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A mediação técnica em Heidegger e Latour

Article in PAULUS Revista de Comunicação da FAPCOM · January 2017


DOI: 10.31657/rcp.v1i1.8

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Tarcísio Cardoso
Paulus Communication and Technology College
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Artigo

A mediação técnica em Heidegger


e Latour
Tarcisio Cardoso*

Resumo Abstract
Este artigo pretende confrontar a concepção de media- This article intends to confront the concept of technical
ção técnica em Martin Heidegger e em Bruno Latour, no mediation in Martin Heidegger and Bruno Latour, in or-
intuito de contribuir para a discussão filosófica sobre as der to contribute to the philosophical debate concerning
questões relativas à técnica, à tecnologia e sua relação the technical and technology issues and its relation to the
com a esfera humana. Confrontar suas abordagens a human world. Confronting their approaches on technical
respeito da questão da técnica pode auxiliar no deba- issue could help in such an emblematic debate for con-
te tão emblemático para os dilemas contemporâneos temporary dilemmas related to digital culture in respect
ligados à cultura digital a respeito da relação homem- to the man-machine relation (or even man-algorithm
-máquina (ou mesmo homem-algoritmo). Assim, per- relation). So, this work asks: what kind of approach is pre-
gunta-se, neste trabalho: que tipo de abordagem está sent in Heidegger’s thought on the technical mediation?
presente na reflexão heideggeriana sobre a mediação And what kind of approach is in the reflection of Latour on
técnica? E que tipo de abordagem permeia a reflexão the same technical mediation?
de Latour sobre a mesma mediação técnica?
Keywords: Heidegger. Latour. Technique. Mediation. Tech-
Palavras-chave: Heidegger. Latour. Técnica. Mediação. nical mediation.
Mediação técnica.

* É mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (2010) com bolsa CNPq, doutorando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital
(TIDD) pela mesma instituição, na linha de pesquisa de Aprendizagem e Semiótica Cognitiva, com bolsa CAPES. Além da pesquisa acadêmica,
é docente em cursos superiores na área de Comunicação e Filosofia (FAPCOM e FEBASP) desde 2010, com ênfase em semiótica, filosofia,
comunicação, internet e convergência.
60 A mediação técnica em Heidegger e Latour • Tarcísio Cardoso

