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O que é a filosofia da tecnologia?

Andrew Feenberg

Introdução

A transição de sociedades tradicionais para sociedades modernas, durante o Iluminismo, foi


marcada por uma mudança na forma de pensar e agir. As sociedades tradicionais baseavam
sua estrutura do conhecimento em mitos e costumes, as sociedades modernas na
racionalidade e na técnica. “A racionalidade tecnocientífica se tornou uma cultura nova”.

Filosofia da tecnologia como autoconsciência de uma sociedade que tem base tecnológica, ou
seja, uma sociedade em que ciência e tecnologia se tornam aspectos estruturantes de cultura
baseada na “racionalidade”.

“A filosofia da tecnologia é a autoconsciência de uma sociedade como a nossa. Ela nos ensina a
refletir sobre o que tomamos como garantido, especificamente a modernidade racional”.

***

A filosofia começa interpretando o mundo em termos do fato fundamental de que a


humanidade é um tipo de animal que trabalha constantemente para transformar a natureza.
Esse fato fundamental molda as distinções básicas que prevalecem ao longo da tradição da
filosofia ocidental.

Na Grécia havia a distinção entre physis e poiesis que significavam: natureza (aquilo que cria
de si mesmo ou que emerge de si mesmo) e fazer (atividade prática humana que produz
artefatos como obras artísticas, utensílios e convenções sociais).

Em poeisis uma coisa existe primeiro como ideia e só depois passa a existir pela fabricação.
Para os gregos a ideia da coisa e a sua fabricação são realidades independentes. A ideia da
coisa, a sua essência se encontra contida na techné.

A palavra techné consiste em uma disciplina que se filia a uma parte da poiesis (medicina:
curar doente, carpintaria: construir a partir da madeira, são exemplos de techne). Contudo,
este conceito, cuja utilização na era moderna compõe conceitos com tecnologia e técnica
possui uma definição um pouco distinta. Na visão grega techné representa uma forma correta
de fazer as coisas, sem muita margem a opinião ou a subjetividade.

Essa compreensão de techné se ampara também na distinção que filósofos gregos realizavam
entre essência e existência. O primeiro orienta a pergunta sobre “o que é uma determinada
coisa”. A segunda, se “uma coisa é ou não é”. A techné “libera” para o mundo uma essência
pré-existente e independente da fabricação.

De acordo com Feenberg, o entendimento grego de techné foi adotado por Platão para gerar
uma teoria do conhecimento. Para Platão a concepção de natureza (physis) segue a mesma
estrutura lógica da techné, na qual essência e existência são pré-existentes aos artefatos ou
coisas naturais. No caso da physis, as coisas naturais possuem um propósito pré-existente,
sendo o mundo um lugar cheio de significados e intenções. De acordo com Feenberg:
“os humanos, não somos os mestres de natureza, mas trabalhamos com suas
potencialidades para trazer à fruição um mundo significativo. Nosso
conhecimento deste mundo e nossa ação nele não são arbitrários, mas são, de
algum modo, a realização do que está escondido na natureza.”

Para Feenberg, a importância de resgatar estas noções gregas antigas está na


compreensão de que desde esta época se ergue uma concepção de natureza e do ser, de
modo abrangente, que se encontra espelhada no conceito de fabricação técnica. Neste
sentido, não há uma descontinuidade entre a fabricação técnica e a autoprodução natural
por compartilharem da mesma estrutura.

A era moderna apresenta inúmeras rupturas com algumas destas noções gregas.
Descartes, um dos fundadores do pensamento moderno destaca, segundo Feenberg, que
a humanidade se tornaria mestre e senhora da natureza através do cultivo da ciência. Na
era moderna, essência deixa de existir como uma realidade independente do ser e se
torna uma convenção social. Deste modo, o significado e a finalidade das coisas são algo
criado pela humanidade. A partir desta ruptura alarga-se a distância entre a humanidade e
o mundo e a natureza passa a ser objeto da conquista humana.

Do contexto moderno, Feenberg destaca emergir uma concepção instrumental de


tecnologia, na qual ela é assumida como puramente instrumental e isenta de valores. A
tecnologia não responde a propósitos inerentes, como pressupunha Platão.

Exemplo da arma de fogo (Feenberg)

Nos Estados Unidos, dizemos que as “armas não matam as pessoas, as pessoas matam as
pessoas”. Armas são meios independente dos fins trazidos a ela pelo usuário, seja roubar
um banco, seja executar a lei. A tecnologia é neutra, nós dizemos, querendo significar que
ela não tem qualquer preferência entre os vários usos possíveis a que possa ser
empregada

A tecnologia na modernidade assume a natureza como matéria-prima, como materiais que


esperam a transformação em o que quer que nós desejamos. Ainda que os princípios de
poeisis e physis, de essência e existência tenham sido transformados na modernidade, a
estrutura subjacente da teoria do conhecimento moderno mantém uma estrutura de
explicação semelhante associando a natureza a um artefato (uma metáfora poderosa para
explicar o determinismo científico que nasce aí).

