4º, da Constituição Federal
que impede alterações legislativas de enfraquecerem os mecanismos de proteção à
probidade administrativa, pois a incompatibilidade também decorreria:

(i) do princípio republicano (art. 1º, caput); (ii) do princípio democrático (art. 1º, par. único); (iii)
de seus fundamentos (art. 1º, incisos I a V: soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa
humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político); (iv) dos
objetivos fundamentais da República (art. 3º, incisos I a IV: construir uma sociedade livre,
justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); (v) da
prevalência dos direitos humanos e da defesa da paz nas suas relações internacionais (art.
4º, I e VI); e (vi) dos demais princípios constitucionais administrativos, previstos no caput do
art. 37 (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) 67.

De fato, a Constituição Federal possui diversos dispositivos prestigiando a


probidade da Administração Pública, aos quais se acresce, além dos já citados, também
os arts. 14, § 9º, 15, V, e 85, V.

67 SANTOS, Roberto Lima. Direito fundamental à probidade administrativa e as convenções internacionais de combate à corrupção.
Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012. Acesso em: 29 nov. 2021.

49
Não à toa, a doutrina contemporânea tem conferido a dimensão de verdadeiro
direito fundamental à probidade administrativa, como, por exemplo, Ingo Sarlet 68, Waldo
Fazzio Júnior69, Juarez Freitas70 e Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves71.

Essa constatação não é uma realidade apenas no ordenamento jurídico


doméstico, pois como demonstra André de Carvalho Ramos “a tutela da probidade
administrativa não é mais um imperativo meramente nacional, mas sim internacional,
baseado na análise de diplomas normativos internacionais, explicitando o fundamento
atual dessa internacionalização do combate a práticas de corrupção, que é a
implementação de direitos humanos”72.

Se o art. 37, § 4º, da Constituição Federal já não deixava nenhuma dúvida sobre a
impossibilidade de legislação ordinária infirmar a higidez da proteção da probidade
administrativa, muito mais certeza se tem disso mediante a interpretação sistêmica dos
seus dispositivos esparsos aliada aos compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil, que refletem a verdadeira mens legis desse documento.

Logo, reputa-se que a ordem de preferência de indisponibilidade de bens prevista


no art. 16, § 11, da Lei nº 8.429/1992 falha em todos os requisitos necessários para que a
desequiparação realizada seja constitucional à luz do princípio da isonomia.

68 SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
69 Os direitos subjetivos a prestações estatais em sintonia com os direitos republicanos incluem o direito de todos à administração da
coisa pública secundum legem, sob o referencial da probidade (FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina,
legislação e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 14/15).
70 Para o autor, o direito à probidade é composto pelo “direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de
seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade
por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações
administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem” (FREITAS, Juarez. Discricionariedade
administrativa e o direito fundamental à boa administração. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 22 e 42).
71 “Os Poderes Legislativo e Executivo, no Brasil, teimam em não aceitar aquilo que o nosso texto constitucional tem de mais
contemporâneo, vale dizer, o seu forte conteúdo normativo, a sua vocação para criar direitos fundamentais de plena e imediata fruição
– no caso, o direito fundamental à probidade – e a consagração, fruto da experiência constitucional norte-americana, de ampla
possibilidade de intervenção do Poder Judiciário na garantia de tais direitos fundamentais” (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério
Pacheco. Improbidade administrativa. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 859).
72 RAMOS, André de Carvalho. O combate internacional à corrupção e a lei da improbidade. In: SAMPAIO, José Adércio Leite et al.
(org.). Improbidade Administrativa: comemoração pelos 10 anos da Lei 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 7.

50
6. Pedidos nas ações de improbidade administrativa

6.1. Formulação de pedidos subsidiários

As inovações legislativas do procedimento da ação de improbidade administrativa


passaram a mesclar institutos próprios do direito processual civil com requisitos de
manifesta inspiração penal – por vezes oferecendo garantias processuais ainda mais
protetivas ao agente ímprobo do que ao réu em ação penal.

Nesse contexto, chamou a atenção dos intérpretes os requisitos que por diversas
vezes foram repetidos no art. 17 da Lei nº 8.429/1992 para a individualização da conduta
e do tipo ímprobo a que é enquadrada:

Art. 17 […]
§ 6º A petição inicial observará o seguinte:
I – deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que
demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo
impossibilidade devidamente fundamentada;
[…]
§ 10-C. Após a réplica do Ministério Público, o juiz proferirá decisão na qual indicará com pre-
cisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado
modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor.
§ 10-D. Para cada ato de improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado
apenas um tipo dentre aqueles previstos nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei.
[…]
§ 10-F. Será nula a decisão de mérito total ou parcial da ação de improbidade administrativa
que:
I – condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial;

Relevante parcela dos operadores jurídicos se apressou em concluir que o pedido


subsidiário teria sido extinto: apenas um tipo ímprobo poderia ser indicado por conduta
descrita73. A costumeira prática dos legitimados ativos da Lei Improbidade Administrativa
73 “Após o oferecimento da contestação possível dois caminhos processuais: a-) julgamento conforme o estado do processo, sempre
analisando a eventual ausência de ato de improbidade e; b-) poderá haver a divisão da demanda, considerando a quantidade de
litisconsortes passivos. Não sendo o caso de nenhuma das opções e após a réplica do Ministério Público deverá haver uma precisa
indicação, pelo magistrado, dos fatos a serem apurados e a sua respectiva tipificação (arts. 9º, 10 e 11, da Lei de Improbidade). Mas
aqui há uma limitação no sentido de haver apenas a indicação pelo magistrado, seguindo o que delimitado na inicial, posto que a lei
veda, expressamente, a modificação do fato principal e da capitulação legal. Claro que adequada a opção legislativa que evita que o
julgador passe a atuar complementando a atuação do acusador, violando assim sem dúvida o sistema acusatório e a paridade de
armas. Aqui há inovação digna de aplausos e sempre condenada nas edições anteriores que era os pedidos sucessivos do Ministério
Público: ‘se não for condenado pela violação a art. 9º da Lei de Improbidade que seja pelo 10 ou pelo menos pelo 11’. Atirando para
todo e qualquer lado, em violação até mesmo à razoabilidade e, principalmente ao exercício da ampla defesa. Ora, se nem o Autor
sabe qual o artigo foi violado como sequer permitir o ajuizamento da ação de improbidade? Havia a claro excesso de exigir uma
atuação desproporcional da defesa. A lei passa a vedar tal prática expressamente e de forma acertada: § 10-D [...]” (GAJARDONI,

51
de requerer o enquadramento no tipo mais gravoso e, subsidiariamente, em artigo cujas
sanções são mais brandas74 teria sido, assim, extirpada pela nova Lei.

Passando ao largo das eventuais inconstitucionalidades da nova Lei, o cerne de


tal conclusão parece ser a redação do § 10-D do art. 17 da Lei de Improbidade
Administrativa, antes transcrito, que determina a correspondência de apenas um tipo
ímprobo para cada conduta atribuída ao réu.

Leitura mais aprofundada da Lei nº 8.429/1992, no entanto, leva-nos à conclusão


que tal dispositivo é direcionado não ao legitimado ativo na elaboração da petição inicial,
mas ao magistrado na condução da ação de improbidade 75. São três as razões principais,
que entre si dialogam e complementam: (i) a lógica procedimental interna prevista pela
nova lei; (ii) a vontade do legislador expressa no parecer do Relator do projeto de lei; (iii) a
necessidade de interpretação sistemática com o Código de Processo Civil.

É que a nova redação do art. 17 traça uma ordem lógica da ação destinada à
imposição de sanção pela prática de ato de improbidade administrativa. A partir do § 4º-A,
o dispositivo trata da competência para o processamento e na sequência, no § 5º, dispõe
sobre critério de prevenção – ambas questões prévias ao ajuizamento da ação. A ordem
lógica segue para abordar a petição inicial nos §§ 6º, 6º-A; o despacho inaugural nos §§
6º-B e 7º; a resposta do réu nos §§ 9º-A, 10-A; o despacho “saneador” nos §§ 10-B e 10-
C; e a sentença nos §§ 10-E e 10-F.

A norma do § 10-D do art. 17 está então inserida entre duas outras disposições
que ordenam a atuação do Estado-Juiz na condução da ação de improbidade – o
dispositivo que o antecede trata do despacho saneador do magistrado, que deverá indicar
Fernando da F; CRUZ, Luana P. de F; GOMES JUNIOR, Luiz M; FAVRETO, Rogério. Comentários à Nova Lei de Improbidade
Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2022. Capítulo V. Do Procedimento Administrativo e do Processo Judicial. Art. 17-A.
Página RL-1.9.).
74 “O pedido será o de aplicação das penalidades previstas no art. 12 na forma e gradação em que o fato se subsumir à modalidade
de improbidade administrativa verificada pela sentença. Impensável o cúmulo de condenações idênticas, resolvendo-se a questão pelo
princípio da especialidade. Assim, se o ato ao mesmo tempo é de prejuízo ao erário e atentado aos princípios da Administração
Pública, verificado o primeiro deverão ser infligidas as penalidades concernentes ao mais grave, abrangente o específico, de modo que
a cumulação dos fundamentos jurídicos do pedido permita a aplicação das penalidades subsidiariamente. Essa operação evita que o
fundamento jurídico da pretensão seja um e a sentença reconheça a existência de outro, gerando possível improcedência da ação por
desconformidade do libelo (pedido) com a sentença.” (MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 328).
75 A Nota Técnica 01/2021, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, chegou à mesma conclusão.

52
o tipo ímprobo imputável ao réu, enquanto o dispositivo seguinte aborda a sentença, que
não poderá condenar o agente público senão por tipo indicado na petição inicial. Na
ordem lógica traçada, as regras sobre a petição inicial estão dispostas com bastante
antecedência, nos §§ 6º e 6º-A.

Sabe-se que a interpretação topográfica, embora admitida como norte


interpretativo pela jurisprudência 76, não é critério de grande substância hermenêutica.
Exemplos são vários de má técnica legislativa, que por certo não têm o condão de
determinar a interpretação dos operadores jurídicos.

No entanto, interpretar a norma do § 10-D do art. 17 como direcionada ao


legitimado ativo causaria também problema lógico no procedimento da ação de
improbidade. Qual razão haveria para o juiz ter de indicar, antes da sentença, “com
precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe
vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor”? Caso
fosse dado ao autor indicar apenas um tipo ímprobo para cada conduta, tal indicação
prévia pelo magistrado seria desnecessária, pois a tipificação do ato de improbidade já
seria aquela imputada na petição inicial. Apenas restaria ao juízo, nessa lógica, julgar
improcedente a lide caso discordasse da tipificação oferecida pelo autor.

Veja-se que, ao contrário do disposto no § 10-D, o § 6º, I, ao tratar da petição


inicial, não exige “apenas um tipo dentre aqueles previstos nos arts. 9º, 10 e 11”, mas tão
somente a demonstração de sua ocorrência e autoria. A interpretação que nos parece
correta, aqui, é que permanece a possibilidade de se indicar na petição inicial que a
mesma conduta se enquadra em diferentes tipos ímprobos. O magistrado, após
oportunizar o contraditório, indicará qual é o tipo, dentre os diferentes indicados pelo
autor, que se enquadraria ao caso concreto, delimitando então os pontos controvertidos
para a instrução do processo.

Essa conclusão é reforçada pela leitura do Parecer do Deputado Relator do


Projeto de Lei nº 2.505/2021, que restou aprovado pelo Congresso Nacional:

76 Vide HC 110.946, Rel. Min. Ayres Britto, Segunda Turma do STF, j. em 29.11.2011.

53
[...] O texto do PL 10.887/2018 apresentado buscou como premissas:
1) incorporar ao texto da Lei n° 8.429/92 a jurisprudência já assentada pelo STJ;
2) compatibilizar o texto da atual Lei n° 8.429/92 com o CPC, com a Lei Anticorrupção e com
a LINDB; [...]
Ainda com relação ao artigo 17, foram acrescidos os §§ 10 a 15 e §20, que impõem ao
Magistrado que indique com precisão a tipificação do ato de improbidade –
permitindo que o réu exerça sua defesa sabendo precisamente do que está sendo
acusado –, bem como promova as produções das provas indicadas pelo réu,
promovendo a sua ampla defesa [...]
Deve-se exigir, ainda, que a inicial da ação de improbidade já contenha as provas ou
indícios da prática do ato ímprobo, inclusive sob pena de litigância de má-fé, nos termos dos
art. 79 a 81 do Código de Processo Civil, com a necessidade, também, de que a petição já
traga a exposição do ato de improbidade com todas as suas circunstâncias, a descrição da
conduta imputada ao agente e a específica pretensão sancionatória, observado sempre o
princípio da proporcionalidade – destacou-se.

O objetivo de tal dispositivo é impor dever ao magistrado, para oportunizar melhor


exercício da ampla defesa pelo réu. Ao autor é lícito efetuar pedidos sucessivos, mas o
magistrado deverá, em despacho saneador, indicar qual dos tipos ímprobos, desde que
requerido pelo autor, será alvo da instrução e do posterior julgamento.

Embora uma das razões originais da reforma à Lei nº 8.429/1992 fosse sua
adaptação à jurisprudência assentada pelo Superior Tribunal de Justiça, fato é que sua
versão final teve o efeito contrário de justamente afastar diversas interpretações
pacificamente adotadas pelas cortes brasileiras 77.

As novidades procedimentais ora analisadas não fogem dessa lógica. Há ampla


jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admitindo pedido genérico ou a alteração
da capitulação legal pelo magistrado em ações para imposição de sanções pela prática de
ato de improbidade administrativa. Cita-se, por exemplo, os REsps 964.920, 842.428,
1.192.583, 1.711.160, entre outros.

A doutrina78, em sua maior parcela, também defendia a possibilidade de


condenação em capitulação legal diversa sob o postulado iura novit curia que vige no

77 Leonardo Bruno Pereira de Moraes relacionou diversos entendimentos do STJ contrariados pela Lei nº 14.230/2021 ( A nova Lei de
Improbidade Administrativa e o Superior Tribunal de Justiça, Conjur, nov. 2021).
78 HOLANDA JR., André Jackson de; TORRES, Ronny Charles L. de. Improbidade Administrativa: Lei n.º 8.429/1992; NEVES, Daniel
Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa: Direito Material e Processual;
NEIVA, José Antonio Lisboa. Improbidade administrativa: estudo sobre a demanda na ação de conhecimento e cautelar; GARCIA,
Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa.

54
direito processual civil brasileiro – ainda que as partes devam indicar os fundamentos de
fato e de direito, o juiz sempre ficou vinculado apenas aos argumentos de fato, mas não
quanto ao direito a ser aplicável ao caso.

Parcela minoritária da literatura especializada 79, porém, reagia advogando a


relativização de tal postulado nas ações de improbidade, tendo em vista seu caráter
sancionador, e uma maior aproximação com os procedimentos criminais.

Na esteira das demais alterações que contrariam a jurisprudência do STJ, assim


como pela justificativa apresentada pelo Deputado-Relator do projeto legislativo que deu
origem à Lei nº 14.230/2021, parece-nos que o objetivo das comentadas alterações
procedimentais não foi limitar o pedido subsidiário, mas mitigar a liberdade do magistrado
na qualificação jurídica dos fatos apresentados pelo autor da ação de improbidade.

Como já mencionado, vigem no Direito Processual Civil pátrio os brocardos do


iura novit curia e mihi factum dabo tibi ius80, assim como a teoria da substanciação. “Na
teoria da substanciação acolhida pelo sistema processual brasileiro, o juiz está vinculado
aos fatos narrados na petição inicial, não podendo decidir com fundamento em outros,
mas é sempre livre para aplicar o direito conforme seu entendimento, porque iura novit
curia.”81. A reforma promovida pela Lei nº 14.230/2021, aliás, expressamente fez constar
no art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa que a ação é regida pelo Código de
Processo Civil, salvo no que for incompatível com a norma especial.

Deve-se buscar, portanto, interpretação sistemática entre a Lei nº 8.429/1992 e o


Código de Processo Civil. Onde não há antinomia expressa, é dever do intérprete buscar
a compatibilização das diversas normas num sistema único e coerente.

79 SOUZA, Guilherme Carvalho e. Improbidade e o princípio da congruência: a necessidade de revisitar a jurisprudência; CAMPOS,
Valdir de Carvalho; NASCIMENTO, Matheus Canela do. Causa de pedir e pedido na ação de improbidade administrativa e aplicação da
ação rescisória quando da sentença que não reconheceu a inépcia da inicial.
80 Neste ponto, cumpre agradecer o diálogo e os apontamentos do Promotor de Justiça Rogério Rudiniki Neto.
81 DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 352.

55
Já abordamos que o § 6º, I, do art. 17, ao tratar da petição inicial, não exige
“apenas um tipo dentre aqueles previstos nos arts. 9º, 10 e 11”, mas apenas a
demonstração de sua ocorrência e autoria, ao revés do que dispõe o § 10-D do mesmo
artigo – que entendemos ser direcionado ao magistrado. Não se vislumbra, pois, vedação
direcionada ao autor para que indique mais de um tipo ímprobo para cada conduta.

Ademais, o Código de Processo Civil expressamente prevê em seu art. 326 a


possibilidade de pedido sucessivo ou subsidiário. Não há razão jurídica para se vislumbrar
conflito normativo entre o Código de Processo Civil e a Lei de Improbidade Administrativa,
especialmente quando esta prevê de maneira expressa a aplicação subsidiária daquele.

Laura Mendes Amando de Barros destaca, a propósito, que a possibilidade de


formulação de pedidos alternativos, sucessivos ou subsidiários representa garantia
processual fundamental decorrente dos princípios da economicidade e efetividade da
atividade jurisdicional, a qual é incumbida, ao final e ao cabo (e após plena produção
probatória), de “dizer o Direito”. Logo, qualquer subversão dessa lógica determina
rachadura estrutural na sistemática e dinâmica processuais, na medida em que pretende
transferir ao pleiteante função típica, histórica e intransferível do juiz 82.

Desse modo, este Centro de Apoio perfilha o entendimento de que o novo § 10-D
do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa é direcionado ao magistrado em seu
despacho saneador, permanecendo a possibilidade – e a conveniência – de se apresentar
pedidos de tipificação subsidiária nas ações regidas pela Lei nº 8.429/1992.

6.2. Cumulação de pedidos

Com o advento da nova redação do art. 17-D da Lei nº 8.429/1992, a


possibilidade de cumular a responsabilização por atos ímprobos com pedidos
condenatórios e declaratórios correlatos foi aparentemente colocada em cheque, em
razão de ter sido estabelecido que as ações de improbidade administrativa são voltadas
unicamente à aplicação de sanções de caráter pessoal.
82 BARROS, Laura Mendes Amando de. A gritante antijuridicidade contida na nova Lei de Improbidade Administrativa, Conjur, nov.
2021.

56
Os dispositivos ainda vedam categoricamente o seu ajuizamento para o controle
de legalidade de políticas públicas, proteção do patrimônio público e de outros interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos, indicando a Lei nº 7.347/1985 como o
estatuto de regência dessas pretensões:

Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório,


destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação
civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a
proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos.

Parágrafo único. Ressalvado o disposto nesta Lei, o controle de legalidade de políticas


públicas e a responsabilidade de agentes públicos, inclusive políticos, entes públicos e
governamentais, por danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou
coletivo, à ordem econômica, à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais,
étnicos ou religiosos e ao patrimônio público e social submetem-se aos termos da Lei nº
7.347, de 24 de julho de 1985.

