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PGM-RIO – PROCURADOR – TURMA EXTENSIVA

04ª RODADA

SUMÁRIO

1 - DIREITO PROCESSUAL CIVIL ......................................................................................... 2


1.1 - Fazenda Pública, suas prerrogativas e litigiosidade de massa ....................................... 2
1.2 - Honorários Recursais........................................................................................................ 5
1.3 - A confidencialidade e suas peculiaridades no procedimento de mediação envolvendo
a Fazenda Pública ..................................................................................................................... 9
1.4 - O que é isso que o código de processo civil chama de tutela provisória? ................... 15
2 - DIREITO ADMINISTRATIVO ........................................................................................ 18
2.1 - Pode o Estado sofrer dano à honra e à imagem?.......................................................... 18
2.2 - Compliance na Administração Pública .......................................................................... 23
2.3 - Advogado público poderia vir a ser responsabilizado pessoalmente por uma opinião
técnica que emitir no exercício de suas funções? ................................................................. 32
2.4 - Direito Funerário e Cemiterial ....................................................................................... 34
2.5 - Aplicação de sanção a conselheiros e ex-conselheiros tutelares por faltas éticas
cometidas durante o exercício do mandato anterior ........................................................... 43
3 - DIREITO CONSTITUCIONAL ........................................................................................ 44
3.1 - A Judicialização das Políticas Públicas e o Supremo Tribunal Federal ......................... 44
3.2 - Controle pelos Tribunais de Contas ............................................................................... 49
3.3 - Medida Cautelar na STP 127: município e a obrigação de fornecer medicação de alto
custo ........................................................................................................................................ 67
1 - DIREITO PROCESSUAL CIVIL
1.1 - Fazenda Pública, suas prerrogativas e litigiosidade de massa
(Palestra por Marco Antonio Rodrigues, Procurador do Estado (PGE-RJ), em 21 de março de
2016, na PGE-RJ)

O Brasil possui o sistema uno de jurisdição, onde o mesmo Poder Judiciário julga conflitos civis
e de Direito Administrativo. O CPC, assim, trata dos dois casos, dos conflitos civis e dos
conflitos de Fazenda Pública. Portanto, o mesmo CPC traz das questões referentes à Fazenda
Pública em Juízo, como suas prerrogativas, regras processuais próprias e procedimentos
especiais (ex: execução em face da Fazenda).

O CPC/15 tentou trazer uma constitucionalização do Processo Civil, por meio de uma filtragem
constitucional das regras processuais. O CPC traz a ideologia do garantismo, a ideia de que os
direitos fundamentais processuais devem ser protegidos. Porém, não só nas normas
fundamentais, mas ao longo de todo o Código (ex: primazia da apreciação do mérito recursal).

Assim, de um lado tem-se um Código extremamente garantista. Mas, de outro, há uma série
de prerrogativas e regras próprias para a Fazenda Pública. Será que essas são normas
constitucionais? Para ter essa resposta é preciso passar todas as normas processuais pelo filtro
constitucional isoladamente. Deve-se analisar se cada prerrogativa se justifica nos direitos
fundamentais processuais.

Esse filtro que se faz não pode mais ser a supremacia do interesse público puramente. A
supremacia do interesse público não é reduzida ao interesse Fazendário, mas sim um interesse
coletivo. Assim, existem diferentes interesses públicos que podem estar em jogo. Ex: interesse
da população em saúde. Assim, na verdade, deve-se olhar para as prerrogativas em concreto.

Deve-se entender, então, que essas prerrogativas concedidas à Fazenda foram dadas como
forma de promoção a direitos fundamentais processuais das próprias Pessoas Jurídicas de
Direito Público. A Advocacia Pública ganhou papel de destaque no CPC/15, fazendo jus a um
Título próprio (a partir do art. 182), assim como o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Lembre-se que o CPC não traz apenas normas de direito processual. O Código traz normas
bifrontes também, ou seja, normas que também tocam ao direito material. Ex: direito
probatório; art 1841, que trata de direito administrativo (regra de proteção do advogado
público e suas funções. Trata-se de regra geral de responsabilidade civil do advogado público,
valendo para as funções de consultoria, o que não aparece no diploma civil).

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Art. 184. O membro da Advocacia Pública será civil e regressivamente responsável quando agir com
dolo ou fraude no exercício de suas funções.
O art 1832, CPC, por outro lado, traz duas importantes prerrogativas em favor da Fazenda.

1. Prazo em dobro para manifestações processuais da Fazenda. Modificou o que era


previsto no CPC/73, que era de prazo em quádruplo para responder e em dobro
apenas para recorrer. Perdeu-se em prazo de respostas, mas se ganhou com o prazo
em dobro para todas as manifestações processuais. Ex: contrarrazões de recurso agora
têm prazo em dobro. Além disso, não se pode esquecer que o prazo será contado em
dias úteis. Alguns tentam criticar esse prazo, alegando sua inconstitucionalidade,
afirmando que ele não é isonômico. Porém, deve-se entender o oposto: é
constitucional justamente porque promove a igualdade material entre Fazenda e
administrados.
2. Intimação pessoal para a Fazenda Pública.

Por outro lado, o CPC/15 trouxe uma benesse ao administrado que parece ter duvidosa
constitucionalidade. Essas regras aparecem no art. 46, §5º3 e art 524 do CPC. Em síntese, há a
previsão de que a execução fiscal deve ser proposta no foro de domicílio do devedor. Isso
pode obstar o acesso à justiça. Ainda, o Estado, quando réu, poderá ser acionado no domicílio
do autor, em qualquer lugar do país.

A constitucionalidade é duvidosa, pois essas regras devem ser analisadas à luz do equilíbrio
federativo, à luz do federalismo. Com essas normas, é possível que, na prática, um estado
acabe ingressando na esfera de outro, sequestrando suas verbas.

Atenção! Sobre esse tema, deve-se acompanhar a ADI 5737, ainda em andamento no STF.

Além disso, com o CPC/15, o legislador demonstrou interesse em conter a litigiosidade de


massa. Nesse contexto, como mecanismo de contenção nas ações de Fazenda, houve uma
mudança na regra dos honorários advocatícios, conforme Art. 85, §3º5 do CPC. Nas ações de

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Art. 183. A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e
fundações de direito público gozarão de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais,
cuja contagem terá início a partir da intimação pessoal.

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Art. 46. § 5º A execução fiscal será proposta no foro de domicílio do réu, no de sua residência ou no do
lugar onde for encontrado.

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Art. 52. É competente o foro de domicílio do réu para as causas em que seja autor Estado ou o Distrito
Federal.
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§ 3º Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios
estabelecidos nos incisos I a IV do § 2º e os seguintes percentuais:
I - mínimo de dez e máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico
obtido até 200 (duzentos) salários-mínimos;
II - mínimo de oito e máximo de dez por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico
obtido acima de 200 (duzentos) salários-mínimos até 2.000 (dois mil) salários-mínimos;
III - mínimo de cinco e máximo de oito por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico
obtido acima de 2.000 (dois mil) salários-mínimos até 20.000 (vinte mil) salários-mínimos;
IV - mínimo de três e máximo de cinco por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico
obtido acima de 20.000 (vinte mil) salários-mínimos até 100.000 (cem mil) salários-mínimos;
V - mínimo de um e máximo de três por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico
obtido acima de 100.000 (cem mil) salários-mínimos.
Fazenda, os honorários eram arbitrados com base na equidade, pelo CPC/73. Essa regra da
equidade acaba sendo regra sujeita à discricionariedade, que é de difícil controle. Mas, como
vivemos num Estado Democrático de Direito, é preciso que haja o máximo controle da
atividade jurisdicional. Por isso, o legislador mudou o critério dos honorários advocatícios nos
casos de Fazenda, estabelecendo espécie de tabela regressiva dos honorários.

Essa tabela funciona de acordo com a seguinte lógica: a partir do valor da condenação, serão
estabelecidos valores de honorários mínimos e máximos. Essa regra, portanto, permite maior
controle da atividade jurisdicional. O problema é que o §5º6 do art. 85 traz a previsão de
escalonamento. De acordo com esse dispositivo, se a condenação ou proveito econômico for
acima da faixa do inciso I do §3º do art. 85, haverá o arbitramento dos honorários nas duas
faixas em que o valor da condenação se insira. Na prática, os magistrados irão aplicar
honorários em faixa única, esquecendo de aplicar o §5º.

Além disso, temos a problemática da sentença que arbitrou todos os parâmetros para cálculo
do valor da condenação, mas que não disse expressamente qual o valor da condenação. Ex:
sentença que condena a Fazenda em repetição de indébito tributário, sem dizer valor exato,
colocando correção monetária e acrescendo juros (trata-se de sentença líquida, pois depende
de mero cálculo do credor, mas que não disse qual o valor total da condenação, não se tendo
como saber o valor dos honorários). Nestes casos, deve-se aplicar por analogia a regra do art.
85, §4ª, II7 do CPC. Ou seja, tem que esperar o valor liquidado para se fixar as faixas dos
honorários.

Ainda, no art 85, §118, CPC, há um mecanismo para a contenção de recursos protelatórios.
Esse mecanismo quer evitar o uso abusivo de recursos. Trata-se dos honorários advocatícios
recursais. Busca-se que o recorrente avalie economicamente a demanda, já que o recurso
pode levar a uma majoração dos honorários, uma vez que desprovido. O limite desses
honorários é o limite máximo dos honorários na fase de conhecimento.

Outro mecanismo que buscou trazer maior eficiência para o processo são os meios
consensuais de solução dos conflitos, a exemplo, art 3349 do CPC. Há mudança de paradigma
aqui, só de pensar na audiência de conciliação, porque a Fazenda, nas demandas de

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§ 5º Quando, conforme o caso, a condenação contra a Fazenda Pública ou o benefício econômico
obtido pelo vencedor ou o valor da causa for superior ao valor previsto no inciso I do § 3º, a fixação do
percentual de honorários deve observar a faixa inicial e, naquilo que a exceder, a faixa subsequente, e
assim sucessivamente.

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§ 4º Em qualquer das hipóteses do § 3º :
II - não sendo líquida a sentença, a definição do percentual, nos termos previstos nos incisos I a V,
somente ocorrerá quando liquidado o julgado;
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§ 11. O tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o
trabalho adicional realizado em grau recursal, observando, conforme o caso, o disposto nos §§ 2º a 6º,
sendo vedado ao tribunal, no cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado do vencedor,
ultrapassar os respectivos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento.

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Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência
liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima
de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
procedimento comum, em princípio, não fica totalmente alheia a essa possibilidade. A Fazenda
deve buscar um meio de solução consensual, especialmente quando sabidamente errada. O
problema, neste ponto, é a ausência de previsão legal para este acordo. O estado e o
município precisam regulamentar como vão se dar essas transações.

Assim, em princípio, a autocomposição não é vedada. Porém, se não há regulamentação


autorizando o Procurador a fazer um acordo, esta não deve ocorrer. Portanto, nem há que se
falar na audiência de conciliação do art 334 do CPC, conforme o §4ª, II10 do mesmo dispositivo.
Sem normativa que efetivamente autorize essa conciliação, o Procurador não tem poderes
para fazê-lo. Essa audiência, portanto, nem deve ocorrer, pois representa um atentado à
eficiência, norma fundamental do CPC, conforme seu art. 8º11.

Assim, essa audiência de conciliação, nos processos em que envolvam a Fazenda, ficará
mitigada, havendo uma flexibilização procedimental. Porém, a Fazenda não pode estar imune
a uma mudança de cultura. Assim, nesses processos de massa, de início, até que haja
autorização legal, parece não ser possível que a Fazenda se utilize desse meio consensual.

O CPC/15 trouxe vários mecanismos tentando conter a litigiosidade de massa, buscando a


eficiência. E, do outro lado, estão as prerrogativas da Fazenda, mas que não representam
óbice aos novos objetivos da justiça civil no processo de massa. Essas prerrogativas convivem
de forma harmoniosa com esse novo perfil. Porém, não se pode deixar de olhar para os novos
horizontes. A Fazenda precisa focar nesse horizonte da consensualidade e da eficiência. Assim,
a Fazenda pode ser um litigante de massa, mas é um litigante leal, que contribui para uma
justiça célere e justa.

1.2 - Honorários Recursais


(Capítulo 05 do livro Manual dos recursos, ação rescisória e reclamação / Marco Antonio
Rodrigues – 1. ed. – São Paulo: Atlas, 2017. Pág. 99/106)

Segundo o autor uma das preocupações do CPC/2015 foi a redução da interposição de


recursos, trazendo diferentes mecanismos. Com o mesmo objetivo, o CPC instituiu os
honorários advocatícios recursais:

Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao


advogado do vencedor.

§ 11. O tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários


fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional
realizado em grau recursal, observando, conforme o caso, o

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§ 4º A audiência não será realizada:
II - quando não se admitir a autocomposição.

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Art. 8º. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem
comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade,
a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
disposto nos §§ 2º a 6º, sendo vedado ao tribunal, no
cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado
do vencedor, ultrapassar os respectivos limites estabelecidos
nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento.

Os honorários recursais possuem, portanto um duplo papel: (i) remuneram o


advogado pelo trabalho realizado em grau recursal; (ii) procuram compelir o jurisdicionado a
utilizar um recurso apenas quando entender que possui chances mínimas de êxito.

São cabíveis honorários


SIM NÃO
recursais:

Julgamento de Apelação X

Agravo de instrumento em
face de decisão parcial de
X
mérito (Exemplo, proferida
com base no art. 356 do CPC)

Observação: é imprescindível
que o REsp ou RE tenha sido
Julgamento de recurso ofertado em face de acórdão
especial e extraordinário que tenha arbitrado
honorários originariamente
ou substituído decisão de
primeira instância que assim
tenha decidido.

X
Recursos julgados
monocraticamente Observação: devem ser
impostos pelo relator.

Observação: Posicionamento
de Marco Antonio Rodrigues
(PGE-RJ). A cominação de
Agravo interno pelo
honorários em face do
insatisfeito com a decisão
agravo interno, quando a
monocrática
decisão monocrática já os
tiver previsto, revela-se uma
dupla punição, tendo em
vista que o julgamento
unipessoal foi realizado em
substituição ao colegiado.

Observação: Posicionamento
de Marco Antonio Rodrigues
(PGE-RJ). Os embargos são
recurso da competência do
Embargos de declaração próprio órgão prolator da
decisão embargada, o que
determina que, nas hipóteses
em que opostos em face de
pronunciamentos dos juízos
de primeiro grau, não serão
julgados pelo tribunal.

A previsão do § 11 representa um poder ou um dever ao tribunal?

Segundo Marco Antonio Rodrigues (PGE-RJ), cuida-se de imposição ao órgão julgador a


definição de honorários recursais, não de mera escolha do judiciário.

Há necessidade de interposição de contrarrazões ao recurso para percepção dos honorários


recursais?

Não. Independentemente de terem sido ofertadas ou não as contrarrazões ao recurso


interposto o advogado do recorrido fará jus ao recebimento de honorários recursais.

A partir de qual momento tal verba deve ser arbitrada nos recursos interpostos?

O art. 85, §11º trouxe um novo direito de crédito em favor dos advogados: os honorários
recursais. A aplicação dessa previsão aos recurso em andamento ofenderia a confiança
legítima nas possíveis consequências que o recorrente esperava que seu recurso pudesse ter.

Neste sentido, é o Enunciado Administrativo 7/STJ:

Enunciado administrativo n. 7

Somente nos recursos interpostos contra decisão publicada a


partir de 18 de março de 2016, será possível o arbitramento de
honorários sucumbenciais recursais, na forma do art. 85, § 11,
do novo CPC.
Como pode ser tal verba definida nos casos em que os honorários da sentença foram
estabelecidos com base em valor fixo, ou em percentual que não se coadune com as regras
do Código de Processo Civil vigente para as ações em que a Fazenda Pública seja parte?

Segundo Marco Antonio Rodrigues (PGE-RJ), nessas hipóteses tem-se um verdadeiro vácuo
normativo, pois o art. 85 não contemplou como arbitrar os honorários recursais em tais
situações. Pois isso, considerando que essa verba honorária foi prevista de modo a não apenas
remunerar os advogados, mas também para compelir à não oferta de recursos com baixa
chance de êxito, assumindo um papel indiretamente sancionatório, não parece possível a
imposição de honorários por analogia. A solução que vem sendo adotada por vezes em tais
casos é, porem, a imposição de honorários em percentual, desde que sua totalidade –
honorários arbitrados na sentença e os recursais – não ultrapasse os percentuais dos §§ 2.º e
3.º.

#JURISPRUDÊNCIA (STF e STJ):

• Não cabe a fixação de honorários recursais (art. 85, § 11, do CPC/2015)


em caso de recurso interposto no curso de processo cujo rito exclua a
possibilidade de condenação em honorários (Ex.: Mandado de
Segurança).

• O § 11 do art. 85 do CPC/2015, que disciplinou a hipótese de


majoração da verba honorária em grau de recurso, tem dupla
funcionalidade: atender à justa remuneração do patrono pelo trabalho
adicional na fase recursal e inibir o exercício abusivo do direito de
recorrer.

• Os honorários recursais não têm autonomia nem existência


independente da sucumbência fixada na origem e representam um
acréscimo ao ônus estabelecido previamente, motivo por que na
hipótese de descabimento ou de ausência de fixação anterior, não
haverá falar em honorários recursais.

• Para a majoração de honorários advocatícios na instância recursal, não


é exigível a comprovação de trabalho adicional do advogado, que será
considerado apenas para a quantificação de tal verba.

• Os honorários recursais incidem apenas quando houver a instauração


de novo grau recursal e não a cada recurso interposto no mesmo grau
de jurisdição.

• Os honorários recursais de que trata o art. 85, § 11, do CPC/2015, são


aplicáveis tanto nas hipóteses de não conhecimento integral quanto de
não provimento do recurso.
1.3 - A confidencialidade e suas peculiaridades no procedimento de
mediação envolvendo a Fazenda Pública
(Artigo de Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Professor Titular de Direito Processual Civil na
UERJ, Estácio e Ibmec. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Patrícia
Elael Nunes. Advogada)

Aproximação ao tema

Tendo como base os arts. 5º, 37 e 93, IX da CF 1988, em regra, o processo judicial no Brasil
deve gozar de ampla publicidade, sendo excepcional o sigilo, mesmo para que se possam
efetivar garantias fundamentais, tais como o contraditório participativo e a independência do
juiz.

De outra ponta, a mediação pauta-se muitas vezes pela confidencialidade. Em sua redação
final, a Lei n° 13.140/15 trata da confidencialidade e de suas exceções na Seção IV do Capítulo
I, especificamente nos artigos 30 e 31.

Ao contrário do texto consagrado no art. 166, § 1° do novo CPC, a Lei da Mediação, apesar de
consagrar a confidencialidade como princípio informador dessa modalidade de solução
consensual de conflitos (art. 2°, inciso VII, CPC), admite exceções, como veremos mais a frente.

Por sua vez, o art. 14 do antigo P.L. n° 4.827/98 também consagrava a confidencialidade como
regra, e admitia uma única exceção: a expressa convenção das partes.

A confidencialidade se insere no rol das obrigações de não fazer. Trata-se da proibição


imposta ao mediador e a todos os que participaram, direta ou indiretamente do
procedimento, de expor a terceiros as informações obtidas durante o seu desenrolar.

Ou seja, a confidencialidade abrange não apenas o mediador, mas também as partes


(mediandos), seus advogados, quando presentes, comediadores e observadores do processo
de mediação, independentemente da sua natureza e do objetivo da observação.

A confidencialidade é regra universal em termos de mediação, até porque é uma das


propaladas vantagens desse procedimento, e responsável por atrair muitos interessados.

Ademais, a confiança é o ponto central da mediação. Nesse passo, a confidencialidade é o


instrumento que confere este elevado grau de compartilhamento.

Assim, as partes se sentem à vontade para revelar informações íntimas, sensíveis e muitas
vezes estratégicas, que certamente não se exteriorizariam num procedimento orientado pela
publicidade.

Importante assentar, ainda, que a confidencialidade resguarda a proteção do processo em si e


de sua real finalidade, permitindo, com isso, que não se chegue a resultados distorcidos em
favor daquele que se utilizou de comportamentos não condizentes com a boa-fé.
Desse modo, uma vez compreendida a confidencialidade sob esses termos, verifica-se que ela
se consubstancia em um importante fator de garantia de funcionalidade da própria
mediação.

Não é por outro motivo que o Código Civil e o novo Código de Processo Civil expressamente
ratificam esse entendimento, mediante a positivação do segredo profissional.

Conformação legislativa da confidencialidade no CPC e na Lei de Mediação

Retornando ao exame dos dispositivos da Lei n° 13.140/15, fica claro que a regra geral é, de
fato, a confidencialidade, que aliás já havia sido alçada ao patamar de princípio fundamental
da mediação, por força do art. 2º, inciso VII da mesma Lei.

Assim é inegável que o art. 30 da Lei de Mediação confere especial proteção à


confidencialidade.

Porém, o instituto da mediação embora confidencial, não pode ser secreto. Essa distinção
assume especial relevância quando tomam parte no procedimento ou a Fazenda Pública ou
órgãos que defendem interesses coletivos em sentido amplo (difusos, coletivos ou individuais
homogêneos).

Desse modo, não podemos perder de vista que, em hipótese alguma, a sua utilização pode ser
admitida como forma de ilidir a transparência e a impessoalidade que devem sempre nortear o
uso da coisa pública. Além do mais, a mediação, como todos os outros meios de resolução de
conflito, guarda estrita correlação com os mais altos padrões éticos de conduta.

Conclui-se, portanto, que o referido princípio da confidencialidade, apesar de ser essencial ao


procedimento de mediação, não é e nem pode ser absoluto, razão pela qual bem se conduziu
o legislador pátrio ao prever, expressamente, as exceções a confidencialidade.

Como é o consenso que rege toda a estrutura da referida Lei, é permitido que as partes
interessadas, de comum acordo, renunciem ao sigilo. Essa circunstância deve ser esclarecida,
ao início do procedimento, pelo mediador.

É possível, ainda, que a divulgação seja exigida pela Lei. Será o caso da mediação envolvendo a
Administração Pública e seus entes (art. 32 da Lei), em razão do princípio da publicidade
insculpido no art. 37 da Carta de 1988, ressalvadas as hipóteses cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado, nos termos dos arts. 5º, XXXIII, da Constituição Federal,
e 3º, I, e 27 da Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação).

Finalmente, é possível também que a divulgação seja necessária ao cumprimento do acordo.


Imagine-se, por exemplo, que ao fim da mediação as partes chegam a bom termo, e fica
pactuado que uma delas deve cumprir determinada obrigação de fazer. Caso não haja o
cumprimento voluntário, será preciso iniciar um processo de execução, que terá como título
executivo o próprio termo de mediação (art. 784, inciso IV do novo CPC).

Em sendo necessária a execução judicial do acordo, deverá ser observado o princípio da


publicidade previsto no art. 189 do CPC/2015.

O § 1o do art. 30 da Lei prevê a extensão subjetiva e objetiva do dever de confidencialidade.


No plano subjetivo, como já vimos, ele alcança o mediador, as partes, seus prepostos,
advogados, assessores técnicos e quaisquer outras pessoas de sua confiança que tenham,
direta ou indiretamente, participado do procedimento de mediação.

No plano objetivo, esse dever abrange: a) a declaração, opinião, sugestão, promessa ou


proposta formulada por uma parte à outra na busca de entendimento para o conflito; b) o
reconhecimento de fato por qualquer das partes no curso do procedimento de mediação; c) a
manifestação de aceitação de proposta de acordo apresentada pelo mediador; d) o
documento preparado unicamente para os fins do procedimento de mediação.

O § 2o do art. 30 da Lei determina que a prova apresentada em desacordo com as regras


acima não será admitida em processo arbitral ou judicial. A disposição é de extrema
relevância, na medida em que oferece uma garantia efetiva à parte que se dispôs a revelar
informações muitas vezes íntimas ou mesmo estratégicas para um futuro processo, no afã de
chegar a um acordo.

Imagine-se, por exemplo, que uma das partes, de má-fé, faz a outra crer que há possibilidade
de acordo. Com isso, essa outra revela uma informação até então preservada para a fase
instrutória de uma eventual e futura ação judicial.

De posse da informação desejada, a outra abandona a mediação e reorganiza sua estratégia


para o processo judicial, agora em situação de manifesta vantagem. Como se isso não
bastasse, produz em juízo aquele elemento de prova, salientando, ainda, que o mesmo foi
revelado espontaneamente pela parte adversa. Tal situação, por óbvio, não poderia
prosperar.

Finalmente, nos §§ 3° e 4° do artigo 30 da Lei, vamos encontrar mais duas exceções à


confidencialidade.

O § 3o dispõe que não está abrigada pela regra de confidencialidade a informação relativa à
ocorrência de crime de ação pública.