Introdução to, armação, causação, mediação técnica,


Tendo em vista contribuir para a dis- agenciamento e tradução serão retoma-
cussão filosófica sobre as questões relativas das para realizar tal confrontação teórica.
à técnica, à tecnologia e sua relação com Deste modo, pergunta-se, neste trabalho:
a esfera humana, este artigo se propõe a que tipo de abordagem está presente na
resgatar o tema da técnica em dois auto- reflexão heideggeriana sobre a mediação
res cujos pensamentos nos parecem extre- técnica? E que tipo de abordagem per-
mamente instigantes: Martin Heidegger e meia a reflexão de Latour sobre a mesma
Bruno Latour. Confrontar as abordagens a mediação técnica?
respeito da questão da técnica nesses dois
autores de contextos distintos pode auxiliar
no debate tão emblemático para os dilemas Heidegger e a técnica
contemporâneos ligados à cultura digital a Em Ser e tempo (2012), Heidegger reto-
respeito da relação homem-máquina (ou ma um problema emblemático para a filo-
mesmo homem-algoritmo). sofia: a questão do ser. Para o autor, apesar
Sabe-se que Heidegger e Latour produ- de ter sido negligenciado por grande parte
zem suas discussões em universos bastante da história, o problema do ser, surgido na
distintos. Referência na filosofia continen- Grécia antiga, não havia sido ainda bem
tal contemporânea e com raízes na filosofia resolvido. De seu ponto de vista, a ques-
fenomenológica de Edmund Husserl, Hei- tão sobre o ser, que não deve ser confundi-
degger tende a assumir uma posição huma- da com a questão sobre o ente, já tem um
nista, de modo que suas questões filosóficas fundamento provisório (uma base instável
se conectam com questões ontológicas mais de pressupostos que formam um ponto de
próximas da esfera humana e dos dilemas partida), mas precisa ir além. Ajustando
do ser-aí do sujeito humano. Longe de se- seu fundamento humano no ser que ques-
rem puramente filosóficas, as reflexões de tiona (o “ser perguntante”), o ser-aí do
Bruno Latour se aproximam muito mais homem no mundo, chamado Dasein, Hei-
de uma espécie de antropologia da ciência degger busca relacionar a questão do “ser”
e da técnica que atentam para a dimensão com a ideia de “temporalidade”, tomando
dos não humanos presentes nas práticas esta como o modo de ser do Dasein. É com
diárias da nossa cultura, de tal modo que essa atitude filosófica centrada no ser huma-
uma análise dos puros conceitos latouria- no que está aí (Dasein) imerso no mundo,
nos poderia soar como uma injustiça para que Heidegger aborda o problema do ins-
com o próprio projeto teórico-prático do trumento técnico, da ferramenta e da me-
autor. Entretanto, as ideias de dois autores diação técnica.
tão distantes parecem convergir e divergir O artigo A questão da técnica (1953) é
de um modo bastante complementar, que também um trabalho emblemático para o
nos interessa investigar. Humanos e não pensamento heideggeriano e para a filoso-
humanos, filosofia e antropologia são al- fia contemporânea de um modo geral. Ali,
guns dos pares que teremos que enfrentar Heidegger vê na questão da técnica a possi-
nesta empreitada. Ideias como instrumen- bilidade para compreender a questão sobre
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o ser. A tese ali presente consiste em afirmar chega ao desocultamento. Este surgir
que a essência da técnica não é nada de “téc- repousa e vibra naquilo que denomi-
nico” e consiste, isto sim, no “desabrigar”, namos o desabrigar. (HEIDEGGER,
no revelar pelas vias do objeto técnico algo 2007, p. 379-380).
propriamente ontológico, principalmente
por conta da armação (sistema conceitual) A partir da ideia de produzir como oca-
utilizada para atribuir sentido ao mundo sionar, desabrigar, revelar, isto é, desocul-
das coisas subsistentes. Esta armação é, na tar o que estava oculto, Heidegger declara
visão de Heidegger, uma forma implícita que a questão central do problema da téc-
que deve ser apreendida no momento em nica consiste justamente naquilo que esse
que se busca um “desocultamento da téc- “desabrigar” permite. A técnica seria, por-
nica”. É a armação que interessa investigar tanto, um meio, a partir do qual, em algu-
para compreender a questão que a técnica ma medida, é possível tangenciar a verdade
pode nos revelar sobre o ser. do ser. Interessa-nos de modo particular a
Antes, porém, convém lembrar os pas- dimensão epistêmica envolvida nessa ques-
sos do argumento do filósofo em questão. tão, na medida que todo techné supõe um
Para começar sua investigação sobre a téc- conhecimento de algo.
nica, Heidegger busca os modos do “oca- Naquele texto, Heidegger diferencia a
sionar” de toda técnica, relacionando-os técnica antiga (artesanal, natural) da técni-
com o produzir, o aparecer. É no ocasionar ca moderna, isto é, a técnica (mais maqui-
que se desloca o olhar para a presença da- nal, e em certa medida antinatural) surgi-
quilo que aparece. No produzir, isto é, na da pós-Revolução Industrial. A diferença
criação de um artefato técnico, algo se mos- mais fundamental entre ambas se refere ao
tra, se “desoculta”, aparece, isto é, sai de fato de que a técnica antiga se mostra em
seu abrigo para se tornar presente. seu caráter de instrumentalidade (ex: é fácil
conhecer o funcionamento de um martelo,
Os modos de ocasionar, as quatro cau- pois ele próprio revela o cabo de madeira, a
sas, atuam, desse modo, no seio do ponta de metal e o modo como se usa), en-
produzir. Por meio dele surge, cada quanto que a técnica moderna (pós-indus-
vez, em seu aparecer, tanto o que cres- trial) não se mostra, mas se oculta, quanto
ce na natureza quanto o que é feito ao seu funcionamento interno.
pelo artesão e pela arte. Na discussão sobre a técnica industrial,
Mas como acontece o produzir, seja o autor insere ainda a ideia de “armação”,
na natureza, na obra do artesão ou na entendida como uma espécie de eidos que
arte? O que é produzir, por onde atua acompanha o “desabrigar” da técnica mo-
o quádruplo modo de ocasionar? O derna, que, como vimos, é opaca, antinatu-
ocasionar interessa à presença do que ral e não se mostra como um fazer típico da
a cada vez aparece no produzir. O pro- techné grega. Para o autor, a armação é uma
duzir leva do ocultamento para o des- atitude do homem que, no entanto, revela
cobrimento. O trazer à frente somente uma realidade enquanto subsistência, é um
se dá na medida em que algo oculto gesto que permite o mostrar-se do real pela
62 A mediação técnica em Heidegger e Latour • Tarcísio Cardoso