Apesar de ainda não existirem manifestações pormenorizadas sobre os limites da


cumulação de pedidos no paradigma inaugurado pela Lei nº 14.230/2021, os excertos
doutrinários disponíveis até o momento dão especial ênfase sobre o cunho punitivo que a
ação de improbidade administrativa passou a ter, o que, para alguns, pode ser
considerado como indicativo de que postular o sancionamento de atos ímprobos em
conjunto com pretensões de outra natureza não será mais tolerado:

No mais aqui também andou bem o legislador e impedir a desvirtuação do uso da ação de
improbidade administrativa para o controle de políticas públicas. Dito de outro modo, inviável
a sua utilização para o controle de legalidade de políticas públicas e a responsabilidade de
agentes públicos, inclusive políticos, entes públicos e governamentais, por danos ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, à ordem econômica, à ordem
urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio
público e social que submetem-se exclusivamente aos ditames e ao procedimento da Lei nº
7.347, de 24 de julho de 198583.

O que se pretendeu dizer é que a ação de improbidade não pode ter por objetivo tutelar
ilícitos civis e resguardar tais bens jurídicos, o que realmente procede 84.

83 GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Comentários à nova lei de improbidade administrativa: lei 8.429/1992, com as alterações
da lei 14.320/2021 [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
84 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência [livro eletrônico]. 3. ed.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

57
O afastamento da improbidade administrativa da esfera cível, com distanciamento da ação
civil pública prevista na Lei nº 7.347/85, está expresso categoricamente no art. 17-D […] A lei
é muito clara não só em abrigar a improbidade administrativa no campo do Direito
Administrativo Sancionador, como em afastar qualquer similaridade com a ação civil pública,
expressando que não é seu propósito efetuar o controle de legalidade dos atos
administrativos, tutelar o patrimônio público e social e outros objetivos típicos de uma ACP
[…] A legislação avançou bem nesse ponto, pois com sua nova redação espera-se que as
ações de improbidade administrativa priorizem de fato a aplicação das penas, relegando o
ressarcimento ao papel acessório que lhe cabe em uma ação dessa natureza. […] Ao lado
disso, como a ação de improbidade administrativa é exclusivamente sancionatória e
repressiva, nos termos do artigo 17-D, inexiste qualquer possibilidade de em seus autos
emergir uma ação civil pública com um propósito indenizatório e/ou de controle da legalidade
dos atos administrativos. […] é incompatível com a improbidade administrativa qualquer pleito
relativo a uma ação civil pública85.

No entanto, este Centro de Apoio entende que o dispositivo em voga não tem o
condão de impedir a cumulação de pedidos.

A matéria, que tradicionalmente é regulada pelo art. 327 do Código de Processo


Civil, elenca três requisitos para que a formulação conjunta de pretensões seja
considerada lícita, destacando-se a necessidade de que o procedimento de cada um dos
pedidos seja compatível entre si:

Art. 327. É lícita a cumulação, em um único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos,
ainda que entre eles não haja conexão.
§ 1º São requisitos de admissibilidade da cumulação que:
I – os pedidos sejam compatíveis entre si;
II – seja competente para conhecer deles o mesmo juízo;
III – seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento.
§ 2º Quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento, será admitida a
cumulação se o autor empregar o procedimento comum, sem prejuízo do emprego das
técnicas processuais diferenciadas previstas nos procedimentos especiais a que se sujeitam
um ou mais pedidos cumulados, que não forem incompatíveis com as disposições sobre o
procedimento comum.

Sob essa perspectiva, a responsabilização por atos ímprobos se revela uma


pretensão perfeitamente cumulável com pedidos de natureza declaratória, condenatória e
constitutiva, na medida em que o procedimento aplicável a todos eles é, a rigor, o comum.

85 POZZO, Augusto Neves dal; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta de. Lei de improbidade administrativa reformada [livro eletrônico].
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

58
Para a ação de improbidade, o apontamento decorre tanto da atual 86 quanto da
antiga87 redação do art. 17, caput, da Lei nº 8.429/1992, embora, nessa última hipótese,
tenha sido utilizada a expressão rito ordinário, nomenclatura equivalente da época. Já
para as demais pretensões, como o Código de Processo Civil não lhes designou nenhum
procedimento especial, deve ser aplicado o procedimento comum, nos termos do que
dispõe o seu art. 31888.

Não se ignora que determinada corrente doutrinária defende ser especial o


procedimento previsto na Lei nº 8.429/1992, pois, na prática, existem algumas
particularidades em relação aos ritos do Código de Processo Civil. É a posição de Calil
Simão, Marino Pazzaglini Filho, e Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho
Rezende Oliveira, respectivamente:

Hodiernamente não se pode mais ignorar que a Lei de Improbidade Administrava não tenha
implementar um procedimento especial para apuração do actus improbus. Aquele que a essa
tese se filiar estará contrariando dispositivos expressos da Lei nº 8.429/92 89.

A LIA impropriamente afirma que a ação civil de improbidade administrativa terá o rito
ordinário. Ora, o art. 17 já contem normas procedimentais diversas da prevista no
procedimento comum, tais como defesa preliminar e juízo prévio de admissibilidade. A ação
civil de improbidade administrativa, pois, caracteriza-se pela especialidade de seu rito
processual. É induvidoso que o processo civil referente à improbidade administrativa
concretiza-se ou exterioriza-se por meio de procedimento especial de jurisdição contenciosa.
E sua especialidade em relação ao procedimento comum é acentuada, de forma notória,
quanto à fase inicial, de cunho condenatório, de admissibilidade da ação de improbidade
administrativa90.

O mesmo dispositivo [art. 17 da Lei nº 8.429/1992] que prevê a legitimidade ativa exclusiva do
Ministério Público também prevê que o procedimento da ação de improbidade administrativa
será o comum. Na redação originária a menção era a procedimento ordinário. Em meu
entendimento, um erro continuado, já que o procedimento era e continua a ser especial 91.

A Lei de Improbidade Administrativa instituiu um processo próprio para a apuração e a


punição das infrações, que deve ser seguido para as ações fundadas no art. 17 da Lei n.

86 Art. 17. A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento
comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei [redação dada pela
Lei nº 14.230/2021].
87 Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro
de trinta dias da efetivação da medida cautelar [redação original da Lei nº 8.429/1992].
88 Art. 318. Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário deste Código ou de lei. Parágrafo
único. O procedimento comum aplica-se subsidiariamente aos demais procedimentos especiais e ao processo de execução.
89 SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 6. ed. Leme: Mizuno, 2022, p. 349.
90 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis,
criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 212.
91 NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade
administrativa: lei 14.230, de 25.10.2021 comentada artigo por artigo. São Paulo: Forense, 2022, p. 76.

59
8.429/92, destinadas à imposição das sanções civis públicas de responsabilidade civil
destinadas à anulação de atos administrativos e à obtenção do ressarcimento do dano
correspondente92.

Porém, ainda que se concorde com tal raciocínio, não haverá empecilho algum à
cumulação de pedidos, porque, de acordo com o § 2º do art. 327 do Código de Processo
Civil, é permitido aglutinar todas as pretensões no procedimento comum, ainda que
originalmente sejam submetidas a ritos distintos.

Inclusive, é possível aplicar as técnicas processuais diferenciadas de cada


pedido, contanto que não exista incompatibilidade com o dito procedimento comum. Trata-
se de uma maleabilidade conferida pelo Código de Processo Civil, de modo a garantir que
as idiossincrasias dos procedimentos especiais possam ser devidamente acomodadas
sob o pálio do rito comum:

O mesmo procedimento deve ser adequado para a tramitação de todos os pedidos cumulados. É
possível ao demandante cumular pedido que siga o procedimento comum com pedido
sujeito a procedimento especial, desde que o demandante opte pela adoção do
procedimento comum […] Se cada um dos pedidos cumulados se sujeita a procedimentos
especiais diferentes e não se mostra adequado o emprego do procedimento comum para todos,
então tem o juiz de oportunizar ao autor a opção por um dos pedidos, sendo-lhe vedado indeferir
desde logo a petição inicial […] A opção pelo procedimento comum não impede a utilização
das técnicas processuais diferenciadas previstas nos procedimentos especiais a que se
sujeitam um ou mais pedidos cumulados que não forem incompatíveis com as disposições
sobre o procedimento comum93 – destacou-se.

Os procedimentos previstos para todas as ações que se pretende cumular devem ser compatíveis
entre si. É possível ao autor, entretanto, utilizar-se da faculdade prevista no CPC 327 § 2º. Quando
houver previsão de ritos diferentes para as ações que se pretende cumular, será admissível a
cumulação desde que o autor opte por imprimir o rito comum a todos eles, renunciando à
especialidade de um dos pedidos. Todavia, fica expressamente autorizado pelo CPC o uso de
técnicas processuais diferenciadas que façam parte do próprio procedimento especial,
desde que não sejam incompatíveis com o procedimento comum 94 – destacou-se.

92 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e patrimônio
público. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 217.
93 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado [livro eletrônico]. 4.
ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
94 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado [livro eletrônico]. 6. ed. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2021.

60
É justamente por essa razão que a doutrina majoritária, a despeito dos
posicionamentos isolados em sentido contrário 95, sempre defendeu ser viável a tramitação
conjunta da ação de improbidade com pedidos de natureza diversa. Confira-se:

A ação por improbidade administrativa não necessita, todavia, revestir unicamente cunho
condenatório, podendo também comportar pedido de desconstituição do ato administrativo
viciado96.
Tem-se, dessa forma, a possibilidade de cumulação de pedidos em sede de ação de
improbidade, sempre que tal solução se apresentar a mais adequada ou necessária à tutela
do patrimônio público. Ordinariamente, se terá o cúmulo de pretensões condenatórias e
constitutivas […] O aludido cúmulo de pedidos, ressalta-se, não representa nenhuma
novidade em matéria de proteção ao patrimônio público em face do que já dispõem os arts.
1º, 11 e 14 da Lei da Ação Popular, amoldando-se ao art. 292 do CPC. Adite-se que a
cumulação de pedidos em ações civis públicas, inclusive nas ações de improbidade
administrativa, vem sendo amplamente admitida pelo STJ, o que se faz em homenagem aos
princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual e a fim de evitarem-se
decisões contraditórias97.

Observadas as condições específicas do Código de Processo Civil (compatibilidade de


pedidos, identidade do juízo competente e observância do mesmo procedimento), não há
óbice à cumulação. Depois, pelo Código de Processo Civil (art. 292, § 2º), se adotado o
procedimento ordinário, a cumulação de pretensões se viabiliza, na medida em que nenhum
prejuízo causa à defesa do réu, que não padece de qualquer redução ou transtorno na sua
aptidão para resistir. […] Portanto, a ação civil pública de improbidade administrativa
comporta qualquer espécie de provimento judicial: declaratório, constitutivo, desconstitutivo,
condenatório e mandamental98.

A jurisprudência também se consolidou no mesmo sentido, o que pode ser


demonstrado pela recente divulgação do Enunciado nº 1 da Jurisprudência em Teses nº
186, promovida pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “é lícita a cumulação de
pedidos de natureza condenatória, declaratória e constitutiva na ação civil pública por ato
de improbidade administrativa”.

Aliás, a Corte Cidadã reiterou o seu entendimento sobre o assunto no julgamento


do Tema 1.089 de Recursos Repetitivos, ocasião em que autorizou o prosseguimento da

95 “Assim, não pode o autor cumular um pedido, que seria processado por um procedimento especial obrigatório, com outro, qualquer
que seja o procedimento a ele pertinente. São exemplos: inventário e partilha, ação de improbidade administrativa, interdição,
desapropriação, ações de controle concentrado de constitucionalidade das leis” (DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual
civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo do conhecimento. 20. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 666).
96 DECOMAIN, Pedro Roberto. Improbidade administrativa. São Paulo: Dialética, 2007, p. 293.
97 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 980/981.
98 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.
450/451.

61
ação de improbidade para pleitear o ressarcimento ao erário, mesmo quando prescritas
as demais sanções do art. 12 da Lei nº 8.429/1992:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA DE


NATUREZA REPETITIVA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO QUANTO AO PEDIDO DE IMPOSIÇÃO DE
SANÇÕES PREVISTAS NO ART. 12 DA LEI 8.429/92. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO
QUANTO À PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO DOS DANOS CAUSADOS AO ERÁRIO.
POSSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO STJ. TESE FIRMADA SOB O RITO
DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E
PROVIDO. […] V. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que se
mostra lícita a cumulação de pedidos de natureza condenatória, declaratória e
constitutiva nesta ação, quando sustentada nas disposições da Lei nº 8.429/1992 (STJ,
REsp 1.660.381/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de
26/11/2018). Nesse sentido: STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 437.764/SP, Rel. Ministro
SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 12/03/2018. […] Na ação civil pública por ato
de improbidade administrativa é possível o prosseguimento da demanda para pleitear o
ressarcimento do dano ao erário, ainda que sejam declaradas prescritas as demais sanções
previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/92 (Tema 1.089 dos Recursos Repetitivos, REsp
1.899.407, Relª. Minª. Assusete Magalhães, Primeira Seção do STJ, j. em 22.09.2021) –
destacou-se.

Tanto que em âmbito jurisprudencial é comum encontrar precedentes avalizando


a cumulação de pedidos de responsabilização por atos ímprobos com outras pretensões,
a exemplo da declaração de nulidades de atos administrativos 99 ou de
inconstitucionalidade incidental 100.

Além do mais, quando o legislador quis afastar a ação de improbidade


administrativa do procedimento comum, acrescentando ou mitigando formalidades à luz
das peculiaridades da Lei nº 8.429/1992, o fez expressamente, nos termos do que
determina o seu próprio art. 17, caput, in fine.

99 AC 0014360-90.2018.8.16.0129, Rel. Des. Luiz Mateus de Lima, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 24.11.2020; AI 0057178-
22.2019.8.16.0000, Relª. Desª. Maria Aparecida Blanco de Lima, Quarta Câmara Cível do TJPR, j. em 01.06.2020; AI
1.0514.16.003578-8/001, Rel. Des. Raimundo Messias Júnior, Segunda Câmara Cível do TJMG, j. em 03.04.2018; AI 1624099-2, Rel.
Des. Abraham Lincoln Merheb Calixto, Quarta Câmara Cível do TJPR, j. em 15.08.2017.
100 AC 0006305-55.2017.8.16.0075, Rel. Des. Nilson Mizuta, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 23.06.2020; AC 1.464.063-0, Rel.
Des. Adalberto Jorge Xisto Pereira, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 11.12.2018; AI 1.0000.21.057990-0/001, Rel. Des. Leite
Praça, Décima Nona Câmara Cível do TJMG, j. em 23.09.2021.

62
Exemplificando essa afirmação, pode-se mencionar os requisitos adicionais para
a elaboração ou recebimento da petição inicial (art. 17, § 6º, I e II 101, e §6º-B102) e para a
prolação da sentença (art. 17-C 103); o prazo diferenciado para a contestação (art. 17, §
7º104); a proibição de inverter o ônus da prova ao réu (art. 17, § 19, II 105); e a vedação de
remessa necessária (arts. 17, § 19, IV 106, e 17-C, § 3º107).

Em nenhum momento o art. 17-D contraria expressamente as disposições do


Código de Processo Civil referentes à cumulação de pedidos. O seu texto legal, ainda que
incisivo, tão somente conferiu uma finalidade exclusiva ao universo da improbidade
administrativa, qual seja, a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8.429/1992.

Porém, essa circunstância, por si só, não impede que o pedido de condenação
por atos ímprobos tramite em conjunto com outras pretensões, pois, como visto
anteriormente, o que determina a possibilidade de cumulação não é o caráter de direito
material tutelado, mas sim o cumprimento dos requisitos do art. 327, § 1º, I, II e III, do
Código de Processo Civil, notadamente a compatibilidade de procedimento.

101 § 6º A petição inicial observará o seguinte: I – deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos
que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente
fundamentada; II – será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do
dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação
vigente, inclusive as disposições constantes dos arts. 77 e 80 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
102 § 6º-B A petição inicial será rejeitada nos casos do art. 330 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil),
bem como quando não preenchidos os requisitos a que se referem os incisos I e II do § 6º deste artigo, ou ainda quando
manifestamente inexistente o ato de improbidade imputado.
103 Art. 17-C. A sentença proferida nos processos a que se refere esta Lei deverá, além de observar o disposto no art. 489 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil): I – indicar de modo preciso os fundamentos que demonstram os
elementos a que se referem os arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, que não podem ser presumidos; II – considerar as consequências práticas
da decisão, sempre que decidir com base em valores jurídicos abstratos; III – considerar os obstáculos e as dificuldades reais do
gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados e das circunstâncias práticas
que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente; IV – considerar, para a aplicação das sanções, de forma isolada ou
cumulativa: […] V – considerar na aplicação das sanções a dosimetria das sanções relativas ao mesmo fato já aplicadas ao agente; VI
– considerar, na fixação das penas relativamente ao terceiro, quando for o caso, a sua atuação específica, não admitida a sua
responsabilização por ações ou omissões para as quais não tiver concorrido ou das quais não tiver obtido vantagens patrimoniais
indevidas; VII – indicar, na apuração da ofensa a princípios, critérios objetivos que justifiquem a imposição da sanção.
104 § 7º Se a petição inicial estiver em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a citação dos requeridos para que a
contestem no prazo comum de 30 (trinta) dias, iniciado o prazo na forma do art. 231 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código
de Processo Civil).
105 § 19. Não se aplicam na ação de improbidade administrativa: […] II – a imposição de ônus da prova ao réu, na forma dos §§ 1º e
2º do art. 373 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);
106 § 19. Não se aplicam na ação de improbidade administrativa: […] IV – o reexame obrigatório da sentença de improcedência ou de
extinção sem resolução de mérito.
107 § 3º Não haverá remessa necessária nas sentenças de que trata esta Lei.

63
De fato, Teori Zavascki ensina que “a possibilidade de cumulação é questão de
natureza processual, que não altera nem compromete a natureza material do direito
lesado ou ameaçado”108.

Não por acaso, a unificação de pretensões com objetivos sensivelmente distintos


dentro do procedimento comum é algo natural, a exemplo da ação de reconhecimento de
união estável com a de inventário109, ou a de alimentos com a de divórcio110.

O que o art. 17-D, caput e parágrafo único, da Lei de Improbidade Administrativa


na verdade faz é definir qual o diploma legislativo vai reger os diferentes aspectos que
permeiam a proteção da probidade administrativa: enquanto a parte punitiva será
regulada pela Lei nº 8.429/1992, as demais pretensões serão disciplinadas pela Lei nº
7.347/1985 ou por outra lei pertinente, o que não se confunde com uma proibição de
cumular pedidos.

Essa dicotomia não é exatamente uma novidade, pois Daniel Amorim Assumpção
Neves defendia, antes mesmo do advento da Lei nº 14.230/2021, que quando a
responsabilização por atos de improbidade administrativa fosse deduzida em conjunto
com outras pretensões de natureza declaratória e constitutiva, bastaria assegurar a
observância de todas as especificidades da Lei nº 8.429/1992 no tocante aos pedidos de
caráter punitivo para garantir o regular processamento do feito:

Na realidade, o direito difuso tutelado por meio da ação regulamentada pela Lei 8.429/1992 pode
ser objeto de ação popular, de ação civil pública e de ação de improbidade administrativa. O que
importa é reconhecer as especialidades presentes na ação de improbidade administrativa.
[…] Não vejo problema em falar em ação civil pública de improbidade administrativa, desde que
se leve em conta as particularidades procedimentais, em especial a legitimação ativa limitada,
a fase de defesa prévia e o pedido de aplicação das genuínas penas, previsto no art. 12 da LIA.
[…] Entendo que para a distinção entre essas três espécies de ação coletiva deve se levar em
conta essencialmente o pedido formulado na petição inicial. Isso porque os pedidos de
natureza reparatória podem ser veiculados em qualquer uma das ações coletivas
analisadas, mas a aplicação das genuínas penas previstas pelo art. 12 da LIA só pode ser
veiculada numa ação de improbidade administrativa 111 – destacou-se.

