Você está na página 1de 6

Juiz de garantias nas Cortes Interamericana e Europeia de DH 24/10/2023 13:52

DIREITO INTERNACIONAL

O juiz de garantias na jurisprudência das


Cortes Interamericana e Europeia de
Direitos Humanos
No Brasil, a +gura do juiz de garantias foi inserida no Código de Processo Penal em 2019
pela Lei 13.964/2019

CAIO PAIVA

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Crédito: Divulgação

O juiz que participa da fase da investigação preliminar de uma persecução


penal, deferindo uma medida cautelar pessoal como a prisão preventiva ou um
requerimento de produção de prova como a interceptação telefônica, pode
depois julgar o mérito deste caso penal na fase processual?

Eis a pergunta que movimenta o debate em torno do juiz de – ou das –


Você leu 1 de 10 matérias a que tem direito no mês. Quer acesso ilimitado? ASSINE JOTA.INFO
garantias.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direitos-humanos-…das-cortes-interamericana-e-europeia-de-direitos-humanos-24102023 Página 1 de 6
Juiz de garantias nas Cortes Interamericana e Europeia de DH 24/10/2023 13:52

No Brasil, a Hgura do juiz de garantias foi inserida no Código de Processo Penal


em 2019 pela Lei 13.964/2019. Uma atuação institucional-corporativa da
Magistratura, porém, fez com que rapidamente o ministro Luiz Fux, do
Supremo Tribunal Federal, suspendesse a vigência dos dispositivos inseridos
no CPP que tratavam do juiz de garantias. Foi somente em agosto de 2023 –
mais de três anos após a suspensão por decisão monocrática – que o plenário
do Supremo decidiu pela implementação da Hgura do juiz de garantias, embora
tenha feito algumas alterações em relação ao desenho original do legislador
(ADIs nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305).

Não pretendo, aqui nesta coluna que adota como pano de fundo temático o
Direito Internacional, abordar o instituto do juiz de garantias conforme
estabelecido no CPP e pelo STF, mas sim demonstrar como os órgãos e
tribunais internacionais de direitos humanos têm respondido à pergunta
colocada no início, principalmente a Corte Interamericana de Direitos
Humanos.

Antes de interamericanizar o debate, precisamos passar pelo continente


europeu, onde – pelo menos no âmbito da jurisprudência internacional – tem
início a discussão sobre o exercício sucessivo de funções pelo mesmo juiz
durante as fases da persecução penal. Conforme se verá a seguir, apesar de o
assunto ainda gerar controvérsias no sistema interamericano, no Tribunal
Europeu de Direitos Humanos a resposta foi dada no mesmo período em que
lançada a pergunta: a década de 80 do século passado.

Em 1982, quando do julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, o TEDH inicia a


construção de uma jurisprudência no sentido de que o juiz que participou da
fase de investigação preliminar não oferece a imparcialidade objetiva para
julgar o mérito do caso penal correspondente. Além de outros precedentes
sobre a matéria, há o Caso De Cubber vs. Bélgica, julgado em 1984, quando o

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direitos-humanos-…as-cortes-interamericana-e-europeia-de-direitos-humanos-24102023 Página 2 de 6
Juiz de garantias nas Cortes Interamericana e Europeia de DH 24/10/2023 13:52

TEDH reitera a orientação Hrmada no Caso Piersack.

Antes de prosseguirmos, uma nota de metodologia sobre o estudo da


jurisprudência internacional de direitos humanos: a leitura do inteiro teor é
imprescindível. Extrair uma síntese objetiva do julgamento às vezes pode ser
perigoso. O contexto é importante em alguns cenários.

Pois saibam que o contexto daqueles casos contra a Bélgica, que deram início à
jurisprudência do TEDH a respeito do juiz de garantias, é absolutamente
estranho à realidade do funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro.
No Caso Piersack, o juiz que julgou o mérito do caso penal participou da
investigação preliminar como membro do Ministério Público, ou seja, enquanto
integrava outra carreira. E no Caso De Cubber, o juiz responsável pela decisão
de mérito havia atuado na investigação como “juiz de instrução”, uma espécie
de magistrado autorizado a investigar.

Além de a jurisprudência inicial do Tribunal Europeu ter se limitado – repita-se –


a contextos muito peculiares, na mesma década, em 1989, quando do
julgamento do Caso Haushildt vs. Dinamarca, o entendimento foi alterado para
estabelecer que o fato de o juiz que vai julgar o mérito do caso penal ter atuado
anteriormente em outra fase do procedimento, como na investigação
preliminar, não implica automaticamente prejuízo para a sua imparcialidade,
devendo-se veriHcar – vejam só! – o contexto e as características do caso
concreto.