Assim sendo, no caso da mediação extrajudicial, uma vez identificado o crime de ação pública,
o mediador tem o dever tomar as providências necessárias, ou seja, comunicar o fato à
Presidência da Câmara, para que promova a devida notificação à autoridade policial ou ao
Ministério Público.

Outrossim, se a mediação for judicial, a informação do crime deverá ser consignada em ata e
remetida ao juiz competente para a adoção das providências necessárias pelo centro judiciário
de solução consensual de conflitos.

Em ambos os casos, a omissão do mediador pode configurar o tipo penal da prevaricação, já


que o art. 8° da Lei de Mediação equipara o mediador, no exercício de suas funções, ao
servidor público, para fins penais.

Observe-se que o dispositivo ressalva apenas os crimes de iniciativa pública, ficando excluídas
as figuras abrangidas pela ação penal privada, tais como o dano, a maioria dos crimes contra a
honra, e o exercício arbitrário das próprias razões, para citar as mais comuns.
Por outro lado, o legislador não distingue entre as hipóteses de ação penal pública
incondicionada ou condicionada à representação do ofendido. Aqui, o texto legal apresenta
relevante falha técnica.

A exceção à confidencialidade deveria contemplar apenas as hipóteses de ação


incondicionada. Isso porque, nas condicionadas, sempre haverá, pelo menos até a sentença, a
possibilidade de retratação por parte do ofendido, o que é bastante comum, sobretudo nas
hipóteses que se submetem ao procedimento dos juizados especiais criminais, como é o caso
da ameaça, da lesão corporal e da lesão culposa na condução de veículo automotor.

Cremos, ainda, que o dispositivo deve ser interpretado restritivamente, a fim de alcançar
apenas os crimes não sujeitos à causa de extinção da punibilidade. Assim, se houver alguma
das hipóteses previstas no art. 107 do Código Penal, entendemos que não deve haver
rompimento da confidencialidade. Podemos citar como exemplos os fenômenos da prescrição,
da decadência ou mesmo da morte do agente.

Além disso, temos para nós que o dispositivo deveria abranger, também, notícias de atos de
improbidade administrativa, assim definidos pela Lei n° 8.429/92. Tal afirmação se justifica na
medida em que tais condutas são, na maioria das vezes, mais graves e com maior
potencialidade lesiva do que certos crimes sujeitos à ação penal pública condicionada.
Ademais, não custa lembrar que o art. 17, § 1° da referida Lei não permite qualquer tipo de
acordo ou consenso em matéria de improbidade .

Chegamos, então, ao § 4° do art. 30 da Lei de mediação. Tal dispositivo prevê que "a regra da
confidencialidade não afasta o dever de as pessoas discriminadas no caput prestarem
informações à administração tributária após o termo final da mediação".

O dispositivo vem preencher lacuna então existente, e que já ocasionou conflitos entre o Fisco
e contribuintes ligados às câmaras arbitrais. De fato, não nos parece razoável que o manto da
confidencialidade possa ser estendido a ponto de ocultar da autoridade fiscal a movimentação
financeira da câmara ou mesmo do mediador passível de incidência de tributos, como é o caso
do imposto de renda ou mesmo do imposto sobre serviços.

Observe-se, contudo, que as informações que interessem à administração tributária devem ser
divulgadas, apenas com o objetivo do adequado exercício da fiscalização tributária, mas o
sigilo delas passa a abranger também os servidores que operem com essa fiscalização.

Chegamos, então, ao art. 31 da Lei de Mediação. Esse dispositivo regulamenta que a


confidencialidade é aplicável às sessões privadas que podem ser conduzidas pelo mediador
durante o procedimento da mediação.

Denominadas caucus por parte da doutrina, e abominadas por algumas escolas de mediação,
como o tradicional P.O.N. da Harvard Law School, as sessões privadas são utilizadas pela
maioria dos mediadores como valioso instrumento para a equalização e balanceamento do
procedimento, sobretudo quando o profissional percebe que as partes estão em diferentes
pontos de compreensão e entendimento, ou mesmo quando há indícios de que apenas uma
delas está agindo de forma colaborativa.

As sessões privadas também são bastante utilizadas para que o mediador, juntamente com
apenas uma das partes e seu advogado, conduza, junto com eles, o chamado “choque de
realidade”, com o objetivo de fazer com que aqueles envolvidos analisem a fundo as
consequências de seu comportamento durante o processo de mediação e as opções existentes
caso não se atinja um consenso com a outra parte.

Toda e qualquer informação revelada na sessão privada não pode ser compartilhada com os
demais personagens da mediação, salvo se houver expressa autorização daquele que a
disponibilizou. E isso assume uma especial relevância e, ao mesmo tempo, cria uma tensão a
mais, na mediação judicial .

Como se vê, a confidencialidade na mediação aparece de duas formas: no ofício do mediador,


no que se refere às informações reveladas nas sessões privadas, e quando aplicada a todos os
que estiverem presentes às sessões de mediação, como forma de preservar os atores daquele
processo de qualquer exposição pública acerca da disputa ali travada.

Em ambas as situações, verifica-se a importância da confidencialidade para o processo de


mediação e para a construção de confiança entre as partes e entre elas e o seu mediador. No
entanto, somente a prática no Brasil dirá se a confidencialidade será de fato um dos princípios
norteadores da mediação, ou se será excepcionada, como em casos, por exemplo, envolvendo
entes públicos ou interesses de grande número de pessoas.

A confidencialidade nos procedimentos de mediação envolvendo o Poder Público

Conforme dados divulgados pelo CNJ, a Administração Pública brasileira é a parte que possui
o maior número de processos judiciais em andamento no país. Nada obstante, cumpre
destacar que pouco ainda se produziu sobre as peculiaridades da resolução consensual de
conflitos envolvendo o poder público, seja a nível normativo, doutrinário ou jurisprudencial.

Todavia, a necessidade se torna evidente ao passo que o regime jurídico diferenciado da


Administração Pública em relação aos particulares, implica limitações relevantes no momento
de celebrar acordos.

A Lei 13.140/15 trata da autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de
direito público em seu Capítulo II. Dessa maneira, quando o legislador implanta o sistema de
solução de controvérsias nesse tipo de relação, "favorece o desenvolvimento das atividades
administrativas e da governança pública, o atendimento das demandas e anseios dos cidadãos,
bem como do setor produtivo", segundo Maria Tereza Fonseca Dias.

Já no tocante ao princípio da confidencialidade e a Administração Pública há um ponto


sensível, no que permite a atividade de conciliar o dever de sigilo e o princípio da publicidade
dos atos públicos, que é típico do poder público, como prevê a Constituição federal de 1988,
em seu art. 37, caput.

Além disso, a Lei de Acesso à Informação, nº 12.527/2011 , que regulamenta o direito


constitucional do cidadão solicitar e receber dos órgãos públicos e de todos os entes e
Poderes, informações públicas por eles produzidas ou custodiadas, prescreve o sigilo como
exceção, definindo o que é informação sigilosa.

A doutrina majoritária defende que, quando houver mediação com pessoa jurídica de direito
público, o procedimento não deverá seguir as regras da confidencialidade, pois há prevalência
do interesse público na publicidade das informações obtidas, em detrimento do interesse no
acordo sobre o litígio que envolva a administração pública.

Dessa maneira, deve ser garantida a transparência nas sessões de mediação da qual alguma
pessoa jurídica de direito público faça parte, com a exceção dos casos em que a própria Lei
12.527/2011 preserve o sigilo das informações.

Apesar de as informações sob a custódia do Estado serem notadamente públicas, o acesso a


elas deverá restringido em alguns casos específicos e por um período de tempo determinado.
A Lei do Acesso à Informação prevê como exceções à regra geral, os seguintes dados: pessoais,
as informações classificadas por autoridades como sigilosas e as informações sigilosas com
base em outras leis.

De acordo com o art. 31 da Lei 12.527/2011 , os dados pessoais não são públicos e terão seu
acesso restrito, podendo ser acessados apenas pelos próprios indivíduos e por terceiros, estes
apenas em casos excepcionais

As informações classificadas como sigilosas são aquelas que a divulgação possa colocar em
risco a segurança da sociedade ou do Estado, estando expressamente dispostas no art. 23 da
lei 12.527/2011 . Em vista disso, o acesso a elas deverá ser limitado por meio da classificação
da autoridade competente, apesar de serem informações públicas.

Já as informações sigilosas com base em outras leis, são aquelas amparadas por outras
legislações, tais como os sigilos fiscal, industrial e bancário a título de exemplo.

Porém, Marco Antônio Rodrigues (PGE-RJ), entende que embora seja regra geral a superação
da confidencialidade pela publicidade, esta não é absoluta. À luz do instituto ponderação de
princípios, tem-se a possibilidade de existirem valores que justifiquem a não incidência da
publicidade em situações específicas, seja por previsão legal ou por decisão judicial, se a
mediação for incidental no processo.

Seguindo essa linha, encontramos os Enunciados nºs 6 e 36 do I e II Fórum Nacional do Poder


Público, respectivamente.

Considerações Finais

É possível, contudo, que com a prevalência do princípio da publicidade na mediação em


relação à confidencialidade, haja certo desestímulo de algumas partes à realização de acordos
com o poder público, pois um de seus pontos mais atrativos seria exatamente o sigilo que a
mediação garante.

Contudo, ainda é cedo para se fazer uma avaliação mais precisa quanto a esse ponto, na
medida em que não temos, ainda, um quantitativo representativo apto se sujeitar a um estudo
de casos.

O legislador poderia, talvez, ter sido um pouco mais claro. Nesse sentido, não custa lembrar
que há dispositivo expresso na Lei de Arbitragem, fruto da inovação introduzida no § 3° do art.
2° pela Lei n° 13.129/2015.
Conclui-se então que, em regra, prevalece o princípio da publicidade sobre a
confidencialidade. A publicidade do acordo e dos motivos que levaram a Administração Pública
a celebrar esse pacto é garantida.

Obviamente, não se pode aniquilar por completo a confidencialidade; esta garantia estará
devidamente preservada no que se refere à intimidade do interessado na mediação,
principalmente nas tratativas, podendo variar em cada caso, sempre observadas as hipóteses
previstas na lei de acesso à informação.

1.4 - O que é isso que o código de processo civil chama de tutela


provisória?
(Palestra de Alexandre Freitas Câmara no IV CONGRESSO DE PROCESSO CIVIL DE
FLORIANÓPOLIS – ESA)

Tutela provisória é um tema que é muito importante na prática do advogado, na prática do


magistrado, mas que é também um tema que, do ponto de vista teórico, gera uma série de
questões, de dúvidas, dificuldades e de perplexidade.

O que o código de processo civil chama de tutela provisória?

Para CPC/15, chama-se tutela provisória aquela que não é definitiva. A expressão tutela
definitiva não aparece no código, mas é a partir dela que a gente tem que tentar entender o
que é isso que o código chama de tutela provisória.

Tutela é proteção, tutelar é proteger.

Tutela jurisdicional ou tutela processual definitiva: é aquela que se obtém ao final do


processo e que é revestida de uma especial autoridade chamada coisa julgada, que torna esse
resultado Imutável e indiscutível.

Mas é possível obter, antes desse momento final, outra proteção menos intensa, porque não
será revestida dessa especial autoridade de coisa julgada. Por não ser uma tutela definitiva, o
código a chamou de provisória.

Tudo o que o código chamou de tutela provisória é mesmo tutela provisória?

Não. Pois temos tutela provisória que é provisória, mas há tutela provisória que não é
provisória, é temporária. Há uma distinção que a doutrina reconhece há décadas entre
provisoriedade e temporariedade.

Provisório é algo que se constitui para existir até que venha a ser substituído por outra coisa, e
isto que vem para o lugar do provisório é o definitivo. Há fenômenos que são criados para
durarem algum tempo e depois desaparecerem sem que nada venha para o seu lugar, sem que
nada venha a ocupar o espaço que eles antes ocupavam isso não é provisório, é temporário.

Exemplo: medida provisória. A medida provisória é provisória porque ela vai ficar ali
disciplinando a matéria sobre a qual ela versa até que venha uma medida definitiva, que é a
lei. A medida provisória tende a ser substituída pela lei, então ela é provisória. Contudo, a
contribuição provisória sobre movimentação financeira CPMF, nunca foi provisória, tendo
sido criada para ser cobrada por um determinado período: havia uma data limite e quando
chegasse essa data a CPMF pararia de ser cobrada, e nada viria a ocupar o seu lugar, então,
não é provisória ela devia ter se chamado CTMF (contribuição temporária sobre
movimentação financeira). Assim, provisória é uma coisa, temporária é outra.

Quando num processo de alimentos o juiz ao início do processo diz: “eu estou fixando
alimentos que vão vigorar até que no final do processo eu fixe novos alimentos”, estes do início
são alimentos provisórios, que vigoraram até que venha a fixação dos alimentos definitivos.

Mas quando o juiz diz: “olha, está havendo aqui um tremendo conflito sobre um determinado
bem e há o risco de que este bem ao longo do processo pereça, então vou fazer o seguinte, eu
vou pegar esse bem e vou deixar guardado no depósito judicial e ele vai ficar lá até o final do
processo, quando o processo acabar a gente vê quem ganhou pega-se o bem e entrega para
quem ganhou”, esse depósito não é provisório esse depósito é temporário, ele vai existir
durante um tempo. Quando nós não precisarmos dele, o depósito acaba e não vem nada para
o seu lugar. Apesar de o código chamar isso de tutela provisória, não é provisório, é
temporário.

Temos tutelas não definitivas, mas que proporcionam uma satisfação provisória do direito. São
tutelas não definitivas satisfativas que são verdadeiramente provisórias.

Mas nós temos tutelas não definitivas que não satisfazem o direito de ninguém, são tutelas
não definitivas meramente assecuratórias de um futuro resultado, essas não são provisórias,
mas temporárias.

E por isso o nome tutela provisória é ruim: não devia se chamar tutela provisória, mas sim
tutela sumária, porque é isto que todas elas têm em comum, elas são todas tutelas
jurisdicionais ou processuais baseadas num exame da causa menos profundo do que aquele
que se terá para a tutela definitiva para o resultado final do processo. E este exame menos
profundo, conhecido no jargão do direito processual como cognição sumária - aquela que leva
o juiz a proferir decisões com base não em juízo de certeza, mas com base em juízos de
probabilidade – é uma tutela jurisdicional sumária.

Então, quando o código diz tutela provisória ele está a dizer tutela jurisdicional que não é
definitiva e que é baseada em um juízo de probabilidade, cognição sumária. E quando é que
isso se defere? Ou seja, quando é que se concede uma tutela sumária? (provisória para usar a
terminologia da lei). Em algumas situações diferentes:

Quando houver uma situação de urgência. Então, a lei dirá “é provável que o direito exista e,
além disso, existe uma situação de perigo eminente, uma situação de urgência”. Se a parte
demonstra que provavelmente tem direito e que há o risco de se sofrer um dano iminente, e
por isso é preciso obter uma proteção urgente, se defere uma tutela processual sumária,
porque baseada na probabilidade como um remédio para nos proteger desta situação de
perigo iminente. Isso é o que o código chama de tutela de urgência (que pode ser satisfativa
ou meramente assecuratória).

Pode-se ter uma tutela de urgência que satisfaz na prática o direito, satisfaz tanto quanto
satisfaria a tutela definitiva, mas não é definitiva porque não é baseada num exame tão
profundo da causa e por isso não será capaz de revestir-se da autoridade de coisa julgada.
Pode haver tutela de urgência não satisfativa: E o código valendo-se também de uma
tradicional terminologia chamou isso de tutela cautelar. A tutela cautelar é uma tutela de
urgência não satisfativa, ela é meramente assecuratória de um futuro resultado.

Imagine, por exemplo, que alguém se apresenta em juízo como credor de uma quantia em
dinheiro, quer exigir do devedor o pagamento, mas o devedor está na eminência de transferir
do seu patrimônio para o patrimônio de terceiros todos os seus bens penhoráveis.

Então, você está numa situação em que percebe que o devedor está na iminência de passar
tudo para o nome do “laranja”, você ainda não pode exigir o pagamento, mas precisa, pelo
menos, da apreensão de bens do devedor que garantam que no futuro você receba o que
tinha devido, e aí se determina o arresto, aprendem-se bens do devedor, não para que eles
sejam imediatamente entregues ao ganhador, mas para que eles fiquem depositados e no
final do processo está assegurado que ele receberá o valor, porque garantiu-se os meios que
viabilizaram a satisfação do crédito, isso é uma tutela de urgência meramente assecuratória,
o código deu um nome pra ela, tutela cautelar.

Tem outra tutela que o código chama de provisória, que não é de urgência, é a tutela da
evidência, e a tutela da evidência é uma tutela sumária, é uma tutela não definitiva que não
precisa de urgência, ela dispensa a urgência, e porque a gente aqui não precisa da urgência?
Por que aqui nós temos probabilidades muito fortes, isso que o código chama de evidência nós
poderíamos chamar de uma quase certeza, é uma probabilidade tão intensa, tão forte da
existência do direito que é uma quase certeza de que o direito existe, e como há uma quase
certeza da existência do direito nós vamos proteger a parte, mesmo não existindo urgência.

A tutela de evidência não é novidade do CPC/15. O código de processo civil não criou a tutela
da evidência, ampliou os casos.

Exemplo de tutela da evidência que é mais do que milenar: liminar em ação possessória de
força nova é tutela da evidência. Quando se ajuíza uma ação de reintegração de posse dentro
de ano e dia contado esbulho, o autor traz com a inicial ou produz em audiência de
justificação prova de que tinha a posse, de que sofreu o esbulho e de que isso ocorreu no
máximo um ano e um dia, antes do ajuizamento da demanda, o que faz o juiz
independentemente de urgência deferir a liminar. Trata-se de tutela da evidência, na hipótese
de se conceder a tutela não definitiva porque existe abuso do direito de defesa ou o
manifesto propósito protelatório, o que já era tutela da evidência no código anterior.

Agora o código atual criou outras hipóteses de tutela da evidência, exemplo é o art. 311, II:
Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo
de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: (...) II - as alegações de fato
puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento
de casos repetitivos ou em súmula vinculante.

A tutela da evidência não está ligada à urgência, pelo contrário, ela prescinde da urgência, a
tutela da evidência é um mecanismo de redistribuição do ônus do tempo do processo.

Historicamente todo o peso da demora do processo recaiu sobre os ombros do autor. O autor
é aquele que vai a juízo em busca de algo que ele não tem e que só vai conseguir obter através
do processo, o réu é aquele que quer que ao final do processo as coisas fiquem exatamente
como elas estavam no começo.
Pense numa ação possessória, o que o autor quer é tirar o réu do imóvel para poder ficar lá, já
o réu quer continuar no imóvel. Pense numa ação revisional de aluguel, o que o autor quer é
mudar o valor do aluguel, o que o réu quer é que o valor do aluguel fique como está. Pense
numa ação para a cobrança de dinheiro, o autor quer uma parte do dinheiro que está na
conta bancária do réu, o réu quer que aquele dinheiro continue na conta dele.

O problema do tempo do processo é que durante todo o tempo do processo as coisas ficam
do jeito que o réu quer que fique, e se lá no final do processo se der razão ao autor, aí o
autor terá acesso ao bem que ele buscava, já o réu ficará privado de seu bem. O que a tutela
da evidência promove é uma redistribuição disso, ela inverte o ônus do tempo.

Exemplo: O STJ julgou recurso repetitivo dizendo que se uma instituição financeira mandar
para minha casa um cartão de crédito que eu não solicitei ela tem que me pagar um valor a
título de dano moral. As instituições financeiras continuam mandando cartão de crédito para
todo mundo que não pediu. Continuam mandando porque a pessoa vai ter que ir ao judiciário,
vai ter que pedir uma reparação de dano, o banco vai ser citado, vai contestar, o processo vai
demorar, há possibilidade de a pessoa precisar comprar alguma coisa no cartão, aí as
instituições vão contando com o tempo que beneficia o réu.

Vamos pensar agora como é que ficam as coisas com a tutela da evidência: o autor ajuíza
inicial e diz o seguinte: “olha, eu recebi um cartão que não pedi, está aqui a prova: o cartão”.
Tudo que o autor tem que provar e que ele recebeu o cartão, ele não tem que provar que não
pediu, a instituição financeira que vai ter que provar que ele pediu, esse ônus probatório é
dela. Então, o autor junta o cartão à inicial e requer a pretensão de receber uma reparação do
dano moral, o que tem apoio num acórdão do STJ, proferido no julgamento de recurso
repetitivo, Então, o que o juiz tem que dizer logo receber a inicial: “1. condeno provisoriamente
o réu a pagar ao autor cinco mil reais a título de dano moral; 2. Cite-se”, então, enquanto o réu
está sendo citado aqui, o autor já está fazendo a execução ali, e o banco já está sendo
intimado para pagar aquele valor em 15 dias, sob pena de multa de 10% e honorários
advocatícios de 10%, para o cumprimento de sentença.

“Mas o banco ainda nem foi à audiência de conciliação!”.

Quem tem interesse que esse processo seja rápido agora: o banco. Ele que vai correr pra
provar que aquele autor pediu aquele cartão e com isso tentar revogar aquela medida que não
é definitiva e por isso o código chamou de provisória. A gente inverte o ônus do tempo.

“Mas os bancos sempre mandam um cartão que ninguém pediu”

Então, eles vão perder todas as demandas e vão perder rápido. Sabe qual vai ser o resumo
dessa história? No final, vão parar de mandar o cartão e é isso que tem que acontecer. Então,
a tutela da evidência nos faz repensar o modo como se distribui o ônus do tempo.

2 - DIREITO ADMINISTRATIVO
2.1 - Pode o Estado sofrer dano à honra e à imagem?
(Palestra por Carlos Edison Monteiro, Procurador da PGE-RJ, em 29 de maio de 2017, na PGE-
RJ)

Aqui, o Estado está como vítima de violação dos direitos à honra e à imagem. Em
Procuradorias sempre se pensa no Estado no outro polo, mas deve-se analisar o Estado como
autor também de algumas demandas. Especificamente, busca-se saber se o Estado, como
Pessoa Jurídica de Direito Público que é, pode sofrer danos extrapatrimoniais. Essa questão
vem movimentando a doutrina e ainda não é pacificada, em que pese a Súmula 227 do STJ12,
que afirma a possibilidade da pessoa jurídica sofrer danos morais.

Via de regra, só se consegue pensar em duas situações aqui:

1. Difamação - uma crítica, um ataque à reputação da pessoa jurídica;


2. Abalo de crédito - cobranças indevidas, protestos indevidos.

Essas duas situações fizeram com que a jurisprudência passasse a entender pela possibilidade
de haver danos morais para a pessoa jurídica, de que ela poderia receber por uma reparação
no plano extrapatrimonial.

Como se travou esse debate? Quais eram os argumentos contrapostos? De um lado entendeu-
se que a pessoa jurídica poderia sofrer dano moral na medida em que era detentora de uma
honra objetiva, e não de honra subjetiva (importou certos conceitos do direito penal, que os
utiliza para diferenciar os crimes de calúnia, difamação e injúria). Esses seriam o argumentos a
favor, essa diferenciação. Concluindo que a pessoa jurídica é titular de honra objetiva, (não
podendo sofrer a injúria) e tem esse espectro, que a projeta perante a sociedade. Possui uma
reputação, uma imagem, que a qualifica e a torna importante para a persecução da sua função
social. Essa honra objetiva pode ser, segundo o STJ e a doutrina predominante, passível de
violação a gerar a reparação de danos morais.

Essa constatação de que a pessoa jurídica detém uma honra objetiva ainda é muito criticada,
pois honra seria característica própria do ser humano. Sendo assim, a pessoa jurídica é incapaz
de sentimento, incapaz de sofrer os danos existenciais próprios da pessoa humana. De fato,
direitos existenciais não existem, quando relacionados à pessoa jurídica. Desde o advento da
Súmula 227 do STJ, em 1999, as vozes dissonantes continuaram.

A discussão se estende para saber se as pessoas jurídicas são ou não titulares de direitos da
personalidade. A resposta é negativa. Porém, há regra no art. 52 do CC13, de ponto de vista
pragmático, que afirma que se aplicam às pessoas jurídicas, NO QUE COUBER, essa proteção
dos direitos da personalidade. Isso não quer dizer, em momento algum, que elas são titulares
de direitos da personalidade, que são próprios da pessoa natural.

Casuisticamente, para a pessoa jurídica e seu dano à honra e à imagem, ou há:

1. Difamação (ataques à honra objetiva, à imagem, à reputação da pessoa jurídica);


2. Abalo de crédito (cobranças indevidas, protestos indevidos de duplicatas etc);

12
Súmula 227 do STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.
13
Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.
3. Improbidade administrativa - pensando especificamente em pessoa jurídica de direito
público, no caso do Estado, há esse terceiro grupo possível, que são os casos relativos
à improbidade administrativa.

Pensando no primeiro grupo, da difamação, há julgado emblemático do Min. Luis Felipe


Salomão, no STJ, sendo considerado acórdão paradigma14:

“DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL.