técnica moderna. Próximo ao sentido kan- A armação não é nada de técnico, nada
tiano de ver nas coisas aquilo que nós mes- de tipo maquinal. É o modo segundo
mo lá colocamos, a armação é como um co- o qual a realidade se desabriga como
nhecimento geral, que está por trás do que subsistência. Novamente questiona-
se apresenta na técnica. mos: este desabrigar acontece num
além a todo fazer humano? Não. Mas
Armação significa a reunião daquele também não acontece somente no ho-
pôr que o homem põe, isto é, desafia mem e, decididamente, não por ele.
para desocultar a realidade no modo do A armação é o que recolhe daquele
requerer enquanto subsistência. Arma- pôr que põe o homem para desabrigar
ção significa o modo de desabrigar que a realidade no modo do requerer en-
impera na essência da técnica moderna quanto subsistência. (HEIDEGGER,
e não é propriamente nada de técnico. 2007, p. 387).
(HEIDEGGER, 2007, p. 385).
Assim, a essência da técnica moderna
A armação não é propriamente um “fa- está no conduzir o homem para o desa-
zer humano”, mas um sistema de informa- brigar por onde o real torna-se subsistên-
ções que possibilita a realização da técnica cia (ibidem, p. 388), ou seja, a essência da
como meio, capaz de revelar, por trás dela, técnica moderna está na armação, no alar-
a essência dos seres (reais) para o observa- gamento de repertório e de conhecimento
dor humano. A técnica moderna tem sua sobre o mundo. A descoberta do que “é”
essência na ideia de armação. Isto pode ser (do que é o mundo) passa pelo desabrigar,
verificado na medida em que um sistema isto é, pela verdade daquilo que se descobre
conceitual permite avanço na compreensão a partir da subsistência, sendo que a arma-
do humano sobre o mundo. É no desabri- ção (o conhecer que está por trás) é o fim e o
gar da realidade, na sua realização como guia deste desabrigar.
subsistência, que a técnica, meio de con-
tato desse desabrigar, cumpre sua função Mas se pensamos a essência da técni-
reveladora. Por exemplo, ao se olhar por ca, então experimentaremos a arma-
um microscópio (instrumento técnico) um ção como um destino do desabrigar.
observador pode perceber uma realidade [...] se nos abrirmos propriamente à
(células vivas) inacessível aos seus órgãos essência da técnica, encontrar-nos-
dos sentidos por si mesmos. Ao atuar sobre -emos inesperadamente estabelecidos
seus modelos explicativos (“armações”), a numa exigência libertadora. A essên-
técnica é capaz de permitir um alargamen- cia da técnica repousa na armação.
to de sua compreensão (estado cognitivo (HEIDEGGER, 2007, p. 389).
prévio igualmente dotado de “armações”)
sobre o mundo (realidade), de tal modo a Se a técnica tem sua essência na arma-
proporcionar uma abertura para um co- ção, o desabrigar tem seu destino na nova
nhecimento (um “desabrigar”), que, por armação (no conhecimento novo). Entre-
sua vez, só foi possível mediante a técnica. tanto, devido ao progresso da técnica na
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modernidade, devido à armação que go- vale a seu modo como um elo subsis-
verna o entendimento sobre a subsistência, tente, como uma subsistência, como
o homem não mais encontra a si mesmo. algo que requer na armação, mas esta
Se a armação é o privilégio do desabrigar nunca é a essência da técnica no sen-
como “requerer” (isto é, se é o privilégio da tido de um gênero. A armação é um
descoberta), ela é o regresso do desabrigar modo destinal [uma causa final] de de-
como poiesis (como produzir). O saber, a sabrigar, a saber, o que desafia. (HEI-
armação imponente da tecnologia, é marca- DEGGER, 2007, p. 391).
do pela imponência do real, pelo subsisten-
te, pelo que se mostra, se comprova ou se “Assim, pois, a armação enquanto um
demonstra (HEIDEGGER, 2007, p. 389). destino do desabrigar é, na verdade, a es-
Quando uma técnica é desenvolvida sência da técnica” (ibidem). Desse modo, a
para uma descoberta na física, por exem- técnica se essencializa nos contínuos movi-
plo, ela requer algo novo, ela requer uma mentos da armação. A mensagem final da
revelação. Mas, por outro lado, ela sempre técnica é que ela deve servir para um mo-
mantém algo oculto, velado, que não foi vimento do homem rumo à verdade, nunca
descoberto. A partir de um microscópio, é alcançável, mas sempre questionável, pois
instaurado um “requerer” sobre o como é “o questionar é a devoção do pensamento”
a realidade. Mas quando uso o microscó- (ibidem, p. 396).
pio para ver além do que me é possível ver Façamos um breve comentário sobre o
naturalmente, eu simultaneamente vejo o que foi visto até aqui, para que possamos
novo e opero um instrumento. Tendo em ter claro como se constrói a reflexão de
vista um saber teórico prévio (armação), Heidegger sobre a mediação técnica. Pu-
experimento aquilo que se mostra median- demos notar que o filósofo alemão ressalta
te a técnica (isto é, um desocultamento da uma função epistemológica e uma dialéti-
realidade), ganho um aumento no saber ca da técnica como um mecanismo para o
(armação), tomo consciência de um novo progresso do conhecimento humano (“ar-
limite e de algo novamente velado (aquilo mação”). Fundamentalmente, podemos
que permanece oculto, que ainda não foi resumir que a técnica, no argumento de
revelado, que o microscópio não teve pre- Heidegger, é um elemento mediador entre
cisão suficiente para revelar). uma condição do conhecimento humano e
outra. Assim, a mediação técnica, sempre
Mas, a palavra “armação” não designa artificial, é o que permite ao humano um
agora nenhum objeto ou qualquer tipo contato com uma realidade subsistente que
de aparelho. Muito menos designa o ele por si só (sem o instrumento técnico)
conceito universal de tais subsistên- não experimentaria. Além disso, a técnica
cias. As máquinas e os aparelhos são moderna é sempre “não natural” e afasta o
tampouco casos e tipos de armação homem da sua natureza criativa. Entretan-
como é o homem no comando de com- to, na medida em que permite o contato do
putadores e o engenheiro no escritório conhecimento disponível (armação) com
da construção. Tudo isso, na verdade, o real que se apresenta (que se desvela, se
64 A mediação técnica em Heidegger e Latour • Tarcísio Cardoso

