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pensamento ideológico (no sentido, por exemplo, dos mitos e das doutrinas politics?” (Os artefatos têm políticas?

efatos têm políticas?), 1986.15” Nele, o autor examina a


religiosas). De resto, Habermas via na ciência e na tecnologia a manifestação ideia (que reconhece como “provocativa” para a época) de que máquinas,
da racionalidade que se tornou autônoma na Modernidade com relação aos estruturas e sistemas tecnológicos “possam encarnar formas específicas
outros aspectos da vida humana. de poder e autoridade”. Em outras palavras, a possibilidade de que as
Um passo adiante nessa crítica encontra-se na obra do pensador norte- tecnologias não apenas sejam passíveis de uso ou instrumentalização com
americano Joseph Rousef” No seu livro Knowledge andpower (Conhecimento determinadas intençöes políticas, mas que possam de alguma maneira ser
e poder), 1994, Rouse defende a necessidade de entender o caráter prático da modos de consagrar determinadas relaçöes sociais de poder, fomentando
ciência e a sua intrínseca vinculação com o poder, assim como a continuidade ou impedindo formas determinadas de vida social. Essa ideia contraria de
existente entre a procura do saber e a atividade tecnológica. A ciência, alguma forma dois entendimentos da tecnologia: que ela seja mero produto
argumenta Rouse, tem aspectos técnicos essencíais: a investigação se articula de certo tipo de sociedade e que seja neutra.
conforme habilidades e um know how prático que constrói e estabiliza Winner reconhece que a concepção de que não são as tecnologias,
fenômenos, capacitando o cientista para intervir e manipulá-los de uma mas os sistemas econômicos e sociais os responsáveis pela política (“todos
maneira informativa. O labor-atórío, e não o observatório, é o símbolo da sabemos que as pessoas têm políticas, não as coísas”, diz-se amiúde) é um
ciência, e “o poder torna-se a marca do conhecimento”. Esse poder não deve bom antídoto contra o determinismo tecnológico, mas tem o inconveniente
continuar a ser pensado como algo “possuido” por determinados agentes de supor, apressadamente, “que as coísas técnicas não importam” quando
(individuos ou grupos), mas como algo que “circula”, ou que vincula os se trata de detectar relaçöes de poder. Cabe, pois, complementar a teoria
agentes e as suas atividades.148 As relaçöes de poder, no duplo sentido de da “determinação social da tecnologia” com o que Winner denomina uma
capacidade e dominio, são as relaçöes que possibilítam o controle técnico teoria da política tecnológica, porque “há boas razöes para supor que a
152 da Natureza, que é para nosso autor a razão de ser fundamental da ciência tecnologia é políticamente significativa em seu próprio direito” (WINNER, 153
moderna. A ciência é política, afirma Rouse, no sentido de que a sua prática 1986, p. 21).
transforma nosso campo de ação; e a tecnologia, em vez de ser entendida Para demonstrá-lo, Winner comenta dois modos em que os artefatos
como aplicação posterior e extrínseca do saber previamente adquirido, “podem conter propriedades políticas”, esclarecendo que entende por
deve ser percebida como a prolongação do fazer próprio do experimento, política “arranjos (arrangements) de poder e autoridade em associaçöes
no qual precisamos alterar o mundo para que o experimento “funcione”.“9 humanas, bem como as atividades que têm lugar dentro desses arranjos”.
Ainda nesse sentido, as práticas de laboratório sao a base da compreensão Uma primeira forma de tecnologia com caráter político se dá quando
típicamente tecnológica do mundo em termos de “recursos”. a invenção, o projeto ou a instalação de uma dada tecnologia é uma forma Tecnolepoder
ogia
da
Fitelocnolsofiaogia de resolver uma questão na vida de uma comunidade. Winner cita como
6.1 Os artefatos têm políticas exemplo as pontes construidas sobre as estradas que conduzem a um
parque em Long Island, Nova Iorque. Muitas dessas pontes, ele assinala,
Uma contribuição significativa ao presente tema é devida ao são extraordinariamente baixas para o trânsito de veículos sob elas.
filósofo norte-americano Langdon Winner no artigo “Do artifacts have A razao dessa característica da construção seria a intenção de Robert Moses
~

(diretor de obras públicas de Nova Iorque entre 1920 e 1970) de impedir


147 Rouse é professor na Wesleyan University. Além do livro aqui comentado, é autor de
Engaging science (1996).
15° Publicado originariamente na revista Daedalus (1980), este trabalho integra o livro Y71e
148 Rouse assume explícitamente as ideias de M. Foucault sobre a natureza do poder. Whole and the reactor (A baleia e o reator), 1986, cujos restantes capítulos contribuem para a
149 Este aspecto do experimento foi ressaltado por B. Latour (1985), a cujas ideias Rouse se compreensão das ideias de Winner sobre a relação entre tecnologia e poder. Referir-me-ei a
reporta. Winner novamente no oitavo capítulo.
que os cidadãos de classe baixa tivessem acesso ao parque, em razao de das tecnologias introduzidas (elas ainda não tinham sido bem testadas) nem
~