108 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos [livro eletrônico]. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2016.
109 AI 1.0000.22.012187-5/001, Rel. Des. Marcelo Pereira da Silva, Quarta Câmara Cível do TJMG, j. em 25.08.2022.
110 AI 1.0000.21.275105-1/001, Rel. Des. Alexandre Santiago, Oitava Câmara Cível do TJMG, j. em 05.08.2022.
111 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo coletivo. 5. ed. Salvador: Juspodvm, 2021, p. 95/96.

64
O posicionamento do autor não parece ter se modificado após a superveniência
das alterações legislativas, haja vista defender que os ditames da Lei nº 8.429/1992 só
encontram aplicação na seara punitiva, não incidindo sobre as pretensões reparatórias
oriundas da prática de atos ímprobos, cuja regência continua sendo dada por outros
ramos do direito:

Não é correto considerar a ação de improbidade administrativa tão somente sancionatória.


Tem natureza híbrida: reparatória e sancionatória. A discussão não é meramente acadêmica,
porque se a premissa de criar uma série de regras processuais de maior proteção ao
réu é a natureza sancionatória da demanda, sinceramente não vejo qualquer razão para
aplicá-las naquilo que a pretensão se limita à reparação de dano sofrido pela pessoa
jurídica. Sendo possível restringir o fenômeno processual apenas à parte reparatória da
pretensão, entendo mais adequado aplicar-se as regras do microssistema coletivo do que
aquelas previstas especificamente na Lei 8.429/1992. Um exemplo. O art. 17, § 6º, II, da LIA
exige do autor a instrução da petição inicial com documentos ou justificação que contenham
indícios suficientes da veracidade dos fatos. Compreende-se, ainda que se possa criticar pelo
exagero, que o Ministério Público tenha que formar um mínimo probatório apto a, ainda que
de forma indiciária, permitir a conclusão pela possibilidade (ou seria probabilidade?) de ter
sido praticado um ato de improbidade administrativa. Não tem sentido, entretanto, exigir o
mesmo quanto aos fatos relacionados a existência de dano e/ou o seu valor. Outro exemplo.
O § 19, I, do art. 17, da LIA afasta a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor
na hipótese de revelia do réu. No meu entender, a aplicação do dispositivo deve atentar para
a natureza do fato alegado. Para aqueles que, uma vez presumidos, permitirão a conclusão
de existência do ato de improbidade administrativa, aplica-se a norma, mas qual o sentido de
sua aplicação para os fatos que versam exclusivamente sobre a existência de dano e/ou seu
valor? Por fim, outro exemplo. O art. 17, § 19, II, da LIA proíbe a adoção da distribuição
dinâmica do ônus da prova. Faz sentido quanto aos fatos relacionados à configuração ou não
do ato de improbidade, mas não parece adequada a proibição para os fatos relacionados
exclusivamente a existência de dano e/ou a fixação de seu valor 112 – destacou-se.

Calil Simão parece partilhar da mesma posição. Afirma que, embora não seja a
vocação da Lei nº 8.429/1992, é possível pleitear conteúdo declaratório, anulatório ou
reparatório quando ele for conexo com o ato ímprobo e estiver atrelado a um outro ilícito:

Por essas razões temos defendido que a ação de improbidade administrativa é uma ação
genuinamente punitiva, sendo a função reparadora acidental. E, por ser ela secundária ou
acessória, depende da principal para ser veiculada. Em outras palavras, as regras
aplicáveis à ação de improbidade administrativo são aquelas referentes ao Direito
Punitivo. Eventualmente, quando houver uma tutela reparatória agregada à tutela
punitiva, aí, sim, – mas somente referente a ela –, teríamos a aplicação das regras
respectivas da responsabilidade civil. Contudo, essas regras de maneira alguma
poderiam refletir no conteúdo punitivo […] o art. 37, § 4º [da constituição federal], o qual

112 NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade
administrativa: lei 14.230, de 25.10.2021 comentada artigo por artigo. São Paulo: Forense, 2022, p. 112.

65
determina que a legislação especial dê aplicação ao dispositivo constitucional que, por sua
vez, define o conteúdo da ação de improbidade administrativa: (a) necessariamente conteúdo
sancionatório ou punitivo; (b) subsidiariamente conteúdo declaratório, anulatório ou
reparatório quando conexo. Voltemos a reafirmar. A ação de improbidade administrava
não pode deixar de conter conteúdo punitivo; logo, só poderá conter conteúdo não
punitivo quando conexo com ele, ou seja, desde que decorra do ato de improbidade
administrativa que se objetiva punir […] Embora a ação de improbidade administrativa
implemente sanções punitivas e, excepcionalmente, sanção reparatória, pode ainda trazer
uma tutela contra o ilícito. A tutela contra o ilícito pode ser preventiva, quando visar evitá-lo,
ou, repressiva, quando visar removê-lo. […] Em razão de seu caráter repressivo, só podemos
admitir uma tutela repressiva contra o ilícito e, neste caso, voltada, em princípio, a removê-lo.
Quando o ilícito gera dano, a ação de remoção do ilícito extirpa a própria causa do dano. Não
podemos confundir essa tutela com a tutela contra o dano. A tutela contra o ilícito não repara
o dano, estando longe de representar uma tutela ressarcitória ou compensatória. É
perfeitamente possível uma tutela do ilícito ao lado da tutela punitiva e reparatória. A primeira
se volta contra o ato ilícito; a segunda, contra o agente; e a terceira, contra o dano. Haverá
casos, no entanto, em que será imprescindível uma ação contra o ilícito. É só pensarmos no
ato de improbidade gerador de dano contínuo. Neste caso, deve-se eliminar não só o dano,
mas a causa do dano (o ilícito), evitando-se novo dano113 – destacou-se.

Além do mais, a tramitação em separado dos feitos violaria diversos princípios


processuais, porquanto o reconhecimento da prática de atos ímprobos demanda a prévia
comprovação das ilegalidades elencadas na Lei nº 8.429/1992.

E, na prática, isso pressupõe demonstrar que a lei ou o ato administrativo que


embasaram a atuação do agente estão, em alguma medida, maculados, pois, do
contrário, a conduta realizada não seria ilegal. Isto é, a análise sobre a procedência ou
improcedência da ação de improbidade não pode ser feita de modo dissociado das
demais pretensões, já que a causa de pedir entre elas está profundamente imbricada.

É precisamente porque o ato ímprobo decorre da prática de um ilícito


administrativo, civil e até mesmo penal que a sua apreciação demanda, invariavelmente,
um juízo de valor sobre tais aspectos, conforme reconhece a doutrina:

Para que se chegue ao dolo desejado, ou aos requisitos da sentença, mister se faz
questionar os atos, passando por sua declaração de nulidade (quando for o caso).
Pensar o contrário levaria aos absurdos de: a) punir alguém sem que o ato tenha sido
declarado irregular, etc.; b) punir alguém sem sequer cogitar do que o agente fez e suas
consequências; c) admitir que a lei foi feita para não se chegar à punição, além do fato de ser
completamente desnecessário entrar com o processo de reconhecimento de irregularidade
prévio (seja administrativo ou judicial), para tão somente, após, ajuizar ação de improbidade.

113 SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 6. ed. Leme: Mizuno, 2022, p. 347, 356 e 503.

66
O parágrafo único diz o óbvio, qual seja, os interesses metaindividuais devem ser analisados
em ação civil pública, o que não exclui da ação de improbidade a apreciação de outras
situações114 – destacou-se.

A implementação de algumas sanções, porém, exige um pronunciamento


desconstitutivo anterior. Exemplo sempre oportuno é o da declaração de nulidade de
concurso público cumulado com ressarcimento. […] No exemplo dado, o dano, assim
considerados os gastos com o concurso público, só se apresenta se este for anulado; caso
contrário é válido e os gastos não podem ser intitulados de prejuízo material. Manter o
concurso válido, e mesmo assim deferir o ressarcimento dos fastos com a sua realização, é
conferir ao poder público uma situação favorável. Tal situação de fato é incompatível com a
finalidade da tutela ressarcitória, e, caso ocorra, configura verdadeiro locupletamento indevido
do poder público115 – destacou-se.

O ajuizamento de ações distintas para a tutela de fatos com profunda relação de


interdependência acarretaria a produção de diversos atos processuais em duplicidade,
como as petições iniciais, as contestações, as instruções probatórias e suas audiências,
as alegações finais, as sentenças, bem como uma infinidade de intimações e diligências
correlatas.

O cenário narrado promoveria verdadeira afronta à economia processual,


princípio que defende a produção da maior quantidade de resultados com a menor
atividade jurisdicional possível, bem como busca a redução do número de processos,
sempre que isso não ensejar prejuízo às partes 116.

E, para José Miguel Garcia Medina e Arruda Alvim, a cumulação de pedidos é um


clássico exemplo de como se alcançar tal objetivo:

De acordo com o princípio deve-se obter o máximo de resultado na atuação do direito com o
mínimo emprego possível de atividade jurisdicional. Manifesta-se o princípio, sob essa
perspectiva: (a) com a economia de processos, tal como se dá com o litisconsórcio, a
cumulação de pedidos etc.; e (b) com a economia de atos e formalidades, como, p. ex., não
se realizando, inutilmente, audiências ou atividades probatórias 117.

114 PINHEIRO, Igor Pereira; ZIESEMER, Henrique da Rosa. Nova lei de improbidade administrativa comentada. Leme: Mizuno, 2022,
p. 301.
115 SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 6. ed. Leme: Mizuno, 2022, p. 502.
116 “Haverá economia processual sempre que, por meio de menos atividade jurisdicional, se atingir mais ou ao menos os mesmos
resultados. Com menos atividade exercida, os órgãos jurisdicionais poderiam produzir mais, melhor e mais rápido, e com isso todo o
sistema seria favorecido. […] Alguns institutos processuais evitam a existência de processos, gerando assim uma diminuição daqueles
em trâmite. Permitem, na realidade, que apenas um processo gere o resultado que poderia ser produzido por múltiplos processos”
(NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo coletivo. 5. ed. Salvador: Editora Juspodvm, 2021, p. 149).
117 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Direito Processual Civil Moderno [livro eletrônico]. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2022.

67
Muitos procedimentos especiais foram extintos pelo CPC/2015. Em contrapartida, permitiu-se,
por um dispositivo genérico, que a parte cumule pedidos subordinados, de ordinário, a
procedimentos diversos, valendo-se das técnicas especiais previstas para os procedimentos
especiais, de modo a tornar possível a cumulação de pedido que demande procedimento
comum com outro que permita a utilização de procedimento especial, desde que a adoção de
ambos não se revele inapropriada, por incompatibilidade (cf. art. 327, § 2º, do CPC/2015). Tal
expediente presta-se a permitir a adequada tutela das pretensões levadas a juízo, somado à
instrumentalidade processual, não exigindo a pluralização de relações jurídicas processuais 118.

Pelos mesmos motivos, também haveria violação ao princípio da duração


razoável do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal 119, e nos arts. 4º
e 6º do Código de Processo Civil 120, uma vez que o fracionamento das ações atrasaria a
marcha processual sem nenhuma justificativa plausível, prolongando indevidamente o
desfecho da lide.

Cumpre esclarecer que o Código de Processo Civil de 2015 protagonizou uma


profunda reforma no ordenamento jurídico brasileiro, tendo mitigado o formalismo
exacerbado presente na codificação de 1973. De acordo com o conjunto principiológico
que rege a nova sistemática processual, deve ser dada primazia à decisão de mérito em
detrimento da observância de dispositivos de cunho eminentemente procedimentais.

É o que consta, por exemplo, no art. 76 121, que possibilita sanar vício quanto à
incapacidade processual ou à irregularidade da representação da parte antes do feito ser
extinto; no art. 139, IX122, que impõe ao magistrado determinar o saneamento dos vícios
processuais; no art. 317123, que concede à parte possibilidade de corrigir vício antes da

118 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil [livro eletrônico]. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
119 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação.
120 Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa. […] Art. 6º
Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
121 Art. 76. Verificada a incapacidade processual ou a irregularidade da representação da parte, o juiz suspenderá o processo e
designará prazo razoável para que seja sanado o vício.
122 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: […] IX – determinar o suprimento de
pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais.
123 Art. 317. Antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir
o vício.

68
decisão de resolução de mérito; e no art. 321 124, que autoriza a emenda da petição inicial
antes da declaração de sua inépcia.

Com efeito, os arts. 1º e 8º do Código de Processo Civil 125 impõem


categoricamente a observância dos valores constitucionais e o atendimento dos fins
sociais e das exigências do bem comum na aplicação do ordenamento jurídico, de sorte
que não se revela razoável extrair do art. 17-D da Lei nº 8.429/1992 comandos
normativos que contrariem essas diretrizes.

Por fim, impende destacar que os princípios do ramo do direito processual


coletivo também são aplicáveis à ação de improbidade administrativa, uma vez que,
independentemente das alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, o seu objeto
continua sendo a proteção do patrimônio público, exemplo notório de direito difuso, como,
aliás reconhece a doutrina e o próprio art. 1º, caput, da Lei nº 8.429/1992126:

Sendo uma ação de natureza civil, mas distinta da ação civil pública, resta a pergunta se a
ação de improbidade administrativa continua a fazer parte do microssistema coletivo.
Não tenho dúvida que sim. Afinal, o direito tutelado pela demanda continua sendo o mesmo,
qual seja, o patrimônio e a moralidade pública, de titularidade da coletividade e, portanto, de
natureza difusa. […] Esse reconhecimento é importante porque assim se permite a
utilização das normas do microssistema na ação de improbidade administrativa, ainda
que, em regra, de forma apenas subsidiária127 – destacou-se.

A ação de improbidade administrativa possui natureza cível, pois, ainda que a lei diga o
contrário, as suas características demonstram isso. E mais: é uma ação de natureza civil
que tutela o direito difuso à probidade administrativa, motivo pela qual integra o
microssistema da tutela coletiva brasileira. […] Assim, toda a principiologia do
microssistema coletivo incide na ação de improbidade administrativa, salvo naquilo que
a lei dispuser expressamente. E assim é porque tal postulado permite que se mantenha o
máximo de coerência sistêmica, evitando a busca de soluções em sistemas que não possuem
a mesma objetividade jurídica128 – destacou-se.

124 Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e
irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a
complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.
125 Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na
Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código. […] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento
jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e
observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
126 Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no
exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei.
127 NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade
administrativa: lei 14.230, de 25.10.2021 comentada artigo por artigo. São Paulo: Forense, 2022, p. 110/111.
128 PINHEIRO, Igor Pereira; ZIESEMER, Henrique da Rosa. Nova lei de improbidade administrativa comentada. Leme: Mizuno, 2022,
p. 158/159.

69
Nessa condição, exsurge o princípio da máxima efetividade ou da não
taxatividade, segundo o qual as ações coletivas podem pleitear provimentos jurisdicionais
de qualquer espécie: declaratórios, condenatórios, constitutivos, entre outros:

O princípio da não taxatividade deve abranger as diferentes espécies de tutela jurisdicional,


sendo possível por meio do processo coletivo a obtenção de tutelas condenatórias – de fazer,
não fazer, entregar, pagar –, constitutivas, meramente declaratórias, executivas, cautelares,
executivas lato sensu e mandamentais. E dizer que todas essas espécies de tutela
jurisdicional podem ser obtidas no processo coletivo significa que todas as diferentes
espécies de ação, veiculando os mais diversificados pedidos, serão admitidas no plano do
processo coletivo. Nesse sentido, a redação do art. 83 do CDC, ao prever expressamente a
admissibilidade de todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva
tutela dos direitos materiais, aplica-se a todas as diferentes ações coletivas 129.

Para Teori Zavascki, essa amplitude decorre da instrumentalidade inerente ao


processo, cuja finalidade precípua é tutelar o direito material em si. Assim, não faria
sentido restringir no plano processual as possibilidades de proteção dos interesses
difusos apenas para pretensões de determinada natureza, sob pena de se enfraquecer o
acesso à justiça, assegurado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal 130:

Essa conclusão, fundada em exegese literal, traz, como se percebe, consequências extremamente
limitadoras da eficácia da ação civil pública, comprometendo sua aptidão para viabilizar
adequadamente a tutela dos direitos coletivos e difusos. […] Em se tratando de interpretar norma
processual, como é o caso, deve-se ter presente que processo é instrumento de “programação do
debate judicial”, é meio para servir a um fim: a tutela do direito material. Como todo instrumento, o
processo está necessariamente submetido ao princípio da adequação: suas regras e ritos devem
adequar-se, simultaneamente, aos sujeitos, ao objeto e ao fim […] A visão teleológica do processo,
assim demarcada, é elemento essencial e decisivo para a interpretação do alcance das regras que
o compõem. Se o processo é instrumento, há de se entender que suas formas devem ser
interpretadas de acordo com a finalidade para a qual foram criadas. Ora, a ação civil pública
destina-se a tutelar direitos e interesses difusos e coletivos. Há de se entender,
consequentemente, que é instrumento com aptidão suficiente para operacionalizar, no
plano jurisdicional, a proteção ao direito material da melhor forma e na maior extensão
possível. […] A outorga de meios processuais variados (= “todas as espécies de ações”) com a
cumulação das múltiplas formas de provimento (= “proteção, prevenção e reparação”) evidenciam
a intenção do legislador de dotar o autor da ação civil pública de instrumentos com elevado grau
de aptidão para obter tutela jurisdicional a mais completa possível, segundo as circunstâncias de
cada caso. Não teria sentido imaginar que a tutela de direitos transindividuais (= difusos e
coletivos) que exigisse prestações variadas devesse ser prestada em demandas separadas,
uma para cada espécie de prestação. Isso, além de atentar contra o princípio da
instrumentalidade e da economia processual, acarretaria a possibilidade de sentenças
contraditórias e incompatíveis para a mesma situação de fato e de direito. Se a tal ônus
estivesse submetido o autor da ação civil pública, melhor seria que utilizasse, simplesmente, o

129 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo coletivo. 5. ed. Salvador: Editora Juspodvm, 2021, p. 170.
130 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

70
procedimento comum ordinário para tutelar os direitos transindividuais, já que nesse seria
permitida, sem empecilho, a cumulação aventada. Ora, não se pode negar à ação civil pública,
criada especialmente como alternativa para melhor viabilizar a tutela dos direitos difusos, o
que se permite para a tutela de todo e qualquer outro direito, pela via do procedimento
comum131 – destacou-se.