desabriga, e que requer), a técnica é enten- sultante da associação dos elementos par-
dida como o que move o humano, o que ticipantes do que a observância de dicoto-
permite o movimento do seu saber. Assim, mias (especialmente quando tende a ressal-
é pela mediação técnica que o pensamento tar distinções entre as esferas do sujeito e do
humano se descobre como um fluxo para a objeto). Opondo-se ao dualismo moderno,
verdade, por sua vez, sempre suscetível a segundo o qual o mundo é composto por
novos questionamentos. matéria e forma, Latour enfatiza a rele-
A seguir, serão apresentadas as ideias vância de estudar os aspectos da conjuga-
de Latour sobre a mediação técnica, na es- ção matéria-forma ou ideia-coisa, de modo
perança de que esse retrato heideggeriano que o produto resultante dessa conjugação
sirva de referência para dialogar com a ideia é claramente mais complexo do que a mera
de mediação técnica bastante divergente, soma das partes.
como a de Latour. O exemplo do instrumento técnico
arma de fogo (LATOUR, 1994, p. 30-
31) questiona a polaridade que tende a
Latour e a mediação técnica se formar em nossa cultura ocidental: de
Em On technical mediation – philosophy, um lado o determinismo tecnológico e de
sociology, genealogy (1994), Latour aborda outro o determinismo humanístico.1 Para
o tema da mediação técnica a parir de con- Law (1992), apesar de propor explicações
junção proposta entre homem e objeto téc- contrárias, ambas as alternativas são de-
nico. O texto começa com o mito de Déda- terminísticas e reducionistas, e ambos os
lo e o labirinto do Minotauro, para sugerir reducionismos (humanista e tecnológico)
que “as linhas da filosofia são desprovidas têm duas coisas em comum: ambos sepa-
de uso no tortuoso labirinto da maquina- ram homem e técnica; e ambos hierarqui-
ria” (LATOUR, 1994, p. 30). Em uma zam esses polos colocando um deles em
crítica implícita aos rumos que as reflexões privilégio (LAW, 2003, p. 3). Para Latour,
que a filosofia contemporânea (inclusive entretanto, todo sistema de mediação téc-
Heidegger) tem tomado, Latour expõe sua nica deve considerar uma simetria capaz
tese original sobre a técnica como mediação de condicionar uma tarefa específica (um
de duas vias, como será exposto a seguir. programa de ação). Tendo isto em mente,
Latour parte de uma recusa tanto de um não se deve separar de antemão os polos do
privilégio da tecnologia sobre o humano homem e da técnica, pois além de tal sepa-
(materialismo) quanto do humano sobre a ração ser artificial, pode prejudicar a com-
tecnologia (humanismo). Apresenta, como preensão do que o autor pretende conotar
alternativa para o problema da determina-
ção no par dialógico homem-máquina, o
1 É doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD)
conceito de mediação técnica, pautado na pela PUC/SP com bolsa CAPES e mestre em Comunicação e Se-
ideia bastante original de tradução, distin- miótica (2010) com bolsa CNPq. Além da pesquisa acadêmica, é
tivo reincidente no pensamento de Latour docente em cursos superiores na área de Comunicação e Filoso-
fia (FAPCOM e FEBASP) desde 2010, com atuação em disciplinas
segundo o qual do ponto de vista da “ação como semiótica, filosofia, teorias da comunicação, cibercultura,
técnica” interessa mais um hibridismo re- internet e convergência de mídias. <tscardoso@gmail.com>
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com a expressão “tecnologia mediadora” mento técnico (industrial ou não). Tanto o


