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JUSNATURALISMO E PRIMEIRA CODIFICAÇÃO

Jusnaturalismo e contrato social


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A palavra Jusnaturalismo provêm da filosofia e das teorias tradicionais do Direito no ocidente, e
ela passou a ganhar maior relevância a partir do século XVI. A Filosofia tanto a as teorias
tradicionais do direito o vieram interferir directamente no Direito civil e a área dos contratos foi
a que teve maior impacto.

O primeiro nome-chave é o de Hugo Grócio (1583-1645). Este clás- sico holandês laicizou, de
certo modo, o pensamento da escolástica que o antecedeu. Afirmou que o Direito natural era
ditado pela razão e que assim sucederia mesmo que (o que não poderia, segundo ele, ser dito ou
pensado sem se cometer um grande crime) Deus não existisse ou não se ocupasse das coisas
humanas 190. Na base da razão, Grócio ocupa-se da fides, a qual constituiria o fundamento do
respeito pelo contratado, particularmente no Direito internacional público.

A ideia remonta à escolástica anterior e aos canonistas 191, tendo sido retomada pelos
holandeses e teorizada por Grócio. É sabido que Grócio acompanhou, em França, o embaixador
holandês Oldenbarnevelts o qual, em 5-Abr.-1598, proferiu, perante o Rei Henrique IV, uma
alocução subor- dinada ao tema da lealdade contratual192, Inspirado, Grócio escreveu um
primeiro trabalho, De fide et perfidia, despercebido até que o Prof. Fikent- scher o publicou, com
explicações 193. O de fide esteve na base do De iure praedere commentarius (1604), o qual
serviu de suporte ao De iure belli ac pacis 194. De reter: o princípio da eficácia do contratado,
com aplicação ime- diata nos tratados entre os Estados.

A concepção contratual de Grócio, embora não constituindo uma teo- ria geral aplicável no
Direito civil, foi decisiva195, com lata influência sub- sequente.

Grócio deu uma especial atenção à teoria da promessa 197. O contrato é tido como base do
Direito internacional (o Tratado)198. Mas a própria lei estadual positiva teria a natureza do
contrato: retomando Cícero, a fides é o fundamento da Justiça 199
Na promessa, Grócio distingue três planos: a comunicação do mero plano de actuação; a
declaração-compromisso de comportamento futuro; a decisão voluntária de conferir, a outrem,
um direito200.

O fundamento da vinculabilidade das promessas estaria, para Grócio. no próprio promitente e na


sua liberdade201, Recordemos a conclusão do Prof. Fikentscher, reportando-se a Grócio: fides é
a forma de pensar na qual são possíveis os contratos 202

II. O passo seguinte foi dado por Thomas Hobbes (1588-1679). Este pensador, na base de um
racionalismo apriorístico de tipo cartesiano, lan- çou o fundamento da segunda sistemática no
Direito ou sistemática racio- nalista 203. E aí, o contrato impõe-se, enquanto dado racional.

A ideia segundo a qual, na base da polis (cidade), haveria um contrato remonta à antiguidade
grega204. Provavelmente, na origem das grandes cidades estariam federações de aldeias que, de
modo mais ou menos explí- cito, decidiram fazer vida comum. Em Roma, a ideia não seria tão
clara205 Mas cabe recordar Papiniano206 que proclamara:

lex (...) est communis rei publica spontio207.

Aliás, segundo a tradição, as próprias XII Tábuas teriam resultado de uma negociação entre os
patrícios e a plebe.

Na História de Inglaterra, as diversas vicissitudes que, desde o século XIV, levaram à instituição
do Parlamento Britânico facultaram, no terreno, uma ideia de contratualização do poder político,
designadamente na vertente financeira 208, Fica a questão: a ideia de contrato social não será
mais do que a teorização assumida de representações naturais muito antigas, da Humani- dade?

Isto dito, passemos a Hobbes.


O primeiro bem humano a proteger é a própria vida: impõe-se, pois, a automanutenção209. O
estado natural entre os humanos é a guerra210. a insegurança dela decorrente levam os homens,
como fórmula de sobrevi vência, à fundação da sociedade civil e do Estado, em troca da
liberdade de cada um211. Tudo isto socobra no pessimismo e no autoritarismo212 esta e

De reter a lealdade aos contratos: de outro modo, eles seriam inúteis, para a preservação da paz,
Esta consideração é secularizada, penetrand no acervo profundo do pensamento do Ocidente214

O pensamento básico foi retomado por John Locke (1632-1704). Este Autor parte do princípio
de que todas as pessoas são, pela natureza, livres, iguais e independentes. Logo, só com o seu
consentimento se podem sub- meter a outrem. E isso sucede por via de um contrato pelo qual
fiquem sujeitas à vontade da maioria215. O Estado assim alcançado visa a protec- ção da vida,
da liberdade e da propriedade: nas origens, a cada um com- pete fazê-lo216. Como se vê,
também aqui o contrato era usado para expli- car e justificar quer a sociedade civil, quer o
Estado217.

