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Funções da Parte Geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade

Professor Dr. Dr. h.c. mult. Claus-Wilhelm Canaris,


Munique*

I. A “Parte Geral” como característica do Código Civil e do BGB ................................................................... 1


II. A “Parte Geral” do BGB em face da crítica da doutrina .............................................................................. 3
III. Funções de uma “Parte Geral” para o ensino do Direito e para a Ciência do Direito.............................. 7
1. A relevância didáctica da “Parte Geral” ............................................................................................................... 7
2. A relevância científico-sistemática de uma “Parte Geral” ................................................................................... 9
IV. Funções de uma “Parte Geral” para a legislação ....................................................................................... 10
1. A necessidade da abstracção, exemplificada com o contrato e o negócio jurídico ............................................ 10
2. Sujeito de direito, direito subjectivo e negócio jurídico como pilares conceituais de uma “Parte Geral” ......... 13
3. Liberdade jurídica e igualdade jurídica como valores sustentadores ou princípios da “Parte Geral” ............... 15
4. Observações críticas sobre alguns objectos de regulamentação da “Parte Geral” ............................................. 16
5. Prospectiva ......................................................................................................................................................... 18

I. A “Parte Geral” como característica do Código Civil e do BGB

O Código Civil português e o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB: Código Civil) alemão


assemelham-se fortemente na sua sistematização. Ambas as codificações estão divididas em
cinco livros, e em ambas o primeiro livro é constituído por uma “Parte Geral”, que antecede
os restantes quatro livros. Esta “Parte Geral” é o objecto do nosso Congresso. Uma vez que a
ocasião para este é o 35º aniversário da entrada em vigor do Código Civil, impõe-se tecer
algumas considerações de princípio sobre o significado de uma tal “Parte Geral”. Pois é da
própria essência da comemoração de um aniversário, não só que nos ocupemos com
específicos problemas concretos, como também, e sobretudo, reflectir novamente sobre
questões fundamentais. E justamente em relação à “Parte Geral” existem razões especiais para
esta reflexão. Nomeadamente, é tudo menos indiscutível que um Código Civil haja de conter
uma tal parte, consistindo, aliás, uma das características marcantes, tanto do BGB como do
Código Civil, justamente em dedicarem à “Parte Geral” um livro próprio. Ao mesmo tempo,
esta é mais uma razão para tomar o aniversário do Código Civil como ocasião para reflexões
sobre o sentido e o fim de uma “Parte Geral”.

*
Conferência proferida no Congresso comemorativo dos 35 anos do Código Civil Português, sobre “A Parte
Geral do Código Civil e a Teoria Geral do Direito Civil”, organizado em Março de 2003 pela Faculdade de
C.-W. Canaris, Funções da Parte Geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade

Consabidamente, muitos outros códigos civis não contêm qualquer “Parte Geral”. Em todo
o caso, há razões históricas que desempenharam, em parte, um papel neste sentido.
Designadamente, a elaboração de uma “Parte Geral”, tal como a divisão nos quatro livros
seguintes – Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito da Família e Direito das
Sucessões –, baseia-se no chamado sistema das Pandectas. Uma vez que este apenas foi
desenvolvido no início do século XIX1, não pôde ainda influenciar, antes de mais, o Code
Civil de 1804 e o Código Civil austríaco (Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch – ABGB),
aos quais, portanto, diversamente, subjaz ainda o anterior sistema das Institutas. Todavia,
também várias codificações que surgiram depois do BGB não seguem o seu modelo,
renunciando, antes, a uma “Parte Geral”. Assim, o Código Civil suíço negou-se, neste
aspecto, a seguir o BGB, e procura solucionar vários problemas essenciais, que no BGB são
resolvidos pela “Parte Geral”, através de uma remissão estabelecida para preceitos do Direito
das Obrigações, sobre contratos2; além disso, este Direito das Obrigações não foi integrado no
Código Civil, antes permaneceu autónomo. Também o Codice Civile italiano e o Código Civil
holandês – ou seja, a mais recente codificação de Direito Civil na Europa – dispensam uma
“Parte Geral”; isto é especialmente digno de nota porque é característica de ambos estes
Códigos a obtenção de uma síntese entre elementos dos direitos francês e alemão – e, apesar
disso, os seus autores decidiram-se contra a criação de uma “Parte Geral”.

Por outro lado, a ordem jurídica portuguesa não é, de forma alguma, a única que se
inspirou no sistema do BGB, e que, dessa forma, recebeu no seu Código Civil também uma
“Parte Geral”. Sobretudo as ordens jurídicas japonesa, brasileira e grega também o fizeram, e
o Brasil – como naturalmente sabem – permaneceu fiel a este sistema também no seu novo
Código Civil, do corrente ano.

No entanto, o legislador português recebeu críticas acerbas, provenientes, justamente, da


Alemanha. O Código Civil seria – pode ler-se em Zweigert/Kötz – “uma obra conservadora,
mais virada para o passado”, asserção que se fundamenta sobretudo porque – como afirmam
ambos os autores –, “para surpresa justamente do comparatista alemão, foi recebida a
sistematização pandectística do Bürgerliches Gesetzbuch, e também, em grande medida, o seu

Direito da Universidade de Coimbra. A tradução do original alemão foi efectuada pelo Dr. Paulo Mota Pinto
(Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra).
1
Fundamental foi Heise, Grundriß eines Systems des gemeinen Civilrechts zum Behuf von Pandekten-
Vorlesungen, 1807; cfr., sobre ele, as instrutivas considerações de A. B. Schwarz, Zur Entstehung des modernen
Pandektensystems, in ZRG RA (Savigny Zeitschrift für Rechtsgeschichte Romanistische Abteilung) 42 (1921), pp.
578 ss.
2
Cfr. o art. 7 do Código Civil suíco.

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instrumentário conceitual”3. É esta uma apreciação bastante inamistosa, cuja citação no


quadro de uma comemoração quase me embaraça. Mas, por favor, não tomem aquela
afirmação demasiado a sério – ela parece-me ser sobretudo um sintoma da moda, difundida
em muitos comparatistas tudescos, de achar mal o próprio direito alemão, e apenas elogiar o
direito estrangeiro. Ainda assim, Zweigert e Kötz encontram-se, com a sua posição de
princípio, na linha de uma antiga tradição alemã, a qual se perfila criticamente em relação à
sistematização do BGB e à sua “Parte Geral”. Vejamos, pois, antes de mais, esta crítica, e
apuremos se se encontram aí aqueles argumentos contra o sistema do BGB cuja falta sentimos
nos dois citados autores.

