Você está na página 1de 536

O Caminho do

Bom Pastor

Comentário Devocional de Salmos

Thomas Tronco dos Santos

Copyright © 2013 Thomas Tronco dos Santos


All rights reserved.
ISBN: 1494293153
ISBN-13: 978-1494293154

DEDICATÓRIA

Dedico aos meus professores e amigos


Marcos Granconato e
Carlos Osvaldo Cardoso Pinto.

ÍNDICE

Prefácio 07
Introdução 09
Comentários 13
Referências 413

PREFÁCIO

O Livro dos Salmos é talvez o mais querido de toda a Bíblia. Com efeito, ao
longo dos séculos o povo de Deus tem se deleitado em seus versos de fé e
esperança, tem se emocionado com os lamentos angustiados dos seus
escritores e tem sido desafiado e instruído por suas tocantes declarações
acerca do que é bom, justo e proveitoso aos olhos do Senhor. A verdade é que
dificilmente haverá um cristão em toda a história que não tenha encontrado
no Livro dos Salmos ensino, consolo e encorajamento, o que confere a essa
maravilhosa compilação poética um lugar especial no coração e na história do
povo de Deus.
Esse impacto que o saltério produz na vida dos santos tem uma causa
evidente: trata-se da natureza teológico-devocional de seu conteúdo. De fato,
com o Livro dos Salmos nas mãos, os crentes são instruídos e edificados. Em
suas páginas, os santos recebem suprimento para a mente que precisa de
respostas e para o coração que precisa de descanso. Disso decorre não só o
impacto desse conjunto de poesias sagradas, mas também a sua importância
fundamental para os homens piedosos que vivem em busca de ensino
teológico profundo e enlevo espiritual produtivo e verdadeiro.
Foi por perceber esse grande valor do Livro dos Salmos tanto para a
teologia como para a devoção cristã que o Pastor Thomas Tronco dos Santos
escreveu “O caminho do Bom Pastor”. Nessa obra, ele realça os diversos
elementos doutrinários que emanam dos salmos, mostrando amiúde a forma
como esses elementos, além de outros fatores percebidos em cada poesia em
particular, podem impactar a experiência e moldar as reações do homem de
Deus neste mundo.
Essa dinâmica presente no livro, geralmente se concretiza em etapas que
compõem as exposições sucintas de todos os salmos. É assim que o estudo de
cada poesia em particular se inicia com uma interessante ilustração, através
da qual o Pastor Thomas capta de pronto a atenção do leitor, despertando seu
interesse para a análise sistemática que vem logo a seguir. Feito isso, o autor
conduz o leitor às conclusões práticas e vivenciais que brotam da poesia
sagrada, passando por lições teológicas e destacando eventuais detalhes
semânticos e gramaticais, sem, contudo, entrar nas cansativas e intrincadas
discussões de ordem exegética que entediam o leitor comum e que são tão
comuns em comentários bíblicos de teor mais acadêmico.
O resultado disso tudo é que, lendo “O caminho do Bom Pastor”, o crente
entende com maior facilidade que sua peregrinação neste mundo não abrange
somente a caminhada em veredas planas e ensolaradas. Antes, aprende com
os salmistas de Israel que o caminho de quem segue o Bom Pastor é repleto
de perigos terríveis, de desertos secos, de montanhas íngremes e de vales
sombrios.
Ele vê, assim, que o tempo dessa jornada abrange noites escuras, dias de
solidão e momentos de medo e ameaça. Por outro lado, descobre alegre que,
seja qual for a etapa da viagem, com chuva ou com Sol, o Bom Pastor estará
sempre com ele, acompanhando-o e protegendo-o durante a travessia das
planícies áridas, a escalada das colinas solitárias e o cruzar dos rios
caudalosos. Ademais, aprende também que o Bom Pastor o conduzirá,
mesmo aqui, a muitas paisagens alegres e exuberantes, enquanto o guia no
rumo de seu aprisco glorioso.
Todas essas realidades serão claramente expostas diante dos olhos de quem
ler “O caminho do Bom Pastor”. Vê-se assim que, numa época em que a
literatura devocional evangélica se limita a meros apelos sentimentais
desprovidos de sólida base doutrinária, este livro vem suprir a necessidade
urgente de material de alto nível para as áreas do pensar e do viver, tão
importantes para as ovelhas do Senhor.
Que Deus abençoe a sua leitura!

Pr. Marcos Granconato


Soli Deo gloria
INTRODUÇÃO

Há muito tempo a igreja cristã perdeu certa homogeneidade necessária e


benéfica para cumprir sua função como herdeira de Deus (Rm 8.16,17),
arauto do caráter santo e perfeito do Redentor (1Pe 2.9) e mordomo imbuído
da promoção da glória do Senhor no presente século (Ef 3.21). Por isso, entre
as mais diversas vertentes da igreja moderna, há dois movimentos, opostos e
concorrentes, que dividem a em dois grupos.
O primeiro deles é formado por pessoas que se lançam à busca de um
aprendizado teológico em níveis cada vez mais avançados. Eles tentam fazer
jus ao legado dos teólogos do passado, os quais abriram clareiras enormes na
floresta teológica que há nas Escrituras. Tudo para que seus sucessores
dessem sequência ao desenvolvimento da teologia a partir de onde eles
pararam. Nesse grupo se encontram teólogos bíblicos, tradutores, exegetas,
professores, apologistas, escritores e pessoas apaixonadas pelo estudo da
teologia, da hermenêutica, da história de Israel no Antigo Testamento e da
história da igreja cristã.
O segundo grupo, gerado por um pensamento pós-moderno que despreza
conceitos e valores absolutos, rende à relatividade dos valores o direito de
cada um pensar o que quiser como se “tudo” fosse verdadeiro – incluindo
conceitos e valores tremendamente inconciliáveis entre si e autoexcludentes.
Segundo essa óptica, ninguém está errado e nada pode ser descrito como
pecado – talvez o único pecado para esse grupo seja alguém deixar de ser
feliz e de buscar a satisfação dos seus desejos por causa de conceitos morais
de certo e de errado. Esse grupo é bastante heterogêneo e reúne desde pessoas
que se apresentam como “intelectuais” e como “mentes à frente do seu
tempo”, que buscam na filosofia e no pensamento realista sua fonte de
“sabedoria”, até pessoas que ignoram qualquer tipo ou veículo de
conhecimento e se rendem à busca intensa por satisfação, felicidade e
autoafirmação, cujas práticas religiosas se baseiam inteiramente na intuição e
no desejo de interagir com o sobrenatural.
O primeiro grupo, cada vez mais munido de recursos literários e
tecnológicos, “devora” as Escrituras. O segundo, apoiado por livros de uma
falsa sabedoria e por pastores ecumênicos que rejeitam a identidade singular
da igreja cristã, desprezam por completo a Bíblia e tudo que se propõe a
ensiná-la como verdade última e máxima para a salvação eterna e para a
presente vida cristã.
Apesar de diferentes e concorrentes, essas duas vertentes, infelizmente,
sofrem do mesmo mal: a perda de interesse pela leitura “devocional” da
Palavra de Deus. Por leitura devocional me refiro à aproximação das
Escrituras não apenas para descobrir verdades teológicas contidas no texto
bíblico. Não me entenda mal: a busca das verdades teológicas é realmente
necessária, pois só existe “devoção” verdadeira e corretamente apontada para
Deus quando há “compreensão” de quem Deus é e do que ele quer. Também
não me refiro a atividades religiosas – ainda que “acaloradas” e “emocionais”
– que bradam jargões retirados das Escrituras e que utilizam os escritos
bíblicos como uma “varinha de condão”.
Por leitura devocional, refiro-me à prática da leitura bíblica que, a partir da
compreensão, gera, em primeiro lugar, admiração por Deus, por aquilo que
ele fez e faz e, também, por aquilo que ele deseja. Em segundo lugar, essa
leitura gera adaptação do caráter e do procedimento do leitor de modo a
torná-lo cada vez mais compatível com seu Senhor e mestre. Em terceiro, ela
gera aproximação de modo que o estudante das Escrituras tem o desejo
diário de andar com Deus e servi-lo aqui na Terra. Por último, a leitura
devocional gera adoração àquele que, percebendo a grandeza, o valor, a
santidade, o poder, a perfeição, o amor, a glória, o caráter e a majestade do
soberano Senhor do universo, cai aos seus pés em verdadeira atitude de
louvor, a qual brota do seu íntimo.
Minha análise do problema que se abate sobre esses dois grupos da igreja
cristã moderna não é feita por uma óptica de quem está do lado de fora. Na
verdade, faço tal análise com a consciência de que ela não me isenta dos seus
resultados – eu faço parte do primeiro grupo.
No sentido de produzir a necessária “devoção” nos servos de Deus, arrisco-
me a dizer – certo de que quem discordar terá a seu favor argumentos de
muito peso – que nenhum outro livro nos revela a natureza e o caráter de
Deus tão bem como Salmos.
Um exemplo que apoia essa ideia vem da história da igreja. Biógrafos de
Agostinho de Hipona dizem que, em seu leito de morte, ele pediu que se
afixasse diante dele o texto do Salmo 32. Esse salmo, que fala do perdão de
Deus e da bem-aventurança de quem o recebe, começa dizendo (v.1):
“Felizes são aqueles cuja transgressão foi retirada, cujo pecado foi coberto”.
Acredito que o famoso pai da igreja, em seus últimos momentos de vida,
encontrava não apenas consolo, mas encorajamento efetivo, alegria não
fingida e esperança no que estava por vir, sabendo que o perdão que recebeu
de Cristo era a causa da paz que teve a partir da sua conversão e que teria por
toda a eternidade.
O presente trabalho não é fruto de uma análise superficial e intuitiva – ele
foi produzido por meio de recursos como tradução a partir do texto hebraico
(indicada pela subsequente transliteração, com caracteres comuns, de cada
trecho traduzido), crítica textual, pesquisas nos campos da introdução e da
teologia bíblicas e a consequente exegese do texto. Contudo, tal processo não
aparece explicitamente no trabalho, pois ele tem como intenção apresentar o
caráter devocional e aplicativo de cada salmo, em uma atividade cujo autor
realizou tanto o trabalho de um comentarista como a atividade pastoral. Nesse
exercício – costumeiramente conhecido como “exposição bíblica” – o autor
foi o primeiro a se beneficiar do trabalho ao descobrir o valor devocional do
saltério e ao relembrar – “aprender”, eu diria – a importância da devoção
pessoal na vida cristã e na adoração do santo Deus.
Como essa obra não se propõe a traduzir e comentar cada versículo do livro
de Salmos – principalmente dos mais extensos –, mas auxiliar na
compreensão de cada salmo de modo devocional e aplicativo, acredito que
uma boa e proveitosa maneira de utilizá-lo é ler – de preferência, de modo
sequencial – cada capítulo “sempre” associado à leitura do salmo referente na
Bíblia, dando a devida atenção às observações feitas no comentário e
mantendo a devida postura devocional que exige o texto bíblico – e o nosso
Deus eterno.
Que o nosso Senhor amoroso e poderoso abençoe cada vida que se dedica
ao estudo e meditação da sua Palavra assim como tem me abençoado!
COMENTÁRIO DEVOCIONAL