INFORMAÇÕES VEICULADAS EM REDE DE RÁDIO E TELEVISÃO. AÇÃO
INDENIZATÓRIA POR DANO MORAL AJUIZADA POR MUNICÍPIO
CONTRA O PARTICULAR. IMPOSSIBILIDADE. DIREITOS
FUNDAMENTAIS. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO.
RECONHECIMENTO LIMITADO. 1. A tese relativa à indenização pelo
dano moral decorrente de ofensa à honra, imagem, violação da vida
privada e intimidade das pessoas somente foi acolhida às expressas
no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição Federal de
1988 (artigo 5º, incisos V e X), que o alçou ao seleto catálogo de
direitos fundamentais. Com efeito, por essa ótica de abordagem, a
indagação acerca da aptidão de alguém sofrer dano moral passa
necessariamente pela investigação da possibilidade teórica de
titularização de direitos fundamentais, especificamente daqueles a
que fazem referência os incisos V e X do art. 5º da Constituição
Federal. 2. A inspiração imediata da positivação de direitos
fundamentais resulta precipuamente da necessidade de proteção da
esfera individual da pessoa humana contra ataques tradicionalmente
praticados pelo Estado. É bem por isso que a doutrina vem
entendendo, de longa data, que os direitos fundamentais assumem
"posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a
tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o
indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado,
e que os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se
ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos
cidadãos" (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 222-223). 3. Em razão
disso, de modo geral, a doutrina e jurisprudência nacionais só têm
reconhecido às pessoas jurídicas de direito público direitos
fundamentais de caráter processual ou relacionados à proteção
constitucional da autonomia, prerrogativas ou competência de
entidades e órgãos públicos, ou seja, direitos oponíveis ao próprio
Estado e não ao particular. Porém, ao que se pôde pesquisar, em se
tratando de direitos fundamentais de natureza material
pretensamente oponíveis contra particulares, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal nunca referendou a tese de titularização
por pessoa jurídica de direito público. Na verdade, há julgados que
sugerem exatamente o contrário, como os que Documento: 33798729
- EMENTA / ACORDÃO - Site certificado - DJe: 15/04/2014 Página 1 de

14
RECURSO ESPECIAL Nº 1.258.389 - PB (2011/0133579-9)
3 Superior Tribunal de Justiça deram origem à Súmula n. 654, assim
redigida: "A garantia da irretroatividade da lei, prevista no art. 5º,
XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade
estatal que a tenha editado". 4. Assim, o reconhecimento de direitos
fundamentais – ou faculdades análogas a eles – a pessoas jurídicas
de direito público não pode jamais conduzir à subversão da própria
essência desses direitos, que é o feixe de faculdades e garantias
exercitáveis principalmente contra o Estado, sob pena de confusão ou
de paradoxo consistente em se ter, na mesma pessoa, idêntica
posição jurídica de titular ativo e passivo, de credor e, a um só tempo,
devedor de direitos fundamentais, incongruência essa já identificada
pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão (BVerfGE 15,
256 [262]; 21, 362. Apud. SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da
Constituição e dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey,
2013 p. 639). 5. No caso em exame, o reconhecimento da
possibilidade teórica de o município pleitear indenização por dano
moral contra o particular constitui a completa subversão da essência
dos direitos fundamentais, não se mostrando presente nenhum
elemento justificador do pleito, como aqueles apontados pela
doutrina e relacionados à defesa de suas prerrogativas, competência
ou alusivos a garantias constitucionais do processo. Antes, o caso é
emblemático e revela todos os riscos de se franquear ao Estado a via
da ação indenizatória. 6. Pretende-se a responsabilidade de rede de
rádio e televisão local por informações veiculadas em sua
programação que, como alega o autor, teriam atingido a honra e a
imagem da própria Municipalidade. Tal pretensão representa real
ameaça a centros nervosos do Estado Democrático de Direito, como a
imprensa livre e independente, ameaça que poderia voltar-se contra
outros personagens igualmente essenciais à democracia. 7. A Súmula
n. 227/STJ constitui solução pragmática à recomposição de danos de
ordem material de difícil liquidação – em regra, microdanos –
potencialmente resultantes do abalo à honra objetiva da pessoa
jurídica. Cuida-se, com efeito, de resguardar a credibilidade
mercadológica ou a reputação negocial da empresa, que poderiam
ser paulatinamente fragmentadas por violações a sua imagem, o que,
ao fim e ao cabo, conduziria a uma perda pecuniária na atividade
empresarial. Porém, esse cenário não se verifica no caso de suposta
violação à imagem ou à honra – se existente – de pessoa jurídica de
direito público”.

Resumindo: a pessoa jurídica somente teria direito aos direitos fundamentais de ordem
processual. Mas não há que se falar em direito fundamental do Estado que justifique a ação de
indenização contra particular por dano à honra e à imagem. Sendo assim, não poderia ajuizar
uma ação contra o particular pretendendo tal indenização.

Na casuística de dano moral à pessoa jurídica de direito público há uma contrariedade entre a
palavra da jurisprudência - que se consolida no sentido contrário à possibilidade - e a palavra
majoritariamente favorável da doutrina de Direito Administrativo - que admite a possibilidade
de dano moral à pessoa jurídica de direito público.
Sobre o terceiro grupo, da improbidade administrativa, há dúvida se os atos geram ou não
dano à honra e imagem do estado. Lembrar do art. 12, III da Lei 8.42915, que trata da multa.
Alguns autores sustentam que essa multa tem natureza de ressarcimento dos danos morais a
favor do estado.

Concluindo, deve-se perceber que sim, o Estado pode sofrer dano à honra e à imagem. A rigor,
não se nega que as pessoas jurídicas de direito público sejam titulares de valores
extrapatrimoniais. O problema é que no confronto dos efeitos da lesão que se projeta sobre a
pessoa do ofendido, esses reflexos serão sempre patrimoniais. Há dano à honra, há dano à
imagem, mas os efeitos que geram a reparação serão sempre patrimoniais quando se tem o
Estado envolvido.

Assim, não é a natureza jurídica do bem tutelado, do interesse tutelado que define
exatamente a espécie de dano. O dano é o efeito da lesão, tendo que se superar a velha
discussão civilista entre subjetivistas (o dano moral é o sentimento de dor, de angústia, de
humilhação. São sentimentos produzidos na vítima pelo ato antijurídico. Dano = efeito da
lesão) e objetivistas (o dano moral é a lesão aos interesses extrapatrimoniais das pessoas.
Dano = lesão). Tanto é assim que de uma lesão a bem existencial (ex: integridade física,
psicofísica) pode decorrer dano material e dano moral. E, da mesma forma, a um bem jurídico
patrimonial, a exemplo da relação com entes queridos, pode também decorrer danos
patrimoniais e/ou morais, que podem ser reparados e cumulados, conforme súmula nº 37 do
STJ.

Hoje, há que se ver o efeito da lesão (pegando carona nas teorias subjetivistas, mas não a
adotando integralmente, pela questão da prova do sentimento de dor) para verificar suas
consequências na pessoa do ofendido. Assim, pode-se superar a questão de danos morais para
incapazes e para as pessoas jurídicas, por exemplo.

Não como se negar, na contemporaneidade, que a lesão atinge bens extrapatrimoniais da


pessoa jurídica. Obviamente a pessoa jurídica de direito público é titular de direitos
patrimoniais extrapatrimoniais. Ainda que seja uma pessoa jurídica de direito público sem
finalidade lucrativa, ela precisa de finalidade econômica para cumprir seu mister. Os efeitos
dessa lesão extrapatrimonial se projetam na estrutura da pessoa jurídica sempre como efeitos
patrimoniais. Muitas vezes, ainda, de difícil comprovação (e às vezes evidente).

Dessa maneira, quando se fala em dano à honra e à imagem, significa que essas lesões podem
projetar efeitos patrimoniais, que devem ser ressarcidos a favor da pessoa jurídica de direito
público. Eventualmente, ainda, mesmo que não se consiga traduzir economicamente, deve-se
aplicar, por questão de pragmática, conforme a jurisprudência, a súmula 227, e mecanismos
de quantificação semelhante a dos danos morais (muito embora não se trate de danos morais,
que tem outra lógica, outra valoração axiológica, que prevalece, pois põe em jogo a dignidade
da pessoa humana). Com isso, não se deve confundir: a pessoa jurídica é tutelada, é

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III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública,
suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor
da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de
pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
instrumento de realização de valores sociais das pessoas físicas que a integram, e todos esses
valores podem ser atingidos e podem ser objeto de reparação.

Ou seja, a pessoa jurídica não pode sofrer o dano moral propriamente dito. Ela pode sofrer
uma lesão à honra e à imagem, que geram projeções em seu patrimônio. Vale lembrar que a
pessoa jurídica não é titular de direitos da personalidade (típicos da pessoa humana, exclusivo
dessas), somente sendo titular de alguns valores extrapatrimoniais.

Há que se separar, de uma vez por todas, criando dois planos: plano da lesão e plano dos
efeitos na pessoa do ofendido. No plano da lesão são os valores que foram atingidos que estão
em jogo. Ex: destruiu um bem público e a lesão será o valor desse bem público; atingiu a honra
ou a imagem, vai ter dano patrimonial projetado na pessoa do ofendido. Quando há
dificuldade quantitativa de valorar esse microdanos (há lesão, mas não há dano mensurável do
outro lado), a jurisprudência defende que se utilize a técnica de reparação de danos
extrapatrimoniais (para se reparar o que é um dano patrimonial, em última análise). Assim, se
o estado sofre lesão à honra ou à imagem, ela deverá ser reparada. Deve-se ter em mente,
aqui, o princípio da reparação integral: a cada dano deve haver a respectiva reparação).

2.2 - Compliance na Administração Pública


(Artigo do Procurador do Município Rafael Carvalho Rezende Oliveira de 31 de julho de 2019.
Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/07/31/compliance-na-administracao-publica/)

É notório que nunca se exigiu tanto das organizações uma conduta ética, transparente e
responsável como na atualidade e é cada vez mais amplamente aceito que a ausência de uma
política corporativa de compliance e a falta de integridade tornaram-se um problema mundial
com a quantidade de escândalos, noticiada nos últimos anos, de corrupção, fraude e desvios
de conduta envolvendo o relacionamento de organizações privadas com o Poder Público.

O que é compliance?

Compliance é estar em conformidade com as leis, padrões éticos, regulamentos internos e


externos. São ações colocadas em prática, voltadas a garantir relações éticas e transparentes
entre empresas e, principalmente (mas não somente) o Poder Público.

O objetivo é que, com isso, os riscos empresariais sejam minimizados.

Nesse contexto, no Brasil, a edição da Lei federal 12.846/2013 (Lei Anticorrupção ou Lei da
Probidade Empresarial) revelou esforço pioneiro na prevenção e combate a tais práticas ilícitas
praticadas contra a Administração Pública, fomentando a emergência de um novo ambiente
de negócios em que a reputação de uma organização passa a ter valor econômico e no qual
propina, suborno e congêneres consistem em infração prevista em lei.

LEI Nº 12.846, DE 1º DE AGOSTO DE 2013.


Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de
pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração
pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.
A referida Lei cria incentivos favoráveis às pessoas jurídicas privadas para instituição de
mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de
irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa
jurídica.

Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das


sanções: (…) VIII – a existência de mecanismos e
procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à
denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de
ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.

No âmbito das organizações privadas – principalmente nas grandes corporações –, tem se


tornado prática cada vez mais consolidada o estabelecimento de mecanismos e procedimentos
internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, bem como a
aplicação de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com o objetivo de detectar e
sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos.

No entanto, para que as práticas de compliance e integridade sejam efetivas, sobretudo nas
relações público-privadas, deve existir uma via de mão dupla: não se pode esquecer do papel
fundamental a ser também desempenhado pela Administração Pública, estruturando e
implementando mecanismos, procedimentos e práticas próprios que assegurem a
conformidade de sua atuação. [4]

O regime jurídico atual: compliance no âmbito da Administração Pública Indireta

Justamente com essa finalidade, a Lei 13.303/2016 – o Estatuto das Estatais – estabeleceu,
pela primeira vez, a obrigatoriedade de as empresas públicas e sociedades de economia mista
adotarem regras, estruturas e práticas de gestão de riscos e controle interno que abranjam: (i)
ação dos administradores e empregados, por meio da implementação cotidiana de práticas de
controle interno; (ii) área responsável pela verificação de cumprimento de obrigações e de
gestão de riscos; e (iii) auditoria interna e Comitê de Auditoria Estatutário:

Art. 9º A empresa pública e a sociedade de economia mista


adotarão regras de estruturas e práticas de gestão de riscos e
controle interno que abranjam:

I - ação dos administradores e empregados, por meio da


implementação cotidiana de práticas de controle interno;

II - área responsável pela verificação de cumprimento de


obrigações e de gestão de riscos;

III - auditoria interna e Comitê de Auditoria Estatutário.

Determinou, ainda, a elaboração e divulgação de código de conduta e integridade, que


disponha sobre: (i) princípios, valores e missão da empresa estatal, bem como orientações
sobre a prevenção de conflito de interesses e vedação de atos de corrupção e fraude; (ii)
instâncias internas responsáveis pela atualização e aplicação do código de conduta e
integridade; (iii) canal de denúncias que possibilite o recebimento de denúncias internas e
externas relativas ao descumprimento do código e das demais normas internas de ética e
obrigacionais; (iv) mecanismos de proteção que impeçam qualquer espécie de retaliação a
pessoa que utilize o canal de denúncias; (v) sanções aplicáveis em caso de violação às regras
do Código; e (vi) previsão de treinamento periódico, no mínimo anual, sobre o Código, a
empregados e administradores, e sobre a política de gestão de riscos, a administradores (art.
9º, § 1º).

§ 1º Deverá ser elaborado e divulgado Código de Conduta e


Integridade, que disponha sobre:
I - princípios, valores e missão da empresa pública e da
sociedade de economia mista, bem como orientações sobre a
prevenção de conflito de interesses e vedação de atos de
corrupção e fraude;
II - instâncias internas responsáveis pela atualização e
aplicação do Código de Conduta e Integridade;
III - canal de denúncias que possibilite o recebimento de
denúncias internas e externas relativas ao descumprimento do
Código de Conduta e Integridade e das demais normas internas
de ética e obrigacionais;
IV - mecanismos de proteção que impeçam qualquer espécie
de retaliação a pessoa que utilize o canal de denúncias;
V - sanções aplicáveis em caso de violação às regras do Código
de Conduta e Integridade;
VI - previsão de treinamento periódico, no mínimo anual, sobre
Código de Conduta e Integridade, a empregados e
administradores, e sobre a política de gestão de riscos, a
administradores.

§ 2º A área responsável pela verificação de cumprimento de


obrigações e de gestão de riscos deverá ser vinculada ao
diretor-presidente e liderada por diretor estatutário, devendo
o estatuto social prever as atribuições da área, bem como
estabelecer mecanismos que assegurem atuação
independente.

§ 3º A auditoria interna deverá:


I - ser vinculada ao Conselho de Administração, diretamente ou
por meio do Comitê de Auditoria Estatutário;
II - ser responsável por aferir a adequação do controle interno,
a efetividade do gerenciamento dos riscos e dos processos de
governança e a confiabilidade do processo de coleta,
mensuração, classificação, acumulação, registro e divulgação
de eventos e transações, visando ao preparo de
demonstrações financeiras.
§ 4º O estatuto social deverá prever, ainda, a possibilidade de
que a área de compliance se reporte diretamente ao Conselho
de Administração em situações em que se suspeite do
envolvimento do diretor-presidente em irregularidades ou
quando este se furtar à obrigação de adotar medidas
necessárias em relação à situação a ele relatada.
Para tanto, a lei estabelece a necessidade de criação de estrutura administrativa adequada
para a efetividade de tais controles, prevendo, por exemplo, que a área responsável pela
verificação de cumprimento de obrigações e de gestão de riscos seja vinculada ao diretor-
presidente e liderada por diretor estatutário, devendo o estatuto social prever as atribuições
da área, bem como estabelecer mecanismos que assegurem atuação independente. O
estatuto social deve prever, ainda, a possibilidade de que a área de compliance se reporte
diretamente ao Conselho de Administração em situações em que se suspeite do envolvimento
do diretor-presidente em irregularidades ou quando este se furtar à obrigação de adotar
medidas necessárias.

Dentre as estatais, tem ganhado destaque a política de conformidade implementada pela


Petrobras, no ano de 2015, após seu envolvimento nos escândalos da Lava Jato. Fundamental
para a recuperação de sua imagem no mercado e do seu valor em bolsa, em apenas
aproximadamente quatro anos, a companhia estabeleceu, por meio de seu “Programa
Petrobras de Prevenção da Corrupção” (PPPC), um novo modelo de governança, risco e
compliance, que corrigiu graves problemas na estrutura e nos procedimentos adotados e foi
fundamental para permitir que ela retomasse sua missão institucional.

“Contamos com mecanismos de compliance que são continuamente aperfeiçoados.

As boas práticas de governança corporativa e compliance constituem um pilar de sustentação


para os nossos negócios. Nossa prioridade é atuar sempre orientados pela ética, pela
integridade e pela transparência.

Implementamos um novo modelo de gestão e governança e temos trabalhado para garantir a


conformidade dos processos e aprimorar os mecanismos de prevenção, detecção e correção,
que impeçam a ocorrência de desvios éticos.

Esse novo modelo resultou na revisão da estrutura organizacional e do processo decisório da


companhia, com a fusão de áreas, centralização de atividades, aprovação de novos critérios
de integridade para seleção de executivos, maior responsabilização dos gestores por
resultados e decisões, eliminação de alçadas individuais, entre outros.

Essas medidas contribuem para a meta da companhia de ser referência em ética e


integridade.”

Petrobras. Disponível em: http://www.petrobras.com.br/pt/quem-somos/perfil/compliance-


etica-e-transparencia/

O programa estabelece ações contínuas de prevenção, detecção e correção de atos de fraude


e de corrupção, inseridas em um sistema de integridade que inclui, entre inúmeras ações, (i)
observância de leis anticorrupção e compromissos internacionais; (ii) sistema de gestão da
ética (Código de ética e Guia de Conduta); (iii) regime disciplinar; (iv) gerenciamento de riscos
de fraude e de corrupção; (v) política de relacionamento com terceiros (fornecedores,
parceiros operacionais, contrapartes em aquisições, due diligence); e (vi) comissão para análise
de aplicação de sanções e elogios.
Na mesma linha, a recém editada Lei º 13.848, de 25 de junho de 2019 – nova lei das agências
reguladoras –, passou igualmente a impor a tais entidades a adoção de práticas de gestão de
riscos e de controle interno, bem como a elaboração e divulgação de programa de integridade,
com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à
prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção:

Art. 3º A natureza especial conferida à agência reguladora é


caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação
hierárquica, pela autonomia funcional, decisória,
administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus
dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como
pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis
específicas voltadas à sua implementação.
[...]
§ 3º As agências reguladoras devem adotar práticas de gestão
de riscos e de controle interno e elaborar e divulgar programa
de integridade, com o objetivo de promover a adoção de
medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à
detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de
corrupção.

Perspectivas do compliance na Administração Pública Direta

No tocante à Administração Pública Direta, ainda não há determinação legal expressa no


mesmo sentido. Mas é inegável que dispomos de um amplo arcabouço jurídico que caminha
nessa direção, notadamente:

(i) Lei 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa;


(ii) Decreto federal 1.171/1994, que estabelece o Código de
Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo
Federal;
(iii) Decreto 5.480/2005, que dispõe sobre o Sistema de
Correição do Poder Executivo Federal;
(iv) Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade
Fiscal), tendo por objeto aspectos éticos e morais e o
comportamento da liderança;
(v) Lei 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação; e
(vi) Lei 12.813/2013, que dispõe sobre o conflito de interesses
no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo Federal.

No entanto, tais normas não parecem ser suficientes para assegurar e obrigar a
implementação, no âmbito da Administração Pública, de um programa voltado
especificamente à estruturação de ações de conformidade e processos destinados à
prevenção, detecção e correção de atos de fraude e corrupção.

Por outro lado, diante da omissão legal, os órgãos de controle têm expedido inúmeras
recomendações aos órgãos e gestores públicos com a finalidade de difundir a adoção de
mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de
irregularidades, bem como a aplicação de códigos de ética e de conduta.
A AGU, por exemplo, tem sido a principal responsável pela expedição de orientações e pela
determinação de ações alinhadas com o aumento da transparência, a gestão adequada de
recursos, a adoção de mecanismos de punição de agentes públicos por desvios e o
estreitamento do relacionamento do Estado com a população, com o objetivo de proteger a
Administração Pública contra riscos de corrupção e garantir a adequada prestação de serviços
à sociedade.

Isso porque, indo além da mera observância das normas, a observância de uma política de
integridade e compliance pelo poder público demanda, principalmente da alta administração –
referencial da organização –, a liderança do processo de autoconhecimento do ente, mediante
a realização de um planejamento estratégico institucional, que deve, necessariamente, estar
relacionado ao planejamento governamental macro.

A alta administração deve, assim, construir uma visão clara dos objetivos da organização, da
função pública que deve cumprir, dos seus riscos, da natureza de sua atuação e dos resultados
esperados pelas partes interessadas (pessoas, grupos ou entidades que possam afetar ou ser
afetados pela atuação da organização, como cidadãos, contribuintes, agentes políticos,
servidores públicos, usuários de serviços públicos, organizações da sociedade civil,
fornecedores, mídia).

Questões relativas ao autoconhecimento de seus processos e riscos associados, por exemplo,


devem ser incluídas no planejamento. Já a prevenção e detecção de irregularidades –
integradas necessariamente ao dia a dia do órgão – devem ser indicadores obrigatórios para
análise de implementação de políticas públicas e componente natural do processo de tomada
de decisões de seus gestores.

Para tanto, cumpre ao órgão mapear atividades, processos e procedimentos, com especial
atenção às vulnerabilidades identificadas que podem trazer riscos à integridade do órgão,
como, por exemplo, o conhecimento acerca: das compras que são celebradas por meio de
contratação direta, principalmente as enquadradas como emergenciais; dos aditivos
contratuais pactuados e de que forma eles alteram a contratação original; do pagamento
realizado a fornecedores contratados; dos passos envolvidos na concessão de licenças ou
autorizações de sua competência.

Fundamental, ainda, a avaliação periódica de metas e indicadores que indiquem a efetiva


consecução das finalidades e resultados pretendidos pelo órgão, bem como dos eventuais
riscos externos e internos que possam comprometê-los.

No entanto, o planejamento estratégico por si só não dará conta da criação de um ambiente


ético e íntegro. Apenas com o desenvolvimento de uma cultura organizacional que perpasse
todos os níveis do órgão, por meio da difusão de valores construídos de acordo com os
princípios da Administração Pública – notadamente os descritos no art. 37 de nossa
Constituição –, será possível implementar de forma efetiva uma política de conformidade.

Nesse sentido, algumas medidas, capitaneadas também pela Alta Administração, revelam-se
fundamentais para se estimular um comportamento íntegro na organização:

(i) o estabelecimento de um código de ética e de conduta, que


se aplique a todos, devendo traduzir os valores e regras em
comandos simples e diretos, adaptados à realidade
operacional do órgão ou entidade;
(ii) a divulgação dos valores e regras que devem ser
respeitados por todos na organização;
(iii) a promoção de capacitações sobre ética e integridade;
(iv) a criação de uma comissão de ética, garantindo seu
funcionamento independente e imparcial; e
(v) o investimento na seleção e formação de seus dirigentes,
definindo responsabilidades, combatendo o nepotismo e
investindo na formação de líderes e processos de avaliação de
gestão.

Já no que diz respeito à interação com o público externo, ganha peso, na definição de um
programa público de compliance, a definição de regras transparentes de relacionamento com
o cidadão, o setor privado e grupos de interesse. Talvez seja justamente essa a questão mais
sensível no combate a fraudes e desvios de conduta no âmbito da Administração.

De forma geral, o comportamento e o processo decisório do agente público devem apartar-se


de questões que envolvam interesses pessoais por meio de regras que possam prevenir o
surgimento de potenciais conflitos de interesse no âmbito da relação público-privada. No
âmbito da Administração Pública federal, cabe à Lei nº 12.813, conhecida como Lei de
Conflito de Interesses, definir as situações que configuram conflito de interesses durante e
após o exercício de cargo ou emprego e estabelecer formas do agente público se prevenir
quanto à ocorrência do conflito, estabelecendo, por outro lado, punição severa àquele que se
encontrar em alguma dessas situações.

Paralelamente, a grande – e talvez maior – vulnerabilidade do compliance público encontra-


se nas mais diversas relações estabelecidas entre os agentes públicos e privados, sejam estes
usuários ou prestadores de serviço, sejam fornecedores, empresas em geral ou organizações
do terceiro setor. É inegável, por exemplo, que, em nosso país, as licitações e contratações
públicas, a expedição de atos de autorização, permissão e congêneres, o exercício do poder de
polícia e a fiscalização exercida pelos órgãos de regulação têm se revelado uma porta aberta
para fraudes e desvios de conduta.