II. A “Parte Geral” do BGB em face da crítica da doutrina

1. A primeira – e também, a meu ver, ainda hoje a mais importante – tomada de posição
crítica em relação à “Parte Geral” do BGB provém de Ernst Zitelmann, no ano de 19064. Aí
ele distinguiu antes de mais entre três funções diversas, que uma “Parte Geral“ pode
desempenhar: pode servir a sistemática científica, ou a transmissão dos conteúdos jurídicos no
ensino, ou a elaboração de leis5. Tenho esta distinção por correcta e frutífera; pois a ciência, a
didáctica e a legislação visam finalidades distintas, e, portanto, também os pontos de vista
rectores, segundo os quais ordenam os conteúdos jurídicos, podem ser em princípio diversos,
ainda que as suas três finalidades não estejam totalmente desligadas, e, antes, se influenciem
reciprocamente numa certa medida.

Quanto, em primeiro lugar, à ordenação e ao domínio científicos dos conteúdos jurídicos,


Zitelmann acusa todo o sistema das Pandectas de se não orientar por um só critério unitário,
mas, antes, por dois critérios distintos, combinados um com o outro: o Direito da Família e o
Direito das Sucessões atendem a fenómenos do mundo natural ou social – designadamente, à
relação entre cônjuges e entre pais e filhos, ou à morte de uma pessoa e à daí resultante
partilha do seu património; o Direito das Obrigações e o Direito das Coisas baseiam-se, pelo
contrário, em fenómenos do mundo do Direito e em categorias puramente jurídicas –
nomeadamente, e sobretudo, na distinção entre eficácia relativa, apenas entre as partes (inter
partes), e eficácia absoluta, em face de qualquer um (erga omnes). Em consequência, o
Direito da Família e o Direito das Sucessões são concebidos essencialmente a partir do lado
da hipótese (Tatbestand), enquanto o Direito das Obrigações e o Direito das Coisas são

3
Zweigert/Kötz, Einführung in die Rechtsvergleichung, 3.ª ed., 1996, p. 107.
4
Zitelmann, Der Wert eines „allgemeinen Teils“ des bürgerlichen Rechts, in GrünhutsZ, 33 (1906), pp. 1 ss.
5
Ob. cit., p. 4.

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concebidos sobretudo a partir do lado da consequência jurídica. Esta chamada “repartição


cruzada”, isto é, a ligação de duas diferentes perspectivas distintivas, prolonga-se, segundo
Zitelmann, dentro da “Parte Geral”, a qual, por isso, também não teria sido formada segundo
um critério unitário, e antes se baseando em pontos de vista diversos6.

Na perspectiva didáctica, Zitelmann queixava-se de que a “Parte Geral”, por causa da sua
abstracção e falta de plasticidade, seria difícil de transmitir aos principiantes7. Ele propõe,
pois, para as aulas, uma outra sistematização, que é muito interessante e à qual ainda voltarei.

Por último, no que diz respeito ao valor da “Parte Geral” para a legislação, Zitelmann vai
tão longe que propõe a sua eliminação8. Para isto era, novamente, decisivo o ponto de vista
segundo o qual as diversas matérias disciplinadas na “Parte Geral” seriam demasiado
diversas. Efectivamente, não pode negar-se que, por exemplo, a capacidade jurídica da pessoa
e a prescrição de direitos – isto é, duas matérias reguladas na “Parte Geral” – não têm
qualquer relação reconhecível entre si. Zitelmann percorre, uma após outra, as diversas
matérias da “Parte Geral” e propõe outros locais no BGB para a sua disciplina, até,
finalmente, já só restarem os “Negócios jurídicos”. Para estes, ele reconhece, é certo, a
necessidade de um regime geral, mas para uma tal disciplina a designação “Parte Geral” seria
demasiado exigente, pelo que Zitelmann pretendia, antes, criar um livro próprio sobre
“Direito geral dos negócios jurídicos”. Não considero, porém, que esta solução seja boa. É
verdade que a unidade interna das matérias disciplinadas, que Zitelmann tinha por tão
importante, estaria então assegurada, mas, por outro lado, as proporções externas dos diversos
livros afastar-se-iam então totalmente do seu equilíbrio, já que um livro muito curto seria
anteposto aos quatro, bem mais abrangentes, livros sobre Direito das Obrigações, Direito das
Coisas, Direito da Família e Direito das Sucessões. Segundo julgo, então seria melhor, em
comparação com tal solução, renunciar também ao negócio jurídico como parte autónoma do
Código, e disciplinar os problemas respectivos no Direito das Obrigações, nos preceitos sobre
contratos9; e complementarmente seria, então, de dispor que estes preceitos fossem aplicáveis
analogicamente a negócios jurídicos unilaterais, como fazem o ABGB austríaco e o Codice
Civile italiano10.

6
Ob. cit., p. 11 ss.
7
Ob. cit., p. 29 ss.
8
Ob. cit., p. 19 ss.
9
Cfr. sobre isto, infra IV 1.
10
Cfr. o § 876 do ABGB e o art. 1324 do Codice Civile; semelhante também o art. 7 do ZGB suíço.

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2. Seguidamente, é de especial interesse uma controvérsia entre Hans Carl Nipperdey e


Karl Larenz, por um lado, e Philipp Heck, por outro lado. No quadro dos trabalhos
preparatórios de um novo Código Civil, durante o período do nacional-socialismo, Nipperdey
defendeu a tese de renúncia a uma “Parte Geral”, e fundamentava-a sobretudo no facto de esta
“conter partes integrantes totalmente heterogéneas”; as poucas normas sobre Direito das
Pessoas deveriam ser acrescentadas ao Direito da Família; a teoria do negócio jurídico seria
de acolher nas disposições sobre contratos do Direito das Obrigações11. Larenz apontava
numa direcção semelhante. Ele queria limitar o conceito de contrato ao contrato obrigacional,
e, sobretudo, deixar de qualificar o casamento como contrato; chamava, em especial, a
atenção para que os preceitos da “Parte Geral” do BGB sobre o erro e sobre as condições de
validade de negócios jurídicos não se adequam, nem ao casamento nem ao testamento, e,
efectivamente, devido a regras especiais não são aplicáveis. Por isso defendia, é certo, uma
“Parte Geral” sobre contratos obrigacionais, mas recusava, em concordância com Nipperdey,
uma “Parte Geral” que, como a do BGB, vale também, em princípio, para o Direito da
Família, o Direito das Sucessões e o Direito das Pessoas12.