III. Uma especial referência é devida a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo pensamento
ressurgiria nas revoluções dos séculos XIX eXX218. Este Autor começa por colocar a grande
questão: o homem nasce livre; como é possível que, em toda a parte, ele não o seja? Responde:
não sei; mas posso explicar o que legitima tal situação219. O simples direito do mais forte não
chega: este nunca seria sempre o mais forte para se manter. se não transformar a sua força em
direito e a obediência em dever220 Teríamos, assim, um pacto social: cada um põe em comum a
sua pessoa e todo o seu poder sob a direcção da vontade geral; e recebe a qualidade de membro
como parte indivisível do conjunto221

Rousseau desenvolve, nesta base, todo um edifício sócio-político. No que agora releva, retemos a
radicação do pensamento contratual na legiti mação do poder político ou, se se preferir, da
própria sociedade humana.

23. A penetração civil e a pré-codificação


1. O pensamento contratual é estruturante do actual Direito do Oci- dente. A experiência do
jusracionalismo, acima sumariada, documenta-o. Desde o Direito internacional público até à
própria teoria do Estado: tudo The foi reconduzido. Todavia, faltava porventura o mais difícil: a
sua rein- trodução no Direito civil, de modo a permitir uma dogmática confortável, perante as
grandes aventuras sociais e tecnológicas que se avizinhavam??? Recordamos que a Cultura
envolve o Direito. Ora a cultura é um todo, ainda que heterogéneo. As fragmentações resultantes
dessa heterogenei dade ainda hoje se fazem sentir.

II. A inserção do novo pensamento no domínio do Direito civil foi obra de Samuel Pufendorf
(1632-1694)223

Em sintese, diremos que Pufendorf tem uma obra de interconexão sintetiza os naturalismos ideal,
de Grócio e existencial, de Hobbes224 1 Grócio, retém a sociabilidade básica e optimista do
homem e a sua capa- De cidade de entrar em relações duradouras; de Hobbes, mantém o mecani
cismo cartesiano capaz de se exprimir num sistema de tipo lógico-dedu- tivo 225. Apesar destas
"novidades", Pufendorf acolhia o sistema interno, dado pelas recepções romanas: vertia-o,
porém, numa sistemática reno- vada, sendo apontado como estando na origem da colocação do
contrato no centro da teoria geral226

Tentando superar, também aqui, a contraposição entre Grócio e Hob- bes, Pufendorf aponta duas
tendências, no homem: a automanutenção e o instinto social227: daí o agregar-se em sociedade.
Pufendorf, laicizando o pensamento jurídico, propõe-se, através de sucessivas derivações lógicas,
atingir os diversos domínios do ordenamento.

Pufendorf chega aos contratos, sustentando a sua necessidade por via da insuficiência dos
deveres imediatos228. A base da sua celebração reside na liberdade das partes 229. Quanto à
razão da sua observância: ela adviria na própria natureza social do homem230.

Si quae autem inter homines incuntur pacta, illa sanate observanda esse, sociabilis hominis
requirit231
III. As ideias de Pufendorf, que redundavam, no fundo, em explicar os velhos esquemas civis
com recurso ao pensamento contratual rejuvenes- cido, foram retomadas por jusnaturalistas
sucessivos232, Christian Thoma- sius (1655-1728) apresenta o contrato como uma decisão de
duas pessoas de dar ou de fazer algo233, colocando no consenso o toque de vinculabili- dade,
Christian Wolff (1679-1754), por seu turno, põe a tónica da con- tratualidade no facto de, pela
promessa, se constituir um direito noutra pessoas Carl Gottlieb Svarez (1746-1798) acentua, no
contrato, a con- junção de uma promessa com a sua aceitação pela outra parte236

IV. Nesta sequência, não rigorosamente histórica, cabe inserir Jean Domat (1625-1696)237. Este
Autor conhecia bem a obra de Grócio238 e, provavelmente, a de Pufendorf. Partindo de
postulados religiosos, Domat fixa o princípio do amor a Deus e o da união e amor entre os
homens239. Daqui resultam vinculações que aproximam certas pessoas240, vinculações essas
que podem ser ordenadas.

