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Se, por um lado, a modernidade buscou a superação do dualismo a partir do que Jonas
denominou de “produtos da dissolução do dualismo”, os supracitados materialismo e
idealismo, estes também não foram capazes de compreender a complexidade do fenômeno da
vida. Enquanto o materialismo fracassa ao não explicar a consciência, o idealismo não é capaz
de alcançar a coisa-em-si. Desse modo, a partir de ambos monismos parciais, a questão
ontológica da vida permanece desconhecida. A solução para esses equívocos, sugere Jonas,
seria a formação de um monismo integral, o qual possibilite o reconhecimento da vida como
uma unidade psicofísica. Assim, tanto a concepção materialista quanto a idealista são válidas,
contudo, são também inseparáveis.
Ao tematizar a vida como um problema filosófico, Jonas desenvolve o pensamento de
uma biologia filosófica, na qual a pergunta pelo ser se trata de uma pergunta sobre o ser vivo.
E é dessa posição que se recorre à técnica como possibilitadora da manutenção da existência
enquanto ser orgânico. A partir disso, o autor faz sua proposta de ética para a civilização
biotecnológica.
O autor Martin Heidegger (2008, p. 11) trata a questão da técnica em seu principal
texto na obra: “Ensaios e conferências”, no capítulo três fazendo o uso do caminho do
pensamento e questionando o objeto para pensar num modo de relação de possível liberdade
com a técnica e, também apresenta uma distinção importante pois, compreende que a técnica
e a essência da técnica não tratam da mesma coisa. Desse modo é notável certa falha ao se
pautar na relação com as coisas das técnicas (maquinação, ferramenta, instrumento e
utensílio...) para tentar compreender a vigência da técnica, sendo evidente a importância de
pensar na técnica além de seu significado.
Para Jonas (2013, p. 15) também é fundamental distinguir do que se trata a técnica que
é colocada como um processo e a tecnologia que é colocada como um estado, considerando
que na pré-modernidade a técnica aparecia através do uso de ferramentas com finalidade de
fabricação, repetição, produção e busca de melhorias nos recursos existentes para um
equilíbrio estático que chegava ao ponto de saturação, diferente do que vemos no
contemporâneo onde a saturação não é alcançada.
A técnica moderna colocada por Jonas (2013, p.16) diverge da técnica na
pré-modernidade, sendo justamente esse ponto de divergência o que torna essa questão de
caráter filosófico. Para Heidegger (2008, p. 16) também se mostra de grande importância
estudar o sentido originário do fenômeno “técnica” para filosofia, pensando na sua essência e
não superficialmente na sua utilidade.
Na técnica pré-moderna analisada por Jonas (2013, p.16) torna-se perceptível o ponto
de saturação das coisas em virtude da “adequação dos meios às finalidades já colocadas”, na
técnica moderna não se pode dizer o mesmo pois, ela não tem o reconhecimento de seus
limites. Em caso de sucesso busca-se qualquer direção, acaba obscurecendo os objetivos
fundamentais, é diluída segundo o autor. Também é vista a diferença entre a contemplação
como a causa de algo, e a característica inovadora que não pensa a respeito das direções que
tomarão esse modo técnico, quem dirá contemplá-lo.
Analisando esses pontos colocados pelos autores para pensarmos o estudo filosófico
da técnica moderna, sua “evolução”, “inovação" e seu “progresso” é importante perceber que
essa não aparece como uma opção em virtude do desejo do ser humano, mas de uma
prescrição imposta incansavelmente pela própria técnica.
Outra questão comum que aproxima Hans e Heidegger (2008, p. 21) é que o segundo
percebe a técnica moderna como desencobrimento regido pela exploração das coisas, da
natureza, dos recursos naturais, dos entes no geral, com a finalidade da segurança e controle,
bem como, colocando o homem em uma relação fundamentada na “disponibilidade” vista na
medida em que ocorre o desencobrimento. Considerando Jonas (2013, p.18) que discorre no
tópico sua obra “Explicação Causal: Coações e impulsos ao progresso técnico” sobre a
dinâmica do progresso da tecnologia e o que está implicado nessa suposta evolução, como a
concorrência, o aumento populacional e também questões como o fim dos recursos naturais.