A esta concepção objectou Heck. Este introduziu o seu ensaio de 1941 com um protesto
contra a eliminação das aulas sobre a “Parte Geral”, ordenada pelos nacional-socialistas13. Isto
é altamente notável, antes de mais, porque representava, naquela época, um sinal de
significativa coragem. Para além disso, porém, merece também atenção especial porque a
eliminação da “Parte Geral” tinha sido fundamentada com o argumento de que, por seu
intermédio, o estudante se formaria como jurista conceitualista, sem perspectiva prática; foi,
pois, logo o crítico mais agudo da jurisprudência dos conceitos a negar que a “Parte Geral”
merecesse críticas naquela perspectiva, e a levantar a sua voz em defesa dela14. Após estas
considerações sobre a problemática didáctica da “Parte Geral”, Heck tratou das questões
legislativas levantadas por Nipperdey e Larenz. Rejeitou a crítica de Nipperdey à
heterogeneidade das matérias disciplinadas na “Parte Geral”, com a fundamentação de que
uma tal “Parte Geral” servia sobretudo a clareza, e de que, portanto, não precisava, de forma
alguma, de ter por objecto apenas matérias semelhantes; não adviriam quaisquer
inconvenientes do facto de as matérias nela reguladas serem diversas15. Rejeitou, igualmente,
o estreitamento do conceito de contrato proposto por Larenz, pois contrariaria o uso

11
Nipperdey, Das System des Bürgerlichen Rechts, in ZAkDR, 5 (1938), p. 22.
12
Larenz, Neubau des Privatrechts, in AcP, 145 (1939), pp. 96 ss., 100 s.
13
Heck, Der Allgemeine Teil des Privatrechts. Ein Wort der Verteidigung, in AcP, 146 (1941), pp. 1 ss.
14
Para este ponto chamou a atenção expressamente o próprio Heck – cfr. ob. cit., p. 4.
15
Ob. cit., p. 24 s.

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linguístico tradicional e, em última instância, conduziria a um conceito de contrato


proveniente do direito romano, que justamente o direito alemão teria superado16.

3. Após a II Guerra Mundial a discussão em torno da “Parte Geral” calou-se quase por
completo. Mas não foi, com isso, de forma alguma superada a atitude crítica em relação à
“Parte Geral”, de sectores significativos da ciência jurídica alemã. Mostra-o, sobretudo, a
tomada de posição de Franz Wieacker, em 1967. Ele viu na elaboração de uma “Parte Geral“
sobretudo uma tarefa da ciência, e não da legislação. Em conformidade, considerou a “Parte
Geral” do BGB “dispensável, se não mesmo prejudicial”, e censurou-lhe – agora novamente
pegando no aspecto didáctico – o facto de, “para uma introdução adequada ao estudo do
direito, as lições sobre a Parte Geral [serem] um calvário pedagógico de primeiro grau”17.

Dieter Medicus vê a problemática de uma “Parte Geral” de forma essencialmente mais


pragmática. Ele salienta como vantagem sobretudo a racionalização – isto é, a simplificação –
consistente em o legislador “antecipar”NT determinados problemas com as suas soluções,
assim podendo já pressupô-las no tratamento posterior de questões mais especiais. Divisa
desvantagens no elevado grau de abstracção e na necessidade de excepções em pontos
posteriores da lei, bem como na complicação do sistema associada a isto e nas consequentes
dificuldades de compreensão, as quais resultam do facto de, para resolver um caso,
frequentemente se ter de combinar entre si diversas normas, de partes totalmente distintas do
BGB18.

4. Mais recentemente, Franz Bydlinski forneceu novos impulsos à discussão sobre a “Parte
Geral”. Em sua opinião, uma tal parte não serve apenas a simplificação da legislação e uma
melhor clareza, na medida em que certos regimes são “antecipados”NT. Antes serve também
para evitar contradições valorativas, na medida em que, pela generalidade da disciplina, se
impede um fraccionamento em soluções individuais – as quais, em certos casos, não estão
suficientemente harmonizadas –, dessa forma se garantindo um tratamento igual de problemas
de igual espécie. Uma “Parte Geral” é, assim, legitimada, em última instância, pelos valores
jurídicos básicos da segurança jurídica e da adequação ao fim, bem como da justiça19. À
objecção de heterogeneidade atalha Bydlinski na medida em que revela princípios subjacentes

16
Ob. cit., p. 16 ss.
17
Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2ª ed., 1967, p. 488 [p. 560 da tradução portuguesa, sob o título
História do direito privado moderno].
NT (Nota do tradutor)
Em alemão, e literalmente, “antepor aos parênteses” – “vor die Klammer ziehen”.
18
Medicus, Allgemeiner Teil des BGB, 8ª ed., 2002, nº 31 ss.
NT (Nota do tradutor)
Cfr. a nota do tradutor que antecede, nesta mesma página.
19
F. Bydlinski, System und Prinzipien des Privatrechts, 1996, p. 119 ss., 129, 134.

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à “Parte Geral”; não pode aqui, certamente, tratar-se de um único princípio, mas antes – como
é característico do pensamento de Bydlinski também noutros pontos –, e apenas, de uma
combinação de vários princípios, os quais podem ser bastante diversos em cada matéria da
“Parte Geral”20. Globalmente, o juízo de Bydlinski sobre o valor de uma “Parte Geral” é
positivo, o que é tanto mais digno de registo quanto ele é austríaco, e o Direito Civil desse
país, conforme referido, não conhece qualquer “Parte Geral”.

III. Funções de uma “Parte Geral” para o ensino do Direito e para a Ciência do Direito

Efectuei esta panorâmica das tomadas de posição da doutrina de língua alemã sobretudo
também porque, a seu propósito, surgiram já os mais importantes argumentos a favor e contra
uma “Parte Geral”. Assim, está agora preparado o terreno para chegar a um juízo
relativamente fundado sobre o valor e o desvalor de uma “Parte Geral”. Sigo, para tanto, a
tripartição – que antes referi e reconheci como exacta – de Zitelmann, em aspectos didácticos,
científico-sistemáticos e legislativos.