O Superior Tribunal de Justiça, com base nessa linha de raciocínio, há tempos


permite o manejo da ação civil pública para veicular pedidos das mais variadas espécies,
e não apenas aquelas constantes no art. 3º da Lei nº 7.347/1985 (condenação em
dinheiro ou em obrigação de fazer e não fazer). A Corte foi categórica ao afirmar que o
ajuizamento de uma ação específica para cada pretensão afrontaria os princípios da
instrumentalidade e da economia processual:

PROCESSO CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA TUTELA DO MEIO
AMBIENTE. OBRIGAÇÕES DE FAZER, DE NÃO FAZER E DE PAGAR QUANTIA.
POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE PEDIDOS ART. 3º DA LEI 7.347/85.
INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. ART. 225, § 3º, DA CF/88, ARTS. 2º E 4º DA LEI 6.938/81,
ART. 25, IV, DA LEI 8.625/93 E ART. 83 DO CDC. PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO, DO
POLUIDOR-PAGADOR E DA REPARAÇÃO INTEGRAL. […] 5. A exegese do art. 3º da Lei
7.347/85 (“A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de
obrigação de fazer ou não fazer”), a conjunção “ou” deve ser considerada com o sentido de
adição (permitindo, com a cumulação dos pedidos, a tutela integral do meio ambiente) e não
o de alternativa excludente (o que tornaria a ação civil pública instrumento inadequado a seus
fins). […] 7. A exigência para cada espécie de prestação, da propositura de uma ação
civil pública autônoma, além de atentar contra os princípios da instrumentalidade e da
economia processual, ensejaria a possibilidade de sentenças contraditórias para
demandas semelhantes, entre as mesmas partes, com a mesma causa de pedir e com
finalidade comum (medidas de tutela ambiental), cuja única variante seriam os pedidos
mediatos, consistentes em prestações de natureza diversa. 8. Ademais, a proibição de
cumular pedidos dessa natureza não encontra sustentáculo nas regras do
procedimento comum, restando ilógico negar à ação civil pública, criada especialmente
como alternativa para melhor viabilizar a tutela dos direitos difusos, o que se permite, pela via
ordinária, para a tutela de todo e qualquer outro direito. 9. Recurso especial desprovido (REsp
625.249, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma do STJ, j. em 15.08.2006) – destacou-se.

RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC/1973. PLANOS DE SAÚDE.


ASSOCIAÇÕES. LEI N. 9.656/1998. INCIDÊNCIA. BOLSAS DE SANGUE NECESSÁRIAS A
TRATAMENTO MÉDICO. COBERTURA DO TRATAMENTO PELO PLANO. LIMITAÇÃO DA
QUANTIDADE DE BOLSAS. IMPOSSIBILIDADE. CUMULAÇÃO DE PENALIDADE EM SEDE
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIABILIDADE. […] 6. Em ação civil pública, é admitida a condenação
do réu à obrigação de fazer ou não fazer cumulada com a de indenizar. Na interpretação do
art. 3º da Lei 7.347/85 ("A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o
cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer"), a conjunção "ou" deve ser considerada
com o sentido de adição (permitindo, com a cumulação dos pedidos, a tutela integral do
direito à saúde) e não o de alternativa excludente (o que tornaria a ação civil pública

131 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos [livro eletrônico]. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2016.

71
instrumento inadequado a seus fins). 7. Recurso especial não provido (REsp 1.450.134, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma do STJ, j. em 25.10.2016).

A propósito, tratando especificamente da ação de improbidade administrativa, a


transindividualidade que a defesa do patrimônio público e da probidade administrativa
ostenta já serviu de fundamento para o Superior Tribunal de Justiça avalizar a sua
cumulação com outros pedidos de ordem declaratória, condenatória e constitutiva:

7. A legitimidade do órgão ministerial para a atuação na defesa da sociedade abrange toda e


qualquer demanda que vise à proteção do patrimônio público. Pode valer-se da Ação Civil Pública
como objeto constitutivo negativo, não tendo esta por objeto, apenas, a condenação em dinheiro
ou em obrigação de fazer ou não fazer, sendo possível ter como objeto pedido constitutivo ou
desconstitutivo de ato jurídico. São cumuláveis os pedidos em que se pretende a condenação
pela prática de ato de improbidade administrativa, tendo em vista a natureza difusa do
interesse tutelado. 8. Também se mostra lícita a cumulação de pedidos de natureza
condenatória, declaratória e constitutiva nesta ação, quando sustentada nas disposições da
Lei nº 8.429/1992. Nesse sentido: AgInt nos EDcl no AREsp 437.764/SP, Rel. Ministro Sérgio
Kukina, Primeira Turma, julgado em 27/2/2018, DJe 12/3/2018; REsp 1.516.178/SP, Rel. Ministro
Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 23/6/2015, DJe 30/6/2015; REsp 960.926/MG,
Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 18/3/2008, DJe 1/4/2008. 9. Ademais, a
tutela do interesse público realizada pela Lei de Improbidade Administrativa não está adstrita
apenas à reparação de conteúdo econômico (ressarcimento ao erário e multa civil), prevendo-se
sanções que repercutem no interesses do réu, como a suspensão dos direitos políticos e a
proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou
creditícios. 10. A Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa tutela a ética e a boa
gestão da coisa pública, zelando pelos princípios reitores do Estado brasileiro encartados no texto
constitucional e na Lei 8.429/1992. Visa punir o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de
lealdade e boa-fé. 11. Por fim, eventual reconhecimento judicial de fato que impeça a análise do
mérito quanto a um dos pedidos formulados na Ação Civil Pública não obsta a apreciação dos
demais, considerando a independência dos pedidos e a possibilidade de apreciação desde
que sejam compatíveis entre si, haja competência do juízo e seja adequado o tipo de
procedimento em relação a todos eles (art. 292 do CPC/1973 e art. 327 do CPC/2015). […] 12.
Recurso Especial provido para afastar a alegada ilegitimidade ativa do MPE/SP, retornando os
autos à origem para processar e julgar a Ação Civil Pública (REsp 1.660.381, Rel. Min. Herman
Benjamin, Segunda Turma do STJ, j. em 21.08.2018) – destacou-se.

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO


INTERNO NOS EMBARGOS DECLARATÓRIOS NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. LEGITIMIDADE
ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEI 8.429/1992. APLICABILIDADE AOS AGENTES
POLÍTICOS. DOLO. AFERIÇÃO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE, NO
CASO CONCRETO. SÚMULA 7/STJ. PENALIDADES. ACUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE.
AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. É firme desta Corte o entendimento no sentido de que é
cabível a propositura de ação civil pública que tenha como fundamento a prática de ato de
improbidade administrativa, tendo em vista a natureza difusa do interesse tutelado. Também
mostra-se lícita a cumulação de pedidos de natureza condenatória, declaratória e
constitutiva nesta ação, porque sustentada nas disposições da Lei n. 8.429/92 ( AgInt nos EDcl
no AREsp 437.764, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma do STJ, j. em 27.02.2018) –
destacou-se.

72
Na seara doutrinária, Waldo Fazzio Júnior apresenta as mesmas justificativas:

Na medida em que a ação civil pública tem por conteúdo a defesa de interesses difusos e, como a
defesa da probidade administrativa e do patrimônio público se insere nesse âmbito de
transindividualidade, a ação civil de improbidade administrativa comporta, perfeitamente, a
cumulação petitória. Por exemplo, ação declaratória de nulidade de contrato administrativo
cumulada com a condenação do agente público ao ressarcimento do dano produzido ao erário 132.

Desse modo, não se vislumbra possível obstar que a responsabilização por atos
de improbidade tramite cumulativamente com outras espécies de pedidos, se assim optar
a parte autora, por se tratar da medida que melhor atende aos valores constitucionais, aos
ditames do processo coletivo e às disposições da própria Lei nº 8.429/1992.

7. Vedação ao regime de solidariedade

Até a vigência da Lei nº 14.230/2021, estava sedimentado o entendimento de que


era solidária a responsabilidade pelo ressarcimento de danos provocados ao erário em
decorrência da prática de atos de improbidade administrativa, ao menos até o final da
instrução probatória ou até ser possível aquilatar qual a exata participação de cada
agente no prejuízo ocasionado.

O posicionamento era encampado por diversas Cortes brasileiras, entre as quais


se menciona o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná 133, o Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais134 e o Superior Tribunal de Justiça, em cuja alçada a matéria estava
particularmente pacificada:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. “OPERAÇÃO SANGUESSUGA”. FRAUDE EM


PROCESSO LICITATÓRIO. SUPERFATURAMENTO. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO.
IMPOSSIBILIDADE DE CORRELAÇÃO ENTRE AS CONDUTAS E AS PARCELAS DO
PREJUÍZO. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA. [...]
4. Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é consolidada no sentido de
que “a responsabilidade é solidária até a instrução final do feito, momento em que se delimita

132 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.
450/451.
133 AC 0002426-79.2009.8.16.0088, Rel. Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau Antonio Franco Ferreira da Costa Neto, Quinta
Câmara Cível do TJPR, j. em 18.05.2022; AI 0033783-30.2021.8.16.0000, Rel. Des. Carlos Mansur Arida, Quinta Câmara Cível do
TJPR, j. em 16.11.2021.
134 AI 1.0000.20.573768-7/001, Relª. Desª. Alice Birchal, Sétima Câmara Cível do TJMG, j. em 01.10.2021; AI 1.0372.19.001124-
0/001, Rel. Des. Wagner Wilson Ferreira, Décima Nona Câmara Cível do TJMG, j. em 04.03.2021.

73
a quota de responsabilidade de cada agente [...]” (AgRg no REsp 1.314.061/SP, Rel. Ministro
Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16.5.2013). Na mesma direção: AgInt no AREsp
1.406.782/MG, Relator p/ Acórdão Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 3.2.2020; AgInt
no REsp 1.827.103/RJ, Relator Min. Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 29.5.2020; REsp
1.814.284/PR, Relator Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 25.9.2019; AgInt no
AREsp 1.445.093/MG, Relator p/ Acórdão Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe
29.8.2019; REsp 1.731.782/MS, Relatora Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe
11.12.2018.
5. A ideia fundamental nessa orientação é a necessidade de preservar o integral
ressarcimento do dano - inclusive por meio de medidas cautelares -, razão pela qual a
solidariedade só cessa quando estiver claro o grau de participação de cada agente. Nem
sempre esse momento coincidirá com o final da instrução e, por isso, há julgados
corretamente pontificando que, “até a liquidação, devem permanecer bloqueados tanto
quantos bens foram bastantes para dar cabo da execução em caso de procedência da ação,
na medida em que vigora entre os réus uma responsabilidade do tipo solidária” (REsp
1.1958.28/MA, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 4.10.2010). [...]
9. A repartição da obrigação de ressarcir o erário só deve ocorrer quando for possível
correlacionar cada conduta a determinadas parcelas do prejuízo. Não havendo como
proceder a essa imputação causal, tem-se obrigação solidária. [...]
(REsp 1.872.734, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ, j. em 24.11.2020).

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DANO


AMBIENTAL. MEDIDA CAUTELAR. BLOQUEIO DE VALOR EM CONTA CORRENTE.
ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC/2015. INEXISTÊNCIA. EXCESSO DO
BLOQUEIO. NÃO OCORRÊNCIA. ACÓRDÃO ALINHADO COM A JURISPRUDÊNCIA DO
STJ. PRETENSÃO DE REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N.
7 DA SÚMULA DO STJ. […]
VI - Aludida responsabilidade solidária entre todos os réus da ação civil pública ocorre até, ao
menos, a instrução final do feito, ocasião em que se poderá delimitar a quota de
responsabilidade de cada agente para o ressarcimento. Assim, na fase processual em que se
encontram os autos que ensejaram a interposição do presente recurso, o valor a ser
indisponibilizado, para assegurar o ressarcimento ao erário, deve ser garantido por qualquer
um deles.
(AgInt no AREsp 1.667.665, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma do STJ, j. em
30.11.2020).

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO


PREPARATÓRIA DE INDISPONIBILIDADE DE BENS EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. BLOQUEIO DE BENS. SOLIDARIEDADE
VERIFICADA. CONSTRIÇÃO NO SENTIDO DE QUE UM DEMANDANDO
INDIVIDUALMENTE SUPORTE A TOTALIDADE DO VALOR DO DANO, ATÉ O
ENCERRAMENTO DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. AGRAVO INTERNO PROVIDO PARA,
CONHECENDO DO AGRAVO, PARCIALMENTE PROVER O RECURSO ESPECIAL […]
O entendimento assente no âmbito do STJ é o de que a solidariedade deve permanecer até o
término da instrução processual, ocasião na qual será delimitada a quota de culpa de cada
agente para efeito de dosimetria da pena, razão pela qual um dos demandados deve
suportar, individualmente, a constrição sobre a totalidade do valor do dano, até o
encerramento da instrução processual.
(AgInt no AREsp 1.571.008, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma do STJ, j. em
24.11.2020).

74
O fundamento para a aplicabilidade desse regime na recomposição do patrimônio
público residia primordialmente no art. 942, caput, do Código Civil135. Para o Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná, o dispositivo permite impor aos agentes que em coautoria
lesam o erário a obrigação de responder pelo todo da obrigação 136.

Justificativa semelhante foi dada pelo Conselho da Justiça Federal quando da


edição do Enunciado 558 da VI Jornada de Direito Civil. Na ocasião, a diretriz geral
civilista foi interpretada em conjunto com a antiga redação dos arts. 3º a 6º da Lei nº
8.429/1992137:

Enunciado

São solidariamente responsáveis pela reparação civil, juntamente com os agentes públicos
que praticaram atos de improbidade administrativa, as pessoas, inclusive as jurídicas, que
para eles concorreram ou deles se beneficiaram direta ou indiretamente.

Justificativa

O art. 942, caput e parágrafo único, do Código Civil materializa tanto o princípio da imputação
civil dos danos quanto o princípio da responsabilidade solidária de todos aqueles que violam
direito alheio. A Lei de Improbidade Administrativa (LIA) ora vigente não prevê,
especificamente, a responsabilidade das pessoas físicas ou jurídicas envolvidas nos atos de
improbidade administrativa. Para que se possa imputar-lhes a necessária responsabilidade
civil pela reparação das consequências dos referidos atos de improbidade, o julgador precisa
recorrer a uma interpretação sistemática dos arts. 3º a 6º da Lei n. 8.429/1992. Afinal, a atual
LIA diz, no art. 3º, que suas disposições se aplicam a todos os que, mesmo não sendo
agentes públicos, induzem, ou para ela concorrem, a prática dos atos de improbidade ou
deles se beneficiam. Diz também, no art. 5º, que, ocorrendo lesão ao patrimônio público por
atos comissivos ou omissivos, dolosos ou culposos, deve o agente público ou o terceiro
envolvido prestar integral ressarcimento. E, no art. 6º, dispõe que ao enriquecimento ilícito do
agente público ou do terceiro beneficiado corresponde a perda de bens ou valores
indevidamente acrescidos aos patrimônios respectivos. Há uma acentuada preocupação, no
entanto, pois não raro a defesa dos infratores pontua que não se pode estabelecer
condenação de natureza fortemente punitiva, como o é a decretação da perda dos bens, sem
uma tipificação legal estrita. Assim, enquanto não for editada nova regulação para a matéria,
defendemos a necessária aplicação do art. 942, caput e parágrafo único, do Código Civil
135 Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a
ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.
136 AC 1.327.713-3, Rel. Des. Luiz Mateus de Lima, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 05.04.2016.
137 Art. 3º As disposições desta Lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra
dolosamente para a prática do ato de improbidade. […]
Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
Art. 5° Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral
ressarcimento do dano.
Art. 6° No caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou terceiro beneficiário os bens ou valores acrescidos ao seu
patrimônio.

75
como suporte legal para a responsabilidade solidária de todos os envolvidos na prática de
atos de improbidade administrativa, sejam ou não agentes públicos 138.

Após o advento da Lei nº 14.230/2021, contudo, a reparação solidária dos danos


causados ao erário foi colocada em cheque, na medida em que o art. 17-C, § 2º, da Lei nº
8.429/1992 passou a vedar qualquer forma de solidariedade nas condenações por atos
ímprobos, a fim de que cada indivíduo responda nos limites de sua participação e dos
benefícios diretamente auferidos:

Art. 17-C. A sentença proferida nos processos a que se refere esta Lei deverá, além de
observar o disposto no art. 489 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de
Processo Civil): [...]

§ 2º Na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e


dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade.

A leitura precipitada do dispositivo pode conduzir, de fato, à impressão de que o


regime solidário foi proibido em absoluto nas ações de improbidade administrativa.

No entanto, uma análise mais atenta do seu conteúdo afasta essa conclusão
equivocada e permite constatar que, muito longe de contrariar o posicionamento
jurisprudencial anteriormente exposto, a alteração legislativa o positivou e o acolheu de
forma expressa.

Isso porque a responsabilidade solidária, como visto, decorre do art. 942 do


Código Civil, que em nenhum momento teve sua incidência totalmente afastada das
ações de improbidade pelo art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992. Muito pelo contrário, a
alteração legislativa tão somente restringiu a sua aplicação a partir das sentenças
condenatórias dos atos ímprobos.

A condenação foi erigida como um marco a partir do qual o caráter solidário fica
terminantemente proibido, de sorte que, por meio de uma interpretação literal do
dispositivo, constata-se que continua sendo perfeitamente aplicável o regramento da
codificação civilista aos atos processuais praticados antes desse momento.
138 Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/629. Acesso em: 21 jul. 2022.

76
Não se ignora que a análise literal nem sempre é a técnica mais oportuna para o
processo de transformação do texto legal em norma, pois é cediço na Teoria Geral do
Direito que os dispositivos não devem ser analisados de modo isolado, mas sim em
conjunto com as demais disposições legislativas existentes, haja vista que a unidade é
uma característica crucial do ordenamento jurídico 139.

É por essa razão, aliás, que a doutrina defende que, ao interpretar determinado
dispositivo legal, deve-se atentar para todo o conjunto legislativo que o permeia 140, posição
que já foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal: “não se interpreta o direito em tiras;
não se interpreta textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo –
marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas” (ADPF 101, Relª. Minª.
Cármen Lúcia, Pleno do STF, j. em 24.06.2009).

Ocorre que o sentido extraído por meio da interpretação literal do art. 17-C, § 2º,
da Lei nº 8.429/1992, em especial do seu termo condenação – qual seja, a de que a
solidariedade na reparação do erário só é vedada a partir das sentenças das ações de
improbidade administrativa –, confere coerência ao conjunto legislativo pertinente e
converge com o resultado obtido por outras técnicas hermenêuticas.

Dentre elas, pode-se citar a que advém do brocado latino verba cum effectu sunt
accipienda, segundo o qual a lei não contém palavras inúteis. O axioma parte da premissa
de que todas as expressões que constam no texto legal devem ser consideradas na
atividade interpretativa, sob pena de se deturpar a mens legis.

A presença de cada uma das expressões da redação legislativa é fruto de uma


escolha intencional do legislador, que, vendo-se diante de diversas opções no vernáculo,
139 Conforme Norberto Bobbio, “as normas de um ordenamento, ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento constituem uma
totalidade ordenada”. Prossegue o autor, citando Tomaso Perassi: “as normas que entram para constituir um ordenamento não estão
isoladas, senão que se tornam parte de um sistema, uma vez que certos princípios agem como ligações, pelas quais as normas são
mantidas juntas de modo a constituir um bloco sistemático” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 2. ed. São Paulo:
Edipro, 2014, p. 81).
140 “Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis
diversas, mas referentes ao mesmo objeto. Por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras
antecedentes com as consequentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma. […] Confronta-se a
prescrição positiva com outra de que proveio, ou que da mesma dimanaram; verifica-se o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral
e o particular, e deste modo se obtêm esclarecimentos preciosos. O preceito, assim submetido a exame, longe de perder a própria
individualidade, adquire realce maior, talvez inesperado. Com esse trabalho de síntese é mais bem compreendido” (MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 104/105).

77
elege apenas uma em detrimento das demais. Esse processo de eliminação não pode ser
tomado como aleatório ou de menor relevância, pois fornece elementos para o intérprete
captar qual é o real comando que emana do texto legal:

Devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia. As expressões do Direito


interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos,
ociosos, inúteis. Pode uma palavra ter mais de um sentido e ser apurado o adaptável à
espécie, por meio do exame do contexto ou por outro processo; porém a verdade é que
sempre se deve atribuir a cada uma a sua razão de ser, o seu papel, o seu significado, a sua
contribuição para precisar o alcance da regra positiva. […] Dá-se valor a todos os vocábulos
e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este
deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as suas provisões, nenhuma parte
resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação alguma 141.