Newton cumpre papel fundamental na modernidade com suas concepções de espaço, tempo e
matéria e que levam a uma visão determinista da realidade. De acordo com Capra (Ponto de
Mutação), o determinismo consiste na premissa de que a origem do universo possui uma
causa definida, dando origem a um efeito definido e cujo futuro de uma de suas partes poderia
ser previsto com absoluta certeza, a partir do conhecimento detalhado do estado desta parte
em um determinado momento.

Bookchin (Ecologia Social) assinala que a partir da introdução do mecanicismo de Galileu e


Newton, assim como do racionalismo analítico de Descartes, “as estratégias orgânicas do
conhecimento são substituídas por processos mecânicos e intermediários do saber”, onde a
relação entre sociedade e natureza empenha-se sobre um racionalismo “estreito e
rigidamente subordinado aos seus próprios fins”, por uma abordagem científica que institui
“um novo credo com preconceitos rígidos e formais que, no fundo, não eram menos
metafísicos do que aqueles que constituíam a velha ontologia grega”. A natureza passaria a ser
vista sob um olhar indiferente e neutro, como uma história acidental, como uma estratégia
fundada não sobre a objetividade e a procura de elementos autônomos, mas sobre a eficácia,
sobre o cálculo de rendimento e sobre o sucesso.

A separação entre sociedade e natureza cria uma autorização moral para dominação e
exploração dos bens naturais.

Voltando a Feenberg, o autor descreve que o debate em torno da tecnologia pode ser
organizado em quatro abordagens organizadas no quadro a seguir:

Tecnologia é: Autônoma Humanamente Controlada


Determinismo
Neutra (separação completa Instrumentalismo
(por exemplo: a teoria da
entre meios e fins) (fé liberal no progresso)
modernização)
Carregada de Valores Substantivismo Teoria Crítica
(meios formam um modo de (meios e fins ligados em (escolha de sistemas de
vida que inclui fins) sistemas) meios-fins alternativos)
Tecnologia é: Autônoma Humanamente Controlada
Determinismo
Neutra (separação completa Instrumentalismo
(por exemplo: a teoria da
entre meios e fins) (fé liberal no progresso)
modernização)
Carregada de Valores Substantivismo Teoria Crítica
(meios formam um modo de (meios e fins ligados em (escolha de sistemas de
vida que inclui fins) sistemas) meios-fins alternativos)

 A tecnologia neutra de valores: emerge no iluminismo e influencia a visão liberal e a


visão marxista de modernização. Percebe a tecnologia como meramente uma
concatenação de mecanismos causais. O único valor presente na tecnologia é a
eficiência.
 A tecnologia carregada de valores: presente na tradição grega e em teorias mais
atuais, como ator-rede. Assume que nem tudo na tecnologia se resume a relações de
causalidade envolvendo processos físicos, químicos ou biológicos. O que confere valor
a uma nota de dinheiro? A explicação está no artefato?
 A tecnologia é autônoma: quando a humanidade, embora esteja envolvido na sua
criação, ele não governa o processo. O desenvolvimento tecnológico segue por leis
imanentes. Seria como dizer que a agricultura familiar fosse sempre um estágio
precedente a agricultura industrializada e que o desenvolvimento de uma sempre leve
a outra.
 A tecnologia é humanamente controlável: quando a humanidade decide sobre o
desenvolvimento tecnológico e sobre quais caminhos esse desenvolvimento deve
seguir. Significa admitir que civilizações indígenas não são atrasadas tecnologicamente,
mas que escolhem a tecnologia que querem usufruir.

A seguir um resumo das principais concepções de tecnologia segundo Feenberg:

Instrumentalismo

Visão-padrão e moderna sobre a tecnologia, que é vista como uma ferramenta para a
humanidade satisfazer suas necessidades.
Determinismo

Entende a tecnologia como força motriz da história. Neste caso, a tecnologia emprega os
avanços do conhecimento humano sobre a natureza para satisfazer necessidades básicas e
genéricas, como alimentação e abrigo. As descobertas científicas seguem um caminho único
em direção à maior eficiência e ao progresso. Essa visão está, por exemplo presente na obra de
Marx. Nesta visão, a tecnologia não se adapta a nossa vontade, ao contrário, somos nós que
nos adaptamos a ela.