(LATOUR, 1994, p. 31). homem com uma arma na mão não é mais
A ideia de mediação técnica que Latour o mesmo (já que ocorrem mudanças consi-
defende pode ser entendida como um hí- deráveis em seu sistema psíquico), quanto
brido inextrincável entre homem e objeto a arma na mão de um homem também é
técnico, que na visão do autor é autoevi- outro ser (diferente, por exemplo da arma
dente, uma vez que, no exemplo da arma de que está em uma loja, atrás do balcão). Mas
fogo, tanto homens quanto armas deixam como o híbrido “homem-arma” é um ator
de ser puros quando considerada a asso- novo, a própria ideia de ator deve ser revista
ciação “homens com armas”. Desse modo, a partir dessa mediação técnica, responsá-
o híbrido resultante de uma associação (o vel por agenciar programas de ação, a pro-
homem-técnica como um elemento social mover deslocamentos nos entes originais.
indivisível) deve ser considerado um siste- Percebemos, com o que foi dito acima,
ma complexo, cujas partes não podem ser que a mediação técnica proposta por Latour
separadas sem que haja perda de proprie- reclama por uma noção de “ator híbrido”
dades relevantes à consideração da questão (ibidem, p. 33) ou mesmo actante, conceito
da técnica. Neste sentido, Latour elabora o que visa tornar indistinguíveis os papéis de
conceito de mediação técnica como uma so- agenciamento de humanos e não humanos.
lução para o dualismo que aparta humano e O actante latouriano (aquele que faz-fazer)
técnica em lados opostos. se opõe à noção de ator social da sociologia,
Para a questão da mediação técnica, na medida em que por ação social Latour
Latour apresenta um vocabulário bastante não entende apenas o ator humano, mas a
próprio, que inclui o conceito de tradução, mudança irreversível da e na associação,
a ideia de reversibilidade, a noção de caixa a combinação de “atores” humanos e não
preta, a genealogia do programa de ação humanos (ibidem, p. 35). Assim, Latour
(tendo em vista os objetivos e funções de propõe um compartilhamento de responsa-
tal programa), a ideia de interesse (com alta bilidades da ação entre os diversos elemen-
relevância política) e demais aspectos que tos que constituem o ator híbrido, sendo a
compõem toda relação entre humano e não mediação técnica o mecanismo que gera a
humano. Para exemplificar tal vocabulário composição de um sistema complexo e uma
sobre a questão da técnica, podemos dizer irreversibilidade de um sistema social.
que Latour enfatiza o aspecto da tradução
como uma modificação mútua entre dois
agentes envolvidos em uma mediação téc- Contraste da mediação técnica
nica, promovendo um deslocamento ou em Latour e Heidegger
deslize nos seus programas de ação próprios Vimos resumidamente as distintas pro-
e anteriores à associação (LATOUR, 1994, postas de M. Heidegger e B. Latour para a
p. 32). Assim, a mediação técnica nada mais questão da técnica. Conforme explicamos
é do que a irreversibilidade de um sistema mais acima, para Heidegger a discussão so-
social elementar instaurada por uma asso- bre a técnica se constrói a partir das relações
ciação de um ente humano com um instru- entre o “ser-aí” e o “ser-assim” (dado pelo
66 A mediação técnica em Heidegger e Latour • Tarcísio Cardoso