SALMO 1
A Felicidade e o Fracasso

Quando ainda adolescente, tive uma colega que era uma grande fã do ator
James Dean (1931-1955), apesar de, como eu, ter nascido muito tempo
depois da morte do famoso astro “rebelde”. Por causa dela, passei a conhecer
um pouco da história do ator que, ainda hoje, dá nome e tom a estilos de
roupas e de penteados. James Dean, dentre os filmes que estrelou, foi o ator
principal do filme Juventude transviada (Rebel whitout a cause, 1955),
tornando-se modelo de uma geração de jovens que almejavam a mesma
“liberdade” que ele encenava.
Apesar do estilo marcante imitado por um sem-número de jovens, o que
mais me impressiona a respeito dele é algo que ele dizia fora das telas. Em
sua rebeldia, que extrapolava os filmes, ele disse: “Morra jovem e tenha um
cadáver bonito”. Esse pensamento justificava seu modo irresponsável de
vida. Infelizmente, o fim da sua vida fez jus à sua filosofia: James Dean
morreu com 24 anos em um acidente de carro. Na necrópsia, além da coluna
vertebral partida e da hemorragia interna que lhe levou a vida, o médico
constatou inúmeras cicatrizes no peito feitas ao apagarem nele cigarros a seu
pedido em um bar de Hollywood que costumava frequentar.
Apesar de parecer a muitos que essa foi uma morte “poética” que coroou a
carreira e a fama do ator, acredito que, dificilmente, James Dean pensaria o
mesmo agora. Tenho por certo que seus pensamentos seriam sobre o quanto
ele perdeu da vida ao morrer jovem, sobre a família que teria se estivesse
vivo, sobre outros filmes que viria a tomar parte e coisas desse tipo. Mas,
principalmente, o quanto era tola a “sabedoria” que ele julgava ter e que
transmitiu com orgulho para outros.
O Salmo 1 demonstra que a felicidade perene tem uma fonte certa e que,
fora dela, ainda que haja sucesso momentâneo, o resultado final é tristeza e
dor. Na verdade, o autor do salmo traça uma nítida distinção entre o homem
feliz, ou “bem-aventurado”, e o homem ímpio que vive distante de Deus.
O v.1 estipula três requisitos, na forma negativa, para a felicidade de uma
pessoa. Trata-se de três “nãos”. Tal homem “não anda segundo a proposta
dos ímpios” (lo’ halak ba‘atsat resha‘îm). Os ímpios aconselham-no a agir de
certo modo, provavelmente igual a eles, com injustiça e engano, mas tal
homem não atende seus clamores nem acolhe suas falsas sabedorias. Ele
também “não permanece no caminho dos pecadores” (bederek hatta’îm lo’
‘amad). A companhia de homens que desprezam o Senhor com seus atos não
agrada o homem “bem-aventurado” de modo que não há comunhão entre
eles. Seu contato com pessoas que vivem em pecado é cuidadoso e limitado.
E, finalmente, ele também “não toma lugar na reunião dos cínicos”
(bemoshav letsîm lo’ yashav). A falsidade e a zombaria da verdade e da
justiça não são o ambiente visitado pelo homem que é bem-aventurado. Ele,
cautelosamente, se mantém longe de tais ajuntamentos. Deve-se notar o
poder persuasivo e perigoso do mundo que, quando próximo demais de servo
descuidado, faz com que ele deixe apenas de “andar” ao lado, mas
“permanecer” e, por fim, “tomar lugar” junto com ele. Por isso, os “nãos”.
Esses três cuidados garantem uma parte da felicidade aos homens que
fogem do estilo de vida mundano. A outra parte da felicidade é alcançada
quando tal homem busca conhecer a vontade de Deus para cumpri-la. O v.2
diz que, em detrimento do afastamento dos caminhos que levam a uma
alegria fácil e rápida, o homem que se torna feliz de verdade se aproxima da
“lei do Senhor”. Essa expressão é uma referência ao ensino das Escrituras.
Tal pessoa busca conhecer a vontade de Deus de modo tão sério que “medita
durante o dia e a noite” (yehgeh yômam walaylâ) sobre aquilo que lê na
Bíblia. A ideia expressa pelo salmista é a de alguém que fica recitando para
si, sem se cansar, as verdades que aprendeu a fim de memorizá-las e
compreendê-las. Isso e a consequente obediência às orientações do Senhor
completam a felicidade que o mundo não pode conhecer por seus próprios
meios nem oferecer a qualquer um que seja.
O resultado de se afastar do mal, e de se aproximar das orientações de Deus
para atendê-las, produz no que assim age algo que pode ser expresso por
meio de um símile, uma comparação entre essa pessoa sábia e uma árvore.
Mas não é uma árvore qualquer. Trata-se de uma árvore em condições
privilegiadas. A árvore que serve de comparação com o homem que é feliz
por seguir a Deus (v.3) é plantada “perto de um ribeiro de águas”, recebendo,
em termos de alimento, todos os nutrientes e toda a água de que precisa para
se desenvolver. Assim como o homem cuja fonte de sabedoria é a Palavra de
Deus, tal árvore produz frutos e não é vítima da seca. Essa é uma descrição
figurada, mas muito clara, da segurança e da produtividade da vida daquele
que ama o Senhor e segue seu ensino.
Por sua vez, os ímpios não são assim (v.4). Usando ainda uma linguagem
figurada de natureza agrária, o salmista compara os injustos a “palha que o
vento leva”, conferindo uma dupla ideia de transitoriedade, a saber, de ser
seco e improdutivo como a palha e inaproveitável por ser levado para longe
pelo vento. Não é uma comparação que transmite uma ideia de segurança e
de um futuro feliz. Para que fique bem claro, o salmista abandona a
linguagem figurada e é claro no ponto que defende (v.5). Diz que “os ímpios
não ficarão em pé no juízo” (lô’-yaqumû resha‘îm bammishpat) porque não
têm nada que lhes abone as faltas diante de Deus e que os impeça de serem
condenados. O mesmo se dará com “os pecadores na reunião dos justos”
(wehatta’îm ba‘adat tsadîqîm). Eles não podem permanecer ali, pois não é
seu lugar. Durante toda a sua vida suas reuniões foram outras.
O salmo termina explicando, no v.6, que a razão da felicidade perene dos
que o temem e da desventura dos que agora se alegram na impiedade é que “o
Senhor é quem reconhece o caminho dos justos” (iôdea‘ yehwâ derek
tsadîqîm). Como esse fato é contraposto pela partícula “mas” (we) com o
sentido de que o “caminho dos ímpios fracassará” (we derek resha‘îm to’ved),
a primeira cláusula deve ter uma ideia mais ampla que um simples
conhecimento de Deus a respeito daqueles que o temem. A interpretação mais
apropriada é a de que Deus age bem para com os seus, dando-lhes uma
felicidade eterna, destino este bem diferente do futuro dos pecadores.
Os dois únicos futuros possíveis são “felicidade” para os que buscam a
Deus, por meio da fé no Senhor Jesus Cristo, o Salvador, e “fracasso” para os
que buscam alegria momentânea e a satisfação de todos os seus desejos.
Por tanto, fique alerta! Se você agora defender e seguir um estilo de vida
mundano e longe de Jesus, no qual a falsa felicidade é buscada
desenfreadamente a qualquer custo, seu futuro pode ser bem tenebroso.
Talvez, o melhor que você possa esperar seja um “cadáver bonito”. Fuja
disso crendo e entregando sua vida a Jesus!

SALMO 2
O ‘Irmão Mais Velho’ dos Servos de Deus

Nunca fui uma criança de brigar na escola. Na verdade, nunca troquei socos
com ninguém na minha vida. Minhas demandas sempre foram resolvidas por
meio da boca e não das mãos. Entretanto, vi muitos colegas resolverem suas
diferenças “no braço”, como se diz por aí. Quando a discussão não chegava a
tanto, as ameaças e palavrões eram ouvidos a boa distância. Para piorar,
quase nunca a solução vinha rapidamente. Ninguém queria deixar a última
palavra para o adversário. Isso fazia com que problemas bobos se arrastassem
por um bom tempo em uma discussão inútil e totalmente desrespeitosa.
Contudo, um fator era capaz de amainar os ânimos e até encerrar uma briga
acalorada: a ameaça de recorrer ao irmão mais velho. A discussão se
mantinha em igualdade até que a possibilidade de alguém mais forte e
motivado pela proteção do irmão mais novo tornava o atrito um grande risco
para a outra parte. Esta, temendo ter de enfrentar alguém cuja força e
tamanho fariam com que uma “surra” fosse inevitável, normalmente
mostrava-se desinteressada por continuar a demanda e tratava de por fim ao
embate a tempo de se livrar do pior. No final das contas, a ameaça da
intervenção de um irmão mais velho servia como um agente pacificador.
O escritor do Salmo 2 é um rei de Israel que Atos 4.25,26 identifica como o
rei Davi. A situação que ele vivia, nesse momento, era o risco de uma revolta
de nações (vv.1,2) que estavam sob seu domínio em uma espécie de motim
(v.3). A possibilidade de elas criarem uma liga militar trazia um grande risco
para o rei, chamado aqui de “seu ungido” (desde o início da monarquia em
Israel, esse termo, meshîhô, é usado para se referir a reis ou futuros reis – 1Sm
12.3-5; 16.6; Sl 20.6; 28.8). A revolta dos amonitas e de povos contratados
para combaterem os israelitas (2Sm 10.6) é um possível pano de fundo
histórico para a composição desse salmo.
Porém, enquanto tais povos se uniam e conspiravam contra Davi (vv.1-3),
aquilo que era um risco real para Israel era motivo de risos para Deus (v.4).
Como um “irmão mais velho” mais forte que os outros, Deus “ri” (yishaq) e
“caçoa” (yil‘ag) dos inimigos do seu protegido. Tal reação se deve ao
disparate entre a capacidade dos inimigos de Davi de feri-lo e a capacidade
do Senhor de protegê-lo. A diferença é tão grande que a ousadia dos
ofensores causa risos em lugar de pânico. O próprio Deus demonstra o
motivo de serem inúteis os planos dos povos dizendo: “Eu ungi meu rei sobre
Sião, meu monte santo” (wa’anî nasaktî malkî ‘al-tsîyôn har-qodshî). Desse
modo, levantar-se contra o rei de Israel era se levantar contra Deus que o
colocou lá. Não é possível enfrentar um oponente como Deus.
O Senhor, então, reafirma sua benevolência para com Davi chamando-o de
filho (v.7), prometendo-lhe o domínio sobre outras nações (v.8) e poder
suficiente para regê-las (v.9). O rei, confiado na força do “irmão mais velho”,
alerta os reis adversários a serem cautelosos (v.10) e se colocarem na posição
de servos do Senhor (v.11), desistindo de atacar seu filho (v.12). Esta é,
segundo Davi, a disposição e a atitude que garantirá a “felicidade” desses reis
e de seus súditos.
Apesar da útil e completa lição que temos ao olhar para o texto sob esse
prisma, o Novo Testamento dá uma visão mais ampla do sentido desse salmo.
Vários escritores neotestamentários associam o Salmo 2 a Jesus como um
cumprimento profético do que Davi escreveu. Em At 4.25,26, a igreja cita o
trecho do salmo que diz “por que se enfureceram os gentios e os povos
imaginaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra e as autoridades
ajuntaram-se à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido” e faz uma
aplicação do texto se referindo a Herodes, Pilatos, gentios e israelitas que se
uniram contra Jesus (At 4.27,28). Paulo e o autor de Hebreus relacionam o
texto “tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei” a Jesus (At 13.33; Hb 1.5; 5.5).
Além disso, menções no Salmo 2 sobre o seu reinado em Sião sobre as
nações que são sua herança, seu cetro de ferro, sua ira vindoura e a felicidade
para os que nele se refugiam são referências que se cumprem melhor em
Cristo que no próprio rei Davi, escritor do salmo.
Quando se vê o Salmo 2 desse ângulo, novas lições para hoje nos surgem.
Aprendemos que as maquinações do mundo contra o Messias são tão inúteis
que causam risos no Senhor. Independente dos rumos da História e do poder
dos homens, o Senhor Jesus é aquele que há de reinar e possuir toda a terra.
Apesar de parecer que os maus nunca são punidos, a mão do Rei pesará sobre
os perversos trazendo-lhes condenação. E, mais: não importa o quanto o
mundo é cruel conosco, Jesus, nosso “irmão mais velho”, é nosso refúgio e o
provedor de uma vida “bem-aventurada”.
Portanto, seja sempre pacífico e cordato. Mas, lembre-se bem, se o mundo e
as circunstâncias da vida lhe atacarem e quiserem “sair no braço” com você,
conte sempre com o “irmão mais velho”, o Senhor Jesus, para lhe proteger e
guiar, fazendo cessar as ameaças ou intervindo nelas para proteger seus
“irmãozinhos mais novos” por quem deu sua vida na cruz.