O Caso Hauschildt, sim, guarda semelhanças com o que se tem e se discute no


Brasil. Isso porque foi um juiz que atuou na investigação preliminar, sem
assumir qualquer papel incumbido à polícia ou ao Ministério Público, tendo, no
entanto, decretado a prisão preventiva do investigado. Foi quando o TEDH disse
claramente: a decretação da prisão preventiva na investigação pelo juiz que vai

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direitos-humanos-…as-cortes-interamericana-e-europeia-de-direitos-humanos-24102023 Página 3 de 6
Juiz de garantias nas Cortes Interamericana e Europeia de DH 24/10/2023 13:52

julgar o caso penal não prejudica automaticamente a sua imparcialidade, pois


esse exame deve ser feito em cada caso concreto. E no Caso Hauschildt,
embora tenha Hrmado essa “tese” – que é observada até os dias atuais –, o
Tribunal Europeu acabou decidindo pela violação da garantia da imparcialidade,
já que, ao decretar a prisão cautelar, o magistrado teria aprofundado muito no
exame da culpa do investigado. Aqui não se tem, portanto, uma questão de se o
juiz pode ou não atuar na investigação – ele pode! –, mas sim a necessidade de
se ter cuidado com o limite argumentativo para não deixar pré-julgado o caso
penal.

Voltemos para o sistema interamericano.

A Corte Interamericana ainda não abordou o assunto com a profundidade e a


clareza encontradas nos julgados do Tribunal Europeu. Em 2019, veriHca-se
apenas uma rápida passagem em dois casos contra a Argentina (Hernández e
Romero Feris), em que a Corte aHrma que a decisão de decretação da prisão
preventiva não deve ter nenhum efeito na decisão que vai julgar o mérito do
caso penal, uma vez que “geralmente” é decretada por um juiz diferente daquele
que Hnalmente toma a decisão sobre o mérito. O que signiHca isso, aHrmar que
“geralmente” a decisão é adotada por um juiz diferente? SigniHca que a Corte
Interamericana às vezes parece “decidir não decidir” ou “esforçar-se para não
ser bem compreendida”.

Em 2022, ao julgar o Caso Tzompaxtle Tecpile e outros vs. México, a Corte


Interamericana parece adotar um tom mais impositivo a respeito do assunto,
aHrmando que “(…) em princípio e em termos gerais, esta decisão [de
decretação de prisão cautelar na investigação] não deveria ter nenhum efeito
sobre a responsabilidade do imputado, pois deve ser tomada por um juiz ou
autoridade judicial diferente da que Hnalmente adota a determinação sobre o
mérito” (§ 102).

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direitos-humanos-…as-cortes-interamericana-e-europeia-de-direitos-humanos-24102023 Página 4 de 6
Juiz de garantias nas Cortes Interamericana e Europeia de DH 24/10/2023 13:52

Em 2023, quando do julgamento do Caso Scot Cochran vs. Costa Rica, a Corte
Interamericana repete o que foi aHrmado – laconicamente – no Caso
Tzompaxtle Tecpile, exortando o Estado a alterar sua legislação interna sem,
todavia, aprofundar no exame da questão e colocar de forma mais clara o seu
entendimento (§ 125). No voto conjunto do juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor e da
juíza Patricia Pérez Goldberg, apresentado no julgamento do Caso Scot
Cochran, há uma tentativa de avançar no exame da matéria, estabelecendo,
inclusive, um diálogo com a jurisprudência do Tribunal Europeu – com menção
ao Caso Hauschildt –, mas ainda assim a abordagem da jurisprudência
europeia se mostrou incompleta, tendo sido sobrevalorizado o reconhecimento
da parcialidade em detrimento do entendimento de fundo.

A implementação do juiz de garantias depende da movimentação de elevados


recursos Hnanceiros e de uma reestruturação orgânica-institucional da
Magistratura. O impedimento do juiz que participou da investigação preliminar,
deferindo uma medida probatória p. ex., para depois julgar o mérito do caso
penal, parte de uma premissa que é subjetivamente presumida: “melhor julga
quem desconhece o que foi investigado”.

É possível lutar por uma Magistratura imparcial sem acreditar nas promessas
do juiz de garantias. Seja como for, o que se tentou mostrar nesse texto é que
(1) desde 1989 o juiz de garantias não é uma imposição do Tribunal Europeu de
Direitos Humanos e que (2) a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda
não apresentou uma resposta clara e resolutiva sobre o assunto.

CAIO PAIVA – Foi defensor público federal (2013-2021), é fundador-coordenador do Curso CEI
e professor de Direito Processual Penal e Direitos Humanos. É autor de diversos livros
jurídicos, como, p. ex., a obra “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direitos-humanos-…as-cortes-interamericana-e-europeia-de-direitos-humanos-24102023 Página 5 de 6
Juiz de garantias nas Cortes Interamericana e Europeia de DH 24/10/2023 13:52

É estudante ?
Aproveite as condições
especiais para quem está na
graduação, mestrado ou
doutorado.

ASSINE

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direitos-humanos-…as-cortes-interamericana-e-europeia-de-direitos-humanos-24102023 Página 6 de 6

Você também pode gostar