contato da armação e a percepção de uma subsistente. Nesse percurso, descobre-se


subsistência real) da experiência humana também que o homem nunca é unicamente
mediada pelo objeto técnico, isto é, se cons- em si.
trói na relação entre o atributo diretamen- A ideia heideggeriana segundo a qual
te dado e uma passagem dos dados para a “algo como um homem, que unicamente
natureza por trás desses dados. A técnica é é homem a partir de si, não existe” (HEI-
vista pelo filósofo como um elemento me- DEGGER, 2007, p. 393) parece se apro-
diador de uma proposta epistemológica. ximar muito com a ideia latouriana de que
Em Latour, entretanto, a técnica é tomada “a subjetividade não é um atributo das al-
mais na sua dimensão propriamente on- mas humanas, mas da própria montagem”
tológica e social, como um elemento que (LATOUR, 2012, p. 313). Para Latour, é
denuncia a mudança irreversível de uma muito claro que o homem nada mais é do
agregação no sistema anteriormente consti- que um organismo social, não isolado, um
tuído. Latour destaca a importância do hí- componente de um híbrido (humano-não
brido, da mistura e dos desvios instaurados humano), como uma rede de conexões
pela associação nova, e enfatiza a emergên- mediadas por dispositivos técnicos. Essa
cia de propriedades próprias a essa associa- vinculação homem-técnica é o que permite
ção, mas que não pertencia a nenhuma das tornar um actante provisoriamente compe-
partes isoladamente. tente para realizar uma ação, como no caso
Em Heidegger, cabe destacar que a de um estrangeiro sem documento tentan-
técnica se classifica em: técnica antiga (na do sobreviver na Europa. “Se duvidarmos
qual, o homem está em harmonia com a da capacidade dessas humildes técnicas
natureza) e técnica moderna (na qual o ho- gráficas de gerar quase sujeitos, tentemos
mem confronta-se com o antinatural das residir numa grande cidade europeia como
tecnologias opacas). Interessando-se pela ‘estrangeiros sem documentos’” (ibidem,
última, o filósofo evoca o conceito de “ar- p. 301). A partir dessa noção de subjetivi-
mação” para entender o desabrigar da téc- dade formada pela associação, fica fácil per-
nica moderna. Como foi visto, nesta seara ceber que os “sujeitos humanos” não são
Heidegger pretende tomar a técnica como tão livres assim. Possuem à sua disposição
um meio capaz de revelar um subsistente atores (actantes) virtualmente presentes,
por trás dos experimentos mediados pela mas útil para determinadas situações.
técnica. A técnica só permite um “desa- No mundo de hoje, permeado pela tec-
brigar” da realidade porque está em cone- nologia digital, a virtualidade de recursos
xão com a “armação”. Na modernidade, o é notável. Exemplo que soa trivial são os
“desabrigar” da armação está ligado à des- smartphones com conexão móvel à inter-
coberta. É na compreensão capaz de ver o net, tornando disponíveis informações que
requerer e conectá-lo a outros, é no pensa- foram disponibilizadas em e-mails, pastas
mento associativo e no consentimento que virtuais, arquivos de armazenamento em
a essência aparece. Assim, a técnica é vista, nuvem e toda uma série de recursos dis-
então, como o meio para descobrir o real poníveis à mão. Tais dispositivos digi-
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tais acabam por fazer dos humanos (ou manos uma existência própria, não gerada
melhor, dos híbridos do tipo homem- nem pelo contexto nem pela subjetivida-
-máquina) seres capazes de superar sua de do homem, mas que ganham poder de
própria condição humana natural, alte- agenciamento quando se vinculam ao ho-
rando as representações de mundo que mem num híbrido sociotécnico.
possuem, passando a possuir conteúdos Em Heidegger, entretanto, não há uma
de “armação” até então próprios a não simbiose homem-técnica, mas há uma forte
humanos. Quando usamos o Google para correlação entre o ser do homem e a essên-