No tocante aos contratos, Domat fixa o quadro seguinte242. As comunicações e os comércios


para uso das pessoas e o das coisas

são de quatro formas, que são quatro espécies de convenções. Pois aqueles que tratam em
conjunto ou se dão reciprocamente uma coisa para uma outra como sucede numa venda ou numa
troca; ou fazem algo uma pela outra, como quando se encarregam de um negócio de outrem; ou
um faz e o outro dá h, como quando um mercenário dá o seu trabalho, por certo preço; ou por
fim, um só faz ou dá e o outro nada faz ou nada dá, como quando uma pessoa se encarrega
gratuitamente do negócio de um outro i; ou que se faz uma doação por pura liberalidade /.

Este modo de apresentar a matéria, integrado em importante obra dogmática, teve influência
subsequente, atingindo, seja directamente, seja através de Pothier, o Código Civil de 1804243,

V. Segue-se Robert-Joseph Pothier (1699-1772). Este Autor, logo na abertura do seu Tratado das
obrigações, propõe uma diferenciação entre pacto e convenção que se iria repercutir no Código
Napoleão. A conven- ção (ou pacto) seria o género: o consentimento de duas ou mais pessoas
para formar uma vinculação, para a resolver ou para a modificar. O con- trato visaria, apenas,
formar uma vinculação (engagement)244. Os seus efeitos reconduzir-se-iam à vontade das
partes245, sendo de notar que ficava abrangido o casamento246.

Pothier acolheu a tradição anterior e reelaborou-a, clarificando-a e simplificando-a, para o palco


da codificação247.
24. O Codigo Napoleão

10 Codigo Napoleão (1804) apresenta-se como o produto de uma evolução bimilenaria, relativa
ao contrato. Para além da apurada técnica romana, jogou o pensamento político-filosófico do
Ocidente, após dois séculos de intensa contratualização. Apesar de o sistema interno, se ter
mantido relativamente incólume, através dos moldes de Domat e de Pothier, tudo jogava para, ao
contrato, conferir um papel de primeira gran- deza. Só não se foi mais longe pela contenção
política que o Código, após quinze anos de agitação revolucionária, decidiu assumir.

II. No plano das noções básicas, o Código Napoleão veio ocupar-se des "contratos e obrigações
convencionais em geral". Fê-lo no seu Livro III (Modos de adquirir a propriedade), título III. No
plano das noções, o artigo 1101. define:

O contrato é uma convenção pela qual uma ou várias pessoas se obri- gam, perante outra ou
várias outras, a dar, a fazer ou a não fazer alguma coisa.

Decisivo, o artigo 1134.° dispõe:

As convenções legalmente formadas valem como lei perante aqueles que as tenham feito.

Elas não podem ser revogadas a não ser por mútuo consentimento ou pelas causas que a lei
autorize.

Elas devem ser executadas de boa fé.


III. Para além das noções apresentadas e da sua incisividade, importa sublinhar que toda a
matéria atinente à formação do acto jurídico e aos seus efeitos era ordenada em função do
contrato. De resto, as demais fon- tes contrapunham-se a ele, numa cripto-bipartição mais ou
menos aperce- bida pela doutrina248

Assim, passamos a salientar, todos do título III, relativo aos contratos ou obrigações
convencionais em geral:

Capítulo I

-Disposições preliminares (1101. a 1107.9), englo- bando as diversas classificações dos contratos
e a sua sujeição às regras gerais;

Capitulo II - Das condições essenciais para a validade das conven ções (1108.° a 1133.0), as
quais abrangiam: o consenti- mento, a capacidade, o objecto e a causa;

Capítulo III - Do efeito das obrigações (1134.° a 1167.°), com inclu- são das regras sobre a
interpretação das convenções e sobre o seu efeito perante terceiros;

Capítulo IV - Das diversas espécies de obrigação (1168. a 1226.),

incluindo as cláusulas penais das convenções;

Capítulo V - Da extinção das obrigações (1234.° a 1314.°); Capítulo VI - Da prova das


obrigações e da do pagamento (1315. a Thine1369.").

Parece claro que a teoria geral dos contratos surge misturada com a das obrigações. No seio
destas surpreendem-se diversas normas que pos- tulam contratos, enquanto outras serão de
âmbito genérico249.

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