que ônibus e outros veículos maiores não poderiam passar por debaixo a uma economia na produção, mas ao conflito do dono da fábrica com o
delas. Com efeito: a altura das pontes sobre a estrada permite a passagem sindicato de moldadores de aço, cujos organizadores eram operários bem
dos carros particulares dos cidadãos das classes superiores, porém não a capacitados. Segundo um historiador citado por Winner, o dono queria
dos ônibus, em que normalmente viajam as pessoas das classes inferiores@ eliminar os “maus elementos” entre os trabalhadores. Embora as novas
Winner enfatiza: máquinas, em mãos de operários menos qualificados, produzissem peças
inferiores a um custo superior, foram mantidas. “Depois de três anos de uso,
A vida de Robert Moses é uma episódio fascinante na história política
as máquinas foram, de fato, abandonadas, mas então já tinham servido ao
recente dos Estados Unidos. Seu relacionamento com prefeitos,
governadores e presidentes, suas cuidadosas manipulaçöes de
seu propósito - a destruição do sindicato”.
legislaturas, bancos, sindicatos, imprensa e opinião pública poderiam Nos exemplos anteriores, é importante notar que disposiçöes
ser estudadas por cientistas políticos durante anos. No entanto, o tecnológicas antecedem o uso das tecnologias. Elas constituem também
mais importante e duradouro resultado do seu trabalho são as suas casos de decisöes “quase conspiratórias” na produção ou implementação de
tecnologias [ou seja], os vastos projetos de engenharia que deram a tecnologias. No entanto, admite Winner, para apreciar o significado político
Nova Iorque muito da sua forma atual. Por geraçöes depois da morte das tecnologias não é imprescindível que haja uma intenção maliciosa. Isso o
de Moses e quando as alianças que ele forj ou desapareceram, suas obras demonstra o movimento das pessoas com deficiências físicas (hcmdicapped)
públicas, especialmente as vias elevadas e as pontes que construiu para nos Estado Unidos na década de 1970, que denunciaram as inúmeras formas
favorecer o uso do automóvel sobre o desenvolvimento do transporte de em que máquinas, instrumentos, estradas, calçadas, meios de transporte,
massas, continuarão a dar forma à cidade. Muitas das suas monumentais
etc. não contemplavam as suas deficiências, tornando quase impossível a elas
estruturas de concreto e aço encarnam uma sistemática desigualdade
154 social. (WINNER, 1986, p. 23, tradução nossa).
se mover livremente. Desse modo, e embora de modo não intencional, essas 155
pessoas estavam excluidas da vida pública. Essa observação leva Winner a
Outros exemplos podem ser citados: o traçado urbano de Paris no fazer uma importante afirmação: “muitos dos mais importantes exemplos de
século XIX, de largas avenidas, devido ao Barão Haussmann sob as ordens tecnologias que têm consequências políticas são daquelas que transcendem
de Napoleão III, respondeu à vontade (política) de não permitir a luta conjuntamente as simples categorias de “intencional” e “não intencional”.
revolucionaria mediante barricadas nas ruas estreítas, como tinha acontecido São casos em que os dispositivos tecnológicos estão direcionados (bíased)
em 1848. De maneira semelhante, continua Winner, os campi universitarios de tal modo que sistematicamente produzem resultados que são positivos
americanos construidos no final da década de 1960 e começos de 1970, para certos grupos sociais e negativos para outros. Tecnolepoder
ogia
da
Fitelocnolsofiaogia com seus enormes espaços abertos, materializaram a atitude contrária das Um caso dessa ambivalência é a introdução das máquinas mecânicas
autoridades para com as grandes manifestaçöes estudantis precedentes. para colher os tomates nos cultivos, as quais foram aperfeiçoadas entre
Outro exemplo mostra, segundo o autor, que às vezes as tecnologias mudam 1940 e os nossos dias, de modo a poder realizar, mais rapidamente, todas as
por razöes (politicas) que exigem sacrificar circunstancialmente padröes atividades antes desempenhadas por seres humanos. As máquinas arrancam
de ganho econômico. Trata-se de um episódio da história da mecanização as plantas de raiz, sacodem-nas e classificam os tomates eletronicamente,
industrial americana no século XIX. Em uma fábrica produtora de máquinas dispondo-os para posteriormente serem enlatados. Anteriormente,
de ceifar (a Cyrus MacCormick), foram introduzidas máquinas pneumáticas equipes de trabalhadores percorriam os cultivos três ou quatro vezes,
para moldar as peças. Essa medida não se deveu à superioridade comprovada colhendo manualmente os tomates maduros e deixando os imaturos para
posterior colheita. As máquinas trabalham mais rápida e economicamente,
elevando muito a produçao. Porém a sua utilização exigiu a pesquisa para
151 A informação procede, segundo Winner (1986, p. 23), de um biógrafo de Moses. a produção de variedades de tomates mais fortes e vigorosos (embora com

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