Em alguma medida, desprezar a existência de uma palavra equivale a uma


atividade legislativa do intérprete, que passa a moldar a norma partindo apenas das
palavras que lhe convém, e não da redação posta pelo legislador, matéria-prima
hermenêutica por excelência. Ao ignorar um termo de efeitos ampliativos, por exemplo, o
intérprete restringirá indevidamente o alcance almejado pelo Poder Legislativo. E se não
considerar um termo de efeitos redutivos, alargará o âmbito de incidência para hipóteses
não pretendidas.

A necessidade de levar em consideração todas as expressões utilizadas em


determinado dispositivo é particularmente acentuada quando se empregam palavras
contundentes ou com alta carga axiológica, como os advérbios de negação ou as que
fazem alusão a marcos processuais bem definidos.

Não por acaso, os Tribunais pátrios frequentemente usam essa ferramenta como
uma forma de ratificar que a observância das disposições literais do ordenamento jurídico
é uma técnica legítima142, ou para afastar o elastecimento da amplitude semântica das
expressões contidas na lei, prática que as tornariam inúteis para a norma em questão 143.

141 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 204.
142 AgReg no HC 686.141, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma do STJ, j. em 07.12.2021; REsp 1.539.635, Relª. Minª. Maria Isabel
Gallotti, Quarta Turma do STJ, 07.12.2021; AI 1617231-9, Rel. Des. Fernando Paulino da Silva Wolff Filho, Décima Sétima Câmara
Cível do TJPR, j. em 31.05.2017.
143 EDcl no EDcl no CC 124.794, Voto-Vista do Min. Marco Aurélio Bellize, Segunda Seção do STJ, j. em 26.08.2015.

78
Sob esse ponto de vista, portanto, não é razoável defender que o art. 17-C, § 2º,
da Lei nº 8.429/1992, vedou totalmente a adoção da obrigação solidária nas investigações
e ações de improbidade administrativa, uma vez que para tanto seria necessário
desconsiderar completamente a presença da palavra condenação no texto do dispositivo
ou mitigar a rigidez da etapa processual que ela representa.

Uma segunda técnica que corrobora a interpretação literal se refere à máxima de


que as normas restritivas de direito não se interpretam ampliativamente ou, ainda, de que
normas restritivas não admitem interpretação extensiva, proveniente da expressão
exceptiones sunt strictissimoe interpretationis 144, amplamente acatada pela
jurisprudência145.

Considerando que o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 impõe nítida restrição ao
conteúdo geral do art. 942 do Código Civil, que por sua vez consiste em um direito da
pessoa jurídica ou natural lesada por atos ilícitos, constata-se que a palavra condenação
deve ser lida literalmente.

A concessão de efeitos extensivos nesse ponto expandiria a proibição do regime


solidário no ressarcimento do patrimônio público para além do que foi expressamente
consignado, exegese que não encontra amparo hermenêutico e que atenta contra o
direito fundamental à probidade administrativa.

Outra técnica a ser observada nesta discussão é a interpretação topográfica, que


consiste na análise das disposições legislativas de acordo com a sua posição na estrutura
da lei. A separação do diploma legal em capítulos temáticos, ou de um artigo em
parágrafos, incisos e alíneas, são formas de organizar sistematicamente assuntos que
guardam pertinência temática.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já seguiu essa linha de raciocínio,


apregoando que “a melhor exegese, segundo a interpretação topográfica, essencial à
144 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 192.
145 REsp 806.027, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Relª. p/Acórdão Minª. Eliana Calmon, Segunda Turma do STJ, j. em
21.03.2006; REsp 728.753, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma do STJ, j. em 02.02.2006.

79
hermenêutica, é de que os parágrafos não são unidades autônomas, estando
direcionados pelo caput do artigo a que se referem” (REsp 1.771.304, Rel. Min. Nefi
Cordeiro, Sexta Turma do STJ, j. em 10.12.2019).

A análise da palavra condenação, que consta no art. 17-C, § 2º, portanto, deve
ser feita no contexto macro em que foi inserida, qual seja, a de um artigo que trata
unicamente das sentenças nas ações de improbidade. Esse alto grau de especificidade
observado não pode ser considerado como uma mera coincidência ou atecnia legislativa.

A vedação à solidariedade no ressarcimento ao erário ter sido expressamente


direcionada à condenação, e ter sido prevista em dispositivo que trata apenas das
sentenças, reflete a vontade deliberada do legislador, que, por meio da organização
espacial do parágrafo, reiterou que o recorte à regra genérica do art. 942 do Código Civil
é pontual aos éditos condenatórios das ações de improbidade administrativa, não aos
momentos processuais anteriores.

Por fim, outra técnica diz respeito à linha argumentativa a contrario sensu, que
encontra expoentes em diversos brocados latinos, como o ubi lex voluit dixit, ubi noluit
tacuit (quando a lei quis dizer algo, o fez expressamente, e quando não quis, silenciou) e
o ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não cabe
ao intérprete distinguir), ambos utilizados de forma recorrente pelos Tribunais
Superiores146.

Embora cada um tenha as suas particularidades, todos partem da premissa de


que uma lei proibitiva, além de vedar determinada situação de forma explícita, contém
inafastável consequência oposta: permitir tudo o que não foi proibido.

Noberto Bobbio, tratando da teoria da norma geral exclusiva, explica que se


determinada circunstância é restringida pela literalidade do texto legal, naturalmente está

146 RO em HC 86.998, Relª. Minª. Cármen Lúcia, Primeira Turma do STJ, j. em 13.02.2007; REsp 1.609.251, Rel. Min. Napoleão
Nunes Maia Filho, Primeira Turma do STJ, j. em 11.02.2020; EDcl no MS 22.157, Rel. Min. Herman Benjamin, Corte Especial do STJ, j.
em 14.03.2019; REsp 1.433.031, Relª. Minª. Nancy Andrighi, Terceira Turma do STJ, j. em 03.06.2014.

80
se permitindo, por meio de uma interpretação a contrario sensu, tudo o quanto não foi
vedado:

Uma norma que regula um comportamento não só limita a regulamentação e, desse modo, as
consequências jurídicas que decorrem dessa regulamentação àquele comportamento, mas,
ao mesmo tempo, exclui dessa regulamentação todos os outros comportamentos. Uma
norma que proíbe fumar exclui a proibição, ou seja, permite todos os outros comportamentos
que não consista em fumar. Todos os outros comportamentos não compreendidos na
norma particular são regulados por uma norma geral exclusiva, quer dizer, pela regra
que exclui (por isso é exclusiva) todos os comportamentos (por isso é geral) que não
fazem parte daquele previsto pela norma particular. […] As normas nunca nascem
sozinhas, mas em par: cada norma particular, que podemos chamar de inclusiva, é
acompanhada, como se fosse sua própria sombra, da norma geral exclusiva147 - destacou-se.

Em sentido semelhante, Pierluigi Chiassoni leciona sobre o raciocínio


denominado a contrario com função puramente interpretativa:

Um raciocínio fundado nessa diretiva serve (tipicamente) para colmatar lacunas explícitas.
Tem função criativa anti-inclusiva: exclui a integração das lacunas mediante analogia ou
raciocínio a fortiori criativos. O silêncio sobre o caso não regulado, identificado tipicamente à
base de uma leitura literal da disposição pertinente, deve ser entendido como presença de
uma volição negativa e, portanto, como presença de uma norma implícita oposta […] Essa
premissa é de fato uma concretização da diretiva de integração a contrario, segundo a qual:
“Se existe uma norma que prescreve uma certa consequência normativa para uma certa
classe de fatos (casos, situações, etc.), então se deve concluir que existe também outra
norma, a qual prescreve a consequência normativa oposta para toda classe de fatos diferente
da classe disciplinada pela primeira norma”. E isso por força de um princípio que, na tradição
metodológica ocidental, sói formular-se mediante brocardos como Lex ubi voluit dixit, ubi
tacuit noluit148.

Prossegue o autor, afirmando que esses métodos vedam a concessão de efeitos


extensivos a determinado dispositivo legal, pois eles consideram que se fosse a intenção
do legislador estabelecer a regulamentação jurídica para situações específicas, isso teria
sido feito explicitamente.

Em outras palavras, se a uma expressão da lei está regulando literalmente um


caso específico, não se pode incluir no seu âmbito de incidência um caso diferente, que
não seja diretamente subordinado à expressão literal. Não haveria cabimento conceder

147 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014, p. 127/128.
148 CHIASSONI, Pierluigi. Técnica da interpretação jurídica: breviário para juristas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020 [livro
eletrônico].

81
efeitos extensivos, pois a lacuna legislativa que recai sobre o caso não disciplinado, na
verdade, consiste na vontade deliberada de não legislar sobre essa hipótese:

Para todos os x e para todos os y, se x é um caso compreendido no significado literal de um


termo de uma disposição, e y é um caso diferente de x, então, deve-se evitar incluir também y
no significado daquele termo. Um raciocínio fundado sobre essa diretiva serve para obter de
uma disposição a norma correspondente à interpretação literal dos seus sinais descritivos,
qualquer que seja. Exclui, seja a interpretação extensiva, seja a interpretação restritiva da
disposição. Cria (corrobora a presença de) uma lacuna explícita no que atine aos casos
diferentes dos casos compreendidos no significado literal das disposições. O silêncio equivale
à ausência de volição (não volição)– e, portanto, à ausência de uma norma 149.

Tendo em vista essas diretrizes, sobretudo a de que quando a lei quer, ela dispõe
expressamente, e quando não quer, silencia, constata-se que ao ter vedado a
solidariedade apenas na condenação, a Lei nº 8.429/1992 indiretamente autorizou a
permanência desse regime nas etapas processuais anteriores. Até porque se quisesse ter
vedado a solidariedade de forma geral, bastaria o legislador ter feito alguma outra
previsão nesse sentido.

Entretanto, não se vislumbra nenhuma outra menção sobre o regime solidário


além daquela do art. 17-C, § 2º. Mesmo quando tratou do ressarcimento ao erário, nos
arts. 8º, 12, 16, 17-B e 18, caput, não foi feita ressalva alguma sobre a necessidade de
cada agente responder apenas no limite de sua participação na empreitada ilícita, nos
moldes do que foi veiculado no referido parágrafo.

A nova redação dada ao art. 16 da Lei nº 8.429/1992, por exemplo, apesar de ter
permitido a indisponibilidade de bens para fins de reparação do patrimônio público, não
estabeleceu condicionantes para a obrigação solidária que decorre do art. 942 do Código
Civil. As disposições que ali constam, na verdade, são antagônicas à fixação
individualizada da responsabilidade de cada agente ímprobo, pois no seu caput e no §
10150 foi dada franca preferência para o integral ressarcimento, indicando que, ao menos
149 CHIASSONI, Pierluigi. Técnica da interpretação jurídica: breviário para juristas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020 [livro
eletrônico].
150 Art. 16. Na ação por improbidade administrativa poderá ser formulado, em caráter antecedente ou incidente, pedido de
indisponibilidade de bens dos réus, a fim de garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de
enriquecimento ilícito. […]
§ 10. A indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir
sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita.

82
nessa etapa cautelar, o direito fundamental à probidade administrativa recebeu proteção
privilegiada quando comparado com eventuais direitos patrimoniais particulares.

A ausência de qualquer outra menção ao regime solidário na Lei nº 8.429/1992


consiste em clássico silêncio legislativo, “opção do legislador em excluir,
intencionalmente, certo fato do comando legal” 151. Nessa hipótese, não é possível utilizar
ferramentas legislativas para suprir a falta de regulamentação, pois “não cabe ao
intérprete dilatar aquilo que a Lei nitidamente quis restringir” (ED 0000124-
75.2000.8.16.00291, Relª. Juíza de Direito Giani Maria Moreschi, Primeira Turma
Recursal do TJPR, j. em 18.09.2017).

Com efeito, “a interpretação extensiva não é admitida nas situações em que o


legislador, em silêncio eloquente, optou por não incluir determinada hipótese [...], sob
pena de o Judiciário atuar como legislador positivo, o que lhe é vedado” (AI 1.585.539-
1/01, Rel. Des. Fernando Paulino da Silva Wolff Filho, Décima Sétima Câmara Cível do
TJPR, j. em 25.10.2017).

A constatação é particularmente reforçada pelo fato de que o ressarcimento ao


erário é um direito fundamental que decorre diretamente do art. 37, § 4º, da Constituição
Federal, característica que afasta a possibilidade de interpretação extensiva, conforme
entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

O Poder Judiciário não pode dar interpretação extensiva proibitiva sobre aquilo que não está
contido no texto legal e que não corresponde à vontade literal do legislador, sobretudo, para
justificar a retirada de um direito ou o tolhimento de uma pretensão (REsp 1.353.300, Rel.
Min. Marco Buzzi, Quarta Turma do STJ, j. em 22.06.2021).

Portanto, a norma a ser extraída do art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 é a de


que a solidariedade na recomposição do patrimônio público, em virtude de prejuízos
ocasionados por atos de improbidade administrativa, permanece existindo até o momento
da prolação da sentença condenatória.

151 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 292.

83
8. Comunicabilidade da absolvição criminal

Com o advento da Lei nº 14.230/2021, o art. 21, §§ 3º e 4º, da Lei nº 8.429/1992,


passou a prever que as decisões absolutórias criminais vinculam o juízo responsável pelo
processamento da ação de improbidade administrativa, independentemente de qual seja
o fundamento do art. 386 do Código de Processo Penal utilizado. Confira-se:

Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:


[…]
§ 3º As sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando
concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria.
§ 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão
colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos
os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro
de 1941 (Código de Processo Penal).

Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que
reconheça:
I – estar provada a inexistência do fato;
II – não haver prova da existência do fato;
III – não constituir o fato infração penal;
IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;
V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22,
23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre
sua existência;
VII – não existir prova suficiente para a condenação.

Para este Centro de Apoio, no entanto, a alteração legislativa se revela


inconstitucional, na medida em que viola frontalmente o art. 37, § 4º, da Constituição
Federal, que dispõe o seguinte:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]

§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a


perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível – destacou-se.

Como visto, do dispositivo constitucional emana nítido mandamento de punição


dos atos de improbidade administrativa, para os quais foi previamente previsto um rol de

84
sanções mínimas a serem cominadas pelo legislador ordinário, sem prejuízo de eventual
ação penal cabível para a mesma conduta.

Vale dizer, foi estipulado de modo expresso que o microssistema da improbidade


administrativa constitui instância de repressão autônoma da esfera penal, tratando-se de
comando que decorre diretamente do poder constituinte originário.

É este o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

Noutra via, é cediço que, via de regra, aplica-se a casos como este o princípio da independência
das instâncias; o art. 37, § 4º, da Constituição da República, assim como o art. 12 da Lei
8.249/1992, são expressos nesse sentido. Ambos deixam claro que as reprimendas
aplicáveis pela prática de atos de improbidade administrativa devem ser impostas sem
prejuízo da ação penal cabível, independentemente, ainda, de sanções civis e
administrativas previstas na legislação específica (AC 0004126-41.2015.8.16.0004, Rel. Juiz
Substituto em 2º Grau Anderson Ricardo Fogaça, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em
02.07.2019) – destacou-se.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDEPENDÊNCIA DAS


INSTÂNCIAS CÍVEL E CRIMINAL. DECISÃO DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA EM AÇÃO PENAL
QUE NÃO AFETA PEDIDO DE CONDENAÇÃO PELO COMETIMENTO DE ATOS ÍMPROBOS.
INTELIGÊNCIA DO ART. 37, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DO ART. 12, DA LEI Nº
8.429/1992, DO ART. 935, DO CÓDIGO CIVIL E DO ART. 66, DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL. ABSOLVIÇÃO EM RAZÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA POR AUSÊNCIA DE
DOLO. AGRAVANTE ACUSADO DE COMETIMENTO DE ATOS ÍMPROBOS PREVISTOS NO
ART. 10, DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONDUTAS QUE SE CONFIGURAM
PELA MERA CULPA. NÃO RECONHECIMENTO DE INEXISTÊNCIA DE MATERIALIDADE OU
DE AUTORIA PELO JUÍZO CRIMINAL. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 1) Não
se reconheceu, na esfera criminal, a inexistência do fato ou da autoria, o que obstaria o
prosseguimento da ação civil pública. Pelo contrário, o juízo criminal apenas concluiu pela
atipicidade da conduta, uma vez que o crime previsto no art. 90, da Lei nº 8.666/90 requer a
conduta dolosa para ser configurado como tal. 2) Ao ser acusado pelo cometimento de atos de
improbidade previstos no art. 10, da Lei nº 8.429/92, sequer há necessidade de comprovação de
dolo, uma vez que tais atos também se configuram quando o agente agiu com culpa. RECURSO
CONHECIDO E NÃO PROVIDO (AI 0009803-59.2018.8.16.0000, Rel. Des. Nilson Mizuta,
Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 10.07.2018) – destacou-se.

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE


ADMINISTRATIVA. RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL N.º
8.429/1992 AOS AGENTES POLÍTICOS. OMISSÃO. OCORRÊNCIA. ACOLHIMENTO SEM
MODIFICAÇÃO DO JULGADO. A Lei Federal n.º 8.429/1992 aplica-se aos agentes políticos em
razão de a própria Constituição Federal distinguir, por ter sido utilizada no § 4.º do seu art.
37 a expressão “sem prejuízo da ação penal correspondente”, crime de ato de
improbidade administrativa, consagrando expressamente a independência das instâncias
penal e civil (ED 595521-1/02, Rel. Des. Adalberto Jorge Xisto Pereira, Quinta Câmara Cível do
TJPR, j. em 15.12.2009) – destacou-se.

Essa posição também é partilhada por Alexandre de Moraes: “A natureza civil dos
atos de improbidade administrativa decorre da redação constitucional, que é bastante

85
clara ao consagrar a independência da responsabilidade civil por ato de improbidade
administrativa e a possível responsabilidade penal derivada da mesma conduta, ao utilizar
a fórmula sem prejuízo da ação penal cabível”152.

Cabe destacar que antes do advento da Lei nº 14.230/2021 a independência


entre as instâncias civil, penal e administrativa já era amplamente chancelada pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 153, do Superior Tribunal de Justiça 154 e do
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná 155, com exceção das decisões absolutórias
proferidas com fundamento nos incisos I e IV do art. 386 do Código de Processo Penal.

Isso se deve ao fato de que nos mais variados campos do direito existe expressa
previsão legal nesse sentido, a exemplo do Código Civil156, da Lei nº 8.112/1990157, do
próprio Código de Processo Penal158, e da própria Lei nº 8.429/1992 159.