Assim, no enfrentamento de potenciais relacionamentos duvidosos que possam surgir em


quaisquer dessas modalidades de interação público-privada, a transparência revela-se como
seu pilar fundamental – em todas as decisões, ações, planos, orçamentos, despesas,
contratos, transferências e resultados da Administração.

Por meio, por exemplo, do estabelecimento de regras claras que disciplinem a relação e
imponham limites aos agentes envolvidos, da criação de canais para prestação de informações
ao cidadão, da definição de formas de acesso aos tomadores de decisão, da previsão de
padrões procedimentais para a realização de reuniões com interessados e da instituição de
rotinas para registro e publicação das interações promovidas, bem como da divulgação à
sociedade – de forma acessível – de informações e dados relevantes, a tendência – porque
100% de garantia nunca se terá – é que a Administração atue de forma responsável e em
conformidade com sua missão pública, alocando recursos de forma eficiente e no lugar certo.
Por outro lado, a gestão pública transparente reforça a confiança das partes interessadas no
processo administrativo decisório e, consequentemente, a credibilidade das instituições e de
seus agentes.

A esse respeito, interessante destacar que foi promovida recentemente consulta pública
acerca do projeto de decreto presidencial que pretende regulamentar a governança em
contratações públicas no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e
fundacional, tendo como finalidade transformar a gestão das compras federais por meio da
implementação e criação de instâncias, mecanismos e instrumentos de governança.

Dentre seus objetivos, estão listados:

(i) a promoção do desenvolvimento nacional sustentável;


(ii) a obtenção do melhor preço, entendido como uma
conjugação de menor preço e da qualidade requerida do
objeto, primando-se por sua efetividade;
(iii) o menor custo processual;
(iv) transparência; e
(v) otimização da interação com o mercado fornecedor.

Acrescenta, ainda, como uma das funções da governança das contratações públicas, apoiar a
alocação apropriada de recursos públicos pelo uso das compras públicas como ferramenta
estratégica; e promover o direcionamento, a avaliação e o monitoramento dos processos de
contratações.

Por fim, não se pode deixar de mencionar que, também no âmbito da Administração Púbica
federal, o Decreto 9.203, de 22 de novembro de 2017, estabelece, de forma mais ampla, a
política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional,
fixando, como princípios da governança pública, a capacidade de resposta, a integridade, a
confiabilidade, a melhoria regulatória, a prestação de contas e responsabilidade e a
transparência. Nos termos do decreto, a governança pública consiste em um conjunto de
mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e
monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de
interesse da sociedade.

Com base na norma, órgãos e entidades devem, assim, implementar e manter mecanismos,
instâncias e práticas de governança em consonância com os princípios e as diretrizes
estabelecidos no próprio decreto. A conformação adequada de tais mecanismos tende a
reduzir ou até mesmo a eliminar, inclusive, excessos. Um órgão público passa a ter clareza
acerca de sua identidade ética e o programa de integridade passa a inibir eventuais avanços no
espaço de atuação específica de outro órgão ou instituição de Estado.

Conclusão

Como visto, muito tem se falado em compliance no âmbito das organizações privadas, sem
que seja dada a devida atenção à incorporação das noções de integridade e conformidade nas
instituições que integram a Administração Pública.

Se, por um lado, o estatuto das estatais e a nova lei das agências reguladoras já regulam
expressamente o tema no tocante a essas entidades, no que se refere à Administração Pública
Direta, apesar de uma ampla gama de normas tangenciar o tema, o Direito ainda carece de
uma regulação expressa a respeito.

Mas isso não significa que os órgãos públicos estejam apartados do fenômeno irremediável do
compliance. Ao contrário, a legitimidade da atuação pública demanda, cada vez mais, sua
conformidade com mecanismos e procedimentos internos de integridade e governança,
voltados à detecção e correção de desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos, bem como
a incorporação de um ambiente ético em toda a estrutura administrativa. Fundamental, a
esse respeito, que seja dada especial atenção às diversas formas de interação público-privada.

O resultado tende a ser uma gestão pública mais responsável, eficiente e transparente,
assegurando, de forma institucionalizada, que as finalidades públicas e os interesses do
cidadão sejam preservados.

DICA PED: O DECRETO RIO Nº 45.385, de 23 de Novembro de 2018. Institui o Sistema de


Integridade Pública Responsável e Transparente – Integridade Carioca e o Sistema de
Compliance do Poder Executivo do Município do Rio de Janeiro - Compliance Carioca, e dá
outras providências.

Art.1º Fica instituído o Sistema de Integridade Pública


Responsável e Transparente do Poder Executivo do
Município do Rio de Janeiro – Integridade Carioca, com o
objetivo de fomentar e manter, no âmbito da Administração
Municipal e em suas relações com usuários de serviços
públicos municipais e com terceiros, um ambiente de
legalidade, ética, moralidade, confiança mútua, probidade,
eficiência, transparência e sujeição ao interesse público,
contribuindo para a melhoria contínua do bem-estar ético-
sustentável e da efetividade da prestação dos serviços
públicos municipais.

Já a Lei nº 7753 de 17 de outubro de 2017 do Rio de janeiro DISPÕE SOBRE A INSTITUIÇÃO DO


PROGRAMA DE INTEGRIDADE NAS EMPRESAS QUE CONTRATAREM COM A ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DÁ OUTRAS PROVIDENCIAS.

Art. 1º - Fica estabelecida a exigência do Programa de


Integridade às empresas que celebrarem contrato,
consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado
com a administração pública direta, indireta e fundacional
do Estado do Rio de Janeiro, cujos limites em valor sejam
superiores ao da modalidade de licitação por concorrência,
sendo R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais)
para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00
(seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços,
mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do
contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias.
2.3 - Advogado público poderia vir a ser responsabilizado pessoalmente
por uma opinião técnica que emitir no exercício de suas funções?

Esse tema foi cobrado no último concurso para Procurador do Município do Rio de Janeiro:

Procurador da administração pública direta emite parecer, no exercício da


função prevista no art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, pela aprovação
da minuta de contrato de obra pública, a realizar-se com dispensa de licitação,
o que vem a ser acolhido pelo ordenador de despesa, que a autoriza. Em curso
a execução do contrato, terceiro representa ao Tribunal de Contas
competente, apontando ilegalidade na dispensa de licitação, seguindo-se
decisão do relator que determina: a) a suspensão do contrato até ulterior
deliberação da Corte de Controle; e (b) a apuração de responsabilidade.
Examine a responsabilidade do Procurador que emitiu o parecer jurídico
favorável à contratação direta, à vista de precedentes específicos do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

A questão trata do tema "Responsabilidade do Parecerista", que sempre foi muito tormentoso
na jurisprudência e ganhou nova importância com o recentíssimo art. 28 da LINDB. Será que
um advogado público poderia vir a ser responsabilizado pessoalmente por uma opinião
técnica que emitir no exercício de suas funções? É isto que vamos analisar.

Inicialmente, vale destacar que, como regra, o parecer é considerado um ato administrativo
de caráter enunciativo, refletindo uma opinião do parecerista. Assim, a ideia é a de que o
parecer não vincule a atuação do gestor, que pode concordar ou não com suas conclusões. de
modo que não é correto pretender responsabilizar solidariamente o parecerista por tais atos,
haja vista que o ato administrativo decisório final não é do advogado público, mas sim do
gestor. Desta forma, a responsabilização do parecerista só poderia ocorrer em casos
excepcionais, tais como quando houver dolo ou erro grave inescusável. Sobre o tema, vale
mencionar o clássico Mandado de Segurança 24.073, de outubro de 2003, segundo o qual
ficou consignado que só caberia a responsabilização do parecerista em casos extremos:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS.


TOMADA DE CONTAS: ADVOGADO. PROCURADOR: PARECER.
C.F., art. 70, parág. único, art. 71, II, art. 133. Lei nº 8.906, de
1994, art. 2º, § 3º, art. 7º, art. 32, art. 34, IX. I. - Advogado de
empresa estatal que, chamado a opinar, oferece parecer
sugerindo contratação direta, sem licitação, mediante
interpretação da lei das licitações. Pretensão do Tribunal de
Contas da União em responsabilizar o advogado
solidariamente com o administrador que decidiu pela
contratação direta: impossibilidade, dado que o parecer não é
ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração
consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir providências
administrativas a serem estabelecidas nos atos de
administração ativa. Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso
de Direito Administrativo", Malheiros Ed., 13ª ed., p. 377. II. –
O advogado somente será civilmente responsável pelos
danos causados a seus clientes ou a terceiros, se decorrentes
de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado
com culpa, em sentido largo: Cód. Civil, art. 159; Lei 8.906/94,
art. 32. III. - Mandado de Segurança deferido.” (MS 24073,
Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em
06/11/2002, DJ 31/10/2003 – grifos nossos)

Contudo, em relação ao parecer jurídico no âmbito das licitações, previsto no art. 38, PU, da
L8666, muito se discutiu acerca da possibilidade de se responsabilizar o parecerista, tendo em
vista que este parecer teria um verdadeiro caráter vinculante.

De acordo com o STF, nos autos do MS 24.584, também em 9/8/2007, o Plenário do STF
entendeu que “prevendo o artigo 38 da Lei nº 8.666/93 que a manifestação da assessoria
jurídica quanto a editais de licitação, contratos, acordos, convênios e ajustes não se limita a
simples opinião, alcançando a aprovação, ou não, descabe a recusa à convocação do Tribunal
de Contas da União para serem prestados esclarecimentos”. Assim, votou-se pela obrigação de
que os impetrantes apresentassem explicações ao TCU, considerando haver a possibilidade de
controle do ato dos pareceristas.

Isto porque a L8666 prevê, no referido dispositivo, que “as minutas de editais de licitação, bem
como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e
aprovadas por assessoria jurídica da Administração”. Desta forma, como a manifestação da
assessoria jurídica é essencial para a validade do processo licitatório, não é possível
considerá-lo como meramente opinativo, tendo em vista que ele integra o processo
decisório.

Neste sentido, o Min. Joaquim Barbosa se utilizou da doutrina do jurista francês René Chapus,
segundo o qual haveria três espécies de pareceres:

(I) facultativos: são opcionais, sendo solicitados por conveniência da autoridade que vai
decidir, a fim de obter uma decisão mais técnica;

(II) obrigatórios: é necessário que seja elaborado um parecer, por determinação normativa,
mas o gestor não está obrigado a segui-lo, podendo solicitar um novo parecer caso pretenda
adotar conduta diversa; e

(III) vinculantes: aqui a decisão administrativa estaria adstrita à conclusão do parecerista. Este
seria o caso do parecer previsto no art. 38, PU da L8666, no qual haveria efetiva "partilha do
poder decisório".

Em suma, de acordo com conclusão do professor Gustavo Binenbojm (PGE-RJ), a


jurisprudência do STF permitiria a responsabilização do parecerista nos casos de erro grosseiro
ou dolo OU quando sua opinião tiver caráter vinculante.

Sobre o tema, vale mencionar também a doutrina do professor José Vicente (PGE-RJ), segundo
o qual o tema da responsabilidade do parecerista deve seguir quatro standards: "ele será
pessoalmente responsável se (i) agir com dolo, ou (ii) cometer erro evidente e inescusável, e se
(iii) não tomar providências de cautela, sendo certo que (iv) a interpretação do que é conduta
dolosa e do que é erro evidente e escusável deve ser suficientemente restritiva para permitir a
existência de opiniões jurídicas minoritárias ou contramajoritárias, considerando que a
heterogeneidade de idéias é valor constitucional comprovadamente útil à produção dos
melhores resultados possíveis ao Direito."

Para o professor, diferentemente do que ficou decidido pelo STF, a obrigatoriedade do parecer
NÃO tem importância na responsabilização do parecerista. Trata-se de um critério formal,
estático, que não considera que a responsabilização do agente sempre se deve dar de modo
SUBJETIVO. O fato de um parecer ser obrigatório, para o autor, não desnatura sua natureza
opinativa. Não é a obrigatoriedade ou não do parecer que atrai a responsabilidade, mas a
culpa/dolo, o nexo causal e o dano.

"seja obrigatório ou facultativo o parecer, o que vai influir na responsabilização de seu


autor é a presença de dolo ou erro evidente e inescusável, o fato de haver infl uído
concretamente no curso da ação (nexo causal) e de que desta tenha decorrido algum
prejuízo (dano)."

Para somar a essa discussão, o art. 28 da LINDB veio a prever, com redação dada pela
L13655/18, que "o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões
técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro." De acordo com Gustavo Binenbojm, este artigo
veio a proteger o gestor com boas motivações, ou seja, veio a tutelar o administrador com
incentivos positivos de inovação no trato da coisa pública, e que sempre se viu "com medo" de
decidir diante da frequente busca de responsabilização pessoal pelos órgaos de controle,
apegados à literalidade da lei. Busca-se, assim, criar um "ambiente proprício à inventividade",
essencial em um contexto em que se clama por uma Administração mais eficiente.

De acordo com o autor, a opinião técnica a que alude o dispositivo compreende a


manifestação de advogados públicos no exercício de atividade consultiva. A norma dirige-se ao
parecerista e lida com o problema relativo aos limites de sua responsabilização por suas
opiniões jurídicas, tema que vem sendo até aqui tratado.

Na mesma linha do que já vinha sendo defendido pelo professor José Vicente, o professor
Binenbojm destaca que o art. 28 da LINDB veio a elucidade que, independentemente do
caráter vinculante ou não do parecer, o fato é que só haverá responsabilidade em caso de erro
grosseiro e dolo. Para o autor, "o art. 28 refere-se a opiniões e decisões, de modo que se torna
indiferente saber se há ou não caráter vinculante no parecer. O fundamental é verificar se há
dolo ou erro grosseiro".

Nesta linha, Binenbojm cita alguns exemplos do que poderiam ser considerados erros
grosseiros: aplicação de uma norma jurídica revogada, decisão que ignore a ocorrência de
prescrição e a aplicação de legislação municipal para fins de licenciamento federal.

Em conclusão, o autor afirma que o art. 28 da LINDB se apresenta como uma cláusula geral do
erro administrativo. Seu escopo, como tal é oferecer segurança jurídica ao agente público com
boas motivações, mas falível como qualquer pessoa, criando os incentivos institucionais
necessários à promoção da inovação e à atração de gestores capacitados.

2.4 - Direito Funerário e Cemiterial


(Artigo de Arícia Fernandes Correia. Desigualdade até depois da morte: ensaio sobre
segregação socioespacial e direito cemiterial. Publicado na Revista Geral do Arquivo do Rio de
Janeiro. Pág. 432-441)
a) Conceito, Atributos, Natureza, Competência

Os direitos funerário e cemiterial cuidam de todos os atos, jurídicos e materiais, que dizem
respeito ao tratamento dos mortos, desde a atestação do óbito até a exumação dos restos
mortais e, também, à guarda de seus despojos em caráter (em tese) perpétuo. Eles cobrem,
dentre outros atos, a atestação do óbito, a autópsia do cadáver, o embalsamamento do morto,
o velório do defunto e os serviços que lhe sejam acessórios, o traslado do corpo,
acompanhado do fornecimento do caixão, o sepultamento ou cremação, a manutenção da
cripta e do necrotério. Na definição de Hely Lopes Meirelles (1996, p. 322), “o serviço
funerário é de competência municipal, por dizer respeito à atividade de precípuo interesse
local, qual seja, a confecção de caixões, a organização de velório, o transporte de cadáveres e a
administração de cemitérios”.

Todos os atos relativos ao direito funerário e cemiterial têm por fundamento axiológico a
garantia da dignidade da celebração da morte, de forma que é direito fundamental, não só
para o homem, como para a humanidade, ter uma morte (neste caso, morte com a conotação
de sepultamento) digna – ou, no mínimo, não ter seu corpo cadavérico insepulto por tempo
superior ao do estágio avançado de sua decomposição, não ter sua morte discriminada em
razão de sexo, idade, raça, religião ou cor, não ter seu corpo ou túmulo vilipendiados. O
sepultamento digno é fundamental e ínsito à dignidade da pessoa humana, a qual não se
esgota em vida, senão para efeitos patrimoniais, mas se projeta para além da morte: para a
incolumidade do corpo cadavérico e para o direito ao sepultamento não discriminatório, sem
falar em outros direitos extrapatrimoniais.

Neste sentido, se o enterro em cova rasa já podia ser considerado pouco digno – o que virá de
ser modificado com a próxima regulação do serviço no âmbito do Município do Rio de Janeiro
–, que dirá aquele feito “à flor da terra”.

Mas antes de se retornar aos casos concretos em estudo, mister avançar na análise abstrata da
natureza, atributos e competência para legislar e administrar matéria concernente aos direitos
funerário e cemiterial: no âmbito das normas gerais federais/nacionais e no que diz respeito à
legislação municipal carioca.

b) Concessão dos Serviços Públicos Funerários e Cemiteriais: na Legislação Federal/Nacional


e na Legislação Carioca

Os serviços funerários e cemiteriais pertencem efetivamente à competência dos Municípios,


em função da tarefa que a Constituição lhes confere para que prestem os serviços públicos de
interesse local, bem como para que legislem acerca de matérias de idêntico raio de incidência,
conforme já teve oportunidade de se manifestar o próprio Supremo Tribunal Federal, sendo
possível conferir pela transcrição da ementa do respectivo acórdão:

CONSTITUCIONAL. MUNICÍPIO. SERVIÇO FUNERÁRIO. C.F., art.


30, V. I. - Os serviços funerários constituem serviços
municipais, dado que dizem respeito com necessidades
imediatas do Município. C.F., art. 30, V. II. - Ação direta de
inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 1221 / RJ -
Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO - Julgamento: 09/10/2003 -
Órgão Julgador: Tribunal Pleno)
Sendo públicos, os serviços funerários e cemiteriais, à luz do artigo 175 da Constituição,
podem ser prestados de forma direta, pelo próprio Ente Público que os titulariza, ou de forma
indireta, por intermédio de concessionários dos serviços, escolhidos mediante concorrência
pública.

Note-se que, muito embora ao concessionário deva ser concedido o uso do necrotério público
que irá administrar, a concessão de uso do imóvel público, neste caso, será instrumental à
prestação do serviço funerário e cemiterial, sendo, portanto, não uma concessão de uso de
bem público tout court, mas uma concessão de serviço público que a engloba. É este o
magistério de Aragão (2012, p. 401) – da possibilidade de contratos que envolvam a concessão
de bens públicos serem caracterizados como contratos de concessão de serviços – para
serviços que nem se consideram serviços públicos propriamente ditos, que dirá quando o são,
como no caso dos cemiteriais:

Há dificuldades quanto à exata caracterização de alguns


contratos complexos celebrados com a Administração
envolvendo, além da prestação de serviço, a realização de obra
pública e a utilização de bens públicos (...). Tradicionalmente,
considera-se ser essencial à conceituação de determinado
contrato como concessão de serviço público que a atividade
dele objeto seja reservada ao Estado; que o particular só possa
explorá-la mediante a concessão, mas, nos casos acima, a
atividade em si (estacionamento, teatro, etc.) não é exclusiva
do Estado. O que é exclusivo do Estado é a possibilidade de
elas serem exploradas em bem público.

Observe-se, outrossim, que a concessão dos serviços funerários e cemiteriais poderá ser do
tipo comum, regrada pela Lei Federal nº 8.987/1995 – quando os serviços puderem ser
remunerados ao concessionário mediante a só cobrança de tarifas aos usuários – ou especial,
disciplinada pela Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei Federal nº 11.079/2004): 1)
patrocinada, quando àquelas tarifas custeadas pelos usuários diretos (antes da morte) ou
indiretos (seus familiares, depois do óbito) devam ser somadas contraprestações pecuniárias
do próprio Poder Público Municipal; ou 2) administrativa, quando ao concessionário couber,
além da prestação do serviço de que o Poder Público será usuário indireto – porquanto lhe
caiba prover ao serviço em cemitérios públicos –, a construção do necrotério ou o
fornecimento de suas instalações por exemplo.

Neste caso, como a morte é um evento “líquido e certo”, se não quanto ao momento, quanto
à sua inescapável chegada, presume-se que os serviços funerários e cemiteriais de uma cidade
sejam autossustentáveis, mas, como há um direito fundamental a não se ter o corpo
cadavérico insepulto (numa atípica hipótese de direito fundamental sem titular de direito,
porquanto este esteja morto), pode-se conjecturar da necessidade de “patrocínio” do serviço,
como no caso de uma cidade pequena e demograficamente jovem ou mesmo da prestação do
mesmo acoplada à construção do cemitério em si, para um Município recém emancipado, por
exemplo, que não disponha de um necrotério, hipóteses em que as parcerias público-privadas
patrocinadas e administrativas, respectivamente, fariam, em tese, sentido.

No âmbito do Município do Rio de Janeiro, no qual se localizam os cemitérios que constituem


estudos de caso deste tópico, a Lei Orgânica já define os serviços funerários e cemiteriais como
públicos, tornando-se, assim, dispensável lei autorizativa específica, quer para sua regulação
(até porque ela já existe: trata-se do Decreto-Lei nº 88/1969), quer para sua delegação a
terceiros.

Com efeito, no campo da legislação ordinária, o Decreto-Lei nº 88/1969, promulgado quando o


Rio de Janeiro era Estado da Guanabara, veio a ser recepcionado, depois da fusão deste com o
do Rio de Janeiro – e o retorno do Rio de Janeiro à condição de Capital – como lei ordinária
municipal, a qual, por sua vez, também deve ser interpretada à luz da Constituição. Segundo
Barroso (2005, p. 509), “a partir da passagem da Constituição para o centro, passou ela a
funcionar como a lente, o filtro através do qual se deve olhar para o Direito de uma maneira
geral”.

Neste sentido, não teria sido recepcionada, pelo princípio da isonomia, a restrição da condição
de concessionários de serviços funerários e cemiteriais a entidades religiosas, prevalecendo,
no Estado Brasileiro, sua posição de laico e de garantidor da liberdade, de religião e de livre
iniciativa.

Também da Lei Municipal nº 37/1998, que trata da concessão dos serviços públicos
municipais, constam normas a serem observadas pelo Município e pelo concessionário do
serviço, sem falar nos direitos dos respectivos usuários. Na ordem infra-legal, o Regulamento
que disciplina a legislação funerária e cemiterial carioca é o Decreto de nº 3.707/1970,
complementado por regulamentos que disciplinam questões específicas.

Não há legislação federal que trate dos serviços cemiteriais e funerários em âmbito nacional,
salvo em matéria ambiental, ficando em geral a cargo de cada municipalidade, que legisla
sobre assuntos de interesse local, nos termos do art. 30, inciso I, da Lei Maior.

A concessão deve ser outorgada através de licitação, na modalidade de concorrência, em


atendimento aos artigos 30, inciso V c/c art. 175 da Constituição da República e nos termos da
legislação federal e municipal pertinentes, especialmente as Leis Federais nº 8.987/95 e nº
8.666/93, esta última, apenas subsidiariamente. No caso do Município do Rio de Janeiro ainda
cabe citar o art. 30, inciso VI, alínea “c” da Lei Orgânica do Município, que qualifica como
serviços públicos municipais os funerários, a Lei Complementar Municipal nº 37/98, que
regulamenta a delegação dos serviços públicos mediante concessão e permissão, e o Decreto-
Lei nº 88/1969, que regulamenta a prestação dos serviços cemiteriais e funerários na
Municipalidade.

c) Morte, Direito a ser Sepultado e Direitos sobre Sepulcro

De acordo com Philippe Ariès (apud SILVA, 2000, pp. 334-336)34, a história da morte pode ser
identificada em quatro fases: a “morte domada”, a “morte de si mesmo”, a “morte dos outros”
e a “morte interdita”.

O momento de “celebração” da transposição do mundo dos vivos ao dos mortos continua


sendo um rito de passagem da Humanidade; para alguns, em especial, deve se dar de forma
que a família possa permanecer “unida” mesmo depois de morta. São estes que adquirem
direitos sobre sepulcro. A todos, porém, ainda que sejam enterrados sós ou até como
indigentes, deve ser concedida uma inumação com dignidade, ainda que não tenham
adquirido direitos sobre sepulcro em vida ou que não possam ter seu jazigo comprado pela
respectiva família.
O direito fundamental a ser sepultado de forma digna – ou a não se ter o corpo cadavérico
insepulto –, portanto, pertence a todos, indistintamente, de forma que é dado ao Estado
prover à inumação dos indigentes, por exemplo. Não se confunde tal direito, todavia, com o
assim denominado “direito sobre sepulcro”: aquele que se constitui sobre o sepulcro em si –
aqui entendida a sepultura como espaço individualizável, destinado a sepultamentos –, seja
pelo respectivo titular, em vida, seja por seus herdeiros que o recebam mortis causa ou por
terceiros especificamente designados para este fim.