O termo em alemão “Gestell” é usado por Heidegger (2008, p.23) para estudar a
técnica, que pode ser traduzido por "composição", caráter que viabiliza a relação do homem
com o que se desencobre a partir da disponibilidade na técnica. Longe de chegar em uma
resposta a respeito da técnica e de corresponder a sua essência, o autor pensa ser necessário
olhar a relação de composição que demonstra o modo de desencobrimento a partir da
disponibilidade característico do modo de ser na técnica. O desafio é se aproximar dessa
relação de composição e de possíveis considerações levando em conta o aparecimento tardio
das implicações dessa relação, apesar do questionamento a respeito desse tipo de relação ser
anterior às implicações da composição que vige e vigora. (HEIDEGGER, 2008, p. 27)
Se a técnica passar a ter domínio sob essas questões do mundo, Jonas (2013, p. 25) crê
que a filosofia não estará preparada para essa tarefa cósmica e isso será uma questão,
Heidegger (2021, p. 537) também vê como necessário preservar a pergunta da essência da
técnica como digna de pensamento, considerando o caráter cultural da técnica moderna e
também seu surgimento através da ciência natural.
Tomando como ponto de partida a reflexão acerca da pergunta pela ética da técnica,
Hans Jonas expõe o porquê compreende que a técnica moderna é objeto da ética por meio da
importância da atualização dos imperativos éticos tradicionais em nossa época, oportunizados
pela abertura de novas dimensões de ações do coletivo e, assim, são fomentadas discussões
em prol da vida na Terra.
Que a ética, falando de modo mais geral, tenha algo a dizer sobre o tema da técnica,
ou que a técnica esteja submetida a considerações éticas, eis algo que se segue do
simples fato de que a técnica é um exercício do poder humano, isto é, uma forma de
ação [Handelns], e toda forma de ação humana está sujeita a uma avaliação moral. É
também uma obviedade que um mesmo poder pode ser utilizado para o bem e para o
mal, e que em seu exercício se pode cumprir ou infringir normas éticas (JONAS,
2013).
O pensamento joniano parte da compreensão de que os valores da era da técnica
precisam passar por uma revisão diante das novas necessidades do viver humano e
extra-humano, considerando que tais valores não poderiam ser levantados anteriormente pois
não havia se mostrado a emergência das questões da Bioética, até então. Em outras palavras, a
temporalização da existência constituída por tradição, não consegue pensar o caráter histórico
do tempo que é o nosso.
Nem uma ética anterior tinha de levar em consideração a condição global da vida
humana, o futuro distante e até mesmo a existência da espécie. Com a consciência
de extrema vulnerabilidade da natureza a intervenção tecnológica do homem, surge a
ecologia. Repensar os princípios básicos da ética. Procurar não só o bem humano,
mas também o bem de coisas - extra-humanas, ou seja, alargar o conhecimento dos
“fins em si mesmos” para além da esfera do homem, e fazer com que o bem humano
incluísse o cuidado delas (JONAS, 1997, p. 40).
Em consonância, Leonardo Boff traz o seguinte pensamento sobre a ética, que nos
coloca em seio comum, nos afastando da compreensão da singularidade ética, aproximando a
ética como construção feita a partir da humanidade compreendida coletivamente. “Ética é um
conjunto de valores e princípios, de inspiração e dedicação que valem para todos, pois estão
ancorados na nossa própria humanidade” (BOFF, 2003, p.11). O autor, em vista do tema
Princípio da Responsabilidade, elenca cinco razões para a compreensão da técnica como
instância completamente nova para a ética, sendo elas: Ambivalência dos efeitos,
Inevitabilidade da Aplicação, Dimensões Globais no Espaço e no Tempo, Rompimento
com o Antropocentrismo e a Emergência da Questão Metafísica.
Vale realizar o caminho feito pelo autor para a melhor compreensão do conceito do
Princípio da Responsabilidade.
Hans Jonas em primeiro momento, considera toda ação humana como uma capacidade
e reflete acerca do uso das capacidades poder ser direcionado eticamente para o bem ou para o
mal. Porém o uso da tecnologia apresenta a peculiaridade da grande escala, reformulando,
mesmo que a tecnologia à primeira vista seja utilizada para o bem, em razão de sua escala
técnica quantitativa ser enorme, se evidencia por fim, sua maleficência.
A esse respeito se pressupõe que a ética pode distinguir claramente entre ambos,
entre o uso correto e o errado de uma mesma capacidade. Mas como ficam as coisas
se nos movemos em um contexto de ação no qual todo uso de uma capacidade em
grande escala, ainda que seja empreendida com a melhor das intenções, traz consigo
um vetor crescente de efeitos em última instância ruins, que estão inseparavelmente
ligados aos pretendidos e próximos “bons” efeitos, e talvez os superando em muito,
por fim? (JONAS, 2013).
A ambivalência mencionada é exatamente sobre o uso da técnica e ressoa a questão: é
possível que utilizemos a técnica sem perigo para nossa sobrevivência? Hans Jonas (2013),
aponta que o perigo reside mais no sucesso do que no fracasso – e, no entanto, o sucesso é
reivindicado pela pressão das carências humanas. Uma ética apropriada para a técnica tem de
entender esta ambiguidade [Mehrdeutigkeit] inerente à ação técnica.