obter respostas rápidas a questões que até cia da técnica, em que a técnica não vale por
o momento da busca desconhecemos to- si, mas vale pelo papel que desempenha em
talmente, deixamos a condição puramen- relação à ampliação do conhecimento do
te humana e passamos a operar como sis- homem. Como vimos, a essência da técnica
temas cognitivos híbridos, cuja mediação moderna está, para Heidegger, na sua capa-
técnica não deixa de se apresentar como cidade de dirigir o homem para o desabrigar
emblemática para os sistemas cognitivos dos fenômenos ocultados, meio pelo qual o
próprios do século XXI. Entretanto, este real torna-se subsistência. Neste sentido,
ponto parece expressar uma divergência a essência da técnica está na armação, na
entre Latour e Heidegger. ampliação do conhecimento humano sobre
Em Latour, a competência mental e o mundo. Se os sistemas digitais, como o
cognitiva humana é fortificada quando as- Google, permitem ao homem uma série de
sociada a um artefato técnico, e é isso o que respostas instantâneas à palma da mão, isto
marca o progresso do ser híbrido, compos- não quer dizer, insistiria Heidegger, que
to por entidades humanas e não humanas, o homem teve qualquer progresso. O real
que pode, por exemplo, graças aos aparatos não foi revelado na sua subsistência nessa
técnicos com os quais se conecta, calcular interação com um sistema digital, na qual
com um pouco mais de competência. Essa o dispositivo técnico parece ter operado
ideia latouriana propõe que as habilidades meramente como fenômeno de linguagem,
cognitivas estão espalhadas por todo o ce- a transportar signos em uma interface. Tal-
nário formatado do social. As “camadas de vez, essa operação técnica seja emblemática
criadores de competência” (ibidem, p. 305) para a tese heideggeriana de que o homem,
não pertencem, assim, ao agente humano, na condição de internauta ou usuário de
mas representam uma habilidade disponí- sistemas digitais, se distancia da sua pró-
vel temporariamente aos actantes híbridos. pria capacidade criativa.
A proposta da ontologia plana2 de Latour é Os dilemas da técnica não puderam ser
justamente conferir aos objetos puramente esgotados por este trabalho, que se limita
técnicos, às camadas de actantes não hu- a revisar os conceitos de mediação técni-
ca em dois autores de grande importância
2 Ontologia plana pode ser entendida, resumidamente, como para o tema. Enfatizamos, contudo, as con-
uma proposta de achatamento funcional entre sujeitos e objetos, tribuições do pensamento heideggeriano
humanos e não humanos (para mais informações, ver: LATOUR,
sobre a técnica e o desocultamento por ela
2012, p. 295-296).
68 A mediação técnica em Heidegger e Latour • Tarcísio Cardoso

admitido, especialmente interessantes para humanos. Espera-se que a consideração


refletir o papel da técnica na atividade epis- dessas abordagens inspire novos trabalhos
têmica do humano. Já as contribuições de a continuar a proposta de revisar o campo
Latour se propõem a ampliar os problemas semântico da técnica e sua relação com o
do instrumento técnico para o nível do so- humano em pensadores de peso, que pos-
ciotécnico, especialmente relevantes para sam fomentar a discussão sobre os objetos
se considerarem as ações híbridas agen- técnicos e suas consequências para o ho-
ciadas conjuntamente por humanos e não mem no mundo de hoje.

Referências bibliográficas
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LATOUR, Bruno. On technical mediation - philosophy, sociology, genealogy. Fall. v. 3, n. 2, 1994.
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Edufba, 2012.
LAW, John. Notes on the Theory of the Actor Network: Ordering, Strategy and Heterogeneity.
[online paper] [prod.] Lancaster University. Lancaster: Centre for Science Studies LA1 4YN,
2003. Disponível em: <http://www.lancaster.ac.uk/sociology/research/publications/papers/
law-notes-on-ant.pdf>.

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