1. A relevância didáctica da “Parte Geral”

Na perspectiva didáctiva apenas posso concordar com Wieacker, quando ele diz serem “as
lições sobre a Parte Geral um calvário pedagógico de primeiro grau” 21. Isto vale, pelo menos,
se se incluir nessas lições todas, e apenas, aquelas matérias que são tratadas na Parte Geral do
BGB. Pois então é necessário ocupar-se pormenorizadamente com matérias, como o regime
das associações e das fundações, que são disciplinadas em detalhe no BGB – tal como no
Código Civil – na Parte Geral, ou é necessário tratar da prescrição com todos os pormenores,
mas não é de modo algum possível lidar, por exemplo, com a responsabilidade civil por actos
ilícitos ou com o enriquecimento sem causa, uma vez que estes não aparecem de todo na Parte
Geral do BGB. Desta forma, o estudante recebe, no início do seu estudo, uma imagem muito
unilateral e incompleta das matérias do Direito Privado. Além disso, não pode negar-se, em
minha opinião, que, do ponto de vista didáctico, tanto a abstracção como a heterogeneidade da
“Parte Geral” são, de facto, muito perturbadoras, já que, enquanto os estudantes ainda são
principiantes, carecem de uma visão plástica dos objectos tratados tão grande quanto possível,
e, também, de matérias tanto quanto possível homogéneas, para poderem compreender mais
facilmente os conteúdos e reter melhor o que foi leccionado.

20
Ob. cit., p. 135 ss.
21
Wieacker, ob. e loc. cits. (nota 17).

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Foi, portanto, com grande fascínio que, na preparação desta conferência, pude ler que, já
no início do século passado – ou seja, pouco depois da promulgação do BGB –, Zitelmann
reuniu numa única disciplina a Parte Geral e o Direito das Obrigações, começando-a com os
actos ilícitos e tratando, na sua sequência, a teoria do negócio jurídico22. Também a Faculdade
de Direito de Munique uniu a Parte Geral e o Direito das Obrigações numa única disciplina
(que se estende por dois semestres e dura, em cada um, sete horas por semana), abrindo,
assim, aos seus membros a possibilidade de tratar a matéria respectiva do ponto de vista da
sua adequação didáctica, independentemente da sua pertinência ao primeiro ou ao segundo
livros do BGB. Aqui tive, exactamente como Zitelmann no seu tempo, a experiência de que é
adequado começar com o direito da responsabilidade civil por actos ilícitos, fazer-lhe seguir a
teoria do negócio jurídico, e incluir, imediatamente depois desta, o regime do não
cumprimento e da garantia dos vícios da coisa, bem como o restante direito dos contratos
obrigacionais. Desta forma surge, no início, um campo que é bastante concreto e claro para o
estudante, seguindo-se então, com todo o direito dos contratos, um grande bloco homogéneo.
Os pilares fundamentais da “Parte Geral” são tratados simultaneamente sem dificuldade, pois
a propósito da discussão da responsabilidade civil por actos ilícitos surge forçosamente
também a teoria do direito subjectivo, e a teoria do negócio jurídico é, de todo o modo, tratada
como tal, no quadro desta se podendo organicamente incluir a teoria do sujeito de direito e da
capacidade jurídica (sendo, é certo, que a teoria das pessoas colectivas apenas pode ser
esboçada nos seus rudimentos, tendo no restante de ser deixada à disciplina do Direito das
Sociedades).

Contudo, Erik Jayme, que conhece bem o sistema de Munique do seu tempo como membro
da nossa Faculdade, fez saber, numa ocasião semelhante a esta, que, após quase 30 anos de
ensino do Direito Privado e das mais diversas experiências, “regressou à Parte Geral de cunho
23
clássico” . Hoje como antes, também existe, pois, na Alemanha, a convicção de que é
possível tornar a “Parte Geral”, enquanto tal, objecto de uma disciplina de forma
didacticamente adequada. Apesar de tudo, penso que tal é difícil, e que uma parte significativa
da crítica que se opõe à Parte Geral tem as suas raízes em dificuldades especificamente de
ordem didáctica. De todo o modo, a função de uma “Parte Geral” não consiste globalmente,
com certeza, em facilitar o ensino do Direito Privado. Pelo contrário, a utilidade de uma
“Parte Geral”, sob este ponto de vista, é, antes, de valorar negativamente.

22
Zitelmann, ob. cit. (nota 4), p. 31 s.
23
Jayme, Die Bedeutung des Allgemeinen Teils im System des BGB, in Centro interuniversitario per la
documentazione e lo studio delle relazioni giuridiche fra Italia e Germania (ed.), I cento anni del codice civile
tedesco, 2002, p. 810 e p. 144 (versão italiana).

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2. A relevância científico-sistemática de uma “Parte Geral”

A relevância científico-sistemática de uma “Parte Geral” é de apreciar em sentido


totalmente diverso. Pois para a ciência do direito que procede sistematicamente tem
justamente de existir uma “Parte Geral”, já que só numa tal Parte podem vir a ser tratados
adequadamente os fundamentos do Direito Civil.

Em todo o caso, não se deduz daqui que esta “Parte Geral” tenha de estar, como tal,
legislativamente prevista. Antes é, sem mais, possível desenvolvê-la autonomamente em
relação à lei. Nomeadamente, a ciência do direito pode também elaborar os fundamentos
gerais do Direito Civil, mesmo que estes não estejam disciplinados legalmente de forma
expressa, enquanto tais. Assim, também em países nos quais não existe disciplina legislativa
de uma “Parte Geral” – como, por exemplo, na Áustria e na Suíça –, a ciência do direito se
24
ocupa em parte com o desenvolvimento substancial de uma “Parte Geral” . E, mesmo
quando a ciência do direito o não faz explicitamente, podem, todavia, em regra, agrupar-se
sem grandes dificuldades numa “Parte Geral” os conhecimentos que desenvolveu em distintos
pontos – por exemplo, sobre a capacidade jurídica da pessoa, sobre a conclusão e os efeitos
dos contratos, sobre a tutela e os limites dos direitos subjectivos.

Em conformidade, também onde a “Parte Geral” encontrou um lugar na codificação, como


em Portugal e na Alemanha, sob o ponto de vista científico não tem de coincidir
rigorosamente com as matérias aí disciplinadas. Antes o sistema científico pode permanecer
em parte por detrás da disciplina legislativa, ou ir parcialmente para além desta. Tem, pois,
efectivamente de distinguir-se entre a “Parte Geral” de um determinado Código, como, por
exemplo, do Código Civil ou do BGB, e a “Parte Geral” do Direito Civil. Naturalmente, um
manual pode apenas incidir sobre uma ou sobre outra – ou seja, pode ter por objecto apenas o
BGB ou também o Direito Civil alemão; só na primeira hipótese o objecto científico é
coincidente com a disciplina legal, mas não já no segundo caso.