152 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 385.
153 “As instâncias civil, penal e administrativa são independentes, sem que haja interferência recíproca entre seus respectivos
julgados, ressalvadas as hipóteses de absolvição por inexistência de fato ou de negativa de autoria” (AgReg no HC 148.391, Rel. Min.
Luiz Fux, Primeira Turma do STF, j. em 23.02.2018) .
154 “Este Tribunal Superior tem reiteradamente afirmado a independência entre as instâncias administrativa, civil e penal, salvo se
verificada absolvição criminal por inexistência do fato ou negativa de autoria. Dessa forma, a absolvição criminal motivada por ausência
de comprovação do elemento anímico da conduta não obsta o prosseguimento da ação civil pública por ato de improbidade
administrativa” (AgInt no REsp 1.761.220, Relª. Minª. Regina Helena Costa, Primeira Turma, j. em 11.10.2021).
155 DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONDENAÇÃO DE INVESTIGADOR DE POLÍCIA POR ATO DE
IMPROBIDADE QUE IMPLICA ENRIQUECIMENTO ILÍCITO E VIOLAÇÃO A PRINCÍPIOS. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS ESFERAS
CRIMINAL E CIVIL. NECESSIDADE, CONTUDO, DE ABSOLVIÇÃO DO AGENTE. COMPROVAÇÃO, APENAS, DE DOAÇÕES
ESPONTÂNEAS DE ITENS À DELEGACIA LOCAL. PRÁTICA DE OUTRAS CONDUTAS REPROVÁVEIS, MAS QUE SERÃO
SUFICIENTEMENTE REPRIMIDAS NA ESFERA DISCIPLINAR. a) A regra é a independência entre as instâncias cível, criminal e
disciplinar, nos termos do artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa; a vinculação ocorrerá apenas se a sentença absolutória
penal for fundamentada em inexistência do fato ou da autoria (artigo 386, incisos I e IV, do CPP). b) No caso, o acórdão
absolutório na esfera criminal foi fundado no artigo 386, inciso VII, do CPP (falta de prova), de modo que se mantém hígida a aplicação
da regra da independência entre as instâncias. APELO A QUE SE DÁ PROVIMENTO (AC 0002304-91.2017.8.16.0183, Rel. Des.
Leonel Cunha, Quinta Câmara Cível do TJPR, j. em 26.04.2021). AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA –
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – DECISÃO DE JULGAMENTO PARCIAL DE MÉRITO QUE ENSEJOU A CONDENAÇÃO DOS
RECORRENTES – ARGUIÇÕES DE CONTRADIÇÃO, INCONGRUÊNCIA E AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO AFASTADAS –
NULIDADES NÃO VERIFICADAS – ABSOLVIÇÃO CRIMINAL DO AGRAVANTE QUE SE DEU POR FALTA DE PROVAS –
PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS – ATOS ÍMPROBOS CARACTERIZADOS – ELEMENTO SUBJETIVO –
SANÇÕES APLICADAS CORRETAMENTE – DECISÃO MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO (AI 0058485-74.2020.8.16.0000, Relª.
Desª. Regina Helena Afonso de Oliveira Portes, Quarta Câmara Cível do TJPR, j. em 08.06.2021) – destacou-se.
156 Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre
quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
157 Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.
Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou
sua autoria.
158 Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em
legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente,
reconhecida a inexistência material do fato.
Art. 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil: I – o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de
informação; II – a decisão que julgar extinta a punibilidade; III – a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui
crime.
159 Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de
responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às
seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: [...]

86
De qualquer forma, ao contrário dos demais ramos jurídicos, nos quais a
independência das instâncias provém de uma escolha política materializada na legislação
ordinária, na seara da improbidade administrativa a autonomia na aplicação das sanções
é uma ordem explícita do art. 37, § 4º, da Constituição Federal.

É verdade que foi conferida certa dose de liberdade ao legislador para disciplinar
o modo e a gradação com a qual as condutas ímprobas seriam apenadas. Não obstante,
a Constituição Federal é categórica ao definir limites para a atividade do Poder
Legislativo, que não pode ignorar as balizas da norma em voga. Trata-se de parâmetro
que deve orientar toda a atuação legiferante.

A Corte paranaense já consignou que o campo de atuação do legislador, nesse


caso, não é ilimitado e está adstrito ao disposto no aludido art. 37, § 4º:

O art. 37 da CF, em seu caput, dispõe expressamente sobre o dever de observância dos
princípios regentes da atividade estatal, enquanto que o § 4º do mesmo dispositivo conferiu
ao legislador uma certa liberdade regrada de conformação do delineamento da improbidade
(AC 0004126-41.2015.8.16.0004, Voto convergente do Des. Carlos Mansur Arida, Quinta
Câmara Cível do TJPR, j. em 02.07.2019) – destacou-se.

Até porque é de conhecimento geral que a atividade hermenêutica encontra


limites no texto da lei, não podendo conduzir à extração de normas que destoem
frontalmente do que está escrito. Qualquer interpretação deve ter como baliza as
possibilidades semânticas que razoavelmente se encontram albergadas pelas palavras
que compõem o dispositivo. A redação legal não pode ser interpretada de forma a obter
uma norma que evidentemente não guarda nenhuma conexão com o que está escrito.

A doutrina, sob essa perspectiva, faz as seguintes ponderações:

Consequentemente, o espaço de interpretação, ou melhor, o âmbito de liberdade de


interpretação do aplicador-concretizador das normas constitucionais, tem também o texto da
norma como limite: só os programas normativos que se consideram compatíveis com o texto
da norma constitucional podem ser admitidos como resultados constitucionalmente aceitáveis
derivados de interpretação do texto da norma160.

É verdade que o intérprete vai além do texto para alcançar a norma. Nessa tarefa, no entanto,
não pode desbordar dos limites positivos e negativos do texto. [...] Acontece que a incidência

160 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1220.

87
do âmbito normativo não pode quebrantar a conexão da(s) norma(s) com o texto. Daí se dizer
que a letra da lei funciona como baliza interpretativa. Em suma, o texto delimita positivamente
o espaço de movimentação do intérprete e atua, negativamente, para impedir que se chegue
a uma norma sem a mínima recondutibilidade nele (no texto) 161.

Portanto, a previsão da suspensão dos direitos políticos, da perda da função


pública, da indisponibilidade dos bens e do ressarcimento ao erário como o conjunto
mínimo de penalidades a serem potencialmente aplicadas aos atos de improbidade
administrativa, bem como o caráter autônomo dessas sanções em relação àquelas
eventualmente advindas da persecução penal, constituem o standard constitucional
básico a ser observado pelo legislador ordinário nesse tópico.

Eventuais escolhas políticas em contrário são absolutamente irrelevantes, pois o


tempo verbal empregado pelo art. 37, § 4º, da Constituição Federal, qual seja, o futuro do
presente, denota a genuína vontade do constituinte de que, tanto o rol de sanções a
serem abstratamente previstas quanto a independência delas em face da esfera criminal,
sejam reproduzidas na legislação infraconstitucional.

Em outras palavras, não há margem para que o legislador ordinário exerça juízo
de valor sobre a opção tomada pelo constituinte. A ele, cabe apenas e tão somente agir
no estrito espaço de conformação delineado pela Constituição Federal.

Além disso, reitera-se a abordagem já realizada neste trabalho no sentido de que


a probidade administrativa ocupa posição de direito fundamental no ordenamento jurídico
brasileiro e também é assegurada por diplomas normativos internacionais. Logo, ela deve
ser devidamente tutelada e protegida de forma eficiente pelo legislador ordinário, sob
pena de violar o princípio da proibição da proteção deficiente.

A proibição da proteção deficiente, como se sabe, apregoa que o Poder Público


deve atuar com vistas a que os bens jurídicos que estão sob sua tutela sejam
concretizados. A postura omissiva nessa tarefa equivale a uma conduta que viola direito
fundamental, sendo-lhe defeso se eximir dessa atribuição:

161 RIBEIRO, Julio de Melo. Interpretação conforme à Constituição: a lei fundamento como vetor hermenêutico. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, n. 184, dez. 2009.

88
Poderá o Estado frustrar seus deveres de proteção atuando de modo insuficiente, isto é, ficando
aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos ou mesmo deixando de
atuar [...] É nesse sentido – como contraponto à assim designada proibição de excesso – que
expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se
convencionou chamar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação
dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão) 162.

O Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela,
que levem – considerando os bens conflitantes – ao alcance de uma proteção adequada e,
como tal, efetiva (proibição de insuficiência). Para tanto, é necessário um projeto de proteção
que combine elementos de proteção preventiva e repressiva163.

Nesse aspecto, observa-se que, ao vincular a sorte da ação de improbidade


administrativa ao deslinde dado na ação penal, o art. 21, §§ 3º e 4º, da Lei nº 8.429/1992
acaba por proteger de modo deficiente a probidade da Administração Pública.

É que, nos termos do que foi exposto até aqui, as ações de improbidade
administrativa são regidas por um conjunto normativo próprio e bastante peculiar, no qual
a proteção da Administração Pública e do erário assume papel de proeminência, gozando
de tutela privilegiada.

Esse cenário é muito distinto daquele que permeia o Direito Penal, seara em que
o legislador seleciona quais condutas devem ser consideradas criminosas com a intenção
de coibir a prática delas.

Enquanto o delito serve como instrumento para que o Estado tutele a


incolumidade de determinados bens ou valores tidos por imprescindíveis à convivência
harmônica da comunidade, conforme lição de Luiz Regis Prado164 e Juarez Cirino dos
Santos165, o regramento da ação de improbidade é orientado para proteger a lisura do
162 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2021, p. 399.
163 BVERFGE 88, 203, Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Excerto retirado do livro Cinquenta Anos de Jurisprudência do
Tribunal Constitucional Alemão.
164 “A função primordial desse ramo da ordem jurídica radica na proteção de bens jurídico-penais – bens do Direito – essenciais ao
indivíduo e à comunidade. Para cumprir tal desiderato, em Estado de Direito Democrático, o legislador seleciona os bens
especialmente relevantes para a vida social e, por isso mesmo, merecedores de tutela penal. A noção de bem jurídico implica a
realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento
do ser humano. [...] O Direito Penal é visto como uma ordem de paz pública e de tutela das relações sociais, cuja missão é proteger a
convivência humana, assegurando, por meio da coação estatal, a inquebrantabilidade da ordem jurídica” (PRADO, Luiz Regis. Curso
de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.34/35).
165 “Os objetivos declarados do Direito Penal nas sociedades contemporâneas consistem na proteção de bens jurídicos – ou seja, na
proteção de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva, sob ameaça de pena. Os bens jurídicos protegidos pelo
Direito Penal são selecionados por critérios político-criminais fundados na Constituição [...] realidades ou potencialidades necessárias
ou úteis para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano – por exemplo, a vida, a integridade e saúde corporais,
a honra, a liberdade individual, o patrimônio, a sexualidade, a família, a incolumidade, a paz, a fé e a administração públicas”
(SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 5/6).

89
funcionamento da máquina pública, seja resguardando o erário de desvios ou gastos
desnecessários, ou preservando a moralidade e a eficiência na sua atuação.

Ademais, a Constituição Federal nitidamente optou por respeitar uma gama de


direitos individuais na consecução desse objetivo, a exemplo do princípio do devido
processo legal (art. 5º, LIV), da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), da presunção
da inocência (art. 5º, LVII), da reserva legal (art. 5º, XXXIX), irretroatividade da lei penal
(art. 5º, XL), intranscendência e individualização da pena (art. 5º, XLV e XLVI), da
humanidade (art. 5º, XLVII e XLIX) e da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII),
dentre outros.

As garantias dos réus de processos criminais antes mencionadas se colocam


como óbices intransponíveis ao exercício do ius puniendi, representando os limites dentro
dos quais a atividade estatal deve ocorrer.

Esse viés, todavia, não é integralmente aplicável no âmbito da improbidade


administrativa. Ainda que nessa seara os outros direitos fundamentais também devam ser
respeitados, a leitura da Constituição Federal, em especial o seu art. 37, § 4º, indica a
opção do constituinte originário em erigir a proteção do patrimônio público como valor
prevalente sobre eventuais direitos exclusivamente individuais.

É esse o posicionamento de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves:

De forma correlata ao extenso rol de normas constitucionais consagradores de direitos


fundamentais, o Constituinte originário, no art. 37, § 4º, da Constituição, conferiu autorização
expressa ao legislador infraconstitucional para que estatuísse restrições aos referidos direitos
sempre que fosse identificada a prática de atos de improbidade, os quais estariam igualmente
sujeitos à reserva de lei. [...] Com isso, teve-se uma nítida colisão entre direitos fundamentais
do agente público (cidadania, patrimônio e livre exercício da profissão) e bens jurídicos do
Estado (patrimônio público e normatização disciplinadora da conduta dos agentes públicos),
colisão esta que foi objeto de prévia valoração pelo legislador, o qual terminou por
prestigiar o interesse coletivo em detrimento do individual166 – destacou-se.

166 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 169.

90
Sintetizando o antagonismo ora apontado dos diferentes ramos do direito,
assevera Luis Luchi Demo:

O ilícito civil representa violações a interesses particulares, seja de indivíduos ou do próprio


Estado, os quais são legítimos para agir no intuito de que a sanção civil seja posta em prática.
Por sua vez, o ilícito administrativo viola regras de direito administrativo (ligado à organização
interna do Estado), de modo a legitimar o Estado a firmar sanções administrativas pelo poder
de polícia ou pelo poder disciplinar, independentemente da atuação do Poder Judiciário (auto-
executoriedade). Por fim, o ilícito penal é tido como o mais grave, pois viola regras de
comportamento de transcendência social e até política, sendo a última ratio; o bem jurídico
protegido pelo direito penal tem direta relação com o interesse público na manutenção da
ordem social167.

Tendo estabelecido essas diferenças, percebe-se que a comunicabilidade da


sentença absolutória na esfera criminal, ao menos aquela proferida com base nos incisos
II, III, V e VII do art. 386 do Código de Processo Penal, viola o art. 37, § 4º, da
Constituição Federal, também sob a ótica da proibição da proteção deficiente.

Com relação ao inciso III, segundo o qual o juiz absolverá o réu quando o fato não
constituir infração penal, isso se verifica pela circunstância de que nem todos os ilícitos
civis ou administrativos terão uma figura equivalente no campo criminal, porque os ilícitos
penais têm por escopo tão somente as condutas mais gravosas à sociedade, em
decorrência do seu caráter fragmentário e subsidiário.

Rogério Sanches Cunha168, Juarez Cirino dos Santos169 e Luiz Regis Prado170
refletem a posição da doutrina sobre o assunto, apregoando que o Direito Penal deve

167 DEMO, Luis Luchi. Direito penal e outros ramos do direito: interdependência, comunicação, encontros e desencontros: uma visita
holística aos diversos planos do direito a partir do direito penal. Revista de Doutrina da Escola da Magistratura 4a Região, 2004, apud
PARISIO, Isabela de Oliveira. Independência entre Esferas x Comunicabilidade de Instâncias: como o STF considera esses conceitos
quando se trata das esferas administrativa e penal. Monografia. São Paulo, 2016.
168 “Vigora no Direito Penal o princípio da intervenção mínima, o qual orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando
que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico”
(CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 32).
169 “A proteção de bens jurídicos realizada pelo Direito Penal é de natureza subsidiária e fragmentária – e, por isso, diz-se que o
Direito Penal protege bens jurídicos apenas em ultima ratio: por um lado, proteção subsidiária porque supõe a atuação principal de
meios de proteção mais efetivos do instrumental sociopolítico e jurídico do Estado; por outro lado, proteção fragmentária porque não
protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República e protege apenas parcialmente os bens jurídicos selecionados
para proteção penal” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 5/6).
170 “O direito penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem
ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só deve intervir quando for absolutamente necessário
para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio” (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.119).

91
constituir a ultima ratio na salvaguarda dos bens jurídicos, entendimento que é endossado
pelo Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PRELIMINARES.


SUSPENSÃO DO PROCESSO CÍVEL. DESNECESSIDADE. INDEPENDÊNCIA DAS
INSTÂNCIAS. AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO. DESNECESSIDADE. JULGAMENTO
ANTECIPADO. POSSIBILIDADE. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO COMPROVADO.
NULIDADES. AFASTAMENTO. ADVOGADO. ESTATUTO DA OAB. IMUNIDADE
PROFISSIONAL RELATIVA. LEGALIDADE E RAZOABILIDADE. OFENSAS À MAGISTRADA.
EXCESSO DE LINGUAGEM. FALSA IMPUTAÇÃO DE CRIME. DANO MORAL.
CONFIGURAÇÃO. DEVER DE INDENIZAR. VALOR DA INDENIZAÇÃO.
PROPORCIONALIDADE. REVISÃO. NÃO CABIMENTO. SÚMULA Nº 7/STJ. [...] Com efeito,
o processamento autônomo das demandas nas searas cível e criminal decorre da
compreensão de que a configuração típica dos crimes contra a honra difere da
apreciação feita no âmbito cível quanto aos requisitos caracterizadores do dano moral,
que possui contornos menos restritos. Isso se dá não apenas porque a análise dos fatos é
distinta em cada seara, mas também porque o dano moral, tal como previsto no art. 187 do
CC/2002, pode decorrer do exercício abusivo de um direito por seu titular quando exceder
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes. Além do mais, a condenação criminal, como corolário máximo do
exercício do poder punitivo do Estado, submete-se a princípios próprios, notadamente
a fragmentariedade e a subsidiariedade, o que implica que o Direito Penal incide como
ultima ratio, apenas quando indispensável à proteção dos bens jurídicos tutelados.
Assim, é possível que haja a condenação cível por dano moral ainda que o autor da conduta
ofensiva tenha sido previamente absolvido no âmbito criminal, desde que essa absolvição
não tenha decorrido da ausência de materialidade ou de autoria, em sentença transitada em
julgado. E se seria possível até mesmo a condenação pelo dano moral, não existe nulidade
apenas pelo mero prosseguimento da demanda cível antes da resolução definitiva da ação
penal (REsp 1.677.957, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. em
24.04.2018) – destacou-se.

Faz parte da própria essência do Direito Penal se ocupar de apenas uma parcela
de todas as formas de violação dos bens jurídicos existentes, de modo que é
absolutamente natural, e inclusive desejável em um Estado Democrático de Direito, que o
conjunto de infrações penais seja sensivelmente menor do que o universo de infrações no
geral, sob pena de subvertê-lo em prima ratio.

Pelo modo como foi elaborada, a redação do art. 21, §§ 3º e 4º, da Lei nº
8.429/1992 nega completamente a proteção da probidade administrativa em todas as
situações nas quais uma determinada conduta também não encontrar um equivalente
penal.

92
Não por outra razão, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já afirmou que “há
total independência entre as esferas administrativa, civil e penal, podendo haver
arquivamento de inquérito criminal em face do agravante e recebimento da inicial de ação
civil pública em face da mesma pessoa em razão dos mesmos fatos investigados – até
porque as condutas que não se enquadram no tipo penal podem configurar ato de
improbidade administrativa” (AI 5028378-62.2019.4.04.0000, Rel. Des. Rogério
Favreto, Terceira Turma do TRF4, j. em 28.01.2020) - destacou-se.

No mesmo sentido, Rui Stoco e Flávio Tartuce, respectivamente, destacam que os


elementos com aptidão para caracterizar um ilícito civil são distintos daqueles que
ensejam um ilícito penal, motivo pelo qual a ausência de um não necessariamente conduz
ao afastamento do outro:

O injusto criminal nem sempre coincide em seus elementos com o injusto cível; quando,
reconhecido, na instância penal, o fato e a autoria, ainda assim for o acusado declarado não
delinquente, por faltar ao seu ato alguma das circunstâncias que o qualificam criminalmente,
o julgado criminal não condiciona o civil, para o fim de excluir a indenização, porque não são
idênticos num e noutro direito os princípios determinantes da responsabilidade; no crime, a
responsabilidade por culpa é exceção, e no cível é a regra 171.

Em regra, a responsabilidade civil independe da criminal, pelo simples fato de que os


elementos do ilícito civil são diferentes dos elementos do ilícito penal. O ilícito civil indenizante
[...] está baseado em um modelo aberto, retirado dos arts. 186 e 187 do Código Civil. Já o
ilícito penal é relacionado a um modelo fechado, estando adstrito a um dos tipos penais que a
lei estabelece172.

Versando especificamente sobre a relação do art. 386, inciso III, do Código de


Processo Penal e as sanções administrativas, apregoa Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Não repercutem na esfera administrativa: 1. A hipótese do inciso III, porque o mesmo fato que
não constitui crime pode corresponder uma infração disciplinar; o ilícito administrativo é
menos do que o ilícito penal e não apresenta o traço da tipicidade que caracteriza o crime 173.

Não obstante o excerto acima faça menção à esfera administrativa, é possível


traçar um paralelo dessas consequências com a ação de improbidade, sobretudo porque

171 STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 97.
172 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1509.
173 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Forense, 2018, p. 840/841.