SALMO 3
Uma Multidão Contra Mim

Em 2006, passei o mês de janeiro em Guiné Bissau, na África, junto com


uma equipe que, por meio de atendimentos médicos, odontológicos e
fisioterapêuticos, investiu na pregação do Evangelho. Atendi cerca de
duzentas pessoas e não tenho nem ideia de quantas extrações dentais fiz –
extraí nove dentes só de uma mulher. Apesar do trabalho árduo, o que mais
trouxe dificuldades foi a diferença de cultura e de hábitos. Nesse aspecto, dei
uma “mancada” que quase me custou uma surra de um grupo de jovens
senegalezes.
Mesmo com as claras orientações do missionário que nos hospedou sobre o
cuidado com as fotos, fotografei a estrutura de um mercado popular, algo
parecido com barracas de camelôs, sem perceber que havia pessoas nas
proximidades. Estas, ao perceberem o disparo da câmara, protestaram com
veemência. Quando notei o que eu havia feito, me desculpei com eles na
esperança de resolver o assunto. Mas, para meu espanto, foi chegando cada
vez mais gente e cada vez mais brava. Uma missionária, então, interveio. Em
lugar de melhorar a situação, outros homens se juntaram ao grupo com
expressões de rancor, gritando coisas que eu não podia compreender. A única
coisa que entendi, para meu desespero, foi a palavra “arrebentar”. Por fim,
aos poucos fui afastado da multidão por uma pequena menina e posto em
segurança dentro do carro. Que susto!
Davi teve um problema parecido, não com relação a fotografias, mas em
relação à uma multidão contrária a ele. Absalão, por meio de dissimulações e
tramoias, reuniu, em Hebrom, a título de uma festa pela tosquia do seu
rebanho, um grupo de aristocratas e de militares de Israel (2Sm 15). Tendo
combinado secretamente uma conspiração contra Davi em todo o país, no
momento certo Absalão se proclamou rei em Hebrom e, ao som de trombetas
tocadas do Sul até o Norte, a frase “Absalão é rei em Hebrom” foi
proclamada por todo o reino. Apesar de as pessoas na festa nada saberem, as
circunstâncias as obrigaram a aderir ao movimento. O mesmo ocorreu nos
quatro cantos do território. Assim, em pouco tempo “tornou-se poderosa a
conspirata e crescia em número o povo que tomava o partido de Absalão”
(2Sm 15.12). O próximo passo de Absalão foi partir para Jerusalém a fim de
tomar o trono de Davi, seu pai. Este, enquanto fugia do filho, foi ainda
perseguido e atacado até por gente da própria Jerusalém (2Sm 16.5-8).
Nesse contexto, no Salmo 3 Davi exclama ao Senhor (v.1): “Como têm se
multiplicado os meus inimigos; são muitos os que se levantam contra mim!”
(mâ-rabbû tsaray rabbîm qamîm ‘alay). A palavra usada para “inimigos”,
aqui, também pode ser traduzida como “agressores”. Tratava-se de um grupo
violento. Davi tinha um histórico glorioso como guerreiro e como general.
Venceu muitas vezes tropas numerosas. Mas, dessa vez, a situação era
desesperadora. Quase todo o país se uniu a Absalão em um dos mais bem
executados golpes de estado da História. Poucos foram os que permaneceram
fiéis a Davi. Por causa disso, as pessoas olhavam para o rei e diziam (v.2):
“Não há, para ele, salvação em Deus” (’ên yeshû‘atâ lô be’lohîm). Para os
tais, nada podia salvar Davi.
Contrariando todas as expectativas, Davi não se desespera. Ele, em lugar
disso, busca o Senhor com certas atitudes que devem ser compartilhadas por
todos os servos de Deus. Em primeiro lugar, ele entrega seu caminho ao
Senhor (vv.3-5). Davi, falando da atuação de Deus em relação a ele diz: “Ele
é ‘o escudo que me protege’ (magen ba‘adî), ‘a minha dignidade’ (kebôdî),
‘aquele que levanta a minha cabeça’ (merîm ro’shî). Com isso, Davi se
esvazia da função de garantir seu próprio bem-estar, pois o responsável e o
promotor desse bem é o Senhor em pessoa. Por esse motivo, Davi também
não desanima, nem anda de cabeça baixa como quem não tem esperança.
Imagine só o que essa esperança significa para um rei que tem de fugir da sua
cidade parecendo um covarde, além de ser agredido verbalmente e se tornar
alvo de pedras como se fosse um cachorro!
O rei Davi, também, durante a fuga diante dos inimigos, busca o Senhor
em oração (vv.4,7). “Minha voz clama ao Senhor” (qôlî ’el-yehwâ ’eqra’)
são as palavras utilizadas (v.4) para se referir à sua atitude de pedir a Deus,
em oração, que faça o que ele, mesmo sendo rei, não conseguia fazer. No v.7
há um dos exemplos mais sucintos de oração e, ainda assim, mais corretos à
vista da Teologia. O rei, deixando de lado a pompa, os métodos e os
costumes, simplesmente se dirige a Deus com o clamor que sua necessidade
exige: “Salva-me, meu Deus” (hôshî‘enî ’elohay). Não há como olhar para
esse pedido sem recordar de Pedro, entre ondas bravias que o afundavam,
clamando a Jesus: “Salva-me, Senhor!” (Mt 14.30). Apesar de, na hora das
dificuldades, ser comum algumas pessoas se esquecerem de Deus para se
concentrarem na solução dos problemas, é justamente nessa hora que os
servos de Deus devem clamar “salva-me, Senhor”.
Como resultado da entrega e da oração, Davi, agora, descansa em Deus
(vv.5,6). Apesar do conflito familiar, das acusações falsas e do real risco de
perder a vida, ao dizer que se deita e dorme, ele completa: “Acordo porque o
Senhor me mantém” (heqîtsôtî ki yehwâ yismekenî). Davi demonstra, nessa
frase, não sofrer de insônia nas horas de tribulação justamente porque sabe
que o Senhor atua na sua proteção e amparo. Isso o tranquiliza e o faz
descansar. A coragem de Davi é fruto dessa confiança e não dos seus
recursos militares. Diz: “Não temo a multidão de pessoas que me cercam”
(lo’-’îrâ meribbôt ‘am ’asher savîv shatû ‘alay). Note bem: Davi escreve isso
sabendo que, “de fato”, milhares de soldados estão se preparando para cercá-
lo e matá-lo.
“A salvação pertence ao Senhor” (layhwâ hayshû‘â) é a declaração final do
rei (v.8) mesmo quando tudo parece perdido, quando é tratado de modo
indigno e vergonhoso e, ainda, quando tem todos os motivos para, humilhado
e de cabeça baixa, desistir de tudo. Alguém até poderia dizer que Davi tinha
“nervos de aço”, mas acho que ele não concordaria. Em lugar disso, ele
falaria sobre a soberania de Deus, sobre seu amor e zelo pelos que lhe
pertencem, sobre a confiabilidade de suas palavras, sobre o papel da oração e
coisas do tipo. Enfim, Davi renderia toda a glória a Deus e, assim, explicaria
sua confiança em um dos piores momentos da sua vida.
Recordando o susto que passei na África, quando a multidão aumentava em
número e fúria contra mim, não me lembro de ter pensado em todos esses
pontos teológicos extraídos do Salmo 3 – acho que isso nem aconteceu.
Entretanto, seus efeitos práticos foram sentidos por mim. Se não me recordo
de todos os detalhes do que pensei no momento, lembro-me como se tudo
tivesse ocorrido ontem, que, como o salmista e o apóstolo, confiante no poder
de Deus, clamei de todo o coração: “Salva-me, Senhor”.

SALMO 4
A Angústia do Servo de Deus e as Escrituras

Ultimamente, algumas notícias têm me abalado. Não me refiro a


catástrofes naturais, a crimes terríveis reportados nos jornais ou ao rumo das
eleições do nosso país. Estou chocado com os rumos da igreja. Digo “igreja”
de um modo genérico, pois muito do que se apresenta com tal nome nenhuma
semelhança guarda com a igreja de Cristo descrita nas Escrituras. São, em
vez disso, covis de malandros que, com linguagem marcada por termos
extraídos da Bíblia e com promessas de fazer inveja aos políticos mais
mentirosos, enganam pessoas desesperadas em busca de soluções para o seu
dia a dia, sem buscarem soluções para o pecado que as separa de Deus.
Fora a tristeza de ver ladrões fazerem comércio das pessoas enquanto se
dizem servos de Deus, cumprindo, assim, o que foi predito por Pedro (2Pe
2.1-3), os afazeres cotidianos que se acumulam uns sobre os outros e a falta
de efeito de diversos investimentos também têm me cansado e me
angustiado. Coisas de tirar o sono!
Nesses momentos, eu me lembro do Salmo 4. Nele, Davi se dirige ao
Senhor chamando-o (v.1) de “Deus da minha justiça” (’elohê tsidqî) e lhe diz:
“Na angústia, me tens aliviado; tem misericórdia de mim e ouve a minha
oração” (batsar hirhavta lî hannenî ûshema‘ tefillatî). Sabendo que o contexto
do salmo nos leva a Davi em um momento de tristeza, preocupação e
angústia, há três verdades nesse texto que sempre me alentam.
A primeira delas é que o Senhor trata os seus servos de modo especial
(v.3). O texto diz que “o Senhor distingue para si o fiel” (hiflâ yehwâ lô
hasîd) ou, como traz a versão NVI, ele o “escolheu”. A palavra hebraica
palah, na forma em que se encontra, significa “separar” ou “tratar com
preferência”. Assim, apesar de o mundo ser até mesmo inóspito para os
cristãos, o Senhor nos trata da maneira característica que os pais tratam seus
filhos.
A segunda é que o Senhor é o alvo da nossa confiança (vv.4-6). Nesses
versículos, Davi diz que o servo de Deus não deve agir mal quando recebe o
mal; antes, deve refrear seus impulsos devido ao louvor que rende ao seu
Deus. Diante de uma instrução tão contrária aos impulsos humanos, ele
imagina alguém se lamentando e perguntando quem, então, poderia
estabelecer a justiça onde ela foi corrompida. A resposta vem na forma de
uma oração em que o rei clama (v.6): “Levanta sobre nós a luz da tua face, ó
Senhor” (nesâ-‘alênû ’ôr paneyka yehwâ). É um pedido munido de esperança
na fidelidade, no poder e na capacidade de Deus de, um dia, trazer à luz a
justiça que agora nos parece natimorta.
A terceira verdade é que o Senhor dá a alegria verdadeira (v.7). Davi
relata, aqui, seu próprio relacionamento com Deus e sua experiência pessoal,
lembrando ser ele alguém que passou por inúmeras tristezas e injustiças. Ele
compara a alegria que o Senhor lhe deu à alegria dos homens quando o
Senhor “lhes dá fartura de cereal e de vinho”, conforme traz a versão ARA.
Uma tradução literal do v.7 é: “Deste-me alegria mais do que o trigo e o
vinho deles ao se multiplicar” (natattâ simhâ belivvî me‘et deganam
wetîrôsham ravvû). Em resumo, a alegria gerada pela prosperidade financeira
não era superior à que Deus produzia em Davi ao se relacionar com ele.
O resultado da contemplação dessas verdades pelo salmista produzia nele o
mesmo que produz em mim: paz e segurança. Isso é revelado no v.8, quando
Davi diz: “Eu me deito em paz imediatamente durmo, pois tu somente, ó
Senhor, me faz repousar em segurança” (beshalôm yahdaw ’eshkevâ we’îshan
kî-’attâ yehwâ levadad lavetah tôshîvenî). A insônia do rei – e a minha – são
curadas ao lembrar do tratamento que recebemos do nosso Pai celestial e do
relacionamento que nutrimos com ele por meio do Senhor Jesus Cristo.
Que tais verdades alentem e produzam esperança em cada um de nós,
servos de Deus, e que, nas nossas horas de meditação noturna... zzzzzzzzzzzz...