Conclui-se que as carências humanas fazem surgir mais carências e mais carências
com o desenvolvimento das técnicas. O perigoso deste problema são os efeitos desastrosos no
meio ambiente e, com isso, o princípio da responsabilidade se faz iminência necessidade.
2. Inevitabilidade da Aplicação
A respeito deste item entre as razões trazidas por Hans Jonas, é possível compreender
que a capacidade do poder da técnica se difere das capacidades outras (quais têm em si a
possibilidade ou não de seu uso), o poder da técnica uma vez começado a se constituir como
ação do homem, se revelou como uma grande “engrenagem” e as ações dentro dessa
“engrenagem” perdeu até aqui, a possibilidade da não submissão à sua aplicabilidade, a
técnica se dá de forma a ser vista como necessidade humana.
Contudo, esta relação tão clara entre poder e fazer, saber e aplicação, posse e
exercício de um poder, não vale para o acervo de capacidades técnicas de uma
sociedade que, como a nossa, fundamentou toda a sua forma de vida no trabalho e
no esforço de atualização constante de seu potencial técnico a partir da inter-relação
de todas as suas partes (JONAS, 2013).
... se esta ou aquela nova possibilidade foi uma vez aberta (na maioria das vezes
graças à ciência) e desenvolvida em pequena escala mediante a ação, é próprio dela
então forçar sua aplicação em grande escala e a uma escala cada vez maior, bem
como fazer dessa aplicação uma necessidade vital permanente. Assim à técnica, o
poder humano intensificado em atividade permanente, não só é negado (tal como
mostrado acima) o livre espaço da neutralidade ética, mas também a benévola
separação entre posse e exercício do poder (JONAS, 2013).
A sociedade perdeu seu “controle de decisão” na aplicabilidade ou não da técnica,
tornou inevitável suas ações e atualizações. Hans anuncia que tal ação só poderá ser freada na
medida em que lançarmos olhares mais atentos ao peso ético que tais ações estão a
confeccionar, a cada instante, subvertendo nossa liberdade de existência na Terra. As
mudanças de valores éticos se mostram, mais uma vez, como emergências.
Como explorado acima, o uso da capacidade técnica se intensifica a cada dia para uma
escala colossal carregando efeitos “colaterais” crescentes. Neste ponto iniciamos a explanação
das dimensões destes efeitos: compreendidos em escala Global e de influência inquestionável
para a temporalidade futura. A técnica, quanto mais cresce mais “devasta” nossos recursos
naturais, sempre regida sob a ótica do imediatismo (do aqui e do agora).
Com o que fazemos aqui e agora, na maioria das vezes pensando em nós mesmos,
afetamos maciçamente a vida de milhões de pessoas, alhures e no futuro, que não
foram consultadas a esse respeito. Hipotecamos a vida futura em troca de vantagens
e necessidades atuais a curto prazo – e, quanto a isso, na maioria das vezes, em
função de necessidades autocriadas (JONAS, 2013).
Hans Jonas declara que há sem dúvida a proporcionalidade entre as exigências sobre a
responsabilidade e os efeitos do poder.
Mas agora a biosfera inteira do planeta, com toda a sua abundância de espécies, em
sua recém-revelada vulnerabilidade perante as excessivas intervenções do homem,
reivindica sua parcela do respeito que se deve a tudo o que é um fim em si mesmo,
quer dizer, a todos os viventes. O direito exclusivo do homem ao respeito humano e
à consideração moral se rompeu exatamente com a sua obtenção de um poder quase
monopolístico sobre o resto da vida. Como poder planetário de primeira ordem, ele
já não pode mais pensar apenas em si mesmo (JONAS, 2013).
Byung-Chul, Han (2022) em seu livro Louvor à Terra, traz uma passagem em forma
de poema, em que o homem em lágrimas, renuncia sua superioridade e se torna consciente da
sua própria naturalidade:
Com a saída do homem do centro do mundo e sua reconexão com a natureza e sua
biodiversidade, fica evidente a importância de pensarmos a respeito do que Hans elenca como
a razão da emergência da questão metafísica.
Ao aumentar seu poder até um ponto em que se torna palpavelmente perigosa ao
esquema geral das coisas, ela estende a responsabilidade do homem ao futuro da
vida na terra, que agora está exposto de maneira indefesa ao mau uso desse poder.
Com isso, a responsabilidade humana se torna pela primeira vez cósmica (JONAS,
2013).