93
a posição da autora em comento encontra amparo na doutrina 174 e, inclusive, na Súmula
18 do Supremo Tribunal Federal: “pela falta residual, não compreendida na absolvição
pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público”.

Já com relação aos incisos II, V e VII do art. 386 do Código de Processo Penal,
que tratam, a grosso modo, da absolvição criminal por falta de provas, tem-se que o
standard probatório insuficiente para ensejar uma condenação criminal pode ser o
suficiente para comprovar com satisfatoriedade a prática de ilícito civil e administrativo ou
de algum ato ímprobo, não sendo razoável vincular as instâncias nesse tocante.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a esse respeito, propugna:

Não repercutem na esfera administrativa: [...] 2. As hipóteses dos incisos II, V e VII, em que a
absolvição se dá por falta de provas, a razão semelhante à anterior: as provas que não são
suficientes para demonstrar a prática de um crime podem ser suficientes para comprovar um
ilícito administrativo175.

Portanto, entendemos que o art. 21, §§ 3º e 4º, da Lei nº 8.429/1992, ao ter criado
indevida comunicação das decisões absolutórias penais às ações de improbidade
administrativa, viola o art. 37, § 4º, da Constituição Federal e desrespeita o princípio da
proibição da proteção deficiente.

E, ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal decidirá nesse mesmo sentido,
uma vez que concedeu medida liminar para suspender a eficácia dos referidos
dispositivos legais no bojo das ADIs 7.236 e 7.237 176.

174 “Nem sempre há total coincidência entre o ilícito penal e o administrativo, de modo que é perfeitamente possível que remanesça
um ilícito administrativo puro (falta residual ou resíduo heterogêneo) após a absolvição do crime pela sentença penal, a possibilitar a
punição do responsável na instância administrativa” (FERNANDES, André Dias. As repercussões da sentença judicial no processo
administrativo e o novel entendimento do STF alusivo à pena de prisão derivante de condenação criminal em segunda instância.
Revista de Direito Brasileira, São Paulo, n. 8, abr. 2018, p. 355).
175 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Forense, 2018, p. 840/841.
176 “Nada obstante o reconhecimento dessa “independência mitigada” (Rcl 41.557, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe
de 10/03/2021), a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da
autonomia das instâncias, o que indica, ao menos em sede de cognição sumária, a necessidade do provimento cautelar” (fls. 25 e 26).

94
9. Controle de convencionalidade, probidade e direitos humanos 177

Além das violações ao ordenamento jurídico brasileiro, o conteúdo das inovações


introduzidas pela Lei nº 14.230/2021 também desrespeita o ordenamento jurídico
internacional incorporado pelo Estado brasileiro.

Inicialmente, cabe realçar que a probidade administrativa não é considerada como


direito fundamental apenas no conjunto normativo brasileiro, por força dos dispositivos
constitucionais que tratam da boa administração pública, conforme já foi destacado por
este Centro de Apoio em capítulos antecedentes.

Como a probidade administrativa está diretamente relacionada com o combate à


corrupção, conforme asseveram Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves 178 e Waldo
Fazzo Júnior179, bem como por existirem diversos tratados na ordem internacional que
estabelecem diretrizes nessa seara, é forçoso reconhecer que a sua proteção ultrapassa
as fronteiras nacionais.

André de Carvalho Ramos defende que “a tutela da probidade administrativa não


é mais um imperativo meramente nacional, mas sim internacional, baseado na análise de
diplomas normativos internacionais, explicitando o fundamento atual dessa
internacionalização do combate a práticas de corrupção, que é a implementação de
direitos humanos”180, posição em que é acompanhado pelos já mencionados Emerson
Garcia e Rogério Pacheco Alves181.
177 Este tópico reproduz os fundamentos da Nota Técnica Conjunta nº 01/2022, dos Centros de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça de Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária e de Proteção aos Direitos Humanos do MPPR.
178 “A corrupção configura tão somente uma das faces do ato de improbidade, o qual possui um espectro de maior amplitude,
englobando condutas que não poderiam ser facilmente enquadradas sob a epígrafe dos atos de corrupção. Improbidade e corrupção
relacionam-se entre si como gênero e espécie, sendo esta absorvida por aquela” (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco.
Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva Jus, 2017, p. 53).
179 “A improbidade administrativa, designativo técnico para a denominada corrupção administrativa, promove o desvirtuamento da
Administração Pública em vista de promover a afronta aos princípios vetores da ordem jurídica e revelar-se por meio da aquisição de
vantagens patrimoniais obtidas com prejuízo do dinheiro público, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, também pelo
tráfico de influência no âmbito da atividade administrativa e pelo favorecimento particular de poucos que agem na contramão dos
interesses pretendidos pela sociedade, através de favorecimentos ilícitos” (FILHO, Marino Pazzaglini; ROSA, Márcio Fernando Elias;
JÚNIOR, Waldo Fazzo. Improbidade Administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio público. São Paulo: Atlas, 1999, p. 39).
180 RAMOS, André de Carvalho. O combate internacional à corrupção e a lei da improbidade. In: SAMPAIO, José Adércio Leite et al.
(org.). Improbidade Administrativa: comemoração pelos 10 anos da Lei 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 7.
181 “A corrupção, quer estudada sob o prisma sociológico, quer jurídico, há muito deixou de ser concebida como um fenômeno
setorial, que surge e se desenvolve de forma superposta aos lindes territoriais de determinada estrutura organizacional. Na medida em

95
Nesse aspecto, cita-se que o Brasil é signatário da Convenção sobre o Combate
da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais
Internacionais, internalizada pelo Decreto nº 3.678/2000, da Convenção Interamericana
contra a Corrupção, internalizada pelo Decreto nº 4.410/2002, e da Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção, internalizada pelo Decreto nº 5.687/2006.

Ainda que com finalidades diferentes, os tratados internacionais em questão


exortam seus Estados Partes a estabelecer mecanismos eficazes no combate à
corrupção. O desiderato é bem retratado nos arts. 1, 5 e 65, da Convenção das Nações
Unidas contra a Corrupção:

Artigo 1 – Finalidade
A finalidade da presente Convenção é:
a) Promover e fortalecer as medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a
corrupção;
b) Promover, facilitar e apoiar a cooperação internacional e a assistência técnica na
prevenção e na luta contra a corrupção, incluída a recuperação de ativos;
c) Promover a integridade, a obrigação de render contas e a devida gestão dos assuntos e
dos bens públicos.

Artigo 5 – Políticas e práticas de prevenção da corrupção


1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento
jurídico, formulará e aplicará ou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a
corrupção que promovam a participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado de
Direito, a devida gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e a
obrigação de render contas.
2. Cada Estado Parte procurará estabelecer e fomentar práticas eficazes encaminhadas a
prevenir a corrupção.
3. Cada Estado Parte procurará avaliar periodicamente os instrumentos jurídicos e as
medidas administrativas pertinentes a fim de determinar se são adequadas para combater a
corrupção.
4. Os Estados Partes, segundo procede e de conformidade com os princípios fundamentais
de seu ordenamento jurídico, colaborarão entre si e com as organizações internacionais e
regionais pertinentes na promoção e formulação das medidas mencionadas no presente
Artigo. Essa colaboração poderá compreender a participação em programas e projetos
internacionais destinados a prevenir a corrupção. [...]

Artigo 65 – Aplicação da Convenção


1. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com os princípios fundamentais de sua
legislação interna, as medidas que sejam necessárias, incluídas medidas legislativas e
administrativas, para garantir o cumprimento de suas obrigações de acordo com a presente
Convenção.
2. Cada Estado Parte poderá adotar medidas mais estritas ou severas que as previstas na
presente Convenção a fim de prevenir e combater a corrupção.

que a corrupção rompe fronteiras, expandindo-se de forma desenfreada, torna imperativa a existência de ações integradas e de
mecanismos de cooperação entre os diferentes Estados” (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9.
ed. São Paulo: Saraiva Jus, 2017, p. 78/79).

96
Dos arts. II e III da Convenção Interamericana contra a Corrupção decorrem
disposições de cunho semelhante:

Artigo II – Propósitos
Os propósitos desta Convenção são:
l. promover e fortalecer o desenvolvimento, por cada um dos Estados Partes, dos
mecanismos necessários para prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção; e
2. promover, facilitar e regular a cooperação entre os Estados Partes a fim de assegurar a
eficácia das medidas e ações adotadas para prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção
no exercício das funções públicas, bem como os atos de corrupção especificamente
vinculados a seu exercício.

Artigo III – Medidas preventivas


Para os fins estabelecidos no artigo II desta Convenção, os Estados Partes convêm em
considerar a aplicabilidade de medidas, em seus próprios sistemas institucionais destinadas a
criar, manter e fortalecer:
1. Normas de conduta para o desempenho correto, honrado e adequado das funções
públicas. Estas normas deverão ter por finalidade prevenir conflitos de interesses, assegurar
a guarda e uso adequado dos recursos confiados aos funcionários públicos no desempenho
de suas funções e estabelecer medidas e sistemas para exigir dos funcionários públicos que
informem as autoridades competentes dos atos de corrupção nas funções públicas de que
tenham conhecimento. Tais medidas ajudarão a preservar a confiança na integridade dos
funcionários públicos e na gestão pública.
2. Mecanismos para tornar efetivo o cumprimento dessas normas de conduta. [...]

A leitura conjunta dos dispositivos transcritos permite concluir que o Brasil é


obrigado a adotar duas posturas: não descumprir as Convenções em apreço e criar uma
estrutura que permita o fiel cumprimento das obrigações internacionalmente assumidas
por meio desses instrumentos.

Essa conclusão, além de estar amparada na lógica hermenêutica que permeia


todo o sistema jurídico, é reforçada pelo relatório “Corrupción y Derechos Humanos”,
elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos 182.

182 Destaque-se que as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos devem ser consideradas pelo Estado
brasileiro, visto que, no artigo 41 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, a Comissão Interamericana “tem a função
principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercício do seu mandato, tem as seguintes funções e
atribuições: b) formular recomendações aos governos dos Estados-Membros, quando o considerar conveniente, no sentido de que
adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucion ais, bem
como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos”, e de “d) solicitar aos governos dos Estados-Membros
que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos”.

97
O documento afirma expressamente que os Estados signatários da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da
Costa Rica e internalizada no Brasil pelo Decreto nº 678/1992, devem elaborar
mecanismos que garantam o livre exercício dos direitos nela previstos, sendo
imprescindível a adoção de todas as medidas pertinentes para que exista um sistema
efetivo de combate à corrupção. A omissão nesse ponto, inclusive, pode ensejar a
responsabilização perante a comunidade internacional:

Como una fuente de obligaciones jurídicas, los Estados deben implementar en la práctica los
derechos establecidos en la Declaración Americana al interior de su jurisdicción. La Comisión ha
señalado que la obligación de respetar y garantizar los derechos humanos está especialmente
establecida en ciertas disposiciones de la Declaración Americana. Los instrumentos
internacionales en general requieren que los Estados partes no sólo respeten los derechos
contenidos en esos instrumentos, sino que garanticen que los individuos dentro de sus
jurisdicciones puedan ejercer esos derechos. La continuidad de las obligaciones de
derechos humanos no sólo es de naturaleza negativa, también requiere acciones positivas
de los Estados. [...] La obligación de garantía consiste en un conjunto de medidas que debe
adoptar el Estado para permitir el pleno goce y ejercicio de los derechos humanos. La Comisión
reitera que la segunda obligación general de los Estados Parte es la de garantizar el libre y
pleno ejercicio de los derechos reconocidos en la Convención a toda persona sujeta a su
jurisdicción. […] Como parte de este deber de actuar con debida diligencia, los Estados tienen la
obligación jurídica de prevenir, razonablemente, las violaciones de los derechos humanos, de
investigar seriamente con los medios a su alcance las violaciones que se hayan cometido dentro
del ámbito de su jurisdicción a fin de identificar a los responsables, de imponerles las sanciones
pertinentes y de asegurar a las víctimas una adecuada reparación. El incumplimiento de este
deber de garantía también puede configurar un ilícito internacional que, si es atribuible al
Estado, genera responsabilidad internacional y surge en consecuencia el deber de reparar los
daños ocasionados. El deber de garantía tiene diversas expresiones que se pueden vincular
directamente con el tema de corrupción. En primer lugar, la obligación de garantía supone
el deber de los Estados de adoptar todas las medidas necesarias y adecuadas para prevenir
los hechos de corrupción que pueden configurar violaciones de derechos humanos. El deber de
prevención abarca todas aquellas medidas de carácter jurídico, político, administrativo y
cultural que promuevan la salvaguarda de los derechos humanos y que aseguren que su
eventual vulneración sea efectivamente considerada y tratada como un hecho ilícito susceptible de
acarrear sanciones para quien las cometa, así como la obligación de indemnizar a las víctimas por
sus consecuencias perjudiciales – destacou-se.

Nesse relatório, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi incisiva ao


apontar que, dentre todas as medidas que um Estado pode utilizar no combate à
corrupção, a adoção de um conjunto eficaz de leis se revela como fator crucial na
consecução de tal objetivo:

Bajo el derecho internacional existe un deber primario de los Estados de asegurar los derechos a
través del establecimiento de disposiciones del ordenamiento interno efectivas para disuadir la
comisión de hechos que puedan afectar el goce y ejercicio de tales derechos. Tales
disposiciones deben apoyarse en la implementación de leyes para la prevención,

98
supresión y castigo en casos de incumplimiento de esas disposiciones. En este sentido,
los Estados deben tomar las medidas necesarias para adecuar su institucionalidad a través
de leyes, órganos y organismos, procedimientos, entre otros, para erradicar la corrupción
del aparato estatal. Asimismo, se deben adoptar las medidas necesarias para alentar los
cambios culturales necesarios para superar los factores que fomentan y permiten la corrupción.
Además, los Estados deben tomar las medidas necesarias para capacitar a los funcionarios
públicos para que conozcan sus deberes en materia de probidad administrativa. [...] De este
modo, los Estados tienen el deber de adoptar las medidas eficaces destinadas a investigar
y sancionar los actos de corrupción tanto de agentes estatales como de personas, entes u
organizaciones privadas. Al respecto, la Comisión recuerda que uno de los factores que
coadyuvan a que la corrupción se transforme en un fenómeno estructural es la impunidad de
quienes incurren en estas prácticas. Por ello, los Estados deben adoptar medidas legislativas
para prohibir los actos de corrupción, establecer sanciones proporcionales y, sobre todo,
adecuar los sistemas de control y sanción para que dichos órganos y organismos estatales
puedan investigar eficazmente los casos de corrupción, particularmente los más graves, y así
establecer la verdad de estos hechos, sancionar y ejecutar las sanciones y recuperar los
productos ilícitos obtenidos mediante corrupción – destacou-se.

Aliás, um plexo legislativo adequado assume papel de protagonismo não apenas


na seara da corrupção, mas também na concretização dos compromissos internacionais
de uma maneira geral. Consiste em verdadeiro dever dos Estados Partes disponibilizar
uma estrutura legal satisfatória, com a previsão de mecanismos que possibilitem o
cumprimento das obrigações convencionais, conforme estatuído no art. 2 da já citada
Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno.


Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por
disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de
acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as
medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais
direitos e liberdades – destacou-se.

Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que possui jurisdição sobre o


Estado brasileiro183, esse dispositivo compele os Estados signatários a adequarem suas
legislações internas sob dois aspectos distintos: revogando as normas que violem os
direitos internacionais e promulgando normas que concretizem os direitos internacionais.
É o que foi consignado no Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile:

À luz do artigo 2 da Convenção, tal adequação implica a adoção de medidas em duas vertentes, a
saber: i) a supressão das normas e práticas de qualquer natureza que envolvam violação às
garantias previstas na Convenção, e ii) a aprovação de normas e o desenvolvimento de práticas
que conduzam à efetiva observância destas garantias. É necessário reafirmar que a obrigação da
primeira vertente apenas se satisfaz quando efetivamente se realiza a reforma.

183 A Corte Interamericana, nos dizeres do artigo 62.3 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, “tem competência para
conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção que lhe seja submetido, desde que
os Estados-Partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência”, o que já foi feito pelo Estado brasileiro.

99
Esse entendimento é reiterado no Caso Gómez Palomino Vs. Peru e no Caso
Instituto de Reeducação Juvenil Vs. Paraguai, respectivamente:

El deber general del Estado de adecuar su derecho interno a las disposiciones de la Convención
Americana para garantizar los derechos en ella consagrados incluye la expedición de normas y
el desarrollo de prácticas conducentes a la observancia efectiva de los derechos y
libertades consagrados en la misma, así como la adopción de medidas para suprimir las
normas y prácticas de cualquier naturaleza que entrañen una violación a las garantías
previstas en la Convención. Este deber general del Estado Parte implica que las medidas de
derecho interno han de ser efectivas (principio del effet utile), para lo cual el Estado debe adaptar
su actuación a la normativa de protección de la Convención – destacou-se.

The Court has held that the general duty set forth in Article 2 of the American Convention implies
the adoption of measures on two fronts: on the one hand, the suppression of rules and practices of
any kind that entail violation of the guarantees set forth in the Convention; on the other, the
issuance of rules and the development of practices leading to the effective observance of said
guarantees.

Além dos já citados, a mesma conclusão foi exarada no Caso Lori Berenson-
Mejía Vs. Peru, no Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil e no Caso Massacre de Mapiripán Vs.
Colômbia.

Sob essa perspectiva, resta evidente que a Lei nº 14.230/2021 segue na


contramão do regramento internacional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
violando os dois aspectos que emanam do art. 2 do Pacto de São José da Costa Rica,
uma vez que, além de não prever mecanismos que ampliem o combate efetivo à
corrupção, diversas disposições suas esmorecem a sistemática de responsabilização já
existente. Portanto, essa flagrante inconvencionalidade expõe o Brasil ao risco de
responsabilização internacional e interamericana, caso não seja corrigida a tempo pelo
Sistema de Justiça184.

O cenário em voga é perfeitamente retratado na redação dada ao art. 23, da Lei


de Improbidade Administrativa185, que fixa prazo exíguo para a tramitação de inquérito civil

184 “However, as organs of States, courts may engage the international responsibility of the State if their conduct results in the breach
of an international obligation.” (TZANAKOPOULOS, Antonios. Domestic Courts in International Law: The International Judicial Function
of National Courts. Loyola of Los Angeles International and Comparative Law Review. v. 34, p. 133-168, 2011, p. 134.
185 Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do
fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. § 1º A instauração de inquérito civil ou de processo
administrativo para apuração dos ilícitos referidos nesta Lei suspende o curso do prazo prescricional por, no máximo, 180 (cento e
oitenta) dias corridos, recomeçando a correr após a sua conclusão ou, caso não concluído o processo, esgotado o prazo de
suspensão. § 2º O inquérito civil para apuração do ato de improbidade será concluído no prazo de 365 (trezentos e sessenta e cinco)
dias corridos, prorrogável uma única vez por igual período, mediante ato fundamentado submetido à revisão da instância competente
do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. […] § 5º Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia
da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo.

100
que apure ato de improbidade administrativa, bem como para o ajuizamento da respectiva
ação judicial (§ 1º e § 2º), e ainda possibilita, uma vez ajuizada a demanda, a redução dos
prazos prescricionais pela metade (§ 5º), a fim de alcançar o lapso de quatro anos, ao
tempo em que pesquisa publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconhece
que o período médio apenas para o primeiro julgamento das ações de improbidade pelo
Poder Judiciário brasileiro é superior a esse intervalo, equivalendo a 1.548,6 dias ou 4,2
anos186.

Tais disposições violam frontalmente o art. 65, 2, da Convenção das Nações


Unidas contra a Corrupção187, que manifestamente encoraja os Estados Partes a
instituírem medidas preventivas e repressivas mais severas do que as previstas no
tratado.