Substantivismo

Insere na tecnologia uma dimensão de valor que remete a um compromisso com uma
concepção particular de vida. Neste sentido, a tecnologia, dotada deste valor substantivo, não
é meramente instrumental e carrega para o seu uso este valor intrínseco e imutável, não
podendo ser ressignificado por diferentes propósitos de indivíduos e sociedade.

Exemplo da interpretação substantiva do dinheiro:

Para Feenberg, a princípio, poderíamos imaginar que o dinheiro é uma base puramente formal
da vida social, podendo-se integrar-se sem preconceitos a maneiras diferentes e contraditórias
de vida. Mas o dinheiro pode comprar amor e felicidade? Que resultados podemos observar
em relação à acesso a amor e felicidade entre pessoas que fundam sua vida inteira no poder e
no dinheiro? Em certo sentido, destaca o autor, “o dinheiro também tem um valor substantivo
e fundar um estilo de vida nele é uma escolha categórica e não melhor de todas”.

Feenberg os substantivistas são críticos em relação às necessidades às quais ele serve.


Possuem uma visão pessimista sobre tecnologia e destacam que quanto livre mais a tecnologia
se torna imperialista e malévola. Uma visão substantivista extrema pode ser aquela
encontrada em obras como Admirável Mundo Novo e Matrix, na qual a tecnologia domina
humanidade convertendo-a em matéria prima para a sua realização.

Teoria Crítica:

Reconhece as consequências catastróficas proporcionadas pela tecnologia como os


substantivistas (bomba nuclear, campos de concentração, cesarianas em larga escala,
revolução verde...), mas entende que isto se deve a uma limitação humana de inventar
instituições apropriadas para exercer o controle humano da tecnologia.

De acordo com a teoria crítica, a tecnologia incorpora mais de um modo de vida possível, não
sendo adequadamente representado por abstrações como eficiência e controle (pertinentes à
visão instrumentalista).

Um exemplo dos diferentes modos de vida que uma tecnologia pode armazenar:

Um facão ou uma moto serra são utilizados para cortar lenha. A moto serra acelera o processo
de corte, gerando um excedente de tempo. Por exemplo, duas escolhas podem ser feitas em
relação ao tempo excedente: investir no corte de mais madeira, visando maior produção de
riqueza material. Investir o tempo excedente em outras atividades, como lazer, cultura ou
educação. Que fatores determinam cada escolha e que impactos cada escolha pode produzir?

De acordo com Feenberg, a teoria crítica compreende que a eficiência molda todas as
possibilidades da tecnologia, mas não determina os valores percebidos dentro desta moldura.
A tecnologia não é neutra. A diferença entre armas eficientes e medicamentos eficientes ou
entre educação eficiente e propaganda eficiente é social e eticamente significativa. As
tecnologias não são, portanto, mero instrumento, mas estruturadas em estilos de vida
(escolhas humanas).

Neste sentido, abastecer as pessoas com armas cria um mundo diferente no qual as pessoas
não têm armas?

A teoria crítica se abre, portanto, a questionamentos deste tipo, no qual os valores que devem
ser incorporados na estrutura técnica das nossas vidas devem ser determinados. E essa
definição só poderá ocorrer, na perspectiva crítica através da incorporação da democracia à
tecnologia.

Não se trata de promover, segundo Feenberg, uma eleição entre diferentes artefatos para um
determinado fim. Mas de garantir, de início, que as mudanças tecnológicas sejam
problematizadas e contestadas, ao garantir que o direito de oposição à projetos técnicos não
seja silenciado apelando para o progresso (Parto cirúrgico, Belo Monte, Transposição do Chico,
etc.). Ademais, garantir meios para que as populações tenham maior participação nas decisões
e projetos tecnológicos retirando dos peritos uma condição de exclusividade neste campo.

Esta visão crítica se assemelha ao projeto de Vieira Pinto (2005) que propõe a democratização
da interpretação tecnológica para os trabalhadores. Esta democratização emancipará o
trabalhador do domínio prático exercido pela técnica (alienação – Chaplin/Tempos Modernos).
Na medida em que toda sociedade possa exercer um domínio teórico da técnica, os diferentes
modos de vida presentes poderão efetivamente disputar os valores contidos nas tecnologias e
existente e vindouras.

Por fim, Feenberg assinala que mesmo estando a democracia em má forma atualmente, esta é
ainda a melhor alternativa para se fazer frente as visões hegemônicas de tecnologia que
podem levar ao colapso dos bens naturais e da humanidade. A democracia, enquanto
mediação política, também pode ser problematizada e melhorada, neste sentido.

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