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DO ESSENCIALISMO AO CONSTRUTIVISMO – A FILOSOFIA DA TECNOLOGIA EM UMA

ENCRUZILHADA

Andrew Feenberg

Introdução

A questão tecnológica no Pós-II Guerra Mundial é em grande medida orientado por uma
perspectiva determinista da tecnologia, seja com uma visão positiva (modernização), seja
negativa (crise cultural).

Essa visão passou a ser contestada a partir do fortalecimento da perspectiva multiculturalista


na qual passa-se a admitir diferenças significativas em relação à recepção e à apropriação da
modernidade. A racionalidade perde o estatuto de valor universal transcultural, contudo, para
Feenberg, isto não significa dizer que ela seja apenas uma mito ocidental e que não tenha um
papel diferenciado nas distinções que se podem fazer entre as sociedades modernas e pré-
modernas.

Racionalidade universal Vs diversidade cultural

Não há maneira de sairmos desse dilema? Precisamos escolher entre racionalidade universal e
variedade cultural? Ou, de maneira mais precisa, podemos optar entre os dois conceitos
dialeticamente correlatos que se mostram impensáveis, quando isolados um do outro? (pg.
206).

A despeito de importantes diferenças para [Heidegger, Habermas e Borgman] a modernidade


caracteriza-se por uma forma unitária de ação e pensamento técnicos que ameaça valores
não-técnicos ao se estenderem cada vez mais profundamente na vida social. Eles propõem
teorias substantivas da tecnologia no sentido de que atribuem um conteúdo substantivo e não
apenas instrumental, à mediação tecnológica. Segundo tais teorias, a tecnologia não é neutra.
(Pg. 206-207).

Os instrumentos que usamos dão formato à nossa maneira de vida nas sociedades modernas
em que a técnica se infiltrou totalmente. Nesse sentido, meios e fins não podem ser
separados. Como fazemos as coisas determina quem somos e o que somos. O
desenvolvimento tecnológico transforma o que é ser humano (Pg. 207).

Ver: fenômeno técnico; técnica autônoma

Vou argumentar que uma diferença cultural pode aparecer na estrutura da própria tecnologia
moderna, o que ocasiona uma distinção entre povos e sistemas sociais não apenas do ponto
de vista simbólico, mas também técnico (Pg. 209). – Relação desta perspectiva com a
coexistência pesca industrial e pesca artesanal, ou agricultura familiar e agroindústria.

AÇÃO TÉCNICA NA CRÍTICA À MODERNIDADE – HEIDEGGER

A técnica constitui-se em um novo tipo de sistema cultural, que reestrutura o mundo social
com objetivo de controle. Produz-se uma instrumentalização universal na qual os seres
humanos, criadores deste sistema tecnológico, passam a ser controlados por ele, e “se tornam
meras reservas permanentes, matéria-prima prima mobilizada nos processos técnicos”. “A
essência dessa tecnologia consiste no planejamento metódico do futuro”, que traz uma
violência inadmissível aos seres humanos e à natureza.
Este sistema cultural representado pela instrumentalização universal é expansivo e “invade
cada enclave pré-tecnológico” modelando a vida social.

Um exemplo da pesca artesanal:

No passado as redes de pesca eram produzidas artesanalmente por mulheres através da


utilização de fibras naturais. Eram poucas redes de pesca, pois seu custo de produção e
manutenção eram altíssimos. O manuseio das redes também era muito oneroso em termos de
necessidade de trabalhadores (eram mais pesadas). Em muitas comunidades, as redes eram
propriedades coletivas ou os ganhos eram apropriados coletivamente. A introdução do nylon
foi maciça em todas as comunidades. Ela gerou inúmeras rupturas sociais, pois qualquer
pescador que economizasse um pouco era capaz de ter a sua própria rede. As mulheres
perderam sua condição social e foram marginalizadas nas comunidades. A pesca aumentou
seu potencial de captura para níveis próximos ou superiores a capacidade de suporte do
ambiente natural. Muitas comunidades sucumbiram e entraram em uma condição de maior
exposição à vulnerabilidades social e ambiental.

Ver: propósito humano; des-mundificação; convocação da natureza; verdade dos materiais;


forma tecnológica

Heidegger ressalta a forma como o moderno tecnológico subsumi a natureza aos seus planos.
Os materiais são, por esta razão, des-mundificados, são suprimidos de suas qualidades
materiais internas. O homem não está no controle deste processo e sim a instrumentalidade. A
tecnologia moderna é mais destruidora que qualquer outra anterior a ela e os meios técnicos
não são neutros.

Crescentemente perdemos vista do que se sacrifica ao mobilizarmos seres humanos e recursos


para objetivos que definitivamente permanecem obscuros (Pg. 210).