Na escorreita observação de Derbly:

O direito de ser sepultado é conferido a todos de forma geral e


abstrata. (...) Logo, temos duas acepções de sepultura: a
primeira, diz respeito ao direito personalíssimo de ser
sepultado quando do acontecimento MORTE, neste caso, seu
conceito é mais afinado ao conceito genérico de sepultura; a
segunda, qual seja, a de que a sepultura representa o local ou
a construção onde o morto “irá descansar”. Portanto, temos
claramente que o direito de ser sepultado não se imiscui com o
direito à sepultura, pois, são direitos diversos e com
tratamentos distintos.

A doutrina não se alinha, porém, quanto a qual seja a natureza jurídica do jus sepulcri,
podendo ser encontrada uma infinidade de teorias que o qualificam sob as mais diversas
roupagens, conforme se verifica na obra monumental de Justino Silva (2000), intitulada
Tratado de Direito Funerário.

Inicialmente, como bem destaca Justino Silva (2000), procura-se investigar a natureza jurídica
do direito sobre sepultura – direito de sepultar e de manter sepultado, que é conferido à
pessoa física (e seus sucessores), transmissível mortis causa, por força de negócio jurídico
celebrado com o concessionário do serviço cemiterial - de que se é titular: este titular pode ser
o próprio a dela fazer uso, caso obviamente a tenha adquirido quando ainda vivo, ou seus
herdeiros e sucessores, após a morte de quem adquiriu o direito (originário) sobre a sepultura.

Ainda de acordo com o referido autor, há duas realidades: a sepultura (em sentido lato), como
local ou construção para o descanso do morto, que é bem público, inalienável, imprescritível,
impenhorável e, de outro lado, o jus sepulchri, isto é o direito que alguém tem sobre esses
bens. “Insistimos: temos duas realidades – uma é a sepultura (sepultura ou sepulcro) e a outra
é o direito que se tem sobre ela”.

(...) Pontes de Miranda (apud SILVA, Tomo II, 2000, p. 20)37,


como não poderia deixar de ser de outra forma, também
notou que havia esta distinção: ‘Os cemitérios públicos são
impenhoráveis, porém não o ius sepulchri, quer se trate de
direito de tumulação em sepulcro de família, quer em pedaço
de terra de destinação sepulcral individual’.

Observe-se, outrossim, que o direito ao uso sobre sepultura difere se esta estiver localizada
em cemitério privado, pertencente a particular, ou público, integrante de patrimônio de Ente
Público. Relativamente aos cemitérios privados, o tema dos direitos sobre sepulcro pertence
ao Direito Civil, na medida em que seu funcionamento, face à natureza do serviço ali realizado,
está sujeito à permissão por parte da entidade pública, no caso, a Municipalidade, que
regulamenta, disciplina e fiscaliza sua instalação e funcionamento regular, mas não altera a
natureza e a titularidade do domínio do bem, que continua privado, embora sujeito às
limitações decorrentes do poder de polícia administrativa. Tais cemitérios poderão ter caráter
secular ou religioso.

Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikaua aborda o tema, e, discordando daqueles que veem
semelhança entre o direito de sepultar em cemitério público e privado, constata, em síntese,
relativamente ao segundo,

(...) que o jus sepulchri, o qual consiste, basicamente, no


direito de sepultar e de manter sepultados restos mortais, em
se tratando de cemitérios particulares, pode resultar de
enfiteuse ou superfície (conforme seja anterior ou posterior ao
Código Civil vigente o negócio jurídico que lhe deu
origem), concessão de uso (DL 271/67), locação ou
comodato, eis que neles se encontra o conteúdo essencial do
direito à sepultura (uso de bem imóvel e possibilidade de
transmissão mortis causa, que se distinguem quanto à
onerosidade, ao prazo de duração e à natureza real ou pessoal
do direito, o que deverá ser verificado pelo intérprete no
exame de cada caso concreto).

No entanto, interessa aqui o estudo do tema relativo aos direitos sobre sepulcro,
especialmente a jazigos localizados em cemitérios públicos, afeto ao Direito Administrativo.
Diz-se público o cemitério quando instalado em terreno público, sendo administrado
diretamente pelo Município ou explorado por terceiros através de contrato de concessão. Tais
cemitérios terão, obrigatoriamente, caráter secular, em face da natureza laica do Estado
brasileiro.

Bem, os cemitérios públicos são classificados, de forma unânime pelos administrativistas,


como bens públicos de uso especial. Confira-se a jurisprudência a este propósito:

CEMITÉRIO. MUNICIPAL. CONCESSÃO. USO. BEM PÚBLICO.


MAJORAÇÃO. TAXA. O cemitério municipal é bem público de
uso especial. Assim, é o Poder Público que detém a
propriedade de túmulos. O seu uso é concedido ao
administrado. Logo incidem as regras de Direito
Administrativo. Deve-se admitir a preponderância do interesse
da Administração Pública sobre o do particular. Dele resulta a
possibilidade da majoração dos valores cobrados pela
utilização do bem público, bem como alterar as cláusulas
regulamentares da concessão. Impedir a elevação da taxa
anual de manutenção poderia tornar inviável o funcionamento
do cemitério, na espécie. Assim, a Turma deu provimento ao
recurso. (STJ, Informativo nº 324, REsp 747.871-RS, Rel. Min.
Eliana Calmon, julgado em 21/6/2007 – grifos nossos)

ADMINISTRATIVO. CEMITÉRIO PÚBLICO. JAZIGO PERPÉTUO.


Município de Petrópolis. Concessão de uso de bem público.
Legitimidade da autora. Indeferimento de prova testemunhal.
Inércia da apelante que não recorreu desta decisão. Preclusão
temporal. Morte do concessionário. Inexistência de processo
de inventário. Transferência da titularidade aos descendentes.
Matéria regulada pelo Código de Posturas daquele Município.
Netos do concessionário que podem autorizar inumação de
cadáver na sepultura da família. Preliminares rejeitadas.
Decisão reformada. Invertida a sucumbência. Apelação
provida. (TJRJ, Des. Bernardo Moreira Garcez Neto -
Julgamento: 27/07/2011 – Décima Câmara Cível 0038587-
82.2008.8.19.0042 – grifos nossos)

JAZIGO. TRANSFERENCIA DE TITULARIDADE. ALVARA DE


AUTORIZACAO. CONCESSAO DE USO. POSSIBILIDADE. Apelação
Cível. “Jus sepulchri”. Requerimento de alvará para
transferência de titularidade de jazigo. O direito a jazigo
perpétuo constitui concessão de direito real de uso, sob
administração do concedente. No âmbito do direito
administrativo, reconhece-se e consagra-se o direito à
perpetuação da sepultura, não propriamente como direito
real, mas como concessão, figura contratual pela qual a
Administração, direta ou delegada, compromete-se a manter o
jazigo afetado à utilização que lhe é inerente, por prazo certo
ou indeterminado, de acordo com as cláusulas estabelecidas.
Assim sendo, os cemitérios estão submetidos ao regime
jurídico de direito público, que consagra a faculdade jurídica de
perpetuação da sepultura, não como direito real, mas como
concessão, figura contratual pela qual a Administração direta
ou delegada compromete-se a manter o jazigo afetado à
utilização que lhe é inerente, resultando daí a impossibilidade
de formalização de ato de alienação de “jus sepulchri” à revelia
do Serviço Funerário, afigurando-se ainda essa espécie
de bem insuscetível de avaliação e inventário. Provimento do
apelo. (TJRJ. Des. Edson Vasconcelos - Julgamento: 23/11/2005
– Décima Sétima Câmara Cível. 0008091-90.2004.8.19.0210
(2005.001.31568) – grifos nossos)

A natureza jurídica da sepultura em imóveis públicos não se confunde, todavia, com a dos
direitos que se constituem sobre sepulcros ou jus sepulchri. Para estes, Justino Silva (2000)
cataloga, conforme já se observou antes, mais de trinta naturezas jurídicas diferentes, que
estão inseridas em dois grandes grupos, a saber: 1) teorias civilistas sobre sepulturas
perpétuas, que se subdividem em: a) teorias realistas, b) direito da sepultura como direito
pessoal, c) teorias mistas ou ecléticas e d) teorias do direito fundacional e 2) teorias publicistas
sobre sepulturas perpétuas: a) teoria da conciliação de uso exclusivo com polícia, b) teoria
publicista realista, c) teoria do direito real administrativo, d) teoria da concessão
administrativa de uso, e) teoria do serviço público, f) teoria da concessão do direito de uso
administrativo, g) uso especial, h) superfície e i) enfiteuse.

A jurisprudência a respeito do tema também é claudicante, ora tratando-o como direito real
de uso, ora como direito pessoal, na modalidade de concessão de uso, corrente esta que se
pode entender como majoritária – muito embora com divergências acerca da natureza do
sepulcro em si –, num levantamento jurisprudencial adstrito aos julgados do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, circunscrição a que eventuais lides decorrentes das
relações jurídicas que exsurgem dos serviços funerários e cemiteriais prestados no âmbito dos
cemitérios, ora objeto de estudo se põem. Confiram-se alguns julgados:

APELAÇÃO CÍVEL. JUS SEPULCHRI. JAZIGO PERPÉTUO.


ESBULHO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. ADEQUAÇÃO DA VIA
ELEITA. SENTENÇA NULA. CAUSA MADURA. INADIMPLÊNCIA
VINTENÁRIA. NÃO COMPROVAÇÃO. A posse é situação fática
protegida pelo ordenamento jurídico. Trata-se de relação
estabelecida entre pessoa e coisa, fundada na vontade do
possuidor, criando mera relação de fato. Teoria Objetiva da
Posse. 2. O ordenamento jurídico brasileiro prevê medidas
protetivas específicas à tutela da posse, entre elas a ação de
reintegração de posse. 3. O juízo de primeiro grau,
considerando inadequada a via eleita, extinguiu o feito sem
resolução de mérito. A sentença reclama anulação, porque as
ações possessórias são instrumentos adequados à proteção da
posse exercida pelo concessionário do direito real de uso
perpétuo de sepulturas. Doutrina. 4. Ao contrário do
entendimento do Juiz de piso, não se poderia exigir do autor a
utilização pessoal da sepultura, sobretudo porque ainda vive.
Entretanto, no local guarda os restos mortais de seus parentes,
in casu, sua sogra, a caracterizar, ainda mais, a posse por ele
exercida sobre o sepulcro. 5. A jurisprudência pátria admite a
proteção do uso de sepulturas através do manejo das ações
possessórias. Precedentes. 6. (...). 7. O demandante logrou
comprovar que pagou as contribuições para manutenção do
cemitério até o ano de 1990, razão pela qual, na ocasião da
retomada do sepulcro, em 2008, ele encontrava-se
inadimplente por 18 (dezoito) anos, e não 23 (vinte e três),
conforme afirmado pela ré. 8. Irregular, portanto, a declaração
de caducidade do direito de uso do autor, que somente
ocorreria após vinte anos de inadimplência, nos termos do
item VIII do contrato firmado entre as partes (fls. 33) e do art.
138, §4º do Decreto Municipal nº 3.707/70, devendo ser ele
reintegrado na posse do carneiro. 9. A procedência do pedido,
aliada ao perigo de dano irreparável, consistente na remoção
desautorizada dos despojos da sogra do autor e na concessão
de uso do sepulcro a outrem, impõe o restabelecimento da
decisão que antecipou os efeitos da tutela, nos termos do art.
273, I, da Lei de Ritos. 10. Provimento do apelo, com o
restabelecimento da antecipação dos efeitos da tutela
pretendida. (Processo n. 0000965-60.2011.8.19.02.04 -
Apelação - Des. Jose Carlos Paes - Julgamento: 05/12/2012 -
Decima Quarta Câmara Civel – grifos nossos) CONCESSÃO DO
USO DE JAZIGO. TRANSFERÊNCIA PARA TERCEIROS.
IMPOSSIBILIDADE. A sentença julgou improcedente o pedido
sob o fundamento de que ao cemitério é concedida apenas a
utilização do jazigo, não exercendo o concessionário posse do
sepulcro. Este bem tem natureza extra commercium, logo fica
afetado ao uso especial de sepultamento, não se consolidando
os atributos dominiais de gozo e fruição. Se os cemitérios estão
submetidos ao regime jurídico de direito público, o qual
consagra a faculdade jurídica de perpetuação da sepultura
como concessão, há a impossibilidade de formalizar o ato de
alienação sem a aquiescência do Serviço Funerário, ora
primeiro réu. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.
(Processo n. 0073927-84.2006.8.19.0001 (2007.001.14757) –
Apelação - Des. Ferdinaldo do Nascimento - Julgamento:
24/04/2007 - Décima Nona Câmara Civel – grifos nossos)

Com efeito, no caso dos cemitérios públicos, o Ente Público é, a rigor, o titular da propriedade
(sepulcro), cujo atributo do uso passa a ser concedido ao delegatário do serviço, porquanto a
concessão de uso do imóvel público seja instrumental à concessão dos serviços cemiteriais e
dos funerários a eles correlatos, de forma que a constituição de “direitos sobre sepulcro”, nas
relações jurídicas havidas entre concessionários e permissionários de serviços públicos
cemiteriais e respectivos usuários, rege-se, a princípio, pelo direito privado, em parte
derrogada, no caso de respectivo exercício em necrotérios públicos, pela circunstância de a
natureza do imóvel (cemitério) ser pública, mas deve, sempre, sobre qualquer bem, merecer a
regulação e a fiscalização mortuária devidas por parte do respectivo ente delegante.

Para Yoshikawa, a natureza jurídica que melhor se amoldaria à espécie seria a de concessão de
direito real de uso de bem público, porquanto se trate de exercício do atributo do uso, por
terceiro, sobre bem imóvel público de uso especial (o cemitério público), regido pela legislação
imobiliária administrativa e decorrente de uma concessão do serviço cemiterial, de que a
concessão de uso do imóvel é acessória.

Trata-se, todavia, em regra, pelas razões logo acima apontadas, como concessão de uso tout
court, que corresponde ao “contrato administrativo pelo qual a Administração faculta ao
particular a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a sua destinação.
Sua natureza é de contrato de direito público, sinalagmático, oneroso ou gratuito, comutativo
e realizado intuitu personae” (DI PIETRO, 2001, p. 555). E, dando como exemplo os sepulcros, a
autora explica:

Elemento fundamental na concessão de uso é o relativo à


finalidade. Ficou expresso no seu conceito que o uso tem que
ser feito de acordo com a destinação do bem. No caso de bens
destinados à utilização privativa, o uso tem que atender a essa
destinação; é o caso, por exemplo, de bens de uso especial,
como os mercados e cemitérios, parcialmente afetados ao uso
privativo, dos bens destinados à ocupação por concessionários
de serviços públicos (...) (DI PIETRO, 2001, p. 555)

Daí se verifica que a constituição de direitos sobre sepulcro deverá ser analisada à luz da
respectiva disciplina legal, seja a específica, cemiterial, seja a administrativa, que diz com a
gestão dos bens públicos, seja a civil, que cuida das relações travadas entre o concessionário
do serviço cemiterial – e do uso do próprio cemitério – e aquele para quem se estipula a
“subconcessão” de uso de parte “individualizável” do imóvel público.
No âmbito do Município do Rio de Janeiro, a constituição de direitos sobre sepulcro se
encontra disciplinada no Decreto-Lei nº 88/1969 e no Decreto E nº 3.707/1970, cujos artigos
assim dispõem:

Art. 4º Os titulares de direito sobre as sepulturas ficam sujeitos


à disciplina legal e regulamentar referente à decência,
segurança e salubridade aplicável às construções funerárias.
(...) Art. 7º Não se admitirá a existência de mais de um titular
de direitos sobre cada sepultura. Art. 8º A sepultura cujo titular
de direitos seja pessoa física destinar-se-á ao sepultamento
dos cadáveres deste e das pessoas por ele indicadas a qualquer
tempo; no caso de falecimento do titular, aquele a quem, por
disposição legal ou testamentária, for transferido o direito
sobre a sepultura, suceder-lhe-á na titularidade, podendo,
após comunicação e comprovação da transferência “causa
mortis” perante a administração do cemitério, ratificar ou
alterar, da mesma forma que o titular original, a designação
das pessoas cujo sepultamento nela poderá ocorrer. Art. 112. -
Em cada sepultura só se enterrará um cadáver de cada vez em
cada divisão, salvo o do recém-nascido com o de sua mãe.

Observe-se que, de acordo com tal disciplina legal, o direito sobre sepulcro, constituído por um
titular em vida, equivale à aquisição, sob condição suspensiva – embora mors omnia solvit (...)
– do direito de uso da sepultura, por si ou pelos seus herdeiros, legais ou testamentários, que
o recebem por transmissão mortis causa, numa espécie de “legado cemiterial”. A norma
também prescreve que, após a transferência do direito sobre sepulcro, que só se consumará
para valer em face de terceiros, com a notificação da administração do cemitério (o Município
ou o delegatário do serviço cemiterial), o novo titular poderá ratificar ou alterar, da mesma
forma que o titular original, a designação das pessoas cujo sepultamento nele poderá ocorrer,
de forma que, no silêncio dos novos titulares, o direito vá se transmitindo automaticamente de
geração a geração, o que caracterizaria a respectiva perpetuidade.

Neste sentido, pode-se conceber que, além da hipótese normativa expressa de perda do
direito sobre sepulcro por abandono (falta de manutenção da sepultura), o fim de uma
linhagem resolva definitivamente o direito a favor do ente público ou do delegatário do
serviço, se delegação houver, ainda que na condição de bem reversível. Por outro lado,
enquanto houver herdeiros, certo é que, na medida como hoje disciplinado o direito sepulcral
local, poderá o direito ser objeto de sucessivas transmissões/cessões.

2.5 - Aplicação de sanção a conselheiros e ex -conselheiros tutelares por


faltas éticas cometidas durante o exercício do mandato anterior

A lei n° 3.282 de 10 de outubro de 2001 Dispôs sobre a implantação, estrutura, processo de


escolha e funcionamento dos Conselhos Tutelares do Município do Rio de Janeiro.

Os Conselhos tutelares são órgãos permanentes, autônomos, em matéria técnica e de sua


competência, não jurisdicionais, encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da
criança e do adolescente no Município do Rio de Janeiro, nos termos da Lei Federal n° 8.069,
de 13 de julho de 1990.

Um conselheiro tutelar que comete faltas éticas durante o exercício de mandato anterior ao
em vigor afasta o interesse público em apurar eventuais faltas e aplicar as sanções cabíveis?

Segundo o Enunciado da PGM/RJ nº 42, O posterior rompimento do vínculo entre o agente e a


Administração Pública não afasta o interesse público em apurar eventuais faltas e aplicar as
sanções cabíveis, respeitado o devido processo legal administrativo. Veja:

Enunciado PGM nº 42 - Aplicação de sanção a conselheiros e ex-conselheiros tutelares por


faltas éticas cometidas durante o exercício do mandato anterior.

É possível a aplicação de sanções administrativas a conselheiros e exconselheiros tutelares


(Lei 3.282/01) por faltas éticas cometidas durante o exercício do mandato anterior. O
posterior rompimento do vínculo entre o agente e a Administração Pública não afasta o
interesse público em apurar eventuais faltas e aplicar as sanções cabíveis, respeitado o devido
processo legal administrativo.

Referências: Manifestação Técnica PG/PADM/PE/597/2018/CZACO, Parecer PG/PADM/CAF nº


002/2016 ”

Atualização legislativa recente: Atenção, está em vigor a Lei nº 13.824/2019, que altera o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para permitir a reeleição de conselheiros
tutelares para vários mandatos. Antes da nova lei, o ECA permitia essa recondução por
apenas uma vez.

3 - DIREITO CONSTITUCIONAL
3.1 - A Judicialização das Políticas Públicas e o Supremo Tribunal Federal
(Artigo publicado por Giovanna Paola Primor Ribas e Carlos Frederico Marés de Souza Filho na
Direito, Estado e Sociedade n.44 p. 36 a 50 jan/jun 2014)

Porque o tema é importante para a prova da PGM-RJ?

Um dos membros da Banca de Direito Constitucional, o Procurador do Município Paulo


Roberto Soares Mendonça, participa como coordenador desde 2018 de um grupo de pesquisa
com essa temática!

Introdução

O Estado ainda é a grande instituição política do mundo “moderno”. Todavia, tem seu
papel redefinido, na contemporaneidade, pela formação dos blocos econômicos, pela
relativização do conceito de soberania e pelo aparente esvaziamento de seu poder pela
globalização.

O Estado é formado pela sociedade e deve perseguir os valores por ela calcados. O
modelo de Estado instituído e o direito são opções políticas. A sociedade brasileira,
personificada no constituinte de 1988, optou por um Estado Social Democrático de Direito. O
modelo de Estado Social, ao contrário do Liberal de matriz europeia, prega por uma
intervenção muito maior do Estado nas relações sociais, pois deve ser agente transformador
da realidade.

Não obstante a gravidade dos problemas sociais que assola o país, as políticas públicas, no
Brasil, têm assumido uma perspectiva marginal e assistencialista, desvinculada das questões
macroeconômicas, servindo mais para regulação ou administração da pobreza e dos danos
ambientais num dado patamar. O artigo visa debater sobre a implementação de políticas
públicas pelo Judiciário.

O Judiciário, no Brasil, na maioria das vezes foi um poder coadjuvante, por ser
considerado neutro politicamente. Apesar da visibilidade que ganhou por seu empenho em
resguardar valores desde o advento do novo direito constitucional, o Judiciário vem
enfrentando o dilema de adaptar sua estrutura organizacional, seus critérios de
interpretação e sua jurisprudência às situações inéditas nas relações sociais, fruto do
desenvolvimento urbano-industrial que fez surgir uma sociedade marcada por profundas
contradições econômicas, que exige cada vez mais tutelas diferenciadas para novos direitos
sociais e a proteção de interesses difusos e coletivos.

Com a crescente tensão marcada pela intensa migração interna, pela urbanização
desenfreada, pelas desigualdades regionais, pela crise fiscal e pelo fracasso das políticas
públicas, entre outras causas, o discurso institucional tradicional do Judiciário ficou fragilizado.

A partir da transição do regime ditatorial para o regime democrático, o Judiciário se vê


obrigado a assumir funções inéditas, por vezes incompatíveis com a estrutura jurídico-política,
típica do Estado Liberal, como o princípio da separação dos poderes, e que se reconhecidas
implicariam a ruptura do discurso institucional tradicional. Se a solução judicial de um conflito
é em essência um atributo de poder, na medida em que pressupõe não apenas critérios
fundantes e opções entre alternativas, implicando também a imposição da escolha feita, pode-
se dizer que todo julgamento sempre tem uma dimensão política.

Essa relação entre direito e política vem sendo chamada pela doutrina de
judicialização da política. Tal fenômeno, que será melhor explicitado a seguir, é oriundo da
forte crise de representatividade do Legislativo, que pode ser exemplificado por inúmeras
decisões do Supremo Tribunal Federal, como a demarcação das terras indígenas da
Raposa/Serra do Sol e o nepotismo, entre outras.

Políticas públicas e a atuação do judiciário

O conceito de política pública é muito controverso e variado. Políticas públicas como área de
conhecimento surge nos Estados Unidos, no mundo acadêmico, sem estabelecer relações
com as bases teóricas sobre o papel do Estado.
Celina Souza resume política pública como sendo o campo do conhecimento que busca, ao
mesmo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e,
quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente).

A política pública não se confunde com o plano, o programa ou a norma, que são,
normalmente, os instrumentos pelos quais elas se exteriorizam. Nas palavras de Bucci: “A
política é mais ampla que o plano e define--se como o processo de escolha dos meios para a
realização dos objetivos do governo, como a participação dos agentes públicos e privados”.

Oswaldo Canela Junior amplia adequadamente o conceito de políticas públicas:

Por política estatal – ou políticas públicas – entende-se o


conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de
acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto
de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e
decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins
primordiais do Estado.

Dessa forma, a judicialização da política é fato, e a jurisprudência do STF não nega. Resta neste
momento analisar as causas, os fundamentos e as críticas a esse fenômeno.

As causas da judicialização

Inúmeras são as causas desse fenômeno. Algumas revelam uma tendência mundial, outras são
oriundas do sistema institucional brasileiro.

Barroso aponta três principais causas da judicialização:

(i) Redemocratização do país: ao devolver à magistratura suas garantias e ao reavivar


na sociedade o espírito da cidadania, fortaleceu o Judiciário e aumentou a
demanda por justiça. O Judiciário deixou de ser um poder técnico para se
transformar num poder político, com força para fazer valer a Constituição. A
sociedade, com mais consciência e maior nível de informação, passou a buscar
com mais frequência a proteção aos seus direitos;

(ii) Constitucionalização abrangente: trouxe para o bojo da Constituição matérias que


até então eram de decisão exclusiva da política majoritária. O receio de um
retorno ao regime ditatorial fez com que o constituinte procurasse inserir o
máximo de garantias na Constituição;

(iii) Modelo brasileiro de controle de constitucionalidade: Segundo estudo de


Werneck Vianna e outros, observou-se que os instrumentos de revisão judicial,
desde a promulgação da Constituição Federal, tiveram um forte impacto na
sociedade civil e se mostraram efetivos. Verificou-se que posteriormente ao pico
de 1989-1990, decorrente do processo de revisão das constituições estaduais, o
número de ADINs voltou a crescer, indicando a consolidação dessa via de
judicialização. A judicialização não é uma escolha do Judiciário, mas deriva de um
modelo institucional vigente. O Supremo Tribunal Federal, mais especificamente, é
provocado a decidir e o faz, via de regra, nos limites dos pedidos formulados. O
sistema brasileiro não admite, como o sistema americano, o que Bickel chama de
virtudes passivas, que são ferramentas processuais que permitem a Corte
Constitucional não decidir determinado caso, visto que ela não poderia ser
compelida a legitimar aquilo que ela não considere inconstitucional.