Assim, um manual de “Parte Geral” do Direito Civil pode, quanto ao regime das
associações e das fundações, limitar-se aos traços fundamentais, na medida em que estes são
necessários para a compreensão da teoria das pessoas colectivas, deixando os pormenores
para os manuais sobre Direito das Sociedades. Por outro lado, uma “Parte Geral” do Direito
Civil pode e deve conter também, por exemplo, considerações sobre a instituição da
concorrência, apesar de esta não estar regulada na “Parte Geral” do BGB; pois a teoria do

24
Cfr. sobre isto, mais em detalhe, Bydlinski, ob. cit. (nota 19), p. 125.

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negócio jurídico no actual direito alemão – e, em especial, o seu enunciado fundamental “stat
pro ratione voluntas” 25 – não se consegue entender e expor adequadamente sem considerar
conjuntamente os efeitos e a protecção do funcionamento capaz da concorrência26. Algo
semelhante vale para a autonomia laboral colectiva: uma vez que esta constitui uma
manifestação extremamente importante da autonomia privada, a teoria do negócio jurídico
ficaria incompleta num ponto essencial, se se não incluísse no seu contexto a autonomia
laboral colectiva. Ninguém chegaria, porém, a pensar em exigir, por causa disto, que os
preceitos sobre a tutela da concorrência – como a proibição de cartéis e o controlo das fusões
– ou o regime das convenções colectivas devessem ser acolhidos na “Parte Geral” do BGB.
Estes exemplos demonstram, de forma particularmente clara, que a “Parte Geral” de um
Código Civil e o tratamento científico-sistemático dos fundamentos gerais do Direito Civil
prosseguem fins diversos, e que, por isso, têm objectos distintos.

Em consequência, do grande relevo científico-sistemático que cabe à “Parte Geral” do


Direito Civil não pode extrair-se nenhum argumento essencial a favor da criação de um livro
próprio, que tenha por objecto a “Parte Geral” de uma codificação. Os argumentos para isto
podem, antes, basear-se, apenas, em pontos de vista relativos à específica adequação
legislativa.

IV. Funções de uma “Parte Geral” para a legislação

1. A necessidade da abstracção, exemplificada com o contrato e o negócio


jurídico

O mais importante destes argumentos reside, sem dúvida, na necessidade da abstracção.


Designadamente, a construção das chamadas pirâmides de conceitos não constitui, de forma
alguma, um excesso, digno de reprovação, da chamada “jurisprudência dos conceitos”, ou um
“jogo de pérolas de vidro” da ciência do direito, no sentido de uma mera “l’art pour l’art”,
mas integra, antes, aquelas tarefas irrenunciáveis de qualquer ordem jurídica em certa medida
desenvolvida.

Assim, é verdade que se pode, talvez, afirmar que, por exemplo, “o contrato de compra e
venda” não é apenas um conceito jurídico, mas antes, também, um fenómeno da realidade
social; mas já “o contrato” não é mais do que uma abstracção jurídica, à qual, por

25
Cfr. sobre isto, tão-só Flume, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 4ª ed., 1992, § 1, 5.
26
Cfr. mais em detalhe Canaris, Verfassungs- und europrechtliche Aspekte des Vertragsfreiheit in der
Privatrechtsgesellschaft, in Festschrift für Lerche, 1993, p. 873, 876, 878 ss., 881 s.; idem, Die Bedeutung der
iustitia distributiva im deutschen Vertragsrecht, 1997, p. 63 ss.

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C.-W. Canaris, Funções da Parte Geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade

considerações puramente jurídicas, o jurista imputa fenómenos reais altamente diferenciados.


Sensatamente não há, porém, outro remédio que não seja o de construir a categoria “contrato”,
pois existem muitos problemas jurídicos que se põem da mesma forma tanto para os contratos
de troca, de empreitada, de mútuo, de locação, de gestão (“Geschäftsbesorgungsverträge”),
etc., como para os contratos de compra e venda, e, quer por razões de praticabilidade, quer
para evitar contradições incompatíveis com o imperativo de igualdade de tratamento, não
podemos de modo algum regulá-los especialmente para cada tipo contratual. Quando se
observa, então, que certos problemas se põem diversamente, por exemplo, num contrato
gratuito e num contrato oneroso, e quando, além disso, a ordem jurídica requer, por exemplo,
uma aceitação da doação pelo donatário (como no BGB), bem como quando depois se
permite, por exemplo, que os nubentes escolham eles mesmos o seu regime de bens através de
uma convenção, ou que alguém institua outra pessoa como herdeiro através de convenção
com este, já se tem uma pirâmide de conceitos bastante elevada: contrato de compra e venda,
contrato sinalagmático, contrato com efeitos vinculativos para ambas as partes, contrato com
efeitos obrigacionais (=contrato obrigacional), contrato. Logo uma pequena reflexão conduz
então, seguidamente, ao conhecimento de que um contrato se forma em regra através de duas
declarações de vontade, de que as declarações de vontade não produzem efeitos jurídicos
apenas nos contratos, mas também, por exemplo, nos casos da feitura de um testamento ou da
aprovação de uma deliberação maioritária pelos sócios de uma sociedade por acções. Com
isto descobriu-se o conceito de negócio jurídico e elevou-se a pirâmide em (pelo menos) mais
um nível. A partir daqui pode construir-se mais, e, por exemplo, acrescentar os conceitos de
acto lícito, comportamento juridicamente relevante e facto jurídico.

Apurar a que nível se detém o legislador constitui, na verdade, uma questão relativa à
adequação, mas é seguro que lhe seria impossível realizar a sua tarefa se permanecesse num
dos níveis mais baixos. A abstracção é, pois, realmente de todo inevitável – só pode
perguntar-se até onde se leva, o que significa, no presente contexto, perguntar em que medida
o legislador dela se serve.