SALMO 5
A Atitude Correta Diante da Oração

Uma boa maneira de conhecer um cristão é observar sua oração. Por ser
uma exteriorização do que há no íntimo, quando vemos alguém orar
conhecemos um pouco do que há onde somente Deus pode ver.
Assim, se uma pessoa nunca toma a iniciativa de orar diante de dificuldades
e até mesmo de tarefas corriqueiras ou se, a pedido de alguém, ora
mecanicamente, percebe-se não se tratar de alguém muito dado a buscar o
Senhor, seja em oração, seja pela leitura das Escrituras, seja pela meditação e
contrição pessoal. Se alguém ora reivindicando bênçãos ou rejeitando
dificuldades, tal pessoa tem dificuldades em se submeter à vontade e às
orientações de Deus e costuma criar seu próprio modo de segui-lo. Se alguém
tem por hábito orar antes de cada coisa que vai fazer, mesmo que sejam em
momentos corriqueiros, surge diante dos olhos uma pessoa que entende que
Deus é soberano e que sabe que os cristãos são inteiramente dependentes
dele.
Nesse aspecto, há um tipo de pessoa que me intriga. É aquele que ora a
Deus pedindo que cuide de certa situação, que faça sua boa vontade e que
seja presente em cada detalhe. Contudo, apesar da correta oração, passa
imediatamente a atuar como se não tivesse orado e como se Deus nada fosse
fazer no sentido de atender a oração. A pessoa pede ajuda de Deus e, em um
instante, nega a ajuda que pediu tomando a frente, ela mesma, da solução dos
problemas.
Sob esse aspecto, Davi dá um bom exemplo para os discípulos do Senhor.
Basta notar as condições do seu dia a dia expressas no Salmo 5. Ele enaltece,
diante de Deus, os justos (v.12) e os que confiam e amam o Senhor (v.11),
justamente porque eram as pessoas que ele tinha em menor número ao seu
lado. É provável que os vv.4-6 demonstrem as características das pessoas que
causavam problemas e riscos para o rei de Israel. São pessoas iníquas (v.4),
arrogantes (v.5), enganadoras e violentas (v.6). Gente assim causa sofrimento
a todos quantos estão ao seu redor.
Sabendo da presença e do risco que os inimigos representavam, Davi fez o
correto: buscou a Deus em oração. Entretanto, dizer isso é tratar o assunto
vagamente, visto que, em oração, podem-se fazer e falar muitas coisas,
inclusive contraditórias. Temos visto, por exemplo, pessoas que oram
repreendendo os males como se neles mesmos estivesse o poder para tanto;
pessoas que ordenam bênçãos espirituais como se Deus fosse seu servo
pessoal; pessoas que dizem para Deus que não aceitam algum mal que os
acometa; e pessoas que, por incrível que pareça, oram perdoando o Senhor
por ter-lhes infligido alguma provação.
Davi não orou assim, mesmo que estivesse preocupado com a violência e a
maldade dos seus inimigos. Na verdade, ele teve três atitudes necessárias à
oração baseada no ensino bíblico. Em primeiro lugar, ele clama a Deus por
ajuda (v.1). O rei de Israel não repreendeu o problema, nem colocou Deus na
parede, nem tampouco perdoou o Senhor por permitir a presença de inimigos.
Davi, simplesmente, foi a Deus e fez uma petição pela solução do sofrimento.
Com o coração compungido, ele diz “ouça as minhas palavras, ó Senhor,
considera o meu gemido” (’amaray ha’azînâ yehwâ bînâ hagîgî). É como se
dissesse: “Senhor, veja como estou sofrendo e me ajude”.
Em segundo lugar, Davi sabe seu lugar diante de Deus (v.2). Ele, o rei de
Israel, se dirige ao Senhor e o chama de “Rei”. Na verdade, Davi diz “meu
Rei e meu Deus” (malkî we’lohay). Ele não se sente apenas como o grande
rei cheio de súditos, mas sabe que também é um súdito – súdito de Deus. O
orgulho que costuma, infelizmente, acompanhar um cargo como o seu, não
nubla a visão de que há alguém que reina sobre ele. Isso faz com que ele não
busque seus direitos ou seus próprios recursos na solução do sofrimento. Ele,
antes, busca o Rei exatamente com a mesma humildade e dependência que os
seus súditos o buscavam.
Finalmente, em terceiro lugar, ele espera pela atuação de Deus (v.3).
Depois de orar a Deus, Davi conclui com uma observação no mínimo
intrigante. Quando a primeira reação que imaginamos que alguém em
problemas teria, a saber, iniciar rapidamente algumas ações no sentido de dar
fim ao mal, o rei de Israel leva em conta que expôs sua angústia ao Deus
Todo-poderoso e confia na sua sábia resposta. Depois de abrir seu coração a
Deus, Davi diz: “E eu aguardo” (wa’atsapeh). Uma outra tradução possível
seria “e fico observando”. Na verdade, essa palavra demonstra que Davi
confiava tanto no poder, na sabedoria e no amor de Deus que, depois de orar,
ele, realmente esperava pela resposta, qualquer que fosse. Isso não significa
deixar de fazer o que é de sua responsabilidade, mas deixar de fazer o que
não é, além de se abster de atitudes erradas por uma “boa causa”. Apesar de
ser rei, Davi esperava como um servo que seu Senhor – e nosso – agisse.
Que exemplo a ser seguido por todos nós! Afinal, homens iníquos,
arrogantes, enganadores e violentos cercam quase todos os cristãos. Que esse
seja o incentivo e o exemplo para deixarmos de tomar caminhos tortuosos a
fim de fazer o que é da alçada do Deus eterno e nos dediquemos, cada vez
mais, à oração! Mas não uma oração qualquer. A oração e as atitudes dignas
daquilo que Deus nos ensinou nas Escrituras.

SALMO 6
O Papel do Arrependimento dos Pecados

Há alguns anos, acompanhei o caso de um irmão que, apesar de sempre ter


sido dedicado e ativo na igreja, vinha paulatinamente se afastando tanto dos
cultos como do convívio dos irmãos e da própria família. O motivo era o
desejo de pegar um grande diamante em um garimpo que mantinha com
muito esforço. O ano não tinha sido bom e já chegava a época das chuvas, o
que poderia deixá-lo com um grande prejuízo. Por esse motivo, ele
praticamente abandonou a igreja. Eu o alertei várias vezes sobre o risco de
um crente se manter longe da comunhão dos salvos e do alimento da Palavra
de Deus, mas nada mudava a atitude desse irmão.
Entretanto, para minha surpresa e alegria, certo dia ele me procurou e disse
que não estava agindo bem e que estava arrependido. Com toda convicção,
afirmou que, ainda que terminasse o ano acumulando prejuízos, não iria mais
deixar os valores espirituais em segundo plano. Foi um arrependimento
verdadeiro e uma grande mudança de rumo. Como uma surpresa adicional, na
última semana antes do início das chuvas – que impossibilitam o trabalho de
garimpo – esse irmão encontrou um poço no fundo de um rio onde pegou
diamantes suficientes para pagar as despesas do ano todo, para financiar o
início do trabalho no próximo ano e para contabilizar um bom lucro. Foi
incrível como a tristeza e a preocupação se transformaram em alegria, não,
contudo, sem passar antes pelo arrependimento.
Davi viveu essa dinâmica mais de uma vez. Uma delas está registrada no
Salmo 6, o primeiro dos sete “salmos penitenciais” (6, 32, 38, 51, 102, 130,
143). O salmista experimentava um momento muito complicado em que sua
própria vida estava em risco. Ele suplica a Deus que o livre e o salve (v.4)
explicando, no v.5, que “não há, na morte, recordação de ti” (’ên bammawet
zikreka). Davi não está, obviamente, ensinando que não há vida após a morte.
Ele está clamando ao Senhor que o salve e oferece como razão, para tanto, a
ideia de que empregará sua vida poupada para recordar do Senhor e da sua
boa ação para com ele. Ele completa essa ideia dizendo “quem, na sepultura,
o louvará?” (bishôl mi yôdeh-lak).
Esse compromisso e desejo de louvar o Senhor, caso seja poupado, ocorre
em um momento em que o salmista não apenas corre risco de vida, mas se
sente abalado pelas circunstâncias. Ele diz “estou desfalecido no meu
lamento” (yaga‘tî be’anhatî). Imagine alguém lamentar tanto um sofrimento a
ponto de se sentir cansado. Essa era a realidade de Davi. Ele chorava a ponto
de se sentir exausto. Esse pranto tomava horas da sua noite. “Toda noite
minha cama fica cheia das minhas lágrimas; meu leito se desfaz” (bekol-laylâ
mittatî bedim‘atî ‘arsî ’amseh), diz ele no v.6. Esse pranto tem uma causa
(v.8): “todos aqueles que me são hostis” (bekol-tsôreray).
Perante situação tão triste, mesmo aterradora, Davi considera a
possibilidade de se tratar de uma disciplina de Deus. Assim, o busca a fim de
pedir pela sua misericórdia. Apesar de não ficar explícito o pecado e a
confissão de Davi, a semelhança desse salmo com os outros nos quais Davi
pede perdão, demonstra que ele está, sim, clamando pela misericórdia de
Deus em meio ao arrependimento (basta comparar o v.1 com Salmo 38.1,4 e
o v.2 com Salmo 32.3, 38,3 e 41.4).
Assim, Davi clama ao Senhor (v.1), não que não o repreenda, mas diz:
“Não me repreenda na tua ira” ou “repreende-me não na tua ira” (’al-
be’appeka tôkîhenî). O salmista sabe do poder de Deus e entende que o
Senhor pode lhe trazer um castigo maior do que ele possa suportar. Jeremias
parece ter a mesma visão ao dizer “castiga-me, ó Senhor, mas em justa
medida, não na tua ira, para que não me reduzas a nada” (Jr 10.24). Como
uma oração complementar, Davi pede: “E não me discipline na tua irritação”
(we’al-bahamatka teyasserenî). É bem possível que Davi merecesse tal
punição. Por isso, o foco do pedido do salmista (v.2) é “seja favorável a mim,
Senhor” ou “use de misericórdia para comigo, ó Senhor” (hannenî yehwâ).
Do choro Davi passa para o arrependimento. Entretanto, não para nele.
Algo maravilhoso acontece nessa jornada. O pranto se transforma em alegria
mediante o pedido de perdão, não porque o salmista passe a ver a situação
com outros olhos, mas simplesmente porque o Senhor de fato o perdoou e
agiu de acordo com essa realidade. Assim, Davi se vê livre das mãos dos
inimigos (v.8) exatamente porque “o Senhor ouviu a voz do meu lamento”
(shama‘ yehwâ qôl bikyî), explica ele. Sua trajetória foi “do choro ao
arrependimento e do arrependimento à alegria”. O pecado realmente causa
inúmeras tristezas, seja em termos de consequências, seja na óbvia tristeza
pela perda de comunhão com o Senhor. O perdão de Deus encontra o cristão,
nesse sentido, como um bálsamo sobre uma ferida: traz alívio e cura.
Conheço muita gente que passou do choro à alegria por meio do
arrependimento – eu inclusive. Nem sempre a alegria vem por meio da
prosperidade ou da solução completa do problema, mas sempre há alívio da
consciência culpada e restauração da comunhão com Deus e com o corpo de
Cristo, a igreja. E, pensando bem, ao refletir sobre a graça, a bondade e o
amor de Deus por nós – verdadeiras riquezas – o que são diamantes?
SALMO 7
A Necessidade de um Juiz Reto

Ultimamente, as coisas estão do avesso. Bandidos andam impunemente


pelas ruas, enquanto cidadãos de bem ficam presos em suas casas. Pessoas de
bem são ameaçadas por quem as deveria proteger. Homens honestos são
roubados por pessoas que deveriam garantir a justiça, principalmente aos
mais fracos.
Quando isso acontece, mesmo desacreditados a respeito da eficácia do
sistema, as pessoas que foram injustiçadas procuram os responsáveis por
garantir que a retidão e os direitos dos cidadãos sejam cumpridos. Mas, é aí
que começa uma parte triste da história de muita gente. A justiça, que se
espera vir de órgãos criados para esse fim, às vezes não chega, seja por
corporativismo, corrupção ou por desigualdade de condições financeiras entre
as partes, seja por meio da morosidade e da burocracia presentes nos veículos
da justiça.
Tenho de ser honesto: é uma visão desalentadora. Confesso que não
acredito mais na justiça promovida pelos homens, apesar de saber que há uma
parcela de pessoas comprometida com a verdade e com a honestidade.
No meio da minha desilusão, vêm-me à mente o Salmo 7. Ele foi escrito
após Davi ser acusado injustamente por alguém chamado Cuxe. Alguns
comentaristas acreditam se tratar de alguém desconhecido, enquanto outros
arriscam ser ele Simei (2Sm 16.5-13), ou o próprio Saul, cujo pai se chamava
Quis (1Sm 9.1,2). Independente de quem seja, o fato de ser “benjamita” nos
dá, como pano de fundo, a inimizade injustificada de Saul por Davi e as
diversas tentativas de assassinato por parte do rei contra o jovem que, tudo
que fez, foi servir ao Senhor e a Israel com fidelidade. Seja Cuxe quem for,
ele estava alinhado com a desmoralização e perseguição de Davi com base
em interesses escusos.
Diante dessa situação, sem se perder no desespero e na lamúria, Davi olha
para o Senhor e diz: “Em ti me refugio” (v.1). Davi usa o mesmo verbo,
hasah, que usou no Salmo 36.7 para dizer que “os filhos dos homens se
acolhem à sombra das tuas asas”. Traz a ideia de alguém indefeso, como um
filhotinho de ave, buscando abrigo e consolo sob as asas da sua grande e
decidida mãe. Afinal, quem nunca viu uma galinha enfrentando quem quer
que seja para proteger seus pequeninos? Era assim, e com essa confiança, que
Davi olhava para Deus. Isso justifica o pedido de Davi: “Salva-me de todos
os que me perseguem e livra-me, para que ninguém, como leão, me arrebate,
despedaçando-me, não havendo quem me livre” (vv.1,2).
Essa esperança, contudo, não se baseava apenas em um tipo de otimismo
ou em expectativas infundadas. Davi, que sabia qual era o tipo de poder que
Deus possui, também conhecia a retidão dos seus juízos. Se Davi sofria
injustiça diante de Cuxe e de outros benjamitas, o Senhor saberia julgar
corretamente a situação e dar “ganho de causa” a quem de direito. Davi diz a
Deus: “Se eu fiz o de que me culpam, se nas minhas mãos há iniqüidade, se
paguei com o mal a quem estava em paz comigo, eu, que poupei aquele que
sem razão me oprimia, persiga o inimigo a minha alma e alcance-a,
espezinhe no chão a minha vida e arraste no pó a minha glória” (vv.3-5). Ao
apresentar seu caso a Deus, Davi afirma sua retidão diante das falsas
acusações e da perseguição e lembra seus atos justos, como, provavelmente,
o de poupar Saul quando teve chance de matá-lo. O motivo para isso é que
ele sabia que Deus conhecia tais fatos e saberia agir com sabedoria e retidão
para com ele. Assim, recorrendo ao Senhor de toda justiça, Davi pede
“desperta-te em meu favor” (v.6).
Com o rumo que as coisas têm tomado em nosso país e no mundo,
principalmente no que tange à perseguição contra o cristianismo verdadeiro, é
bem possível que a mesma oração de Davi deva ser feita por nós. Mas, se e
quando o fizermos, que seja com a mesma atitude, em primeiro lugar
confiante e, em segundo, com as mãos limpas de quem segue as palavras do
Mestre.
Sendo assim, descansemos. Afinal, se uma pequena galinha pode dar
conforto e proteção aos seus filhinhos, o que poderá o Senhor eterno, Rei dos
reis, fazer por nós, seus filhos por quem enviou e entregou à morte o Senhor
Jesus Cristo?