A Constituição Federal de 1988 e a relativização do princípio da separação dos poderes

A separação dos poderes, na concepção clássica, era vista como uma garantia. A divisão
garantia que se evitasse a concentração de atribuições, e consequentemente, um governo
autocrático. A separação, como fundamento da ordenação constitucional clássica, protegia os
súditos contra o arbítrio do soberano e lhes oferecia uma visão clara das competências de cada
órgão.

A divisão dos poderes constituiu técnica fundamental de proteção dos direitos individuais,
em especial, a liberdade. Como já mencionado, a Montesquieu deve-se a mais acabada
formulação deste princípio, principal fundamento do constitucionalismo clássico e que hoje,
no entanto, apesar de já ter sofrido modificações que atenuaram sua rigidez, é alvo de críticas
severas por parte do constitucionalismo moderno (mas que não nega a importância histórica).

Hodiernamente, o princípio da tripartição dos poderes também é visto como garantia


constitucional pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerado cláusula pétrea.
Entretanto, na atual conjuntura constitucional, este princípio sofreu certa relativização.

Atualmente, o princípio da separação dos poderes deve ser encarado como um sistema de
freios e contrapesos. Esses freios, em alguns casos, assinalam num momento formas de
equilíbrio, noutro interferência. Esse sistema foi contemplado pela Constituição Federal, no
seu art. 2º, quando dispõe que os poderes são independentes, mas também harmônicos entre
si.

Principal crítica à judicialização: a dificuldade contramajoritária

Uma das grandes discussões travadas é se o Poder Judiciário tem legitimidade constitucional
para determinar um agir político do Estado. A questão que se coloca é o problema da
legitimidade democrática da função judicial.

Para Alexander Bickel, quando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo
ou uma ação do executivo eleito, isso frustra a vontade dos representantes do “atual” povo
de aqui e de agora. Está se exercendo o controle não em nome da maioria “vigente”, mas
contra.

Como contra-argumento, Barroso afirma que a ideia de democracia não se resume ao


princípio majoritário, que se move por interesse, mas se inspira em valores. O problema da
legitimidade democrática do Judiciário não é necessariamente maior que a do Executivo e a do
Legislativo, que por vezes é afetada por abuso do poder econômico, manipulação dos meios de
comunicação, etc. Barroso refuta a tese de Bickel e aponta duas justificativas que legitimam
o controle de constitucionalidade: uma de natureza normativa e outra filosófica.

Justificativa normativa: decorre da constatação de que foi a Constituição Federal que atribuiu
ao Poder Judiciário o controle de constitucionalidade.

Justificativa filosófica: parte da compreensão do que é o Estado Constitucional de Direito,


consistente na confluência das categorias constitucionalismo e democracia. Constitucionalismo
significa limitação do poder, expresso no princípio da separação de poderes e na garantia dos
direitos fundamentais; já democracia, de maneira simplista, quer dizer representatividade
popular. Essas duas categorias geram tensões, e cabe à Constituição a mediação delas,
estabelecendo regras ao jogo democrático.

Assim, para fazer valer a Constituição e para realizar os valores democráticos, exige-se do
Judiciário a sua desneutralização, liberando-se o juiz do estrito princípio da legalidade e da
responsabilidade exclusivamente retrospectiva, obrigando-o a uma responsabilidade
prospectiva, preocupada com a realização das finalidades políticas que a Constituição
prescreve, tanto quanto o Executivo e o Legislativo.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Após uma análise da jurisprudência, especificamente a do STF, observou-se que o


entendimento predominante desse Tribunal é que o Poder Judiciário, em situações
excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias
de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure
contrariedade ao princípio da separação dos Poderes. Inaugura esse posicionamento, a
decisão do Ministro Celso de Mello, na ADPF 45-9 de 2004:

Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A


questão da legitimidade constitucional do controle e da
intervenção do poder judiciário em tema de implementação de
políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade
governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional
atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do
arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e
culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do
legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do
possível". Necessidade de preservação, em favor dos
indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo
consubstanciador do "mínimo existencial". Viabilidade
instrumental da arguição de descumprimento no processo de
concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais
de segunda geração) (STF, ADPF 45-9, Relator Min. Celso de
Mello, DJ 29/04/2004).
Posteriormente a essa decisão, a posição do STF quanto ao controle de constitucionalidade das
políticas públicas, inclusive nos casos de omissão, foi cada vez mais ganhando corpo.
Atualmente, a jurisprudência do STF, neste sentido, é uníssona, com fundamento
principalmente na indisponibilidade dos direitos fundamentais. Muitas decisões vão além,
incluindo a ingerência do Judiciário mesmo em relação àqueles direitos individuais e/ ou
coletivos revestidos de conteúdo programático.

DIREITO ADMINISTRATIVO. SEGURANÇA PÚBLICA.


IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA
SEPARAÇÃO DE PODERES. OFENSA NÃO CONFIGURADA.
ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 04.11.2004. O Poder
Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a
Administração Pública adote medidas assecuratórias de
direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais,
sem que isso configure violação do princípio da separação de
poderes. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não
provido (RE 628.159-AgR, Relatora a Ministra Rosa Weber,
Primeira Turma, DJe 25.6.2013).

Observa-se, dessa forma, ante os julgados acima colacionados, que o STF assumiu uma posição
ativa no que se refere à proteção e efetivação dos direitos fundamentais positivados na
Constituição de 1988, assumindo, assim, suas decisões, um caráter político.

3.2 - Controle pelos Tribunais de Contas

Atenção! O tema já é importante, mas ele se torna ainda mais quando nós temos a Presidente
do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro na nossa banca, não é mesmo? Marianna
Montebello Willeman é Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC/Rio,
com tese sobre "O desenho institucional dos tribunais de contas no Brasil e sua vocação para
a tutela da accountability democrática" e foi designada para compor a banca de Direito
Constitucional do 8º concurso da PGM-RJ. Portanto, vamos aos trabalhos.

O Tribunal de Contas da União (TCU) é órgão de controle externo, que atua em auxílio ao
Congresso Nacional, cabendo-lhe acompanhar a execução orçamentária e financeira do país e
exercer as competências a ele estipuladas, na forma dos arts. 71 a 74 da Constituição Federal.

Segundo a doutrina mais moderna, como Diogo de Figueiredo Moreira Neto, trata-se de órgão
autônomo, não integrante do Poder Legislativo (e nem de nenhum outro Poder), que atua
auxiliando o Congresso Nacional no controle da legalidade, legitimidade e economicidade dos
atos da Administração. É o que dispõe os arts. 70 e 71, da CF:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das
entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade,
aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante
controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize,
arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União
responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal
de Contas da União, ao qual compete: (...)

O Tribunal de Contas da União é composto por 9 ministros, que possuem os mesmos direitos,
prerrogativas e impedimentos dos Ministros do STJ, conforme art. 73, caput e §§1º a 4º, da CF:

Art. 73. O Tribunal de Contas da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal,
quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as
atribuições previstas no art. 96.

(…)

§ 3° Os Ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas,


impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, aplicando-
se-lhes, quanto à aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40. (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

Os Tribunais de Contas ESTADUAIS (TCE), por sua vez, atuam em auxílio às respectivas
Assembleias Legislativas e são integrados por 7 (sete) Conselheiros, cabendo às Constituições
de cada Estado dispor sobre tais órgãos. Confira-se o art. 75, da CF:

Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição
e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e
Conselhos de Contas dos Municípios.

Parágrafo único. As Constituições estaduais disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos,


que serão integrados por sete Conselheiros.

No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, o Tribunal de Contas Estadual está


disciplinado a partir do Art. 128 da CERJ. Importante questão que vem sendo
discutida no âmbito a PGE-RJ diz respeito à composição do TCE, uma vez que a
CERJ prevê que, dos 7 Conselheiros, 4 serão escolhidos pela Assembleia Legislativa
e 3 pelo Governador de Estado.

Dentre os 3 a serem escolhidos pelo Governador, a CERJ prevê que um deles deve
ser membro do Ministério Público, mas não prevê nenhuma cadeira reservada a
Auditores do TCE, tal como dispõe o art. 73, §2º da CRFB, no plano federal.

Art. 128 - O Tribunal de Contas do Estado, integrado por sete Conselheiros, tem
sede na Capital, quadro próprio do pessoal e jurisdição em todo o território
estadual, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no artigo 158, desta
Constituição.

§ 2º - Os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro serão


escolhidos:77
I – quatro pela Assembléia Legislativa;
II – três pelo Governador do Estado, com aprovação da Assembléia Legislativa,
sendo um dentre os membros do Ministério Público, o qual será indicado em lista
tríplice pelo Tribunal de Contas, segundo os critérios de antigüidade e
merecimento.
Assim, a Associação Nacional dos Auditores dos Tribunais de Contas do Brasil
(Audicon) tem defendido que uma das vagas no TCE deveria ser preenchida por
um conselheiro selecionado em concurso, em observância ao modelo federal por
simetria, tendo inclusive ingressado em juízo questionando a nomeação de
Domingos Brazão, em 2015.

Ocorre que a carreira de Auditor ainda não havia sido criada no âmbito do Estado
do RJ, e a CERJ, como visto, não reserva nenhuma vaga de conselheiro além
daquela destinada ao Ministério Público. Além do mais, a nomeação de Domingos
Brazão se deu por uma das 4 indicações destinadas livremente à ALERJ, conforme
prevê a CERJ. Nesse sentido, confira-se a Súmula 653 do STF:

Súmula 653 do STF: “No Tribunal de Contas estadual, composto por sete
conselheiros, quatro devem ser escolhidos pela Assembleia Legislativa e três pelo
Chefe do Executivo estadual, cabendo a este indicar um dentre auditores e outro
dentre membros do Ministério Público, e um terceiro à sua livre escolha”.

Assim, mesmo em se entendendo pela aplicação por simetria do modelo federal,


não sendo a vaga de escolha do Governador, mas sim da ALERJ, não haveria
sequer como questionar tal obrigatoriedade.

Importante ressaltar que, embora a CRFB tenha estabelecido que “as constituições estaduais
disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos”, não significa que as Constituições
Estaduais possuem plena autonomia para dispor sobre a atuação das suas respectivas Cortes
de Contas, uma vez que as funções a elas atribuídas não podem afastar-se daquelas previstas
pela Constituição Federal para os Tribunais de Contas da União, por força do princípio da
simetria, que se aplica ao tema.

A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal já julgou inconstitucional lei do Estado do


Mato Grosso que estabelecia a competência do Tribunal de Contas do Estado para realizar
exame prévio de validade de todos os contratos firmados com o Poder Público, sob o
fundamento de que o art. 71, da CF, não insere na competência do TCU o controle prévio e
genérico dos os contratos celebrados pela Administração Pública (ADI 916-8). ). Em recente
julgado de 2019, o STF também decidiu que “É inconstitucional norma da Constituição
Estadual que preveja regra sobre a organização ou funcionamento do TCE de forma diferente
do modelo federal”.

“3. O art. 75, caput, da Constituição da República contempla comando expresso de


espelhamento obrigatório, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, do
modelo nela estabelecido de controle externo da higidez contábil, financeira e
orçamentária dos atos administrativos, sendo materialmente inconstitucional a norma
de regência da organização ou funcionamento de Tribunal de Contas estadual
divorciada do modelo federal de controle externo das contas públicas. 4.
Inconstitucionalidade material da expressão “e com o reconhecimento da boa-fé, a
liquidação tempestiva do débito ou multa atualizado monetariamente sanará o
processo, se não houver sido observada outra irregularidade na apreciação das
contas”, no art. 53, § 3°, bem como dos arts. 53, §§ 6º e 7º, e 55, §1º, da Constituição
do Estado do Rio Grande do Norte. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
procedente em parte. (ADI 5323, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado
em 11/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 03-05-2019 PUBLIC 06-05-
2019)
Devemos também ter cuidado com o art. 75, da CF, que faz menção aos Tribunais de Contas
dos Municípios. É preciso atenção, pois é constitucionalmente vedada a criação de Tribunais
de Contas MUNICIPAIS, como se depreende do art. 30, §4º, da CF:

§ 4º - É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.

Não confundir!
Muitos autores distinguem os termos “Tribunais de Contas dos
Municípios” e “Tribunais de Contas Municipais”, sendo vedados apenas
estes últimos, que correspondem a órgãos municipais propriamente ditos;
já os primeiros seriam órgãos estaduais, isto é, Tribunais de Contas
Estaduais que se destinam a examinar as contas de seus Municípios.
Vejamos o seguinte julgado do STF:

“Municípios e Tribunais de Contas. A Constituição da República impede que os Municípios


criem os seus próprios Tribunais, Conselhos ou órgãos de contas municipais (CF, art. 31, §
4º), mas permite que os Estados-membros, mediante autônoma deliberação, instituam
órgão estadual denominado Conselho ou Tribunal de Contas dos Municípios (RTJ 135/457,
Rel. Min. Octavio Gallotti – ADI 445/DF, Rel. Min. Néri da Silveira), incumbido de auxiliar as
Câmaras Municipais no exercício de seu poder de controle externo (CF, art. 31, § 1º). Esses
Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios – embora qualificados como órgãos
estaduais (CF, art. 31, § 1º) – atuam, onde tenham sido instituídos, como órgãos auxiliares e
de cooperação técnica das Câmaras de Vereadores. A prestação de contas desses Tribunais
de Contas dos Municípios, que são órgãos estaduais (CF, art. 31, § 1º), há de se fazer, por
isso mesmo, perante o Tribunal de Contas do próprio Estado, e não perante a Assembleia
Legislativa do Estado-membro. Prevalência, na espécie, da competência genérica do
Tribunal de Contas do Estado (CF, art. 71, II, c/c o art. 75).” (ADI 687, Rel. Min. Celso de
Mello, julgamento em 2-2-1995, Plenário, DJ de 10-2-2006.)

As competências do TCU encontram-se discriminadas no art. 71, da CF, dentre as quais


destacamos os incisos IX e X:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal
de Contas da União, ao qual compete:

IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato
cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos
Deputados e ao Senado Federal;
XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

§ 1º - No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional,
que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.
§ 2º - Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as
medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito.
§ 3º - As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título
executivo.
§ 4º - O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e anualmente, relatório de suas
atividades.

Vejamos agora as principais discussões acerca destes dispositivos.


Os Tribunais de Contas podem exercer controle sobre editais de licitação?
SIM. O STF, no RE n. 547063/RJ, admitiu que os Tribunais de Contas exercessem controle sobre
edital de licitação, com uma RESSALVA: considerou inconstitucional e ilegal a exigência genérica
de prévia remessa de todas as minutas dos editais.

“Tribunal de Contas estadual. Controle prévio das licitações. Competência privativa da União (art. 22,
XXVII, da Constituição Federal). Legislação federal e estadual compatíveis. Exigência indevida feita
por ato do Tribunal que impõe controle prévio sem que haja solicitação para a remessa do edital
antes de realizada a licitação. 1. O art. 22, XXVII, da Constituição Federal dispõe ser da União,
privativamente, a legislação sobre normas gerais de licitação e contratação. 2. A Lei federal n.
8.666/93 autoriza o controle prévio quando houver solicitação do Tribunal de Contas para a remessa
de cópia do edital de licitação já publicado. 3. A exigência feita por atos normativos do Tribunal
sobre a remessa prévia do edital, sem nenhuma solicitação, invade a competência legislativa
distribuída pela Constituição Federal, já exercida pela Lei federal n. 8.666/93, que não contém essa
exigência. 4. Recurso extraordinário provido para conceder a ordem de segurança.”

Em outras palavras, não é possível estabelecer o dever genérico de envio de todas as minutas
de editais de licitação e de contratos ao Tribunal de Contas, tendo em vista o princípio da
separação de poderes. O envio deve ser solicitado pelo Tribunal em cada caso concreto.

Sobre o tema, o art. 113 da Lei 8.666/1993 vem reforçar a ideia de que os Tribunais de Contas
podem fazer o controle das licitações e contratos da Administração. Diz o § 2º que os Tribunais
de Contas poderão solicitar, até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das
propostas, cópia do edital de licitação, “obrigando-se os órgãos ou entidades da
Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse
exame, lhes forem determinadas”.

L8666, Art. 113. O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos
por esta Lei será feito pelo Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente,
ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e
regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição e sem prejuízo do sistema de
controle interno nela previsto.

§ 2 Os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema de controle interno poderão solicitar


para exame, até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópia de
edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração
interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes forem
determinadas. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)

Assim, não há dúvidas de que a Lei autoriza que o Tribunal de Contas competente realize o
controle dos editais de licitação quanto à sua legalidade, legitimidade e economicidade.
Sendo o processo licitatório uma série ordenada de atos, qualquer um deles pode ser
apreciado e, eventualmente, sustado pela Corte de Contas, já que a própria CF lhe confere
essa competência.

Convém mencionar, no entanto, posição minoritária sustentada por Luis Roberto Barroso,
segundo o qual não seria cabível o controle das Cortes de Contas sobre os instrumentos
convocatórios de licitações. O principal argumento é o de que os editais de licitação em si não
geram despesas (o que poderá eventualmente gerá-las será o contrato que advenha da
licitação), e a função constitucional dos Tribunais de Contas é de controle das despesas
públicas.

Os Tribunais de Contas possuem competência para sustar contratos administrativos?


Polêmica ainda maior gira em torno do art. 71, §§1º e 2º, da CF, que trata da sustação dos
CONTRATOS celebrados pela Administração.

Muito se discute na doutrina sobre a possibilidade de sustação de contratos administrativos


pela Corte de Contas, uma vez que o art. 71, §1º, da CF, dispõe, expressamente, caber ao
Congresso Nacional o ato de sustação do contrato irregular. Por outro lado, o §2º, em
seguida, prevê que se tais medidas de sustação não forem adotadas pelo Legislativo no prazo
de noventa dias, o Tribunal de Contas “decidirá a respeito”.

Existem dois entendimentos em relação ao significado da expressão “decidirá a respeito”:

➢ Primeira posição: o Tribunal de Contas não pode sustar contratos administrativos,


prerrogativa reconhecida constitucionalmente ao Congresso, mas apenas rejeitar as
contas por irregularidade naquela determinada despesa contratual. Nesse sentido: Luís
Roberto Barroso, Marcos Juruena Villela Souto.

➢ Segunda posição: o Tribunal de Contas pode sustar contratos administrativos. Nesse


sentido: Egon Bockmann Moreira, Jessé Torres Pereira Junior, Marianna Montebello
Willeman, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes.

A primeira corrente sustenta a impossibilidade de o TC sustar os contratos com base,


sobretudo, no princípio da separação de poderes, afirmando que o TC não poderia substituir o
Congresso Nacional nessa tarefa. Caso o fizesse, estaria invadindo a independência dos
Poderes, pois o Tribunal de Contas não pode se sobrepor ao juízo do Executivo e nem do
Legislativo, visto ser um órgão auxiliar deste último Poder, que é o responsável pelo controle
externo.

De outro lado, a segunda corrente afirma a competência do Tribunal de Contas para sustar
contrato administrativo, no caso de haver transcorrido o prazo de noventa dias sem
deliberação do Congresso Nacional, com base no reconhecimento da importância, pelo texto
constitucional, da Corte de Contas, que não se subordina hierarquicamente ao Poder
Legislativo, e necessita de instrumentos aptos a tornar efetiva a sua atuação.

ATENÇÃO!!
Mesmo para os adeptos da segunda corrente, a competência para sustar o contrato
administrativa somente será reestabelecida em favor do Tribunal de Contas (art. 71, §2º,
da CF) se o prazo constitucional de noventa dias tiver transcorrido in albis, isto é, deve ter
havido omissão do órgão Legislativo.
Se, porventura, o Poder Legislativo não tiver sustado o contrato, por entender que não
padece dos vícios apontados pelo Tribunal de Contas, a competência para sustar NÃO será
devolvida ao TC.
Assim, a segunda corrente entende que o Tribunal de Contas pode sustar contratos irregulares
do Poder Executivo, mas essa sustação não é automática (primária, imediata), devendo ser
observado o seguinte rito (art. 71, IX e §§ 1.º e 2.º, da CRFB e art. 45, §§ 2.º e 3.º, da Lei
8.443/1992):

1º) Verificada a irregularidade em determinado contrato, o Tribunal de Contas assinará prazo


para que o responsável adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei;
2º) Caso permaneça a irregularidade, o Tribunal comunicará o fato à Casa Legislativa
respectiva para sustação do contrato, que, por sua vez, solicitará imediatamente a adoção das
medidas cabíveis ao Poder Executivo; e
3º) Se a Casa Legislativa ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, permanecerem
inertes, o Tribunal de Contas sustará os contratos (art. 71, X e §§ 1.º e 2.º, da CRFB).

Qual a posição do STF?

O tema ainda não está consolidado, mas o Supremo Tribunal Federal tem alguns
precedentes no sentido de NÃO ADMITIR A SUSTAÇÃO DE CONTRATOS PELO TRIBUNAL DE
CONTAS.

No julgamento do MS nº. 23.550-1/DF26, o STF deixou consignado que falece competência


para o Tribunal de Contas anular ou sustar contrato administrativo:

“I. Tribunal de Contas: competência. Contratos administrativos (CF, art. 71, IX e §§ 1º e 2º). O
Tribunal de Contas da União – embora não tenha competência, para anular ou sustar contratos
administrativos – tem competência, conforme o art. 71, IX, para determinar à autoridade
administrativa que promova a anulação do contrato e, se for o caso, da licitação de que se originou
(...)” (STF, MS nº. 23.550-1/DF, Rel. p/ acórdão, Min. Sepúlveda Pertence, pleno, DJ de 31.10.01)

ATENÇÃO!!

Como se pode notar a partir do julgado acima, os Tribunais de Contas, ainda que, segundo
alguns, não tenham competência para sustar contratos administrativos, TÊM
COMPETÊNCIA PARA DETERMINAR À AUTORIDADE ADMINISTRATIVA QUE PROMOVA A
ANULAÇÃO DO CONTRATO.

Não confundir:
Estamos falando de duas funções diferentes, com fundamentos constitucionais diferentes:

• O Tribunal de Contas, verificando uma ilegalidade, pode determinar que a


Administração Pública anule o contrato como medida necessária ao exato
cumprimento da lei. Trata-se do exercício da competência prevista no art. 71, IX,
CF.

• O Tribunal de Contas – para o STF e parte da doutrina –, embora possa determinar


a anulação do contrato pela Administração (art. 71, IX), não pode sustar o
contrato, prerrogativa que compete única e exclusivamente ao Legislativo (art. 71,
§§1º e 2º).
Os Tribunais de Contas podem anular ACORDOS EXTRAJUDICIAIS firmados pela
Administração Pública?
DEPENDE. De acordo com o STF, em recente informativo, se o acordo ainda NÃO foi
homologado judicialmente, o Tribunal de Contas pode sim determinar a anulação do termo
extrajudicial.
Porém, se já houve homologação judicial do acordo, falece competência para que o Tribunal de
Contas determine a sua anulação.