Ora, também para tal o exemplo do contrato oferece uma boa lição exemplificativa.
Nomeadamente, vários dos problemas que o legislador tem de resolver na criação de regras
sobre contratos põem-se, em princípio, de forma igual para contratos de todo o tipo – assim,
por exemplo, quanto à sua formação e aos seus requisitos de eficácia; pois não faz, para tanto,
qualquer diferença tratar-se de um contrato de compra e venda, de um contrato familiar sobre
o regime de bens, ou de um contrato sucessório. Onde deve então o legislador disciplinar estas

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C.-W. Canaris, Funções da Parte Geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade

questões? A resposta parece ser natural: no direito dos contratos! Com isto, porém, o
legislador depara-se de imediato com a próxima questão difícil: onde deve colocar o direito
dos contratos – num livro próprio da codificação ou no Direito das Obrigações? Se o
legislador escolher a primeira solução, em substância criou já um pedaço de uma “Parte
Geral”; se escolher a segunda solução tem que, em todos os contratos que não são contratos
obrigacionais, remeter para os preceitos sobre estes, e depara-se, aqui, exactamente com a
mesma dificuldade que na criação de uma verdadeira “Parte Geral” – isto é, com a questão de
saber quais dos preceitos sobre contratos obrigacionais se ajustam a contratos de outra
espécie, e são, por isso, de considerar pela via da remissão.

Estas dificuldades são ainda agudizadas pela circunstância de os intervenientes no tráfico


jurídico-privado poderem produzir efeitos jurídicos, não só através de contratos, mas também,
em certos casos, por declarações unilaterais. São exemplos clássicos a feitura de um
testamento e a aprovação de uma deliberação maioritária através da votação numa assembleia
geral; no direito alemão existe, também, uma série de outros negócios jurídicos unilaterais,
tais como a concessão de uma procuração, a oferta pública e as declarações da anulação, da
denúncia, da resolução, da compensação, ou do exercício de um outro chamado direito
potestativo. Uma vez que não se trata aqui de contratos, o legislador tem de decidir, também
para negócios jurídicos deste tipo, se, e em que medida, lhes são de aplicar os preceitos sobre
contratos. Naturalmente, ele pode prescrever como princípio a sua aplicação analógica – e é
certo que, como já se disse, muitas ordens jurídicas se socorrem, efectivamente, desta técnica
27
legislativa –, mas, então, novamente o legislador cria, na substância, um pedaço de uma
“Parte Geral”, e não resolve de alguma forma as dificuldades ligadas a uma tal generalização;
antes onerando com elas o aplicador do direito, que tem de decidir que preceitos sobre
contratos se ajustam ao negócio jurídico unilateral em questão e quais não se ajustam. A
problemática substancial de uma “Parte Geral” não se deixa, assim, eliminar através de
técnicas legislativas deste tipo, antes sendo apenas encoberta com outra veste – por isso
Zitelmann falou, a este propósito, com razão, de “jogos de escondidas” contra a problemática
da “Parte Geral”28.

Com isto, quase cheguei já a uma defesa, não apenas de que o conceito do negócio jurídico
seja usado na ciência do direito – onde, de todo o modo, é irrenunciável –, mas, também, de
que se utilize para a legislação e de que se eleve a elemento integrante de uma “Parte Geral”.

27
Cfr. supra, nota 10.
28
Zitelmann, ob. cit. (nota 4) S. 24.

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No entanto, já afirmei antes, em discussão crítica com Zitelmann, que, para mim, seria muito
pouco para uma “Parte Geral”, ou, mesmo, tão-só para um livro autónomo de uma
codificação, que o seu conteúdo se limitasse a disposições sobre negócios jurídicos.
Poder-se-ia, assim, incluir no tratamento outros objectos de regulamentação, cuja sede
legislativa é, caso falte um livro próprio para a “Parte Geral”, insegura. Onde deve, por
exemplo, colocar-se a prescrição? Responder-se-á que no Direito das Obrigações29, mas
contra isto logo se ergue a objecção de que não são só as pretensões obrigacionais que estão
sujeitas à prescrição, mas antes pretensões de todo o tipo, isto é, por exemplo, também
pretensões de Direito das Coisas, jurídico-familiares, jurídico-sucessórias, de Direito de Autor
ou de Direito da Concorrência; novamente cresceria, pois, o problema da remissão, e, do
mesmo passo, da “cripto-Parte Geral”.

Em todo o caso, não devemos prosseguir erraticamente, para testar todos os regimes
contidos na Parte Geral do BGB e do Código Civil, no sentido de apurar se também se
deixam, ou não, acolher noutros pontos da codificação, mas, antes, esforçar-nos por obter uma
perspectiva sistemática, pela qual se consiga conferir à “Parte Geral” um centro intelectual
(“eine geistige Mitte”). É que o Direito das Obrigações e o Direito das Coisas sempre têm o
seu respectivo centro sistemático, o qual é constituído pela distinção entre eficácia relativa e
absoluta e é reforçado pela distinção entre contratos obrigacionais, que em princípio
comportam em si uma causa, e contratos reais, que são materialmente neutrais30; e o Direito
da Família e o Direito das Sucessões sempre encontram o fundamento legitimador da sua
autonomização como livro próprio na unidade das relações da vida disciplinadas. De facto,
parece-me perfeitamente possível uma tal legitimação sistemática da “Parte Geral”– e isto, na
verdade, tanto ao nível dos conceitos jurídicos, como ao nível, subjacente a este, dos valores e
princípios jurídicos.

2. Sujeito de direito, direito subjectivo e negócio jurídico como pilares


conceituais de uma “Parte Geral”

Em perspectiva jurídico-teorética pode, no fundo, dizer-se de forma bastante simples quais


são os pilares conceituais que sustentam uma “Parte Geral” do Direito Civil – e, aliás,
independentemente das especificidades de um certo ordenamento jurídico positivo. Se o
legislador pretende disciplinar as relações entre particulares, tem, antes de mais, de determinar

29
Assim, de facto, por exemplo Zitelmann, ob. cit. (nota 4) p. 18, 28; também os códigos que não dispõem de
uma “Parte Geral” autónoma costumam proceder assim.

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o círculo dos intervenientes, isto é, de fixar quem é reconhecido pela ordem jurídica como
sujeito de direito, e quem o não é. Em seguida, tem de atribuir a estes sujeitos de direito uma
esfera juridicamente protegida, ou seja, de determinar o círculo dos direitos subjectivos. Para
além disto, tem de regular quais são os objectos de um tal direito, ou seja, os objectos de
direito. Finalmente, tem de decidir se, e como, os sujeitos de direito podem criar direitos
subjectivos e transmiti-los para outras pessoas, ou modificá-los juridicamente noutro sentido –
e uma vez que, como acabámos de expor, isto é possível não só mediante contratos, mas
também por acto unilateral, resulta como quarto conceito fundamental o do negócio jurídico.