SALMO 8
Uma Profunda Destruição

Quem nunca recebeu, por e-mail, aquelas mensagens que correm a Internet
nos fazendo rir com “pérolas” da educação moderna? Recebi, certa vez, uma
dessas mensagens que sempre me fazem rir quando as releio. Segundo quem
enviou, trata-se de frases retiradas de uma redação, requisitada na prova do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2008, sobre o “aquecimento
global”. Entre as pérolas há frases como estas: “Vamos nos unir juntos de
mãos dadas para salvar o planeta”; “Animais ficam sem comida e sem
dormida por causa das queimadas”; “A Amazônia tem valor ambiental
ilastimável”; “Os dismatamentos é a fonte de inlegalidade e distruição da
froresta amazônia” (sic). Parece até piada...
Absurdos – e risadas – à parte, uma das frases me deixou pensativo: “A
Amazônia está sofrendo um grande, enorme e profundíssimo desmatamento
devastador, intenso e imperdoável”. Esse é um exemplo de redundância em
grau máximo. Entretanto, ele reflete um pouco da realidade das nossas matas
e da nossa fauna. Quando observamos o tamanho da destruição da natureza,
essa frase, uma aberração para a língua portuguesa, não nos parece tão
distante da verdade em termos da geografia e biologia. A destruição tem sido,
sim, profunda, devastadora e intensa.
Isso é muito triste, principalmente quando nos recordamos da fonte da
natureza. Ela não é produto do acaso; não é consequência de uma explosão;
não é efeito colateral de um caos no Universo. Ela é obra das mãos criativas
do Senhor. Um salmista escreveu: “Sede benditos do Senhor, que fez os céus
e a terra” (Sl 115.15). Não obstante, o Criador de tudo colocou o homem à
frente de tudo o que há na terra: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra,
deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 115.16). O verbo “dar”, do hebraico
natan, significa também “entregar” ou “consignar”. Assim, ainda que toda a
terra pertença ao Senhor, ele cedeu aos homens o direito de usufruir dela e o
dever de cuidar da propriedade divina.
Olhando para a relação entre Deus e homens e entre os homens e a
natureza, o Salmo 8 tem coisas interessantes a nos dizer. Em primeiro lugar, o
homem, diante de Deus, nada é. Davi, vendo a criação divina, olha para o
homem e diz: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e
as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho
do homem, que o visites?” (vv.3,4). Parece que Davi considerava a grandeza
da criação de Deus como algo tão maravilhoso a ponto de nublar a própria
existência do homem. Entretanto, de maneira surpreendente, Davi afirma,
sobre a condição do homem: “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do
que Deus e de glória e de honra o coroaste” (v.5). A conjunção adversativa
wa, traduzida aqui por “no entanto”, demonstra a distância entre a dignidade
do homem como criatura e a dignidade conferida por Deus a ele. É a enorme
distância entre o que deveríamos ser e o que somos.
Em lugar de sermos meras criaturas como o restante, fomos revestidos de
dignidade e responsabilidade tal que nos separou do restante da criação.
Quanto a ela, foi-nos dada a fim de termos “domínio”: “Deste-lhe domínio
sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois,
todos, e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar e
tudo o que percorre as sendas dos mares” (vv.6-8). A palavra mashal não
significa apenas “dominar”, mas “reger” e “reinar”. É possível que a tradução
“domínio” nos faça imaginar o uso cruel e egoísta da natureza. Mas esse não
é o caso. O homem não recebeu de Deus o direito de usar a natureza como
bem entender, mas, sim, o dever de, como um rei, reger o que lhe foi posto
como direito de usufruir e dever de zelar. E a história está cheia de bons reis
que chegaram a abrir mão dos seus direitos e até do seu bem-estar pelo bem
do seu reino. Esses foram consagrados como bons reis. Como dominantes da
criação de Deus, temos o dever de cuidar do que pertence ao Senhor e que
nos foi confiado.
Portanto, o desvio do comportamento humano no sentido de destruir a
natureza, em lugar de conservá-la, se deve ao fato de ser pecador. Somente
quando o homem é transformado da sua condição de pecador para a condição
de filho da Luz é que, também, pode haver mudança nos seus atos em relação
ao restante da criação de Deus. Assim, em última instância, não é do Green
Peace ou do Sea Shepherd que precisamos a fim de proteger o planeta, mas
de missionários e evangelistas comprometidos em causar transformação, por
meio da pregação do Evangelho, nos corações dos pecadores. Desse modo,
por meio da atuação do Espírito Santo, pode haver, de modo completo e
abrangente, a formação de novos seres, cujas vidas darão frutos dignos das
mais belas árvores criadas por Deus.

SALMO 9
A Quem Recorrer no Dia Mau?

Nessa semana, furei meu pé em uma haste de ferro que sustenta uma tenda
de nylon instalada no gramado de casa. Depois de ensanguentar minha
cozinha, sala, quarto e banheiro, procurei o hospital que atende meu convênio
a fim de tomar uma vacina contra tétano. Ouvi, lá, da atendente, que eu
deveria procurar tal medicamento na rede pública de saúde. Dirigi-me para a
um hospital público e aguardei um bom tempo até ser chamado junto com
outras quatro pessoas. Para minha surpresa, os cinco pacientes foram
atendidos em apenas 3 minutos. Minha consulta não demorou mais do que o
tempo de eu contar para o médico que havia perfurado meu pé em um ferro,
ele me perguntar se era o pé direito ou esquerdo – não sei para quê – e, sem
nem sequer olhar o ferimento, me receitar duas injeções, a vacina e um
antibiótico de largo espectro. Para ser bem sincero, me senti completamente
desamparado e sem ter a quem recorrer que pudesse me dar conforto e
segurança.
Nesse sentido, toda vez que leio a história da mulher usada por Joabe a fim
de fazer Davi receber Absalão de volta em Jerusalém (2Sm 14.1-24), fico
abismado com um aspecto em particular: uma mulher desconhecida
conseguiu facilmente uma audiência com o rei. Que diferença da realidade
atual! Multidões, por vezes, aguardam horas e horas, debaixo de Sol e chuva,
para ver de longe uma autoridade famosa como presidentes, reis e primeiros-
ministros. Falar pessoalmente com eles? Impossível! Encontrar neles
compaixão? Só se outros milhares estiverem sob as mesmas circunstâncias e
se a solução do problema tiver repercussão na mídia. Ver tais líderes
tomarem decisões justas? A justiça, muitas vezes, é interpretada conforme os
interesses dos poderosos.
Concordo que não é uma visão animadora, nem o que nos espera, muito
promissor. Entretanto, não perco as esperanças quanto ao futuro, pois me
lembro que, após os desmandos dos governantes humanos, haverá quem
governe de modo especial. O Salmo 9, cântico no qual o rei Davi louva a
Deus por livrá-lo dos inimigos maus e roga que o livra da fúria deles, traz
alguns aspectos da função do Senhor como governante.
Em primeiro lugar, ele julga com retidão inabalável. Davi diz que Deus
“permanece no seu trono eternamente, trono que erigiu para julgar. Ele
mesmo julga o mundo com justiça;” (vv.7,8a). A segunda parte do v.7 diz que
Deus “se assentou no trono para o julgamento” (tradução literal). Entretanto,
o início do versículo demonstra que essa não é uma realidade momentânea ou
dependente das circunstâncias ou dos humores. Trata-se de uma disposição
permanente de Deus, pois, para julgar, ele se assenta “eternamente”, le`olam.
Nada pode demovê-lo desse intento ou retirá-lo desse trono. Ele é um justo
juiz todo o tempo e para sempre.
Em segundo lugar, ele governa soberanamente as nações. O salmista
afirma que o Senhor “administra os povos com retidão” (v.8b). O verbo dyn
significa, em sentido restrito, “julgar”, o que condiz com a figura do juiz
apresentado no início da frase. Mas, em sentido amplo, significa “reinar,
governar”. Dado o caráter judicial dos reis da época, os atos de julgar e de
reinar vinham da mesma fonte. Por isso, o texto revela que Deus, não apenas
pune os maus, mas “dirige” as pessoas. Seu poder faz valer suas decisões.
Com Deus não existe aquela máxima tão triste de quem depende da justiça
humana: “Ganhou, mas não levou”. A soberania do Senhor se faz sentir
quando ele traz uma questão a julgamento.
Em terceiro, ele alivia os oprimidos. O texto diz que Deus é “alto refúgio
para o oprimido, refúgio nas horas de tribulação” (v.9). A ausência de justiça
por parte dos homens sempre trouxe sofrimento aos fracos. O próprio Deus
acusou os israelitas, certa vez, de não promoverem a justiça que ele ordenou:
“Este [o Senhor] desejou que exercessem juízo, e eis aí quebrantamento da
lei; justiça, e eis aí clamor” (Is 5.7). A injustiça de uns é o clamor de outros.
Para ambos, Deus tem um tipo de tratamento: juízo para os injustos e alívio
para os que clamam. Ele é um “refúgio”, diz o v.9, nas “horas de fome ou de
seca”, le`ittot batzarah, o que, figuradamente, lembra da opressão e da
necessidade que passa quem procura a justiça e não a encontra.
Em quarto lugar, ele é acessível aos que o buscam. Davi também diz: “Em
ti, pois, confiam os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, não
desamparas os que te buscam” (v.10). Com uma atitude justa e inabalável, é
óbvio que Deus é o alvo da confiança dos que dele necessitam e que nele
buscam amparo. Contudo, algo notável surge de uma observação atenta do
texto. Davi nos conta quem tem esses benefícios por parte de Deus. Diferente
do mundo, onde quem é beneficiado são os poderosos e influentes em
detrimento dos fracos, o alvo da benevolência e do julgamento reto do Senhor
são os que o “buscam”. Enquanto, em Israel, muitas vezes a situação era de
príncipes que vendiam sentenças contra os pobres que buscavam seus
direitos, com Deus, aqueles que buscam nele amparo, de fato o encontram. O
verbo darash reflete a atitude de um servo que, reconhecendo em outro o
poder, a capacidade e a justiça, busca-o para sanar seu anseio.
Essa visão é reconfortante para o cristão quando percebe que não há, entre
os homens, a quem recorrer. O Senhor é completamente diferente. Ele ama a
justiça, odeia o pecado, ama os que o buscam e efetua, poderosamente, a sua
vontade. E o melhor de tudo: quando Deus age, nunca é necessário recorrer a
outra instância. Com Deus assentado em seu trono, não há comissão de ética,
nem tribunal de apelação. Busque-o e recorra a ele!