“O TCU tem legitimidade para anular acordo extrajudicial firmado entre particulares e a
Administração Pública, quando NÃO homologado judicialmente. Com base nessa orientação, a
Primeira Turma, por maioria, denegou mandado de segurança impetrado em face de ato do TCU,
que, em procedimento de tomada de contas especial, declarara a ilegalidade de acordo
extrajudicial firmado entre os ora impetrantes e o Poder Público, e determinara a devolução de
valores recebidos e a aplicação de multa. A Turma, inicialmente, assentou a possibilidade de o
TCU apurar a responsabilidade de administradores e particulares que tivessem firmado acordo
extrajudicial tido como irregular, sendo permitida a aplicação de sanções. A celebração de
transação entre as partes, na forma do art. 269, III, do CPC, não retiraria a competência
jurisdicional para a análise da legalidade do ato, a fim de homologar o acordo celebrado. Na
espécie, não haveria prova de homologação judicial do acordo firmado entre os impetrantes e a
Administração Pública, tendo ocorrido somente a desistência de ação judicial na qual se discutia
a responsabilidade do Poder Público por supostos prejuízos sofridos pelos impetrantes,
discussão esta que dera ensejo à celebração do acordo extrajudicial em discussão. Assim, não
haveria que se falar em julgamento do mérito da questão pelo Poder Judiciário, a afastar a
atuação do TCU, que ocorreria em sede administrativa. Seria certo, ademais, que a
jurisprudência do STF seria pacífica no sentido da independência entre as instâncias cível, penal
e administrativa. Outrossim, haveria, na hipótese, uma incompatibilidade absoluta entre o valor
pago pela Administração no bojo do acordo extrajudicial e o dano efetivo que estaria sendo
discutido em juízo quando de sua celebração, desproporcionalidade esta cuja avaliação
demandaria o revolvimento de matéria probatória, incabível em sede de mandado de segurança.
Vencido o Ministro Marco Aurélio, que deferia a segurança por entender que, na espécie, não se
teria situação jurídica em que o TCU, órgão administrativo, tivesse imposto sanção. No caso,
aquele tribunal simplesmente teria determinado a particulares, que não eram administradores, a
devolução de certo numerário recebido. Esse procedimento não seria possível, porquanto a
atuação daquela Corte de Contas referir-se-ia aos administradores, como previsto na
Constituição. Tendo o pronunciamento do TCU força de título executivo, por esta via, sem o
envolvimento de servidor ou de administrador, obstaculizar-se-ia o que poderia ser um processo
de conhecimento no Judiciário para discutir-se a controvérsia e o conflito de interesses. Não
caberia, portanto, ao TCU, quer impor sanção a particular, quer determinar a este a devolução de
numerário.
MS 24379/DF, rel. Min. Dias Toffoli, 7.4.2015. (MS-24379)

Exemplo:
Determinado órgão municipal causa um dano a uma empresa privada. Esta celebra acordo
extrajudicial com a Administração Pública no valor de R$5 milhões, a fim de ver seu prejuízo
recomposto. Nesse caso, enquanto o acordo não for homologado judicialmente, poderá o
respectivo tribunal de Contas responsável determinar a anulação do acordo extrajudicial
firmado entre o particular e a Administração Pública, por entender que houve violação ao
princípio da economicidade no caso concreto.

Iniciativa Privativa dos Tribunais de Conta:


De acordo com a jurisprudência do STF, interpretando o art. 73 da CRFB, os Tribunais de Contas
também possuem iniciativa privativa para projetos de lei que disponham sobre sua estrutura
ou organização.
“As cortes de contas seguem o exemplo dos tribunais judiciários no que concerne às
garantias de independência, sendo também detentoras de autonomia funcional,
administrativa e financeira, das quais decorre, essencialmente, a iniciativa reservada
para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e
funcionamento, conforme interpretação sistemática dos arts. 73, 75 e 96, II, d, da
Constituição Federal” (voto do Min. Dias Toffoli, na ADI 4418)

Assim, a jurisprudência do STF tem se orientado no sentido de reconhecer a


inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, das disposições que, sendo oriundas de
proposição parlamentar ou mesmo de emenda parlamentar, impliquem alteração na
organização, na estrutura interna ou no funcionamento dos tribunais de contas (vide ADI 5442
e ADI 4418). Tal entendimento também se estende às cortes de contas estaduais, conforme
decidido na ADI 4418.

Na mesma linha, em junho de 2019, o STF decidiu que “É inconstitucional lei estadual ou
emenda à Constituição do Estado, de iniciativa parlamentar, que trate sobre organização ou
funcionamento do TCE”

EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 53, §§ 3º, 6º e 7º, e 55,


§1º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. EMENDA
CONSTITUCIONAL Nº 13/2014. ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO TRIBUNAL DE
CONTAS ESTADUAL. RESERVA DE INICIATIVA LEGISLATIVA. EXEGESE DOS ARTS. 73, 75 E
96, II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. DESVIO
DO MODELO FEDERAL DE CONTROLE EXTERNO DAS CONTAS PÚBLICAS. OBSERVÂNCIA
COMPULSÓRIA NOS ESTADOS. ART. 75, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. 1. Na linha da jurisprudência pacífica e reiterada
do Supremo Tribunal Federal, estende-se aos Tribunais de Contas, como corolário das
prerrogativas de independência e autonomia asseguradas às Cortes de Contas pela Lei
Maior do país (arts. 73 e 75), a reserva de iniciativa para deflagrar o processo
legislativo que tenha por objeto alterar a sua organização ou o seu funcionamento (art.
96, II, da Constituição da República). A promulgação de emenda a constituição estadual
não constitui meio apto para contornar a cláusula de iniciativa reservada, que se impõe
seja diante do texto original seja do resultante de emenda. A inobservância da regra
constitucional de iniciativa legislativa reservada acarreta a inconstitucionalidade
formal de norma resultante. Precedentes. 2. Inconstitucionalidade formal dos arts. 53,
§§ 6º e 7º, e 55º, § 1º, da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, tanto em seu
texto original quanto na redação dada pela Emenda Constitucional n° 13/2014. (ADI
5323, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 11/04/2019,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 03-05-2019 PUBLIC 06-05-2019)

Constitucionalidade da criação de Procuradorias Jurídicas nos Tribunais de Contas:


No recente Informativo 851 o STF entendeu que é CONSTITUCIONAL a criação de uma
Procuradoria do Tribunal de Contas, órgão com atribuições de representação judicial e de
defesa dos atos e das prerrogativas da Corte de Contas. Tais Procuradorias, para o STF, não
violam as atribuições das Procuradorias Gerais do Estado, previstas no art. 132 da CRFB.
No entanto, é inconstitucional norma estadual que preveja que compete à Procuradoria do
Tribunal de Contas cobrar judicialmente as multas aplicadas pela Corte de Contas, uma vez
que a Constituição Federal não outorgou aos Tribunais de Contas para executar suas próprias
decisões. (ADI 4070/RO).
Competência para julgamento de Contas:
Uma das mais importantes competências dos TCs é a de julgar as contas de administradores e
demais responsáveis por dinheiro, bens ou valores públicos, prevista no art. 71, II:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e
valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades
instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem
causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário
público;

Tal competência é ampla, tendo o STF decidido em 2016 que “é inconstitucional norma da
Constituição Estadual que preveja que compete privativamente à Assembleia Legislativa
julgar as contas do Poder Legislativo estadual.” (STF, ADI 3077, Informativo 847)

Em outras palavras, não pode o constituinte estadual transferir a competência para julgamento
de contas a outros órgãos, a exemplo da Assembleia Legislativa. Não pode, por exemplo, a CE
dispor que cabe à própria Assembleia Legislativa julgar as contas do Poder Legislativo.

No entanto, CUIDADO: os Tribunais de Contas não julgam as contas do Chefe do Poder


Executivo! Assim, o TCE irá apenas apreciar as contas anualmente prestadas pelo Governador
do Estado e emitir parecer prévio, que será enviado à Assembleia Legislativa para que esta
proceda ao julgamento. Trata-se de modelo aplicado por simetria ao federal, segundo o qual o
TCU emite parecer prévio, na forma do art. 71, I, e o Congresso Nacional julga as contas do
Presidente da República (conforme art. 49, IX).

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante
parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu
recebimento;

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:


IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os
relatórios sobre a execução dos planos de governo;

No âmbito municipal, destaque-se importante precedente no qual o STF assentou o


entendimento de que “é exclusivamente da Câmara Municipal a competência para julgar as
contas de governo e as contas de gestão dos prefeitos, cabendo ao Tribunal de Contas
auxiliar o Poder Legislativo municipal, emitindo parecer prévio e opinativo, que somente
poderá ser derrubado por decisão de 2/3 dos vereadores.” (REs 848826 e 729744). A ideia é
basicamente a mesma: o TC analisa as contas do Prefeito e emite um parecer sobre as mesmas,
que serão julgadas pela Câmara dos Vereadores. A diferença é que a CRFB prevê um quórum
qualificado para que o Legislativo municipal possa “derrubar” o parecer do Tribunal de Contas,
equivalente a 2/3 dos vereadores.

Na mesma sessão, o STF entendeu que não pode haver o julgamento ficto das contas do Chefe
do Poder Executivo (que ocorreria com a omissão do poder legislativo no julgamento), uma vez
que o parecer do Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa16. Sendo assim, não
pode a Constituição Estadual nem dispensar o parecer prévio do TC17 e nem prever o
julgamento ficto pela omissão do Poder Legislativo. Como visto, são dois procedimentos
distintos e necessários: a análise das contas do Chefe do Executivo pelo TC e o julgamento pelo
Poder Legislativo.

Esquematizando:

Julgar as contas dos administradores e Competência dos Tribunais de Contas, que


demais responsáveis por bens, dinheiros e não pode ser atribuída a outros órgãos, a
valores públicos exemplo da Assembleia Legislativa
Julgar as contas do Chefe do Poder Executivo Competência do Poder Legislativo (CN, no
caso federal; AL, no caso estadual e CM, no
caso municipal), após parecer prévio do
Tribunal de Contas. No caso dos Municípios, é
necessário ainda um quórum qualificado de
2/3 para derrubar o parecer do Tribunal de
Contas.

O TCU pode fiscalizar entidades de direito privado?


De acordo com o STF, é sim possível tal fiscalização, notadamente quando envolver recursos
públicos. Para o tribunal, não é a natureza do ente envolvido na relação que permite, ou não, a
incidência da fiscalização da Corte de Contas, mas sim a origem dos recursos envolvidos,
conforme dispõe o art. 71, II, da Constituição Federal (MS 24.379).

“Embora a entidade seja de direito privado, sujeita-se à fiscalização do Estado, pois


recebe recursos de origem estatal, e seus dirigentes hão de prestar contas dos valores
recebidos; quem gere dinheiro público ou administra bens ou interesses da
comunidade deve contas ao órgão competente para a fiscalização.” [MS 21.644]

Na mesma linha, o STF entendeu que o TCU possui competência para fiscalizar valores de
contribuição sindicais compulsórias. Para o STF, a contribuição sindical possui natureza
tributária e constitui receita pública, de modo os responsáveis por sua gestão estão sujeitos à
fiscalização do TCU, sendo certo que isto não representa violação à autonomia sindical (STF, MS
28465, Informativo 739)

Os Tribunais de Contas podem decretar a indisponibilidade de bens?


SIM. Tal prerrogativa foi conferida pela Lei n.º 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU), em seu art. 44, §
2º:

Art. 44. No início ou no curso de qualquer apuração, o Tribunal, de ofício ou a requerimento do


Ministério Público, determinará, cautelarmente, o afastamento temporário do responsável, se

16
Destaque-se que a natureza opinativa do parecer do Tribunal de Contas também implica que este não
poderá servir para fins de inelegibilidade, conforme decidido pelo STF na mesma oportunidade. Em
outras palavras, o Chefe do Executivo só poderá ser considerado inelegível por conta da rejeição das
contas após o julgamento pelo Legislativo.
17
“É inconstitucional norma da CE que dispensa o parecer prévio no julgamento das contas do Prefeito
caso o TCE não o elabore” (vide ADI 3077/SE).
existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar
ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o
seu ressarcimento.
(...)
§ 2° Nas mesmas circunstâncias do caput deste artigo e do parágrafo anterior, poderá o
Tribunal, sem prejuízo das medidas previstas nos arts. 60 e 61 desta Lei, decretar, por prazo
não superior a um ano, a indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos
considerados bastantes para garantir o ressarcimento dos danos em apuração.

De acordo com o STF, em julgado noticiado no Informativo nº 779, tal prerrogativa é


CONSTITUCIONAL, ao permitir, de forma excepcional, a concessão de medidas cautelares
necessárias à neutralização imediata de situações que possam causar lesão ao interesse
público, ou para garantir a utilidade prática do processo que tramita no Tribunal de Contas.
Destaque-se que tal prerrogativa pode se dar inclusive sem audiência da parte contrária, o que,
de acordo com o STF, não violaria o devido processo legal nem qualquer outra garantia
constitucional, como o contraditório ou a ampla defesa.

“A 2ª Turma denegou mandado de segurança impetrado em face de acórdão do TCU, que, em


procedimento de tomada de contas especial, decretara a indisponibilidade de bens dos ora
impetrantes. Estes apontavam a violação ao contraditório e à ampla defesa, ao direito de
propriedade, bem como a nulidade da decisão impugnada, em razão da inexistência de
fundamentação, da ausência de individualização das condutas supostamente irregulares e da
falta de demonstração dos requisitos legais autorizadores da medida constritiva. O Colegiado
asseverou que não haveria que se falar em ilegalidade ou abuso de poder em relação à
atuação do TCU, que, ao determinar a indisponibilidade dos bens, teria agido em consonância
com suas atribuições constitucionais, com as disposições legais e com a jurisprudência do STF.
Com efeito, o ato impugnado estaria inserido no campo das atribuições constitucionais de
controle externo exercido por aquela corte de contas (CF, art. 71). A jurisprudência do STF
reconheceria assistir ao TCU um poder geral de cautela, que se consubstanciaria em prerrogativa
institucional decorrente das próprias atribuições que a Constituição expressamente lhe outorgara
para seu adequado funcionamento e alcance de suas finalidades. Seria possível, inclusive, ainda
que de forma excepcional, a concessão, sem audiência da parte contrária, de medidas cautelares,
por deliberação fundamentada daquela Corte, sempre que necessárias à neutralização imediata
de situações de lesividade ao interesse público ou à garantia da utilidade prática de suas
deliberações finais. Ademais, o TCU disporia de autorização legal expressa (Lei 8.443/1992, art.
44, § 2º) para decretação cautelar de indisponibilidade de bens, o que também encontraria
previsão em seu regimento interno (artigos 273, 274 e 276). Destacou, outrossim, que o relatório
da decisão atacada seria integrado por diversidade de elementos e análises decorrentes de
aprofundados relatórios de fiscalização elaborados pela equipe de auditoria do TCU, o que
afastaria a alegação de nulidade da decisão atacada no ponto em que supostamente ausente a
individualização de condutas comissivas ou omissivas a ensejar possível responsabilização. Além
disso, dever-se-ia ressaltar que, de fato, estariam presentes os requisitos legais para a decretação
cautelar da medida de indisponibilidade de bens, na medida em que o ato impugnado teria
acentuado a robustez dos elementos de convicção colhidos, a vislumbrar alta reprovabilidade das
condutas identificadas e elevado prejuízo causado. A referida determinação de indisponibilidade
guardaria pertinência com os requisitos legais para que se evitasse a ocorrência de danos ao
erário ou a inviabilidade de ressarcimento (Lei 8.443/1992, art. 44, “caput”). Essa medida
também se coadunaria com a exigência legal de promover a indisponibilidade de bens dos
responsáveis para garantir o ressarcimento dos danos em apuração (Lei 8.443/1992, art. 44, §
2º). Por fim, a mera cogitação de que o valor dos bens eventualmente tornados indisponíveis por
meio da medida constritiva fosse muito inferior ao valor supostamente devido a título de
ressarcimento, como alegado, não seria justificativa apta a impedir a adoção da medida cautelar
pelo TCU. MS 33092/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 24.3.2015. (MS-33092)”
Importante mencionar que o STF já admitia o poder geral de cautela aos Tribunais de Contas,
reconhecendo a competência implícita dos Tribunais de Contas para expedirem medidas
cautelares, com vistas a prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões.

"(...) a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da
Lei Fundamental da República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a
titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a
conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem
situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público. Impende considerar, no ponto, em
ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos,
cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso
McCulloch v. Maryland (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado
órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à
integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. (...) É por isso que entendo revestir-se de
integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com apoio
na teoria dos poderes implícitos, permite, ao TCU, adotar as medidas necessárias ao fiel
cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que lhe foram
outorgadas, diretamente, pela própria CR." (MS 24.510, Rel. Min. Ellen Gracie, voto do Min. Celso
de Mello, julgamento em 19-11-2003, Plenário, DJ. 19-3-2004.)

“Tribunal de Contas da União. Poder geral de Cautela. Legitimidade. Doutrina dos poderes
implícitos. Precedente (STF). Consequente possibilidade do Tribunal de Contas expedir
provimentos cautelares, mesmo sem audiência da parte contrária, desde que mediante decisão
fundamentada. Deliberação do TCU, que, ao deferir a medida cautelar, justificou, extensamente,
a outorga desse provimento de urgência. Preocupação da Corte de Contas em atender, com tal
conduta, a exigência constitucional pertinente à necessidade de motivação das decisões
estatais.” (MC no MS nº 26.547/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. Em 23.05.2007, DJ 29.05.2007)

Os Tribunais de Contas podem quebrar sigilo bancário?


O STF, em julgado noticiado no Informativo nº 662, entendeu que NÃO.

“O Tribunal de Contas da União, a despeito da relevância das suas funções, não está autorizado a
requisitar informações que importem a quebra de sigilo bancário, por não figurar dentre aqueles
a quem o legislador conferiu essa possibilidade, nos termos do art. 38 da Lei 4.595/1964,
revogado pela Lei Complementar 105/2001.
Não há como admitir-se interpretação extensiva, por tal implicar restrição a direito fundamental
positivado no art. 5º, X, da Constituição. Precedente do Pleno (MS 22801, rel. min. Menezes
Direito, DJe-047 de 14.03.2008.)”

No entanto, é preciso distinguir a impossibilidade de quebra de sigilo bancário com


determinadas operações que, de acordo com o STF não estariam cobertas pelo sigilo bancário.
Neste sentido, o STF entendeu que o TCU teria competência para fiscalizar operações de
crédito realizadas entre o BNDES e a JBS/Friboi, as quais não estariam cobertas pelo sigilo
bancário, por envolverem recursos públicos (vide MS 33340). O tema será aprofundado
quando tratarmos do Sigilo Bancário, em outro material.

Prescrição de ação de ressarcimento com base em decisão de tribunal de contas


Recentemente o STF reconheceu repercussão geral (RE 636886) na discussão quanto ao
alcance da regra estabelecida no parágrafo 5º do artigo 37 da Constituição Federal,
relativamente a pretensões de ressarcimento ao erário fundadas em decisões de tribunal de
contas.
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente,
servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de
ressarcimento.

Basicamente, a discussão é: aplica-se a regra da imprescritibilidade às pretensões de


ressarcimento ao erário fundadas em decisões dos tribunais de contas? Aguardemos o referido
julgamento, mas desde já convém lembrar que recentemente o STF entendeu que não são
imprescritíveis as ações de ressarcimento referentes a ilícitos civis (RE 669069/MG), o que
pode indicar uma decisão a ser tomada no tocante às decisões dos tribunais de contas. A
tendência é que o STF só entenda como imprescritíveis as pretensões decorrentes de ilícitos
penais e de atos de improbidade administrativa.

Sobre o tema, convém destacar que o STJ, em recente julgado (Informativo 581), entendeu que
os tribunais de contas se sujeitam ao prazo extintivo de cinco anos, que pode ser aplicado
por analogia com o art. 1º do Decreto 20.910/32, em atenção ao princípio da isonomia (prazo
a favor e contra a fazenda pública). De acordo com o tribunal, a imprescritibilidade é exceção
no nosso sistema, de modo que só deve ser admitida em situações expressas, por razões de
segurança jurídica. Além disso, o art. 37, § 5º, do CF, ao se referir a ações de ressarcimento,
deixa claro que a norma só serve para ações judiciais e não medidas administrativas, como são
os julgamentos dos tribunais de contas. Veja a tese fixada:

“É de cinco anos o prazo para o TCU, por meio de tomada de contas especial (Lei n.
8.443/1992), exigir do ex-gestor público municipal a comprovação da regular aplicação de
verbas federais repassadas ao respectivo Município”

Competência para executar multas impostas pelos Tribunais de Contas:


De acordo com o art. 71, §3º, da Constituição, as decisões do Tribunal de que resulte
imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo. Não obstante, a CRFB nada
disse a respeito da competência para executar tais condenações, o que gerou controvérsias na
doutrina e na jurisprudência.

Interpretando tal dispositivo, o STF firmou sua jurisprudência no sentido de que a legitimidade
para tal execução seria exclusiva do ente público beneficiário da condenação imposta, que
deveria executa-la através de seus procuradores. Desse modo, as decisões não poderiam ser
executadas pelos próprios Tribunais de Contas e nem pelo Ministério Público junto ao
Tribunal de Contas.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SERGIPE. COMPETÊNCIA


PARA EXECUTAR SUAS PRÓPRIAS DECISÕES: IMPOSSIBILIDADE. NORMA PERMISSIVA CONTIDA NA
CARTA ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. As decisões das Cortes de Contas que impõem
condenação patrimonial aos responsáveis por irregularidades no uso de bens públicos têm
eficácia de título executivo (CF, artigo 71, § 3º). Não podem, contudo, ser executadas por
iniciativa do próprio Tribunal de Contas, seja diretamente ou por meio do Ministério Público
que atua perante ele. Ausência de titularidade, legitimidade e interesse imediato e concreto. 2. A
ação de cobrança somente pode ser proposta pelo ente público beneficiário da condenação
imposta pelo Tribunal de Contas, por intermédio de seus procuradores que atuam junto ao
órgão jurisdicional competente. 3. Norma inserida na Constituição do Estado de Sergipe, que
permite ao Tribunal de Contas local executar suas próprias decisões (CE, artigo 68, XI).
Competência não contemplada no modelo federal. Declaração de inconstitucionalidade,
incidenter tantum, por violação ao princípio da simetria (CF, artigo 75). Recurso extraordinário
não conhecido. (RE 223037, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em
02/05/2002, DJ 02-08-2002 PP-00061 EMENT VOL-02076-06 PP-01061)

Recentemente, em sede de Repercussão Geral, o STF assentou a ilegitimidade ativa do


Ministério Público para promover a referida execução, contrariando alguns julgados do STJ a
respeito da matéria:

Recurso extraordinário com agravo. Repercussão geral da questão constitucional reconhecida.


Reafirmação de jurisprudência. 2. Direito Constitucional e Direito Processual Civil. Execução das
decisões de condenação patrimonial proferidas pelos Tribunais de Contas. Legitimidade para
propositura da ação executiva pelo ente público beneficiário. 3. Ilegitimidade ativa do Ministério
Público, atuante ou não junto às Cortes de Contas, seja federal, seja estadual. Recurso não
provido. (ARE 823347 RG, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 02/10/2014, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-211 DIVULG 24-10-2014 PUBLIC 28-10-2014)

Procurando realinhar sua tese ao que foi decidido pelo STF, o STJ também passou a decidir pela
ilegitimidade ativa do MP:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE PARA A EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO


EXTRAJUDICIAL PROVENIENTE DE DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS.
A execução de título executivo extrajudicial decorrente de condenação patrimonial proferida
por tribunal de contas somente pode ser proposta pelo ente público beneficiário da
condenação, não possuindo o Ministério Público legitimidade ativa para tanto. De fato, a
Primeira Seção do STJ pacificou o entendimento no sentido de que o Ministério Público teria
legitimidade, ainda que em caráter excepcional, para promover execução de título executivo
extrajudicial decorrente de decisão de tribunal de contas, nas hipóteses de falha do sistema de
legitimação ordinária de defesa do erário (REsp 1.119.377-SP, DJe 4/9/2009). Entretanto, o Pleno
do STF, em julgamento de recurso submetido ao rito de repercussão geral, estabeleceu que a
execução de título executivo extrajudicial decorrente de decisão de condenação patrimonial
proferida por tribunal de contas pode ser proposta apenas pelo ente público beneficiário da
condenação, bem como expressamente afastou a legitimidade ativa do Ministério Público para a
referida execução (ARE 823.347-MA, DJe 28/10/2014). Além disso, a Primeira Turma do STJ
também já se manifestou neste último sentido (REsp 1.194.670-MA, DJe 2/8/2013). Precedentes
citados do STF: RE 791.575-MA AgR, Primeira Turma, DJe 27/6/2014; e ARE 791.577-MA AgR,
Segunda Turma, DJe 21/8/2014. REsp 1.464.226-MA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques,
julgado em 20/11/2014.

Ainda sobre o tema, destaque-se entendimento do STF segundo o qual o Estado-membro não
tem legitimidade para promover a execução judicial para cobrança de multa imposta pelo
TCE à autoridade municipal, tendo em vista que a titularidade do crédito é do próprio ente
público prejudicado (no caso, o Município), a quem compete proceder a cobrança por meio de
seus representantes judiciais (RE 580943).