A incompatibilidade perante o ordenamento internacional se intensifica sobretudo


quando analisada à luz do art. 29 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,
que é categórico ao estabelecer que os prazos prescricionais vigentes na legislação
interna de cada país devem ser amplos o suficiente para permitir o adequado
processamento judicial dos atos de corrupção:

Artigo 29 – Prescrição
Cada Estado Parte estabelecerá, quando proceder, de acordo com sua legislação interna, um
prazo de prescrição amplo para iniciar processos por quaisquer dos delitos qualificados de
acordo com a presente Convenção e estabelecerá um prazo maior ou interromperá a
prescrição quando o presumido delinquente tenha evadido da administração da justiça.

A norma não se mostra isolada no contexto global, pois o seu conteúdo é


chancelado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia. A Corte já
afirmou que o Poder Legislativo de cada nação integrante do bloco europeu deve definir
um prazo prescricional aos crimes relativos à fraude no pagamento do Imposto de Valor
Acrescentado (IVA) que se revele eficaz e satisfatório, de modo que permita o
cumprimento das obrigações assumidas em tratados:

186 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de
improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida. [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de
Justiça, 2015. p. 19.
187 Artigo 65, 2. Cada Estado Parte poderá adotar medidas mais estritas ou severas que as previstas na presente Convenção a fim de
prevenir e combater a corrupção.

101
34. A este respeito, há todavia que salientar, em primeiro lugar, que as sanções penais podem
ser indispensáveis para combater de forma efetiva e dissuasora certos casos de fraude grave
ao IVA (v., neste sentido, acórdão Taricco, nº 39). 35. Assim, sob pena de violar as obrigações
que o artigo 325, nº 1, TFUE, lhes impõe, os Estados-Membros devem assegurar que, em
casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da União em matéria de IVA, sejam
adotadas sanções penais que revistam natureza efetiva e dissuasora (v., neste sentido,
acórdão Taricco, nº 42 e 43). 36. Por conseguinte, deve considerar-se que os Estados-
Membros violam as obrigações que lhes são impostas pelo artigo 325, nº 1, TFUE,
quando as sanções penais adotadas para reprimir as fraudes graves ao IVA não
permitam assegurar de forma eficaz a cobrança da totalidade deste imposto. A este
respeito, os Estados devem igualmente garantir que as regras de prescrição previstas
pelo direito nacional permitem uma repressão efetiva das infrações relacionadas com
tais fraudes. 39. Incumbe, portanto, aos órgãos jurisdicionais nacionais competentes dar
pleno efeito às obrigações decorrentes do artigo 325, nº 1 e 2, TFUE, e não aplicar as
disposições internas, nomeadamente em matéria de prescrição, que, no âmbito de um
processo por infrações graves em matéria de IVA, obstem à aplicação de sanções efetivas e
dissuasoras para combater as fraudes lesivas dos interesses financeiros da União (v., neste
sentido, acórdão Taricco, no 49 e 58). [...] 41. Ao legislador nacional incumbe, primeiro que
tudo, prever regras de prescrição que permitam satisfazer as obrigações decorrentes
do artigo 325, TFUE, à luz das considerações expostas pelo Tribunal de Justiça no nº 58 do
acórdão Taricco. Com efeito, é a esse legislador que cabe garantir que o regime nacional
de prescrição em matéria penal não conduza à impunidade de um número considerável
de casos de fraude grave em matéria de IVA ou não seja, para as pessoas acusadas, mais
severo nos casos de fraude lesiva dos interesses financeiros do Estado-Membro em causa do
que nos casos de fraude lesiva dos interesses financeiros da União (Processo C-42/17, Rel.
J. L. da Cruz Vilaça, Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia, j. em
05.12.2017).

É pertinente também enfatizar que as disposições da Lei nº 14.230/2021, que


contrariam a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção
Interamericana contra a Corrupção, não podem ser toleradas na medida em que esses
tratados lhe são hierarquicamente superiores.

Isso porque, segundo a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no


paradigmático julgamento do RE 466.343-1, os tratados internacionais que versem sobre
direitos humanos, quando não forem incorporados na forma do art. 5º, § 3º, da
Constituição Federal188, terão o caráter de supralegais. Isto é, sua posição hierárquica será
inferior à Constituição, mas acima das leis complementares e ordinárias.

188 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

102
Esse posicionamento tem sido adotado pela Corte Suprema desde então 189, como
também pelo Superior Tribunal de Justiça190 e pela doutrina:

Os tratados internacionais passaram a ter três hierarquias distintas: Os tratados e


convenções internacionais de direitos humanos, aprovados em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 5º, §, 3º); os tratados internacionais de
direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art. 47), terão status
supralegal, situando-se abaixo da Constituição e acima da legislação ordinária; os tratados e
convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos ingressarão no
ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária191.

Dentro dessa conjuntura, destaca-se que a corrupção e a improbidade


administrativa representam violações aos direitos humanos, tornando diretamente
relacionado com essa temática todo e qualquer regramento que estabeleça medidas de
combate a essa mazela, conforme reconhecido pela doutrina 192 e pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos:

Dado la naturaleza estructural del fenómeno de la corrupción en la región, la Comisión considera


que sus impactos son profundos y diferenciados. Por un lado, los actos de corrupción pueden
configurar violaciones de derechos humanos; y por otro lado, las distintas manifestaciones
del fenómeno de la corrupción pueden afectar el goce y ejercicio de los derechos humanos.
Un primer grupo de situaciones que preocupa a la Comisión corresponde a aquellas en que
mediante actos de corrupción se incumplen directamente las obligaciones del Estado en materia
de derechos humanos. Puede configurarse una violación de derechos humanos y con ello la
responsabilidad internacional, cuando un acto o situación de corrupción constituye o
motiva un incumplimiento a una obligación internacional y dicho ilícito es atribuible al Estado.
De conformidad con los principios del derecho internacional de los derechos humanos, el Estado
tiene la obligación de reparar a las víctimas por las violaciones de derechos humanos cometidas
en su perjuicio. Una segunda dimensión que es necesario clarificar es la relación contextual entre
el fenómeno de corrupción y las violaciones de derechos humanos, esto es, las distintas formas en
que se presenta la corrupción en la región y su vínculo con distintos tipos de violaciones de
derechos humanos. Es claro que no sólo la corrupción viola derechos humanos, sino que se
debe prestar atención a la forma en que diversos contextos de corrupción facilitan y/o
fomentan la vulneración de derechos humanos. Lo anterior es relevante en la determinación de

189 A partir de desenvolvimento da jurisprudência deste Tribunal, assentou-se o status normativo supralegal aos tratados
internacionais de direitos humanos, ou seja, abaixo da Constituição, mas acima das leis infraconstitucionais ( HC 171.118, Rel. Min.
Gilmar Mendes, Segunda Turma do STF, j. em 12.11.2019).
190 O tratado internacional ratificado pelo Brasil, mas não internalizado nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, possui
status de norma supralegal e deve ser compatibilizado com o princípio constitucional da legalidade (IDC 21, Rel. Min. Reynaldo Soares
da Fonseca, Terceira Seção do STJ, j. em 25.08.2021).
191 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 472.
192 “Não há dúvidas de que a corrupção encontra-se diretamente conectada à violação dos Direitos Humanos e Fundamentais,
notadamente quando os atos corruptivos são utilizados como formas de violação do sistema jurídico como um todo (o caso de suborno
de servidores públicos para agilizarem procedimentos burocráticos), o que afeta, por si só, a ordem jurídica posta, além de provocar
impactos localizados na rede de direitos e garantias vigentes (eis que, neste exemplo, outros expedientes podem ser atrasados ou
deixados de lado” (LEAL, Rogério Gesta; SCHNEIDER, Yuri. Os efeitos deletérios da corrupção em face dos direitos humanos e
fundamentais. Revista da AJURIS, v. 41, n. 136, dez. 2014, p. 415/435).

103
las medidas adecuadas que deben adoptar los Estados para erradicar la corrupción en la región –
destacou-se.

A gravidade desses atos é tamanha que o Conselho de Direitos Humanos da


Organização das Nações Unidas propôs, ainda em 2017, que a corrupção fosse tratada
como crime contra a humanidade, “elevando-os à categoria de delitos como genocídio e
tortura”193.

Assim, tendo em vista que tanto a Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção quanto a Convenção Interamericana contra a Corrupção disciplinam, por óbvio,
medidas de combate à corrupção, ambos os tratados devem ser tidos como instrumentos
que veiculam disposições sobre direitos humanos e, como tal, diplomas normativos que
gozam de caráter supralegal.

Em virtude disso, todo o conjunto normativo hierarquicamente inferior aos tratados


em apreço, o que inclui a Lei nº 14.230/2021, fica a eles vinculado. Esse panorama
conduz ao que se denomina de controle de convencionalidade, no qual as normas
domésticas terão sua compatibilidade aferida à luz das legislações internacionais de
caráter supralegal.

O fenômeno é amplamente aceito pela doutrina e jurisprudência pátria, conforme


se verifica das transcrições a seguir:

O controle de verificação da compatibilidade das leis com a Constituição é o já conhecido


controle de constitucionalidade. O controle de verificação da compatibilidade das leis com os
tratados e convenções supralegais é o controle de convencionalidade 194.

Proponho um giro copernicano nas discussões sobre os choques entre as normas (e


interpretações) locais e internacionais de direitos, que envolve: 1) o abandono da primazia da
norma mais favorável ao indivíduo; e 2) a adoção do controle de convencionalidade como o
palco contemporâneo da constatação das diferenças entre a interpretação internacionalista e
a interpretação nacionalista dos direitos. Reitero aqui a minha definição de controle de
convencionalidade, que consiste na análise da compatibilidade dos atos normativos internos
(comissivos ou omissivos) em face das normas internacionais (tratados, costumes

193 FERNANDES, João Marcelo Negreiros. Corrupção e violação a direitos humanos: obstáculos ao desenvolvimento brasileiro no
século XXI. Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará, p. 107/128.
194 MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional, 3 ed., Ed. SaraivaJur, 2019, p. 449.

104
internacionais, princípios gerais de direito, atos unilaterais e resoluções vinculantes das
organizações internacionais195.

O controle de convencionalidade não se confunde com o controle de constitucionalidade, uma


vez que a posição supralegal do tratado de direitos humanos é bastante para superar a lei ou
ato normativo interno que lhe for contrária [...] Se a discussão girasse em torno de tratado ou
convenção votado sob regime do art. 5º, § 3º, da CF, a coisa seria diferente, porque a norma,
aí, teria status de emenda constitucional e, desse modo, haveria controle de
constitucionalidade (REsp 1.640.048, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma do STJ, j. em
15.12.2016).

A consequência para a incompatibilidade de uma legislação nacional com um


tratado de força supralegal é a declaração de sua invalidade. O diploma doméstico
continuará vigente, pois não foi revogado por nenhuma outra lei interna. Porém, não
produzirá mais efeitos, uma vez que o seu conteúdo é incongruente com norma
hierarquicamente superior. É o que afirma Valério de Oliveira Mazzuoli:

Como já se falou anteriormente, não basta que a norma de direito doméstico seja
compatível apenas com a Constituição Federal, devendo também estar apta para
integrar a ordem jurídica internacional sem violação de qualquer dos seus preceitos. A
contrario sensu, não basta a norma infraconstitucional ser compatível com a Constituição e
incompatível com um tratado ratificado pelo Brasil (seja de direitos humanos, que tem a
mesma hierarquia do texto constitucional, seja um tratado comum, cujo status é de norma
supralegal), pois, nesse caso, operar-se-á de imediato a terminação da validade da
norma (que, no entanto, continuará vigente, por não ter sido expressamente revogada
por outro diploma congênere de direito interno). Sob esse ponto de vista – de que, em
geral, os tratados internacionais têm superioridade hierárquica em relação às demais
normas de estatura infraconstitucional, quer seja tal superioridade constitucional, como no
caso dos tratados de direitos humanos, quer supralegal, como no caso dos demais tratados,
chamados de comuns –, é lícito concluir que a produção normativa estatal deve contar não
somente com limites formais (ou procedimentais), senão também com dois limites verticais
materiais, quais sejam: a) a Constituição e os tratados de direitos humanos alçados ao nível
constitucional; e b) os tratados internacionais comuns de estatura supralegal. Assim,
uma determinada lei interna poderá ser até considerada vigente por estar de acordo
com o texto constitucional, mas não será válida se estiver em desacordo ou com os
tratados de direitos humanos (que têm estatura constitucional) ou com os demais
tratados dos quais a República Federativa do Brasil é parte (que têm status supralegal).
[...]. A falta de compatibilização do direito infraconstitucional com os direitos previstos
nos tratados de que o Brasil é parte invalida a produção normativa doméstica, fazendo-
a cessar de operar no mundo jurídico196 – destacou-se.

O autor é acompanhado por parcela expressiva da doutrina:

Independentemente da posição pessoal adotada, em prol de uma “hierarquia” constitucional


(no sentido de uma paridade entre a constituição e os tratados e resolução do conflito com

195 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 437.
196 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 319/321.

105
base em critérios não hierárquicos) de todos os tratados em matéria de direitos humanos
ratificados pelo Brasil, é possível afirmar que, tanto os tratados incorporados pelo rito previsto
no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, quanto os demais tratados ratificados
por maioria simples e aprovados até o advento da Emenda Constitucional 45/2004 (que, de
acordo com o Supremo Tribunal Federal, possuem hierarquia supralegal), ensejam a
possibilidade de aferição da compatibilidade entre tais atos normativos e os tratados.
Isso, como já referido, ficou evidenciado na decisão do STF sobre a proscrição — mediante
um efeito “paralisante” — da eficácia de toda e qualquer hipótese legal prevendo a
prisão civil do depositário infiel, seja ela criada antes da aprovação do tratado, seja ela
introduzida posteriormente197 – destacou-se.

Já em relação aos seus efeitos, uma vez constatada a inconvencionalidade de determinada


norma, esta não pode ser expurgada do ordenamento jurídico interno, salvo nos casos em
que a norma é tida como inconvencional e inconstitucional, em um exercício simultâneo do
controle de constitucionalidade concentrado e do controle de convencionalidade. Assim, nos
casos de inconvencionalidade de determinada norma, além do efeito de afastamento,
no qual a norma permanece “viva”, porém sem ser aplicada, irradia-se também o
chamado efeito paralisante, no qual se “paralisa” a eficácia da norma declarada
inconvencional, embora ela continue existindo no ordenamento jurídico. Foi o que
aconteceu com a norma constitucional originária que prevê a possibilidade de prisão do
depositário infiel: ela continua a existir, mas se encontra afastada e paralisada 198 - destacou-
se.

A propósito, o Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência no sentido de que


a posição de supralegalidade dos tratados relativos aos direitos humanos torna inválida a
legislação infraconstitucional que seja com ela incompatível:

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE


DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS
TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de
San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão
civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre
direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo
da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos
tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a
legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de
adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69,
assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). [...] RECURSO
EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (RE 349.703-1, Rel. Min. Carlos Britto,
Pleno do STF, j. em 03.12.2008) – destacou-se.

Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da
proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento
jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão
de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional

197 SARLET, Ingo Wolfgang. Controle de Convencionalidade dos Tratados Internacionais. Conjur, abr. 2015.
198 HEEMANN, Thimotie Aragon. O exercício do controle de convencionalidade pelo membro do Ministério Público. Seminário Virtual
de Teses do MPPR, 2019.

106
com ela conflitante [...] Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos
internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem
sua eficácia paralisada (RE 466.343-1, Rel. Min. Cezar Peluso, Pleno do STF, j. em 03.12.2008).

Da mesma maneira, o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido há muito


tempo que os tratados supralegais tornam inválidos, ainda que não revogados, os
regramentos incompatíveis com eles, paralisando a eficácia das normas conflitantes:

13. Controle de convencionalidade, que, na espécie, revela-se difuso, tendo por finalidade, de
acordo com a doutrina, “compatibilizar verticalmente as normas domésticas (as espécies de leis,
lato sensu, vigentes no país) com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo
Estado e em vigor no território nacional”. 14. Para que a produção normativa doméstica possa
ter validade e, por conseguinte, eficácia, exige-se uma dupla compatibilidade vertical
material. [...] Rememore-se que, a despeito de, num primeiro momento, a jurisprudência ter
oscilado quanto à natureza jurídica das regras decorrentes de tratados de direitos humanos,
firmou-se o entendimento de que, ao serem incorporadas antes da Emenda Constitucional n.
45/2004, portanto, sem a observância do rito estabelecido pelo art. 5º, § 3º, da CRFB, exprimem
status de norma supralegal, o que, a rigor, produz efeito paralisante sobre as demais
normas que compõem o ordenamento jurídico, à exceção da Magna Carta (HC 379.269, Rel.
Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção do STJ, j. em 24.05.2017) – destacou-se.

Os tratados de direitos humanos têm hierarquia superior à lei ordinária, ostentando status
normativo supralegal, o que significa dizer que toda lei antagônica às normas emanadas
de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade, máxime em
face do efeito paralisante dos referidos tratados em relação às normas infra-legais
autorizadoras da custódia do depositário infiel. Isso significa dizer que, no plano material, as
regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas,
são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a
eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui
de revogação, mas de invalidade (REsp 914.253, Rel. Min. Luiz Fux, Corte Especial do STJ, j.
em 02.12.2009) – destacou-se.

Cabe ainda ressaltar que dado o caráter supralegal, e não constitucional, da


Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e da Convenção Interamericana
contra a Corrupção, o controle de convencionalidade deve se dar apenas por meio difuso,
conforme lição doutrinária: “no atual sistema normativo brasileiro, os tratados que
possuem status normativo supralegal apenas abrem oportunidade ao controle difuso. O
exercício do controle de convencionalidade é um dever do juiz nacional, podendo ser feito
a requerimento da parte ou mesmo de ofício” 199.

Valério de Oliveira Mazzuoli, nessa perspectiva, explica:

199 MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (org.). Controle de Convencionalidade: um panorama latino-
americano. Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 66.

107
Os tratados de direitos humanos não internalizados pela maioria qualificada acima
estudada serão paradigma (apenas) do controle difuso de convencionalidade. [...] Em
suma, no Direito Brasileiro atual todos os tratados que forma o corpus juris convencional dos
direitos humanos de que o Estado é parte servem como paradigma ao controle de
convencionalidade das normas internas, com as especificações que se fez acima: a) tratados
de direitos humanos internalizados com quorum qualificado (equivalentes às emendas
constitucionais) são paradigma do controle concentrado (para além, obviamente, do controle
difuso), cabendo, v.g., uma ADIn no STF a fim de invalidar norma infraconstitucional
incompatível com eles; b) tratados de direitos humanos que têm somente “status de norma
constitucional” (não sendo equivalentes às emendas constitucionais, posto que não
aprovados pela maioria qualificada do art. 5º, §3º) são paradigma somente do controle difuso
de convencionalidade, podendo qualquer juiz ou tribunal neles se fundamentar pra declarar
inválida uma lei que os afronte200 – destacou-se.

Assim, os membros do Ministério Público, ao se depararem com algum caso em


que a Lei nº 14.230/2021 conduza a uma proteção deficiente da probidade administrativa,
poderão formular insurgência também sob o prisma do regramento internacional,
promovendo o controle de convencionalidade pela via difusa, para que as disposições
conflitantes sejam declaradas inválidas, na medida em que a probidade administrativa
representa uma das expressões dos direitos humanos e é tutelada pelos tratados que
estabelecem diretrizes de combate à corrupção.

200 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 331/333.

108
CAOP Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária
Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao
Patrimônio Público e à Ordem Tributária

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