SALMO 10
O Retrato do Ímpio
Acho incrível como os policiais são treinados para descreverem suspeitos e
reconhecerem tais características nas pessoas. Enquanto certos indivíduos são
maus fisionomistas, alguns homens da lei conseguem, ao olhar para uma
pessoa, saber sua altura, peso, cor dos olhos e notar marcas como cicatrizes e
tatuagens. Muitas vezes, a descrição física de um suspeito, para alguns
policiais, equivale a um retrato. É uma qualidade admirável – e útil – que não
compartilho com os agentes da segurança pública. Apesar de eu nunca me
esquecer de um rosto, eu não sei descrever ninguém.
Ao que me parece, um dos salmistas soube fazer muito bem uma descrição.
Na verdade, o escritor do Salmo 10 soube descrever o “perverso” tão bem
que é como se tivéssemos um retrato dele.
O v.2 diz que o perverso age “com arrogância” (bega’awat), que também
pode significar “com orgulho” ou “com majestade”. É o sentimento de quem
se julga um tipo de rei. Para ele, seu valor pessoal supera o de todos ao redor.
Ele deve ser servido e sua vontade atendida. Esse sentimento maligno,
segundo o texto, o leva a perseguir o pobre, tramando contra ele. Nenhum
sentimento de injustiça o dissuade de agir mal contra alguém, pois ele se acha
no direito de fazer o que quiser.
Enquanto a cobiça é apontada pelas Escrituras como pecado e é vista com
desprezo até pelo mundo, o perverso “se gloria da cobiça da sua alma” ou nos
“desejos da sua alma” (v.3). A ideia de gloriar-se está expressa no verbo halal
que, no grau em que se apresenta no texto, tem o sentido de “louvar, elogiar,
exaltar”. É isso que o perverso faz: ele rende a si mesmo louvor e exaltação
ao observar o “apetite da sua alma” (ta’awat naphshô). Apesar de essa
expressão poder ter um sentido positivo, como em Isaías 26.8, o próprio v.3
dá pistas de quais são os “desejos” e “apetites” do perverso ao chamá-lo de
“avarento”. Na verdade, o salmista usou um verbo para descrever a ação do
perverso (botsea‘) que aponta para “aquele que arranca para si o lucro”.
Nessa disposição, tal homem, diz o texto, “maldiz o Senhor”. Os anseios de
tal homem são, portanto, diametralmente opostos ao desejo e ao caráter de
Deus.
O fato de o perverso ser tão contrário a tudo que Deus é e ensina, não o
preocupa. Na verdade, ele sequer se detém para avaliar sua vida. O v.4 diz
que, por causa do seu orgulho, ele “não investiga” o fato de Deus não fazer
parte de todas as suas cogitações. Darash é uma “busca” que o perverso não
realiza. Afinal, que erros podem ser encontrados pelo soberbo em si mesmo?
Confiado na sua perfeição e no seu valor que excede o valor dos outros, ele
“desafia” (yaphyah) todos quantos se opõem a ele (v.5). Sua confiança de
jamais ser abalado e de não ser alvo de nenhum mal, conforme o v.6, é algo
que ele repete para si mesmo “em seu coração” (belibô). Seu mal, sua soberba
e sua confiança enganosa são algo nutrido no seu íntimo. Tais sentimentos
estão enraizados nele.
Não são apenas os atos do perverso que são maus. Aquilo que ele fala é
“cheio” de maldade. Ele pronuncia “maldição” (’alah) por meio da sua boca.
Sua língua é suficiente para causar destruição e sofrimento. O v.7 nos diz que
naquilo que o injusto profere há “mentira” (mirmah), “engano” (tok),
“opressão” (‘amal) e “maldade” (’awen). Não há como minimizar o mal e a
violência capazes de ser exercidos pela boca do ímpio. Sua língua deve ser
mais temida que suas mãos.
Munido de tamanha maldade, o perverso olha para o desamparado e fica de
“tocaia” (v.8), e prepara-lhe uma “emboscada” (v.9). Seu objetivo, segundo o
v.8, é “exterminar os inocentes” (yaharog naqy) e, conforme o v.9, “arrastar
com sua rede” (bemoshkô berishtô). Como um predador esperando a vítima,
diz o v.10, ele “se abaixa e fica encurvado” (wadakah yashoah), preparando,
assim, um ataque mortal. Essas três expressões transmitem ideias de caça: um
animal matando uma presa para devorá-la, um pescador puxando sua rede
com o peixe desavisado e um leão se ocultando na savana para atacar de
surpresa. São três modos contundentes de avisar-nos sobre o perigo que
representam os perversos para aqueles que não são como eles.
Finalmente, o v.11 mostra que o perverso, como muitos criminosos e
corruptos no nosso país, tem a certeza da sua impunidade. Quando olha para
sua maldade e suas ações traiçoeiras, diz para si mesmo que “Deus se
esqueceu” (shakah ’el) no sentido de não se importar com o que acontece.
Para o perverso, não há um juiz superior que o possa punir pelo que faz
simplesmente porque tal juiz não atua. Por isso, ele se convence de que seu
mal Deus “não vê nunca” (bal-ra‘ah lanetzah). Tal convicção não vem
apenas da arrogância, mas também do desprezo por Deus e pela sua justiça e
santidade.
Esse é um retrato terrível de alguém com quem devemos nos preocupar. O
homem perverso é um risco para os servos do Senhor. Aquele que despreza
Deus e a sua salvação é inimigo dos que amam o Senhor Jesus, ainda que não
lhe tenham feito nada de mal. Portanto, na convivência com eles e até na
pregação do Evangelho a eles, o cristão deve manter cautela a fim de não ser
ferido, seja por meio da oposição aberta, seja por meio do desvio velado em
um contato mais íntimo com o ímpio. Muitos servos do Senhor têm sido
perseguidos pelo ódio dos ímpios, enquanto outros têm se desviado da
santidade por meio do “amor” dos incrédulos. As táticas para abater a presa
são muitas.
Com o retrato do perverso em mãos, devemos ficar atentos como os
policiais a fim de reconhecer o perigo e nos prevenir dos seus males. Afinal,
depois de a casa ser roubada, pouco sobra para a polícia fazer.

SALMO 11
O Pessimista e Aquele que Confia em Deus

Muitos personagens dos desenhos animados ficaram gravados na mente de


toda uma geração. E, acreditem, esses personagens ainda fazem parte do dia a
dia de muita gente crescida. Basta ver como as pessoas utilizam tais
personagens nas suas conversas. Por exemplo, se alguém está com o carro
quebrado, diz que só pode andar se for com os pés, como faziam os
Flintstones. Ou, se tem um palpite muito bom sobre algo, diz que teve uma
“visão além do alcance” como dizia o líder dos Thundercats. Ainda, se há
alguém muito forte, é apelidado de He-Man.
Um dos personagens de desenho animado que ainda é muito recordado, é
uma hiena chamada Hardy. Ele e seu amigo, o leão Lippy, fizeram parte da
infância de muita gente, inclusive eu. O pessimismo do Hardy faz com que,
até hoje, ele seja o modelo perfeito da pessoa pessimista. Para ele, tudo estava
mal e nada daria certo. Sua famosa frase, repetida até hoje, era: “Ó céus; ó
vida; ó azar”. Essa frase ainda pode ser ouvida nas rodas de amigos em
imitações com o sotaque característico do personagem. Toda vez que a ouço,
tenho saudades da minha infância.
Parece-me que tal pessimismo não é privilégio dos desenhos animados. O
rei Davi conviveu com pessoas que, a exemplo do Hardy, não tinham
qualquer esperança de ver o bem prevalecer sobre o mal. Pessoas que, ao
primeiro sinal do mal, manifestavam a disposição de abandonar tudo sem
recorrer a Deus como protetor e auxiliador dos que o buscam.
O Salmo 11 inicia com uma declaração da confiança de Davi em Deus:
“No Senhor me refugio” (v.1). Essa declaração não é sem propósito. É uma
afirmação que se contrapunha ao que Davi ouvia nos seus dias. Ele se dirige a
tais pessoas e diz “como dizeis à minha alma?” (’êk to’meru lenafshî). O fato
de o verbo se apresentar na segunda pessoa masculina plural mostra que Davi
se dirige a vários homens com essa pergunta, homens próximos dele. O rei
está indignado com algo que eles lhe disseram. Em outras palavras, ele brada:
“Como é que vocês podem me dizer uma coisa dessa?”.
O teor do discurso que irritou Davi foi: “Foge, como pássaro, para o teu
monte. Porque eis aí os ímpios, armam o arco, dispõem a sua flecha na corda,
para, às ocultas, dispararem contra os retos de coração. Ora, destruídos os
fundamentos, que poderá fazer o justo?” (vv.1b-3). Segundo tais palavras, os
maus eram tão poderosos quanto caçadores bem armados. Os justos, alvos
dos caçadores, deveriam, portanto, fugir como se fossem um pássaro indefeso
cuja única vantagem era a velocidade e o alcance da sua fuga. Segundo esses
conselheiros do rei, a justiça perecera e nada podia reverter o mal; nada!
Davi não concorda com isso. É certo que ele não minimizava os riscos dos
ataques e a ferocidade dos inimigos. Ele não confiava na sua habilidade, nem
no poder da sua guarda pessoal. Ele não via a situação com um otimismo sem
lógica, nem dizia que tudo terminaria bem apenas por dizer. Ele olhava para o
Senhor e nele se refugiava, conforme revelou na primeira frase do salmo. A
partir do v.4, Davi fornece, então, as razões para ter recorrido a Deus e para
nele confiar.
Em primeiro lugar, Davi localiza o Senhor “no seu templo santo” (behêkal
qadshô), e “no seu trono nos céus” (bashamayim kis‘ô). Esse é o lugar,
figuradamente falando, onde habita alguém que, ao mesmo tempo, é Deus e
rei acima de todos os reis. Um rei divino como autoridade e poder máximos.
De seu trono, “seus olhos vêem”, ou “prestam atenção” (‘ênayw yehezû). Não
há nada que o Senhor não conheça. Ele sabe tudo o que os homens fazem e
até o que lhes passa no coração.
O v.5 é um texto de difícil tradução e diversas versões apresentam
possibilidades plausíveis. A dúvida está em se Deus prova ou testa apenas o
justo, ou se ele o faz em relação a ambos, o justo e o ímpio. Entretanto, algo
sobre o qual não há quaisquer dúvidas é o fato de que “a sua alma [de Deus]
odeia aqueles que amam a violência” (’ohev hamas sane’â nafshô).
Certamente, são palavras bem duras para se referir a uma reação ainda mais
dura da parte do Senhor contra os perseguidores violentos dos justos. Amor e
ódio estão presentes nessa frase e um é condicionado ao outro. O ódio de
Deus não é gratuito, mas uma reação contra o amor ímpio dos homens pela
maldade. Diante disso, o Senhor realmente toma o partido dos retos e
antagoniza os maus.
O v.6 contém figuras linguagem que têm a função de aclarar, para os
leitores, a intensidade da ira de Deus que atingirá os perversos. A primeira
figura vislumbra fogo caindo dos céus sobre os inimigos dos justos. E, nesse
caso, é muito importante notar que o verbo “chover” está em um grau que,
em hebraico, leva o nome de hiphil. Nesse caso, o texto não está dizendo que
“irá chover”, mas que Deus “fará chover” (yamter): “Ele fará chover sobre os
ímpios”. É uma atuação deliberada de Deus com a finalidade de punir. Tal
castigo é descrito como uma chuva de “brasas de fogo e enxofre”. Como ler
essas palavras e não se lembrar da destruição punitiva das cidades de Sodoma
e Gomorra?
A figura de linguagem continua e é dito que um “vento violento” (ruah
zil‘afôt), algo parecido com um furacão, seria sorvido pelos injustos como “a
porção da taça deles” (menat kôsam). É irônico que o prazer dos perversos,
como o de degustar um vinho, seja justamente a causa de receberem o
contrário do prazer que buscam. Em lugar do paladar da bebida, o que
alcançam estes é uma tormenta que os despedaça.
Para encerrar, Davi revela os motivos, não só para a sua confiança, mas
para a atuação da parte de Deus ao punir o mau e proteger o reto. Ele diz que
“o Senhor é justo” (tsadîq yehwâ). Seu caráter é justo; sua natureza é justa;
sua existência é justa. Não é possível que ele mude ou que afrouxe seus justos
padrões. A justiça é parte do que ele é. Além disso, ele também “ama a
justiça” (tsedaqôt ’ahev). Deus se compraz naquilo que é justo. Esse é o
motivo, tanto de ele se opor aos injustos, quanto o fato descrito no final do
salmo, que indica que “os retos verão a sua face”. Assim, ele punirá os
perversos e receberá os retos para si mesmo.
Agora entendemos a indignação de Davi diante dos conselhos para que
fugisse dos maus e da afirmação de que a injustiça teria prevalecido. Davi
não era um otimista inconsequente, mas um conhecedor de Deus e da sua
justiça. Ele sabia que podia recorrer a Deus e que ninguém há que possa se
comparar em força a ele. Davi tinha convicção de que o Senhor é refúgio dos
crentes em qualquer situação e de que o final de todas as histórias dos servos
do Senhor é vitoriosa na presença daquele que os protege.
Hoje em dia, com tantos receios sobre o futuro dos crentes e da igreja
cristã, é nisso que você crê? Você confia no Senhor acima de todas as
circunstâncias? Se a resposta for não, “ó céus; ó vida; ó azar”.