É necessária a inscrição das decisões condenatórias do TCU em dívida ativa? A execução das
decisões condenatórias proferidas pelos Tribunais de Contas deve ser feita através de
execução fiscal?
NÃO. De acordo com o STJ, não se aplica a Lei 6830/80, que disciplina o procedimento de
execução fiscal, à execução de decisão condenatória do TCU ainda não inscrita em dívida ativa.
Isto porque tais decisões já são títulos executivos extrajudiciais, de modo que não é necessária
a sua inscrição em dívida ativa, podendo ser adotado pelo ente beneficiário o rito executivo
previsto no CPC (STJ, Resp 1390993/RJ).
“Bis in idem” entre acórdão do TC e sentença condenatória em ação de improbidade:
Imagine a seguinte situação: o Governador de Estado é condenado por um acórdão do TCE a
ressarcir um determinado dano ao erário e, posteriormente, também é condenado em
sentença em ação de improbidade administrativa a ressarcir o mesmo dano. Haveria “bis in
idem” nesse caso?
O STJ, em recente julgado noticiado no Informativo 584, entendeu que NÃO, com o argumento
de que as instâncias judicial e administrativa não podem ser confundidas, de modo que o fato
de o TC já ter punido o administrador com o ressarcimento ao erário não impede que seja
proposta ação de improbidade administrativa relacionada com o mesmo fato e que o
administrador seja novamente condenado pelo Poder Judiciário a ressarcir ao erário.
Não obstante, para que não haja enriquecimento sem causa do poder público, o STJ entendeu
que deve haver a dedução do valor que foi pago na primeira execução. Veja a íntegra do
julgado noticiado no Informativo:

DIREITO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE DE DUPLA CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO AO


ERÁRIO PELO MESMO FATO.
Não configura bis in idem a coexistência de título executivo extrajudicial (acórdão do TCU) e
sentença condenatória em ação civil pública de improbidade administrativa que determinam o
ressarcimento ao erário e se referem ao mesmo fato, desde que seja observada a dedução do
valor da obrigação que primeiramente foi executada no momento da execução do título
remanescente. Conforme sedimentada jurisprudência do STJ, nos casos em que fica demonstrada
a existência de prejuízo ao erário, a sanção de ressarcimento, prevista no art. 12 da Lei n.
8.429/92, é imperiosa, constituindo consequência necessária do reconhecimento da improbidade
administrativa (AgRg no AREsp 606.352-SP, Segunda Turma, DJe 10/2/2016; REsp 1.376.481-RN,
Segunda Turma, DJe 22/10/2015). Ademais, as instâncias judicial e administrativa não se
confundem, razão pela qual a fiscalização do TCU não inibe a propositura da ação civil pública.
Assim, é possível a formação de dois títulos executivos, devendo ser observada a devida dedução
do valor da obrigação que primeiramente foi executada no momento da execução do título
remanescente. Precedente citado do STJ: REsp 1.135.858-TO, Segunda Turma, DJe 5/10/2009.
Precedente citado do STF: MS 26.969-DF, Primeira Turma, DJe 12/12/2014. REsp 1.413.674-SE,
Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Rel. para o acórdão
Min. Benedito Gonçalves, julgado em 17/5/2016, DJe 31/5/2016.

É constitucional a previsão de que os Tribunais de Contas estaduais terão competência para


homologação dos cálculos das cotas do ICMS devidas aos Municípios?
NÃO! Em recente julgado, o STF entendeu que tal previsão é inconstitucional.

1. É inconstitucional a atribuição, aos Tribunais de Contas estaduais, de competência


para homologação dos cálculos das cotas do ICMS devidas aos Municípios, por
violação ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF), afastada a alegação
de simetria com o modelo federal (arts. 75 e 161, parágrafo único, da CF).
2. A jurisprudência desta Corte reconhece o princípio da unicidade institucional da
representação judicial e da consultoria jurídica para Estados e Distrito Federal, que são
atribuições exclusivas dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal,
independentemente da natureza da causa. A existência de consultorias jurídicas
separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais somente é admitida se
sua existência for anterior à Constituição Federal (art. 69 do ADCT). Excetua-se a
atividade de consultoria jurídica das Assembleias Legislativas, que pode ser realizada
por corpo próprio de procuradores. Já a atividade de representação judicial fica restrita
às causas em que a Assembleia Legislativa ostentar personalidade judiciária,
notadamente para a defesa de suas prerrogativas institucionais frente aos demais
poderes (ADI 1.557, Rel. Min. ELLEN GRACIE)
Atuação dos Tribunais de Contas nos Registros de Aposentadorias:
A aposentadoria do servidor público é considerada pela doutrina como um ato complexo (que
depende da conjugação de duas manifestações de vontade autônomas), pois será inicialmente
concedida pelo setor de pessoal do órgão, mas dependerá da confirmação posterior pelo
Tribunal de Contas.

Com base nesta premissa o STF firmou o entendimento de que o prazo decadencial de 5 anos
para anulação do ato de aposentadoria (previsto no da L9784) só começa a contar a partir da
homologação pelo Tribunal de Contas.

”O Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento de que, sendo a aposentadoria ato


complexo, que só se aperfeiçoa com o registro no Tribunal de Contas da União, o prazo
decadencial da Lei n. 9.784/99 tem início a partir de sua publicação. Aposentadoria do
Impetrante não registrada: inocorrência da decadência administrativa. 4. A redução de
proventos de aposentadoria, quando concedida em desacordo com a lei, não ofende o princípio
da irredutibilidade de vencimentos. Precedentes. 5. Segurança denegada. (MS 25552, Relator (a):
Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno 07/04/2008).”

Também com base na mesma premissa, o STF, ao editar a Súmula Vinculante nº 3º, trouxe
uma ressalva ao final da sua redação, quanto à necessidade de observância do direito ao
contraditório e à ampla defesa na apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de
aposentadoria pelo Tribunal de Contas.

Súmula Vinculante nº 3: Nos processos perante o tribunal de contas da união asseguram-se o


contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato
administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de
concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

De acordo com esta súmula, devem ser assegurados aos jurisdicionados o contraditório e a
ampla defesa nos processos perante o Tribunal de Contas quando da decisão puder resultar
anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, EXCETUADO O ATO
DE CONCESSÃO INICIAL DE APOSENTADORIA. Este, por ainda não estar perfeito e acabado
ante a não confirmação pelo Tribunal de Contas (ato administrativo complexo, como vimos),
não exigiria a observância do contraditório e da ampla defesa, ainda que a apreciação da
legalidade pelo Tribunal de Contas pudesse resultar a extinção do ato.

Sendo assim, à luz da Súmula Vinculante nº 3, não há que se falar em violação ao contraditório
ou à ampla defesa quando do cancelamento do benefício determinado pelo TCE.

No entanto, convém fazer uma observação sobre o tema, em virtude de recente jurisprudência
do STF. Como muitas vezes o Tribunal de Contas demora a confirmar o ato de aposentadoria,
surgiram situações em que o antigo servidor já tinha começado a gozar da aposentadoria
desde a concessão pelo seu órgão, mas a mesma veio a ser cancelada muitos anos depois, sem
a observância do contraditório e da ampla defesa, com base na SV nº 3. Este quadro de
instabilidade e insegurança jurídica levou o STF a mitigar o entendimento estabelecido na
referida Súmula Vinculante
Assim, de acordo com o atual entendimento do STF, se o Tribunal de Contas demorar mais do
que 5 anos para examinar a legalidade do ato administrativo de concessão inicial da
aposentadoria, deve ser respeitado o contraditório e a ampla defesa, assegurando-se ao
servidor potencialmente prejudicado o direito de manifestar-se.

Esquematizando, temos que:

Nos processos perante


o TC que possam
•Precisa observar o contraditório e a ampla
resultar anulação de ato
defesa (REGRA GERAL DA SV Nº 3)
que beneficie o
interessado

Nos processos perante


•NÃO precisa observar o contraditório e a
o TC que tenham por
ampla defesa (PARTE FINAL DA SV Nº 3), salvo
objeto o controle de
se o TC demorar mais do que 5 anos para
legalidade do ato de
apreciar o ato (JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO
concessão inicial de
STF).
aposentadoria.

É possível que norma estadual preveja recurso das decisões do Tribunal de Contas à
Assembleia Legislativa?
NÃO. O STF entendeu que é INCONSTITUCIONAL regra da CE que preveja recurso contra as
decisões do Tribunal de Contas ao Plenário da Assembleia Legislativa (Informativo 755).

É constitucional lei que restrinja os documentos a que o Tribunal de Contas possa ter acesso
em sua atividade fiscalizatória?
NÃO. De acordo com o STF, é inconstitucional lei estadual que proíba que o TCE, no exercício de
auditorias, tenha acesso a determinados documentos da Administração Pública. Trata-se de
limitação não prevista na CRFB (Informativo 760).

O TCU tem competência para declarar a inidoneidade de empresa para participar de


licitações?
SIM. De acordo com o art. 46 da L8443, o TCU pode declarar a inidoneidade de empresa
privada para participar de licitações promovidas pela Administração Pública, por até 5 anos. Tal
competência foi declarada CONSTITUCIONAL pelo STF (Informativo 786).

No entanto, conforme destacado na Pet 3.606 AgR/DF, “o poder outorgado pelo legislador ao
TCU, de declarar, verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, a inidoneidade do
licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública
Federal (art. 46 da L. 8.443/92), não se confunde com o dispositivo da Lei das Licitações (art.
87), que - dirigido apenas aos altos cargos do Poder Executivo dos entes federativos (§ 3º) - é
restrito ao controle interno da Administração Pública e de aplicação mais abrangente”.

Independência da tomada de contas em relação ao processo administrativo disciplinar:


No Informativo 798 o STF entendeu que as atribuições do TCU são independentes em relação
ao julgamento de processo administrativo disciplinar eventualmente instaurado (STF, MS
27427). Assim, caso um servidor seja absolvido em um determinado PAD instaurado para
apuração de falta funcional, isto não impede que suas contas sejam desaprovadas pelo Tribunal
de Contas ou que este determine o ressarcimento ao erário, haja vista que o processo no TCU
não depende e nem se vincula ao resultado do PAD (STF, MS 27867).

3.3 - Medida Cautelar na STP 127: município e a obrigação de fornecer


medicação de alto custo
(MEDIDA CAUTELAR NA SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA 127 SÃO PAULO. Data da medida
liminar 20 de Maio de 2019. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340214438&ext=.pdf)

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, concedeu medida
liminar para suspender, somente em relação ao Município de Jundiaí (SP), ordem judicial do
Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) que havia determinado à União, ao Estado de
São Paulo e ao município o fornecimento do medicamento Spinraza (nusinersen) a uma
paciente de Atrofia Muscular Espinhal (AME). A decisão, que se deu na Suspensão de Tutela
Provisória (STP) 127, leva em conta a definição das responsabilidades de cada ente da
federação no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e o altíssimo custo do medicamento.

Vamos realizar uma esquematização do julgado tendo em vista sua importância para o
concurso da Procuradoria do Município.

Em suas razões iniciais, aponta o Município que a decisão combatida violou o artigo 198 da CF,
eis que, argumenta:

“é expressa a sua previsão no sentido de que as ações e


serviços públicos de saúde devem constituir uma REDE
HIERARQUIZADA, de forma que determinar ao Município de
Jundiaí o fornecimento de medicamentos/insumos fora de
sua responsabilidade é desrespeitar todo o sistema”.

Sustenta grave lesão grave a economia pública, ante o alto custo da medicação, o que
“suprimirá o direito do acesso à saúde aos demais pacientes, ante os parcos recursos
disponíveis para saúde”.

Argumenta que essa ponderação não corresponde a precificação da vida da paciente, mas sim,
da promoção da “isonomia material entre todos os destinatários da política pública de
saúde, os quais não podem igualmente ser tolhidos no seu acesso as prestações de saúde,
diante da satisfação do interesse de apenas um Munícipe, que (...) não corre risco de morte”.
Aponta que o fármaco em questão não integra a política pública de fornecimento de
medicamentos do Estado de São Paulo, e consequentemente também não integra a política
pública do Município de Jundiaí. E arremata aduzindo não ser “razoável causar um caos
orçamentário ao Município, com base numa premissa jurídica de solidariedade, a qual
empiricamente não se revela verdadeira, pois os Entes Federativos têm atribuições e
orçamentos diferentes”.
Percebe-se, portanto, que os argumentos do Município estão relacionados:

(i) Ao alto custo da medicação


(ii) A promoção da “isonomia material entre todos os destinatários da política pública
de saúde; e
(iii) Que não integra a política pública de fornecimento de medicamentos.

A ação judicial foi proposta em face dos três níveis políticos de decisão no SUS: União, Estado
e Município; tendo a ordem judicial determinado aos réus, de modo indistinto, o
fornecimento de medicamento cuja incorporação ao Sistema Único de Saúde se deu por meio
de recente portaria do Ministro da Saúde (Portaria nº 24, de 24 de abril de 2019).

Na norma citada não há indicação de delimitação de responsabilidade no âmbito do SUS para


o fornecimento da medicação. Isso se dá porque no Sistema Único de Saúde a decisão quanto
à incorporação de nova tecnologia (medicamentosa ou não) é da União, com assessoria da
CONITEC (art. 19-Q, §1º da Lei nº 12.401/11).

Todavia, a delimitação de atribuições para a efetivação do atendimento aos pacientes do SUS é


fase posterior, realizada após negociação e articulação entre os entes políticos, o que se faz no
bojo da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), foro permanente do SUS para construção de
pactos nacionais no Sistema Único de Saúde (art. 2º, IV, do Decreto nº 7.508/2011,
regulamentador da Lei nº 8080/90). Nesse espaço de deliberação, os entes firmam, entre
outras pactuações operacionais, a divisão de atribuições, tanto no que respeita ao
financiamento da nova tecnologia, quanto à prestação da assistência.

A definição da responsabilidade dos entes é de suma relevância porque os recursos do SUS são
a cada um distribuídos conforme o nível de responsabilidade assumida, assim como as
estruturas de atendimento aos cidadãos são instituídas perante os entes aos quais se reserva a
atribuição de dispensar a tecnologia.

A delimitação de responsabilidade no SUS é feita de modo a não permitir a sobreposição de


ações, a fim de otimizar os recursos envolvidos e de garantir a estrutura necessária ao
adequado atendimento do paciente. Importa aduzir que a lógica que orienta essa repartição
de atribuições não se faz sob mera liberalidade dos entes, tendo, em verdade, amparo
constitucional. Por essa razão, a divisão de responsabilidades em ações judiciais deve seguir
tal lógica, sob pena de implicar violação às competências constitucionalmente delimitadas à
sustentação da Federação.

OS JULGADOS DO STF SOBRE O TEMA E A EMBLEMÁTICA STA Nº 175. PARÂMETROS


CONSTITUCIONAIS PARA DEFINIÇÃO DA SOLIDARIEDADE NO SUS

De fato, até a STA nº 175, os precedentes desta Corte (caracterizados por decisões
monocráticas) não traçavam qualquer consideração sobre o sentido de solidariedade,
limitando-se a dispor acerca da possibilidade de inclusão de quaisquer dos entes no polo
passivo da demanda judicial e, por assim fazer, fez transparecer a adoção, por esta Corte, do
instituto “solidariedade” tal qual previsto no Código Civil. Com o julgamento daquela
suspensão de tutela antecipada, contudo, não obstante tenha este Supremo Tribunal mantido
a nomenclatura “solidária”, a responsabilidade entre os entes federados em matéria de saúde
foi apreciada sob perspectiva mais alargada, ao contemplar a possibilidade de distinção de
atribuições, consagrada na expressão do Ministro Gilmar Mendes como “subsidiariedade” de
responsabilidades. Destaque-se, inclusive, que foi sob essa ótica – inaugurada com a STA nº
175 – que acompanhou-se, no julgamento de mérito do RE nº 855.178, a reafirmação da
jurisprudência pela responsabilidade solidária, porque nessa precisa interpretação do instituto
não se impede a identificação, no caso concreto, dos entes que devem ser responsabilizados
pelo atendimento pleiteado, ainda que figurem todos eles no polo passivo.
O julgamento da STA nº 175 nitidamente evidenciou essa característica da divisibilidade das
atribuições mesmo na seara da obrigação comum de garantir saúde. Tanto assim que os
tribunais pátrios passaram a adotar – não obstante a solidariedade expressa no
entendimento desta Corte – regras quanto à condenação dos entes, com base na distinção
de atribuições a eles traçadas em âmbito legal (ou mesmo infralegal).

O CNJ, nessa mesma linha, enunciou na II Jornada de Direito da Saúde:

“60 – Saúde Pública - A responsabilidade solidária dos entes da


Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar
ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um
determinado ente, conforme as regras administrativas de
repartição de competências, sem prejuízo do
redirecionamento em caso de descumprimento.” (evento
realizado em 18 e 19/5/15, praticamente 2 meses após o
julgamento do RE nº 855.178, ocorrido em 5/3/15).

A prefacial ordem constitucional, portanto, é clara quanto à impossibilidade de se argumentar


pela ausência de responsabilidade de qualquer dos entes seja qual for a etapa da
implementação do direito à saúde. A Constituição Federal traça, isso sim, por meio da divisão
de atribuições, organização ao sistema, mas sempre com participação de todos os entes em
cada forma de concretização do direito.

Lado outro, contudo, a própria Constituição traz indicativos de que não foi sua intenção
estabelecer obrigação superposta, tendo sido expressa quanto: (i) à descentralização como
uma das diretrizes do SUS (art. 198, I) e, no mesmo passo, quanto à obrigação do Município de
prestar, (ii) com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de
atendimento à saúde da população (art. 30, VII); e (iii) a existência de uma rede de
atendimento “regionalizada e hierarquizada”.

Dos dispositivos citados e da compreensão técnica inserida em cada um dos conceitos eleitos
pelo constituinte – os quais se harmonizam perfeitamente com o que decidido nos autos da
STA nº 175 – se depreende, em síntese:

- que a obrigação de garantir a saúde é comum e o sistema correspondente é único (nesse


sentido, responsabilidade solidária), formado por uma rede de atendimento (o que pressupõe
colaboração e organização – não superposição),
- que deve estar, tanto quanto possível, próxima do cidadão, municipalizada (e assim, a ele
mais acessível), sem que se desconsidere ser ela regionalizada (e, portanto, devem as regiões
de saúde serem aptas a suprir as carências locais para garantir a integralidade das ações e
serviços de saúde), por meio de uma hierarquização que considerará o grau de complexidade
do atendimento necessário ao paciente (quanto mais complexo o atendimento, mais passível
de ser ele afastado do ente local e direcionado a ente mais afeto à especialização técnica:
estados e, sequencialmente, a União).
A Constituição, em seu arcabouço normativo de definição de responsabilidades em matéria de
saúde pública, externou duas ordens de atribuições com preponderância de atuação:

(i) responsabilidade por executar ações e serviços de saúde, preponderantemente atribuída ao


Município (art. 198, I, c/c art. 30, VII), para que o atendimento se dê, preferencialmente, na
própria região de residência do cidadão, com assunção de obrigações de atendimentos mais
complexos pelos Estados e em sequência pela União;

(ii) responsabilidade pelo comando técnico e pelo financiamento do Sistema acentuadamente


atribuída à União e, em menor grau, aos Estados e Municípios, em ordem descendente.

A existência de duas ordens de atuação, com as respectivas divisões de atribuições (que


seguem a mesma direção, porém, sentidos opostos: aparato técnico e financeiro mais
concentrado no ente central e execução direcionada a entes periféricos), mostra-se, importa
ressaltar, consentânea com o modelo federativo brasileiro. Como advertiu o Consultor Jurídico
Edelberto Luís da Silva, em sua fala na Audiência Pública Saúde, a divisão de atribuições entre
os entes políticos na responsabilidade de assegurar o direito à saúde é espelhada na própria
opção constitucional pela federação como forma de governo, justificada, em primeiro plano,
pela maior acessibilidade da população às ações públicas.

A existência de duas ordens de atuação, com as respectivas divisões de atribuições (que


seguem a mesma direção, porém, sentidos opostos: aparato técnico e financeiro mais
concentrado no ente central e execução direcionada a entes periféricos), mostra-se, importa
ressaltar, consentânea com o modelo federativo brasileiro. Como advertiu o Consultor Jurídico
Edelberto Luís da Silva, em sua fala na Audiência Pública Saúde, a divisão de atribuições entre
os entes políticos na responsabilidade de assegurar o direito à saúde é espelhada na própria
opção constitucional pela federação como forma de governo, justificada, em primeiro plano,
pela maior acessibilidade da população às ações públicas.

Sob essa ótica, é forçoso reconhecer que, ao estabelecer o art. 23 da Constituição Federal a
competência comum aos entes federativos de “cuidar da saúde” (art. 23, II), não estipulou a
carta constitucional uma obrigação indivisa, mas, ao contrário, definiu uma responsabilidade
estruturada em níveis de atuação consentâneos com as atribuições próprias da repartição
federativa, elemento essencial à construção do modelo de atenção à saúde reformador
propugnado pela Constituição.

Nesse passo, é possível vislumbrar a Federação como um círculo, cujo feixe de raios, partindo
do ente central, a União, direciona-se ao Distrito Federal e aos estados; deste, a seu turno,
partem os raios que atingem os municípios, ocupantes da extremidade da figura. Nesse
círculo, em matéria de saúde, quanto mais se caminha em direção ao ente central do Sistema
(direção centrípeta), maior a responsabilização técnico-financeira identificada, ao passo em
que, quanto mais se dirige aos entes da linha de superfície do raio federativo, maior a
obrigação de execução das políticas de saúde.

Embora, portanto, a responsabilidade seja una, no sentido de que todos tem o dever
inafastável de garantir saúde a seus cidadãos, a divisão de responsabilidades no SUS segue
uma gradação ascendente: centrípeta na ampliação das responsabilidades técnicas e de
financiamento; e centrífuga na atribuição de execução das ações e serviços de saúde.
Importa ressaltar que foi exatamente dando concretização a esses comandos constitucionais,
que o legislador editou a Lei nº 8080/90, densificando, especialmente em seus arts. 16 a 19, a
divisão de atribuições entre os entes políticos em matéria de saúde, a qual foi ainda mais
evidenciada após a edição da lei nº 12.401/11.

E se a lógica constitucional foi observada pelo legislador, também não pode ser afastada no
bojo de demandas judiciais, sob pena de fatal desordem administrativa, com prejuízo não
apenas ao paciente da demanda, mas ainda a todos os usuários do SUS.

O que se tem hoje? Municípios sendo demandados a arcar com o financiamento de fármacos
importados, de altíssimo custo (o que impõe uma atuação técnica para a qual normalmente
não estão preparados); estados realizando incorporação de medicamentos sem respaldo
técnico da CONITEC (ante a larga escala de concessão na via judicial) apenas para facilitar o
procedimento de aquisição do produto; e a União gerenciando o fornecimento direto de
medicamentos a pacientes/autores de ações judiciais, com estruturação administrativa
própria, diferenciada – e mesmo privilegiada – face a estabelecida no SUS, já que sendo
condenada a fornecer medicamentos a pacientes e não dispondo de estrutura a tanto, envia-
os à residência do paciente (por contratação de empresa de transporte), em quantidades
exorbitantes, sem qualquer controle do seu uso.

Ao definir a responsabilidade como solidária, a Corte – baseando-se na previsão da saúde


como obrigação comum (art. 23, II) – traçou a todos os entes responsabilidade na garantia
do direito à saúde, mas preservou, conforme ficou claro nos autos da STA nº 175, a
possibilidade de se observar, na condenação dos entes, a repartição de atribuições traçada
em âmbito legal ou mesmo infralegal (especialmente se tal repartição está consentânea à
orientação constitucional centrípeta – quanto à cooperação técnica e financeira – e
centrífuga – quanto à própria prestação do direito à saúde).

Atualmente, no que respeita ao fornecimento de medicamentos, tem-se que, no SUS o


atendimento ao cidadão (a dispensação de fármacos) é feito: (i) pelos Municípios, no menor
nível de complexidade (que corresponde ao “componente básico da assistência farmacêutica”
e a parte do componente especializado); e (ii) pelos Estados (nos demais medicamentos do
“componente especializado” e ainda no “componente estratégico”). Nunca, todavia,
diretamente pela União.

Lado outro, em relação ao financiamento: será ele do Município ou compartido entre os três
entes (nas medicações que cumpre ao Município dispensar); do Estado (para parte dos
medicamentos do componente especializado); e da União (no componente estratégico e,
ainda, no maior nível de complexidade do componente especializado). Como se observa, o
financiamento de medicamentos no SUS segue a lógica da complexidade do tratamento da
doença, da garantia da integralidade do tratamento da doença por meio de linhas de cuidado e
da manutenção do equilíbrio financeiro entre as esferas de gestão do SUS. Desconsiderar essa
forma de atribuição de responsabilidade põe em risco a própria manutenção do sistema e o
equilíbrio das contas públicas.

No caso dos autos, todos os fatores apontam para o alto custo no fornecimento da medicação
ao SUS (além da já destacada complexidade técnica envolvida no atendimento ao paciente).

Todavia, não participa o Município do financiamento de medicamentos da mais alta


complexidade técnica, responsabilidade que se reparte, via de regra, entre Estados e União,
ou é assumida exclusivamente pelo ente federal.
Em que pese, portanto, ser o ente mais próximo do cidadão, verdadeira “porta de entrada do
Sistema Único”, o atendimento que compete ao Município é precipuamente o atendimento
básico. O atendimento de alta complexidade, realizado notadamente em centros de
referência, se afinam em maior medida com a vocação dos Estados; ao passo em que o
financiamento dessa espécie de medicação ocorre, em regra, de forma compartida entre
estados e União ou exclusivamente pelo ente federal; tudo conforme pactuação federativa na
Comissão Intergestores Tripartite.

Nestes termos, concedeu-se a liminar requerida, para o fim de suspender a ordem judicial
relativamente ao Município.

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