Efectivamente, tanto o Código Civil como o BGB se baseiam, nas suas “Partes Gerais”,
nestes quatro conceitos fundamentais. Aqui tem, é certo, de reconhecer-se sobriamente que o
objectivo do legislador não reside na obtenção de um optimum de clareza jurídico-teorética,
ou mesmo de elegância, mas, antes, na resolução de problemas práticos. Em conformidade,
estes fundamentos conceituais não aparecem na sua forma “pura” na lei, antes tendo de ser
trazidos à consciência já pela ciência do direito. Além disso, é natural que só possam ter lugar
numa “Parte Geral” aqueles regimes que, em princípio, valem realmente para todos os quatro
livros da codificação, ou mesmo, para além disso, tanto quanto possível, para todo o Direito
Privado, e que, portanto, atingem uma abstracção significativamente elevada, isto é, que estão
situados na pirâmide de conceitos num nível bastante alto. Por aqui se explicam tanto a
abstracção como a heterogeneidade das matérias, pois, justamente, são sempre só partes
isoladas que são dotadas da suficiente generalidade; assim, por exemplo, pode ver-se o regime
da prescrição como uma área bastante específica, que, ainda por cima, não pertence
seguramente às matérias mais interessantes e dogmaticamente mais exigentes do Direito
Privado; e, todavia, está com inteira razão disciplinada em detalhe na Parte Geral, pois incide
sobre um importante campo problemático do direito subjectivo31, e as suas normas
ajustam-se, nesta medida, a todo o Direito Privado.

No caso de outras matérias seria, é certo, desejável em perspectiva teórica que aparecessem
na “Parte Geral”, mas elas não atingem aquela elevação de abstracção necessária para aí terem
cabimento. Parece-me ser o que se passa com o conceito de objecto de direito. Pois saber o
que é objecto de um direito subjectivo, e como este se configura, é algo que só pode
disciplinar-se com sentido nas respectivas áreas parciais, ou seja, por exemplo, no Direito das

30
Cfr. sobre isto, mais em detalhe, Canaris, Die Bedeutung einer allgemeinen Regelung des Schuldverhältnisses
und die Abschnitte I und II des zweiten Buches des BGB, in I cento anni del codice civile tedesco (como na n.
23), p. 945 ss e p. 271 ss (versão italiana).

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Obrigações, no Direito das Coisas ou no Direito de Autor. Ainda assim, tanto o Código Civil
como o BGB contêm disposições sobre “Coisas”, e dão, pois, em certa medida conta da tese
segundo a qual também os objectos de direito aparecem na “Parte Geral”. No entanto,
também na Alemanha é sustentada, por defensores da “Parte Geral”, a posição de que estes
preceitos teriam encontrado melhor o seu lugar no direito das coisas32. Efectivamente, eles
não atingem aquela altura de abstracção que os autonomiza do contexto de Direito das Coisas,
e que os torna “dignos” para a “Parte Geral”. Em minha opinião, esta não se baseia pois, na
verdade, em quatro, mas apenas em três conceitos fundamentais – a saber, no sujeito de
direito, no direito subjectivo e no negócio jurídico, sendo, é certo, que o objecto de direito
sempre tem necessariamente de ser pensado também a propósito destes dois últimos
conceitos, e que, por esta via, e em harmonia com as exigências teóricas, permanece sempre
mediatamente presente.

3. Liberdade jurídica e igualdade jurídica como valores sustentadores ou


princípios da “Parte Geral”

A estes conceitos fundamentais estão subjacentes valores ou princípios igualmente


fundamentais33. Os mais importantes são, reconhecidamente, a liberdade jurídica e a
igualdade jurídica da pessoa. Eles manifestam-se na circunstância de que todos os seres
humanos são igualmente reconhecidos como dotados de capacidade jurídica, de que a
qualquer pessoa é lícito exercer os seus direitos subjectivos fundamentalmente no seu próprio
interesse e defini-lo ela mesma, e de que a competência para a realização de negócios
jurídicos cabe igualmente a todos os sujeitos de direito e serve para o exercício da sua
auto-determinação. Tudo isto é amplamente sabido, de tal forma que não o posso ou tenho
que aprofundar aqui. Mas, ainda assim, recorde-se expressamente, para manter desperto o
conhecimento, que justamente na “Parte Geral” são realizados os valores e princípios mais
fundamentais da nossa ordem jurídica; ela corresponde, nesta medida, tanto à grande tradição
do jusracionalismo e do iluminismo, como às exigências das actuais Constituições.

Simultaneamente, pertencem também a estes valores e princípios fundamentais os limites


da liberdade e da igualdade: a liberdade não é pensável sem vinculação, porque a liberdade de
um tem sempre de ser conciliada com a liberdade do outro, e a igualdade jurídica é

31
Esta perspectiva parece-me melhor do que a opinião difundida, segundo a qual se trata aqui do campo
problemático relativo a “O Direito e o tempo”.
32
Cfr. por ex, Enneccerus/Nipperdey, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, vol. I, 15.ª ed., 1959, p. 48.
33
Cfr. sobre isto, desenvolvidamente, Bydlinski (cit. na nota 19), p. 127 ss.; cfr. também, por exemplo, Jayme
(cit. na nota 23), p. 812 s.; O. Behrends, Das Privatrecht des deutschen Bürgerlichen Gesetzbuchs, in

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necessariamente sempre reciprocamente referencial, de tal forma que encontra os seus limites
nos direitos dos outros sujeitos de direito. Na sua estrutura fundamental, a “Parte Geral”
corresponde, nesta medida, justamente ao conceito de direito de Kant34. Em conformidade,
cada direito subjectivo é limitado pelos direitos subjectivos dos outros sujeitos de direito, e o
exercício da liberdade para a realização de um negócio jurídico inclui, como princípio, ao
mesmo tempo, a vinculação, de tal forma que o preceito pacta sunt servanda é imanente ao
contrato35. Aos fundamentos da “Parte Geral” pertencem, por conseguinte, também o
princípio da auto-responsabilidade, bem como os da protecção do tráfico e da confiança.