Uma questão nova em sua peculiaridade é ressaltada aqui. Se faz necessário que
existamos? Se é fato que desejamos continuar neste solo, se faz necessário alterar nossos
modos-de-ser e de enxergar nosso “espaço” no mundo, não apenas nosso espaço físico, mas
também nossas relações, corporeidade e temporalidade.
Nossa relação com a técnica e com a Terra precisa emergencialmente ser pensada, já
que compreendemos a continuidade do existir como um fato desejável. Novas relações
precisam se estabelecer sob a ótica da ética ambiental, para que não nos vejamos como
suicidas coletivos em direção à finitude da Natureza e do mundo enquanto mundo.
Através desta proposta Jonas (2006) pretende enfrentar um dos maiores dilemas do
nosso tempo: o momento onde a natureza se tornou um objeto de cuidado e da
responsabilidade do ser humano, pois, para o autor, é a primeira vez na história onde a
humanidade que a sociedade se vê nesta necessidade, pois, tradicionalmente, a natureza
sempre cuidou de si mesma, ou na visão religiosa, Deus cuidou da natureza. Porém, agora,
devido aos avanços do Poder tecnológico do ser humano, e devido ao crescimento da
tecnologia e da técnica, os impactos da ação humana são muito grandes e demandam um
maior cuidado do ponto de vista ético.
Considerando que mesmo ainda não existindo, as gerações futuras têm o direito de
reivindicar a existência do ser e a autopreservação dos ecossistemas, uma vez que a
aposta no princípio responsabilidade tem inspirado as reflexões de Jonas para
explorar o território da tecnologia e suas perturbações para, assim, encontrar um
caminho e chegar a uma ética prática concreta. (HUPFFER e ENGELMANN, 2017,
pag. 2670.)
Jonas (2006) parte da ideia de que a vida é afirmativa, e que a partir desta afirmação
ela tem um valor porque ela é um bem, e o valor coloca a vida no campo da ética, portanto, a
vida carrega uma dimensão de obrigatoriedade de cuidado e de responsabilidade. Todos nós
seríamos responsáveis pela vida e por sermos os únicos seres na história da criação que
podemos nos responsabilizar, então devemos.
ECOFENOMENOLOGIA
Neste sentido, o ponto de partida para tal clínica é pensar numa nova ética, que
contrapõe a tradicional. Ora, se a ética é um conjunto de valores que se ancoram na própria
humanidade e, portanto, vale para todos, esta ética é antropocêntrica, pois considera apenas o
ser humano. Com o avanço da técnica, a manipulação da natureza se tornou atroz e excessiva,
traçando caminhos para a degradação e extinção de minerais, animais e até da própria
humanidade. Uma ética que tem, então, o centro no humano, não dá mais conta de pensar
nossa relação, já que não podemos ser separados deste ambiente, a casa do ser humano não é
um lugar geográfico, mas sim a própria terra. Então não se ter uma ética que pense a Terra é
abrir caminhos para a própria destruição humana (SOUSA, 2022).
A técnica nem sempre foi aniquiladora do ambiente. Antes, o ser humano usava a
técnica em benefício próprio para evitar surpresas ambientais e melhorar a vida cotidiana, mas
principalmente, com uma ligação, uma maior conexão com o ambiente, de modo que as
técnicas de aragem, de construção e domesticação, não impediam de a Terra se renovar. Hoje,
ao contrário, com uma técnica desconectada, inconsciente sobre a relação que se tem com a
natureza, o ser humano polui, não se relaciona, degrada, aquece, extingue a natureza. Não se
tem nem ética nem empatia, em prol da técnica (SOUSA, 2022).
Para a era da técnica, uma ética das relação não é útil para o desenvolvimento. Muito
menos uma ética ecológica. A era da técnica visa a produtividade e inventividade. por isso, ao
criar a cidade, que é um cercado controlado de natureza e dogmas próprios, neste sentido,
estes dogmas giram em torno desta produtividade massiva, da técnica pela técnica, numa
tentativa de controle sobre o tempo e espaço desconectado da natureza, como se organismo e
natureza fossem substâncias metafísicas diferentes, ou como se as coisas do mundo existissem
para o bel prazer humano, constituindo uma hierarquia metafísica do dominador, o humano,
superior à natureza dominada. É uma relação de poder entre raças, espécies, seres vivos e não
vivos, dentro da totalidade da vida, um predicativo egocêntrico de uma ética não responsável,
mas que gira em torno do humano como superior (JONAS, 2006).
Han, Byung-Chul. Louvor à Terra: uma viagem ao jardim. Rio de janeiro: Editora Vozes,
2022.
JONAS, Hans. O Princípio Vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Editora
Vozes, Petrópolis, 2004.
JONAS, Hans. Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2006.