O tema não é que as máquinas sejam más nem que tenham tomado o poder, mas que, na
constante escolha de usá-las em detrimento de qualquer alternativa, acabamos por fazer
muitas outras escolhas indesejadas. O efeito total de nosso envolvimento com a tecnologia
não pode, portanto, ser interpretado como uma relação entre meios e fins (Pg. 210).

A essência da tecnologia não é a tecnologia. A tecnologia não deve ser compreendida pela sua
funcionalidade, mas pelo envolvimento humano com o mundo por ela mediado. A relação com
a tecnologia é livre sem que se modifique a tecnologia propriamente dita – solução idealista.

O mundo moderno tem uma forma tecnológica. Estas formas compreendem uma vida material
e institucional específica de si mesma.

Feenberg critica ambiguidades presentes na obra de Heidegger, que não conseguiria esclarecer
o método através do qual seria possível reverter a tendência da tecnologia moderna que ele
critica.

AÇÃO TÉCNICA NA CRÍTICA A MODERNIDADE – HABERMAS

O projeto global de Habermas está enraizado em uma crítica do tipo de ação característica da
tecnologia, que lhe forneceu um modelo para sua mais recente interpretação dos modos
específicos do “agir racional orientado a fins” (Pg. 210).
A evidência para esse debate é primariamente a preocupação anterior de Habermas quanto à
compreensão positivista da razão e de sua realização em uma sociedade tecnocrática (Pg.
210).

A princípio, Habermas argumentava que trabalho e interação tinham cada um sua própria
lógica. O trabalho “se orienta ao sucesso”; é uma forma do “agir racional com respeito a fins”,
cuja meta é o controle do mundo. Habermas reformula sua teoria apresentando a “teoria dos
meios”, que pretende explicar a emergência de subsistemas diferenciados, baseados em
formas racionais de cálculo e controle como comércio, direito e administração (Pg. 211).

A patologia central das sociedades modernas é a colonização do mundo da vida pelo sistema, o
que envolve a super-extensão da ação orientada ao sucesso para além de seu alcance legítimo
e a consequente imposição de critérios de eficiência na esfera comunicativa (Pg. 212).

Ver: sistema; mundo da vida; meios

O estado e a família acabam exemplificando o sistema e o mundo da vida, a despeito das


precauções de Habermas. Talvez isso explique por que ele não considera a tecnologia um
meio.

ESSÊNCIA E HISTÓRIA

As sociedade moderna e pré-moderna distinguem-se por graus de sucessivas diferenciações de


domínios, tais como tecnologia e arte, que estavam unidas nas antigas formas culturais.

BORGMAN

Muitos inventos representam um avanço sobre as maneiras mais cômodas em todos os


contextos da vida cotidiana, causa um efeito mortificante. Quando separamos meios de fins,
contextos e mercadorias, de maneira estrita, a vida perde significado. O envolvimento com a
natureza e com os outros seres humanos se reduz a um mínimo e a posse e domínio tornam-se
os valores mais altos.

O dualismo entre tecnologia e significado sempre parece surgir onde a essência da tecnologia
é colocada em questão.

TEORIA DA INSTRUMENTALIZAÇÃO

Redefinição radical da tecnologia, que ultrapassa as fronteiras entre os artefatos e as relações


sociais (Pg. 222).

 Instrumentalização primária

Caracteriza as relações técnicas em toda sociedade, embora sua ênfase, alcance de aplicação e
significação variem grandemente. Caracteriza-se por quatro momentos:

Descontextualização – Reconstituir objetos naturais em objetos técnicos é des-mundificar.


Separar a matéria prima de seu contexto primordial, transformando-a em um objeto
tecnicamente útil.

Reducionismo – atribuir qualidades primárias e secundárias aos objetos, ou seja, qualidades


tecnicamente uteis e tecnicamente não-uteis.

Autonomização – Redução ou eliminação do efeito do objeto no sujeito.


Tomando posição – Posicionar-se estrategicamente a respeito do objeto para extrair dele um
resultado desejado, direcionar as propriedades inerentes ao objeto ao seu favor.

 Instrumentalização secundária

Caracteriza a integração da técnica aos ambientes sociais, técnicos e naturais que lhe dão
suporte. Também se caracteriza por quatro momentos:

Sistematização – combinação de objetos técnicos para serem reinseridos no ambiente natural.

Mediação – funcionalismo estético incorporado em desenhos industriais modificados nas


sociedades modernas que condensam considerações sobre eficiência aos valores éticos.

Vocação – relação técnica do ser humano com os objetos. Não se separa a matéria dos
objetos, mas se transforma, por sua própria relação técnica com eles.

Iniciativa -

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