SALMO 12
O Perigo Por Trás da Língua Bajuladora

Certa vez, ouvi uma espécie de piada que frisava diferenças entre homens e
mulheres. Segundo a piada, as mulheres se cumprimentam dizendo “nossa,
você está linda, magrinha”; mas quando vão embora, dizem: “Como ela está
gorda!”. Por sua vez, os homens se encontram e dizem: “Fala, seu gordo,
careca”; ao partirem, o homem comenta: “Esse cara é gente fina”.
Piadas à parte, algo que realmente acontece é pessoas usarem palavras que
não refletem o que pensam. E, pior: palavras que depois são contraditas por
declarações pejorativas e destrutivas. Em resumo, trata-se de pessoas que pela
frente dizem uma coisa e, por trás, outra.
Olhando para esse problema, Davi, no Salmo 12.1, pede “libertação”
(yasha‘) ao Senhor, pois, segundo ele, “acabaram-se os leais” (gamar hasîd),
ou seja, os homens que agem com lealdade e veracidade. Junto com tais
pessoas, também “desapareceram os confiáveis” (cassû ’emûnîm). A situação
descrita por Davi é a de um covil de mentirosos. Mas, note bem: não se trata
de inimigos abertos. Pela frente, tais homens são agradáveis, pois moldam
sua imagem com o cinzel da mentira. Dizem coisas que seus corações não
sentem e que são agradáveis aos ouvidos. Entretanto, pelas costas, destilam
um veneno destruidor.
O v.2 expande essa idéia ao dizer que tais pessoas falavam “falsidades uns
com os outros”. A mentira era uma atividade tão difundida e comum naquele
meio que aqueles que mentiam eram também alvo da mentira de outros. Uns
querendo levar vantagem sobre os outros fingindo ser o que não eram de
verdade. Ao observá-los, Davi percebeu duas táticas desses homens para
alcançar o fim que almejavam. O primeiro era usar “lábios bajuladores” (sefat
halaqôt) que lisonjeiam os ouvintes com a intenção de manipular suas
reações. A segunda era esconder os verdadeiros sentimentos e planos atrás de
um “coração fingido” (lev yedabberû).
Apesar da falsidade, os desleais não temiam ser desmascarados e punidos.
Além de a soberba (v.3) ser o combustível de suas línguas, o v.4 relata que,
mesmo diante de Deus, sua arrogância era sentida, visto julgarem não haver
ninguém que os pudesse deter ou reprovar. De forma desafiadora, Davi os vê
agir como quem diz “quem é senhor para nós?” (mî ’adôn lanû), ou seja,
“quem é que pode nos dizer o que fazer, ou nos punir se não o fizermos?”.
Não é de surpreender que Davi tenha pedido a Deus para libertá-lo de
homens assim. Na verdade, eles são mais perigosos que os homens perversos
e violentos, pois desses nos afastamos, enquanto, dos bajuladores falsos e
desleais, acabamos mantendo o contato e pondo neles a confiança.
Mas Davi, ao mesmo tempo que observa a deslealdade dos homens, vê
também a repulsa de Deus sobre essa atividade e a punição consequente,
dizendo que “o Senhor corta” (yakret yehwah) todos os lábios bajuladores.
Diante da opressão causada por esses egoístas lisonjeiros e mentirosos (Rm
16.18), o Senhor diz que intercede pelos que anseiam por libertação dos tais
(v.5).
Assim, a confiança do rei está em Deus. Mesmo que os ímpios estejam por
toda parte (v.8), o Senhor, que não é como eles e cujas palavras são “puras”
(tehorôt) como a prata purificada várias vezes (v.6), é aquele que “guarda”
(shamar) e “cuida” (natsar) dos que nele esperam.
Confesso que nessa época de eleições e de políticos agindo como esses
homens descritos por Davi, talvez presentes até na sua corte, senti-me
confortado e confiante em Deus, que vê e controla todas as coisas. Lembrei-
me que, por mais que tais homens e mulheres desejem a ascensão, mesmo
que isso signifique nossa ruína, o Senhor, ao mesmo tempo, olha com dureza
para a arrogância e a maldade dos desleais e se levanta para socorrer os que
não têm como se defender dos seus ardis.
Por fim, lembrei-me, também, da responsabilidade de não agir como
aqueles que tememos e cujas ações nós reprovamos, seja no campo da
política, da economia, do direito e até naquelas conversas informais quando
encontramos conhecidos pela rua. Com todos, tenhamos apenas “uma cara” e
“um discurso” Que o nosso “sim” sempre queira dizer “sim” e o nosso “não”
queira, realmente, sempre dizer “não” (Mt 5.37)! Assim, no falar e no agir,
sejamos nós mesmos “gente fina”.

SALMO 13
Quando o Socorro Parece Atrasar

Sou um grande fã de filmes. Meus preferidos são filmes de aventura e ação


– de preferência se forem baseados em fatos reais. Alguns filmes marcam
pela emoção que causam nas pessoas e, em mim, mais ainda. Um dos
momentos mais emocionantes dos filmes é quando o mocinho está para ser
pego e, em cima da hora, surge alguém ou algo que o livra quando tudo
parecia perdido. Alguns exemplos nesse sentido que me veem à mente são a
cena em que Blondie (Clint Eastwood) atira na corda da forca do seu
comparsa dependurado pelo pescoço, em O bom, o mau e o feio, e a cena da
primeira luta travada em Gladiador, quando Maximus (Russell Crowe),
general do império, quase sucumbe diante do inimigo até que um cavaleiro
romano, que passa rapidamente pela cena, desfere um golpe mortal no
adversário.
Resumindo, em quase todos os filmes de ação o herói se safa no último
momento. Essa é “quase” uma certeza matemática para os cinéfilos.
Entretanto, na vida real, não é tão certo que os heróis sejam salvos em cima
da hora. Muitas vezes, eles são pegos, maltratados e até mortos. Quando um
perigo da vida real acerca alguém, não sabemos se todos serão “felizes para
sempre” ao final de tudo. Frequentemente, os homens esperam o livramento,
mesmo que no último momento, e ele não vem.
É nessa circunstância que encontramos o rei Davi ao escrever o Salmo 13.
Na verdade, esse salmo é uma oração a Deus em um momento de angústia.
Talvez, mais do que isso. Esse salmo é um modelo de reação dos servos de
Deus em momentos de angústia, quando o socorro perece demorar a vir. É
um movimento crescente das emoções e reações que levam o servo de Deus
do “vale da sombra da morte” – expressão usada por Davi no Salmo 23 – até
a “sombra do Onipotente” – expressão utilizada pelo escritor do Salmo 91.
Nessa jornada, Davi passa por três fases. A primeira delas é a angústia,
sentimento perceptível nos dois primeiros versículos do Salmo 13. Nesse
trecho, Davi pergunta quatro vezes “até quando?” (‘ad-’anâ), ou “por quanto
tempo?”, dirigindo-se ao Senhor. Trata-se de uma pergunta feita por alguém
que parece ter chagado ao seu limite. Ele aguentou o quanto podia e quer
saber quanto mais terá de suportar sem ter forças para tanto. Tais palavras
refletem o desespero de quem não sabe se conseguirá se manter em pé diante
da aflição. Ele olha para Deus e pergunta: “Por quanto mais tempo o Senhor
me deixará nessa situação?”.
Davi pergunta até quando o Senhor “se esquecerá” dele e “ocultará seu
rosto” (v.1). O contexto demonstra que Davi, ao se referir desse modo, não
crê, de fato, que o Senhor o tenha abandonado, mas que ele está retardando
sua atuação. É como se tivesse se esquecido de Davi e como se, desprezando-
o, tivesse lhe virado o rosto como que zangado. O interesse de Davi não é
saber por que o Senhor não o ama mais, mas até quando retardará sua
libertação. Davi expõe diante de Deus, no v.2, a consequência dessa aparente
demora perguntando até quando ele lutará contra o que ele chama de
“lamento diário no meu coração” (yagôn bilvavî yômam). Termina
perguntando por quanto tempo seus inimigos “se levantarão” (yarûm ’oyevî
‘alay) ou “serão exaltados” sobre ele. Perguntas que, mais que o desejo de
encontrar respostas, servem para expor sentimentos de angústia pela situação
difícil.
Muita gente se perde nessa fase. O desespero vence e as pessoas caem em
profunda depressão ou tomam atitudes mais destrutivas que benéficas, tanto
para elas como para os outros. Mas Davi, nosso exemplo de servo que passa
por problemas que não se resolvem, exibe mais uma atitude exemplar: a
oração. Davi apresenta ao Senhor, nos vv.3,4, três pedidos. Os dois primeiros
são: “olhe, por favor, e responda a mim” (havvîtah ‘anenî), desejando ser
alvo da atenção especial do Senhor e ter sua oração atendida. Davi não pensa
que Deus não o vê, mas deseja que o Senhor se compadeça dele na situação
em que está e, diante da sua oração, atue agora, não com silêncio, mas com
ação. Ele também pede “traga luz sobre mim, por favor” (há’îrâ ‘ênay).
Trata-se de um pedido de solução para as trevas em que se encontra; um
clamor pela atuação de Deus livrando-o daquilo que o oprime que, no caso,
para que ele não seja morto pelos inimigos e para que eles não sejam
vitoriosos (vv.3b,4). “Olhe”, “responda” e “traga luz” são os pedidos que
revelam um servo que leva a Deus seus problemas por meio da oração
sabendo que somente ele pode responder os pedidos dos fiéis e dar fim à sua
angústia.
Finalmente, a última fase da jornada de Davi é o descanso em Deus
(vv.5,6). Três verbos expõem as ações de Davi, mesmo diante da
circunstância desfavorável e persistente, no sentido de entregar
completamente não apenas o problema, mas também suas reações aos
cuidados do Senhor soberano e amoroso. Davi diz: “Eu, porém, confio na tua
lealdade” (wa’anî behasdeka batahtî). Na verdade, é preciso uma explicação
maior que a palavra “lealdade” para descrever o objeto da confiança de Davi.
Ele confiava que as palavras de Deus eram verdadeiras e que ele cumpriria o
que prometeu, não importasse quão complicadas fossem as circunstâncias,
não apenas porque vinham de uma boca que só diz a verdade e de mãos
honradas que não quebram um compromisso assumido, mas também de um
coração amoroso, benigno e compassivo. Davi continua dizendo “meu
coração se alegra na tua salvação” (yagel luvvî bîshû‘ateka). O objeto da
alegria e da exultação de Davi, a “salvação” (yeshû‘â), é a ação libertadora
identificada pelo próprio nome do “salvador” Jesus. Como resultado de tal
exultação, Davi diz a si mesmo “cante eu ao Senhor” (’ashîrâ layhwâ), ou
anuncia: “Dirigirei ao Senhor o meu canto”. O motivo do louvor a Deus é
surpreendente. No meio da situação difícil em que se encontrava, Davi vê o
Senhor agindo no sentido de lhe tratar bem.
Resumindo, a jornada de Davi o leva do desespero à oração e da oração ao
descanso. O que parece impossível em um primeiro momento é
exemplificado diante de todos os servos de Deus como modelo de esperança
e de dependência do Deus altíssimo. A oração, a confiança, a observação e a
lembrança daquilo que Deus fez e faz na vida dos seus servos é um remédio
contra a depressão mais poderoso do que queiram quaisquer indústrias
farmacêuticas. Não se trata de autoajuda, mas da busca daquele que é
soberano sobre o universo e amoroso para com os seus. O “eu, porém” de
Davi, no início do v.5, demonstra o conhecimento pessoal do rei sobre o
quanto os acontecimentos são fracos e reversíveis nas mãos daquele cuja
vontade nunca pode ser frustrada (Jó 42.2; Ef 1.11).
O cinema quase sempre mostra o mocinho se dando bem no último
momento. Mas em um conceito estreito de “se dar bem”. Para tanto, ou ele
“se dá bem” vendo a situação desesperadora ser revertida no último
momento, ou “se dando mal” e isso reverter para o bem alheio, o que, no
cinema, ainda faz um final feliz. Contudo, a vida do servo de Deus prevê um
“bem” que vai além de todas as situações. Independente do final, o crente
deve sempre manter seus olhos naquele que faz todas as coisas contribuírem
para o benefício dos seus (Rm 8.28), mesmo quando os propósitos de Deus
para eles são misteriosos.
Portanto, acima de tudo, a “certeza matemática” dos que creram em Cristo
é: “Minha história, agora ou no futuro, terá o maior dos finais felizes”. A
esperança da vida presente dos cristãos é: “Nós, sim, seremos felizes para
sempre”!