4. Observações críticas sobre alguns objectos de regulamentação da “Parte


Geral”

Deste vôo de grande altura, retorno rapidamente às terras chãs do direito positivo. Aqui
verificamos moderadamente que, como é natural, as “Partes Gerais” realmente existentes
apenas podem satisfazer de forma muito incompleta as exigências teórico-jurídicas e
filosófico-jurídicas. Várias regras que foram incluídas na Parte Geral estariam melhor noutras
localizações, e muitas normas dispostas no Direito das Obrigações pertencem, pelo seu
conteúdo, verdadeiramente à “Parte Geral”. Naturalmente, não posso entrar numa crítica
individual concreta, mas, a concluir, refiram-se brevemente, pelo menos, alguns pontos
fracos.

Afigura-se-me que tanto o Código Civil como o BGB dedicam demasiado espaço aos
regimes das associações e das fundações. É certo que os traços gerais do regime das pessoas
colectivas pertencem naturalmente à “Parte Geral”, mas os pormenores não se adequam a
esta. Seria, antes, melhor dedicar ao Direito das Sociedades ou ao Direito das Empresas um
livro próprio da codificação – como faz o novo Código Civil brasileiro de forma modelar –, e
aí acolher também os detalhes dos regimes das associações e das fundações.

Por outro lado, o BGB contém um pesado défice, na medida em que apenas disciplina na
“Parte Geral” o direito ao nome, mas não igualmente outros direitos de personalidade. Pelo
contrário, os preceitos dos artigos 70º e seguintes do Código Civil português, que regulam a

Behrends/Sellert (orgs.), Der Kodifikationsgedanke und das Modell des Bürgerlichen Gesetzbuchs, 2000, p. 8,
12 ss.
34
Cfr. Kant, Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre – Metaphysik der Sitten Erster Teil, 1798,
Einleitung, § B, in fine (citado aqui segundo a edição de Bernd Ludwig, 1986, p. 38): “O direito é pois a suma
das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser compatibilizado com o arbítrio do outro segundo uma lei
geral de liberdade.”
35
Cfr. sobre isto, mais desenvolvidamente, Canaris, Die Vertrauenshaftung im Lichte der Rechtsprechung des
Bundesgerichtshofs, in Canaris e outros (orgs.) 50 Jahre Bundesgerichtshof – Festgabe aus der Wissenschaft,
2000, vol. I, p. 129, 146 ss.

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tutela da personalidade de forma abrangente, são de elogiar como exemplo. Acresce que
estamos aqui perante um daqueles domínios problemáticos que deixam os adversários de uma
“Parte Geral” em dificuldades: onde deve o Direito das Pessoas ser regulado, se não se
dispuser de qualquer “Parte Geral”? Zitelmann queria dedicar-lhe um livro próprio36, e
também procede assim, por exemplo, o Código Civil suíço. No entanto, este campo de
regulamentação é demasiado pequeno para tal, e, além disso, com esta solução já nos
encontramos de novo, substancialmente, a meio caminho para uma “Parte Geral”. O Código
Civil holandês, diversamente, agrupa o Direito das Pessoas com o Direito da Família, mas
parece-me que deste modo se restringe indevidamente o significado do Direito das Pessoas, o
qual reclama justamente uma pretensão “geral” de validade37.

O Código Civil é ainda superior ao BGB na disciplina do direito subjectivo, pois fornece
um tratamento abrangente da problemática do abuso de direito. Na Alemanha é, pelo
contrário, necessário recorrer aqui ao § 242 do BGB, ou seja, a um preceito do Direito das
Obrigações, ponto, este, em que se revela um falhanço dos autores do BGB.

Parece-me muito digna de reflexão a questão de saber se, inversamente, os preceitos sobre
falta e vícios da vontade não teriam encontrado melhor o seu lugar no Direito das Obrigações.
Eles são, no essencial, adequados ao contrato obrigacional, como mostram sobretudo as
muitas e profundas excepções que, neste aspecto, o Direito da Família e o Direito das
Sucessões introduzem.

Como erro legislativo é, por fim, considerado na ciência do direito alemã o facto de a Lei
sobre Condições Negociais Gerais ter, no quadro da reforma do Direito das Obrigações, sido
incluída neste livro, em vez de na “Parte Geral”38. Esta última alternativa teria sido a
materialmente adequada, porque os preceitos sobre condições negociais gerais também valem
para contratos de Direito das Coisas como, por exemplo, uma convenção de reserva de
propriedade, e para negócios jurídicos unilaterais como, por exemplo, a concessão de uma
procuração. Aqui o legislador perdeu uma oportunidade e desconheceu o carácter frutífero da
“Parte Geral” como instrumento de regulamentação.

36
Ob. cit. (nota 4), p. 24.
37
Em sentido diverso Münch, Strukturprobleme der Kodifikation in Behrends/Sellert, ob. cit. (nota 33), p. 147,
151 s.
38
Cfr. por ex. Wolf/Pfeiffer, Der richtige Standort des AGB-Rechts innerhalb des BGB, in ZRP 2001, 303 ss.;
Palandt/Heinrichs, 62ª ed. 2003, Überblick vor § 305, n.º 1.

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5. Prospectiva

Globalmente, afigura-se-me que a ideia de uma “Parte Geral” é, hoje como antes, boa, e,
em relação às suas alternativas – sendo certo que é só em comparação com estas que ela se
pode avaliar! –, pelo menos igualmente valiosa, ou, mesmo, claramente superior39, tanto mais
que nela se dá expressão ao conteúdo espiritual fundamental do Direito Privado. A execução
jurídico-positiva no BGB contém, é certo, uma série de defeitos que não são insignificantes,
mas que poderiam geralmente ser eliminados.

Que, porém, a técnica de regulamentação da criação de uma “Parte Geral” se venha a


impor num futuro Direito Privado europeu, é algo que me parece extremamente duvidoso40.
Designadamente, por um lado, demasiadas ordens jurídicas europeias não conhecem qualquer
“Parte Geral” do Direito Privado, e, por outro lado, a unificação pode, quando muito, ir
acontecendo passo a passo – por exemplo, começando com a reunião das directivas da União
Europeia e sua posterior extensão num direito dos contratos comum –, enquanto, pelo
contrário, uma “Parte Geral” requereria naturalmente a elaboração de um Código Civil
completo, num único acto de legislação, o que nem me parece provável, nem, sequer,
desejável.

39
Em sentido semelhante, Bydlinski (cit. na nota 19), p. 125 s., com nota 121.
40
Extremamente céptico neste aspecto, também Münch, ob. cit. (nota 37), p. 154.

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