SALMO 14
O Verdadeiro Órgão de Defesa do Consumidor

Ultimamente, ando decepcionado com as lojas e com as prestadoras de


serviço. Tive péssimas experiências de ser bem atendido na hora de adquirir
algo e, depois, na hora de receber o produto ou de ter suporte técnico e
manutenção, ser extremamente negligenciado.
Dentre todas essas más experiências que acumulei, as piores foram aquelas
cujo contato se dá por telefone. O motivo disso é que as empresas, ao que me
parece, deliberadamente criam um sistema em que a burocracia vence os
esforços dos clientes e burla o senso de justiça. Resumindo, elas fazem o que
querem e você nunca tem com quem reclamar, já que os atendentes não
passam de funcionários cuja função é apenas falar com as pessoas, registrar
seus pedidos e – coitados deles – testemunhar a fúria de clientes explorados e
enganados pelas empresas.
Desse modo, as ricas corporações ficam cada vez mais ricas, enquanto os
pobres, principalmente os que têm menos recursos a que possam recorrer,
ficam cada vez mais pobres. O desgosto do consumidor é tão grande que é
comum ouvir: “Todos esses homens são desonestos e não há um deles que
não seja ladrão”. É muito provável que a realidade não seja exatamente essa e
que haja corporações que respeitem os direitos das pessoas, mas, ainda assim,
concordamos, muitas vezes, com frases desse tipo.
Davi viveu uma situação parecida com a nossa. Mas o objeto do seu
protesto não foram empresas de telefonia ou de cartões de crédito. O Salmo
14 é um protesto contra os “malfeitores” (v.4), os quais ele chama
literalmente de “causadores de lamentos” (po‘alê ’awen). Trata-se de pessoas
cujas ações trazem sofrimento àqueles que, por vezes, não têm como se
defender: os “justos” (v.5) e os “pobres” (v.6). Os pobres vivem, quase
sempre, à margem dos meios de justiça sem ter acesso a ele ou sem alcançar a
empatia dos agentes da promoção da lei e da ordem. Os justos, por sua vez,
são privados, por sua própria justiça, de terem reações vingativas ou
condignas do desrespeito com que foram tratados. Sabendo disso, os
malfeitores abusam deles ainda mais.
Davi diz, no v.1, que esses homens insensatos falam para si mesmos: “Não
há Deus” (’ên ’elohîm). Apesar de a afirmação se parecer com a proposta dos
ateus, não é provável que no mundo politeísta do passado houvesse muitos
que acreditassem em um vácuo divino. Na verdade, o que passava no coração
daqueles homens maus e injustos é que não havia um vingador das injustiças
que eles cometiam. Para eles, não havia um juiz maior que todos que os
pudesse deter ou punir. Por isso, diz o texto, eles “se perverteram” (hishhîtû)
e “procederam de modo abominavelmente cruel” (hit‘îvû ‘alîlâ).
O v.2 contempla o Senhor fazendo uma sondagem nesses homens para ver
se há, dentre tais homens, “aquele que busca a Deus” (doresh ’et-’elohîm). A
resposta, duas vezes pronunciada (vv.1,3), é “não há quem faça o bem” (’ên
‘oseh-tôv). O v.3 reforça o quadro ruim demonstrando que, apesar da busca
apurada, o resultado dela é que “não há nem sequer um” (’ên gam-’ehad) que
aja bem ou busque a Deus. Apesar de Paulo aplicar esse texto à realidade de
“toda” a raça humana em relação ao pecado (Rm 3.10-12), parece que o
universo de “todos” aqueles que não fazem o bem compreende, no Salmo 14,
apenas os “malfeitores”, que são contrastados, nesse salmo, com os “justos” e
com os “pobres”. Trata-se de “todos” os que, conforme o v.3, “juntos se
desviaram e se corromperam” (sar yahdan ne’elahû).
Por fim, a maldade e a falta de temor de tais homens são tão grandes que,
além de não buscarem a Deus (v.2), também “não clamam a Deus” (yehwâ lo’
qara’û) por nada. São homens completamente desligados de Deus, confiantes
em seus próprios recursos e confiantes de que não há quem os possa deter ou
repreender. Por essa causa, eles se aproveitam dos indefesos de modo que
Deus se refere a eles como “aqueles que devoram o meu povo como quem
devora pão” (’okelê ‘ammî ’okelê lehem). Não há limites para os anseios
desses malfeitores. Nenhum obstáculo os faz parar nem sua consciência os
acusa de nada. Prejudicam as pessoas e conseguem, mesmo assim, dormir
tranquilos.
Entretanto, esse abuso não é bem visto por Deus. Nem o Senhor se omite
diante de tantas perversidades. Davi diz que, apesar de os malfeitores
“ridicularizarem os alertas dos pobres” (‘atsat-‘anî tavîshû) sobre as
consequências de agirem daquele modo, o Senhor atua em dois sentidos. O
primeiro é agir como “refúgio” dos seus (v.6). Em segundo, agir como
vingador no mal, causando “grande pavor” nos malfeitores (v.5). Por fim,
Davi, que no momento vê os injustos prevalecerem, olha com esperanças
para as promessas de Deus desejando que elas se cumpram logo e que o
Senhor, em breve, venha a “restaurar o seu povo” (v.7), trazendo-lhe
exultação e alegria.
Não sei mais quantas vezes serei tratado injustamente pelas empresas que
são mais ricas e mais fortes do que eu. Mas sei que elas não podem conter a
atuação de Deus, nem impedir que ele faça justiça aos seus, seja confortando-
os no sofrimento, seja livrando-os das suas armadilhas. Por isso, olho para o
futuro cheio de esperanças e fazendo coro com o rei Davi: “Tomara de Sião
viesse já a salvação”.

SALMO 15
Quem Luta por Mim?

Sempre gostei de história e ainda gosto. Quando tenho algum tempo livre
ou quando preciso desligar minha mente da rotina e das dificuldades do
cotidiano, gosto de ler sobre história. Recentemente, dediquei-me a conhecer
um pouco de uma época triste da história brasileira: a ditadura militar.
Quando digo triste, não penso unilateralmente. Refiro-me, por um lado, a
assaltos, assassinatos e atitudes terroristas em nome de uma liberdade negada
pelos próprios atos dos seus reclamantes e, por outro lado, os maus tratos e
morte de centenas de pessoas em nome da ordem nacional até que a tortura,
meio de extrair informações, passasse a uma finalidade sádica sem qualquer
outra razão.
No meio dessa luta entre resistência e repressão, muitas foram as pessoas
que tiveram de sair do País sem poder voltar até que ocorresse a famosa
anistia, muito comentada ainda hoje. É dessa época a frase “Brasil, ame-o ou
deixe-o”. Em resumo, a presença em território nacional não era realmente um
direito de todos, mas daqueles que se enquadrassem nos interesses da
liderança ditatorial do País. Assim, se alguém fosse um questionador do
governo e das leis autoritárias, um líder de alguma entidade pró liberdade
política e de expressão, um artista engajado na resistência ao governo ou até
um intelectual contestador, esse era um franco candidato a perder o direito de
habitar no seu país natal, o Brasil.
Davi também teve experiências de exílio, tanto no último terço do reinado
de Saul como nos dias do golpe de Estado de Absalão. O Salmo 15 parece ter
sido escrito exatamente durante um exílio. Não um exílio qualquer, mas sim
da cidade de Jerusalém – o que coloca o golpe de Estado de Absalão como a
época de escolha para a composição do salmo. O motivo para tal suposição é
a pergunta que Davi faz: “Senhor, quem residirá com o teu tabernáculo?
Quem habitará no teu santo monte?” (yehwâ mî-yagûr be’ahaleka mî-yishkon
behar qadsheka).
Apesar de eu já ter ouvido várias vezes se tratar a expressão de uma
“habitação celestial”, é muito provável que Davi fizesse referência a algo
bem mais específico e próprio da sua experiência: a habitação em Jerusalém.
Nessa cidade, conquistada e tornada sede do reino pelo próprio rei Davi (2Sm
5), estava o “tabernáculo” que ele erigiu para trazer a arca da aliança de seu
exílio desde os dias do sumo sacerdote Eli (1Sm 4) e estava, também, o
monte Sião, frequentemente denominado “monte santo” (Sl 2.6; 48.2; Jl 2.1;
3.17; Ob 17; Zc 8.3). O problema de Davi, no Salmo 15, parece ser: quem
tem direito a habitar em Jerusalém, no monte santo de Deus e próximo ao
tabernáculo do Senhor? As duas respostas naturais envolvem o próprio Davi
e seus servos leais em contraposição a usurpadores dos seus direitos,
possivelmente Absalão e os conspiradores que o acompanhavam.
De modo muito interessante, Davi não perde tempo defendendo seu direito
real, mas oferece o caráter de Deus como fator de separação entre os homens
bons e os maus e como causa da habitação daqueles a quem ele escolhe
segundo sua vontade santa, a qual defende os que lhe pertencem. O que o
salmista afirma é que, nessa disputa por Jerusalém e pelos fatores ligados a
essa habitação, Deus faria vencer aquele cujo caráter se adequasse ao
daqueles que o servem e o buscam. Desse modo, Davi oferece cinco
características do verdadeiro servo do Senhor, todas elas ligadas ao seu
caráter.
Assim, aquele que é beneficiário do Senhor é “o que anda honradamente”
(hôlek tamîm). Uma outra designação para o próprio termo que traz um
sentido mais amplo do que Davi quer transmitir é “aquele que anda
irrepreensivelmente”. Isso faz com que ele “aja com justiça” e “fale a verdade
em seu coração”. É uma pessoa de bem que não deixa que a malícia o
conduza.
Ele também “não difama com sua língua” (lo’-ragal ‘al-leshonô) no
sentido de não ser como aquelas pessoas que, por meio de fofocas, mentiras e
afirmações dúbias, mancham a reputação de outras pessoas. É como alguém
dizer: “Tal pessoa me preocupa muito” e, interrogado pelos ouvintes sobre o
motivo da preocupação, responder: “Não pergunte, pois não quero dizer nada
que falte com a ética”, como se ética fosse levantar nuvens injustificadas
sobre a reputação de alguém.
A terceira característica do beneficiário de Deus é dupla: Ele “despreza
com seus olhos o réprobo e honra os que temem ao Senhor” (nivzeh
be‘ênayw nim’as we’et-yir’ê yehwâ yekavved). Ele não bajula os que agem
mal, mesmo que outros interesses estejam em jogo. O relacionamento das
pessoas com Deus é o que define o seu relacionamento com elas. Enquanto
ele se afasta dos iníquos, suas palavras a respeito dos justos são de aprovação
e apoio. Em resumo, ele está do lado dos que seguem a Deus e não dos
pecadores, bajuladores e hipócritas.
Tal homem também “jura para o seu próximo e não muda” (nishba‘
l hara‘ welo’ yamir). Sua palavra é confiável e não depende das
e

circunstâncias. Em uma expressão moderna, tal homem não “dança conforme


a música”. Ele empenha sua palavra e, ainda que leve prejuízo, ele a cumpre.
Seus amigos têm nele um ponto de apoio com a certeza de que sabem quais
serão suas atitudes mesmo quando a situação for difícil. Ele tem crédito
quando diz algo.
Finalmente, esse homem “não empresta seu dinheiro com ganância, nem
recebe suborno contra o inocente” (kaspô lo’-natan beneshek weshohad ‘al-
naqî lo’ laqah). O dinheiro para ele não é tudo e não é capaz de fazê-lo agir
de forma questionável como explorar uma pessoa que passa por dificuldades.
Nem tampouco tomar partido de alguém, não porque esteja certo, mas porque
tem dinheiro e pode beneficiá-lo. Na verdade, esse homem não tem atitudes
diferentes para com ricos e pobres.
Segundo Davi, esse homem honrado, não maldizente, a favor dos bons,
confiável e não ganancioso, “nunca será abalado” (lo’ yimmôt le‘ôlam). É
claro que essas características não são o motivo da graça divina, mas
resultado da ação de Deus sobre os seus. O fato é que Davi vê nos
beneficiários de Deus, seus servos, pessoas que têm características
compatíveis com seu Senhor. Esses, diante das perseguições e das injustiças,
têm a certeza de contarem com o Senhor e terem-no ao seu lado para os
defender.
Portanto, a descrição do servo de Deus é útil para cada um avaliar sua
própria condição espiritual e perceber se é ou não um beneficiário do Senhor.
E, claro, saber que o único modo de sê-lo é pela fé no Senhor Jesus Cristo (Jo
1.12; 3.16; At 4.12). Aos que já lhe pertencem, contudo, cabe-lhes agora
amoldarem-se ao seu caráter sabendo que o Senhor lhes é favorável e sempre
o será por toda a eternidade, onde terão, de fato, uma habitação celestial com
aquele que os salvou e permanece hoje ao seu lado.

SALMO 16
A Rica Herança dos Servos de Deus

Meu casamento aconteceu em 1997, quando eu morava na cidade de Grão


Mogol, no sertão mineiro. Eu e minha esposa resolvemos fazer a cerimônia
na igreja em Atibaia (SP), pois a maior parte dos nossos parentes morava ali,
sendo mais fácil deslocar os que moravam fora. Contudo, devido ao tempo e
aos procedimentos que envolvem o casamento no cartório, a união legal teve
de ser providenciada em Minas Gerais. Cumpri todos os requisitos exigidos e
me dirigi ao cartório, com os familiares e amigos, a fim de realizar a tão feliz
cerimônia. Estava tudo perfeito até o escrivão ler, no documento oficial, que
estávamos nos casando em “regime parcial de bens”.
Em relação a bens, eu não tinha nada a ser partilhado e de modo algum
pretendia que isso fosse algum dia necessário. Entretanto, eu não queria a
expressão “união parcial” escrita em lugar nenhum que dissesse respeito a
mim e à minha esposa. Pedi para mudar, mas já não era mais possível. Eu
tinha de ter pedido isso no início do processo, mas como foi a única vez em
que me casei, não tinha a menor ideia da necessidade de fazê-lo. Como o
escrivão não me preveniu sobre isso a tempo, explicou, meio sem graça, que,
antigamente, todos os casamentos eram com união total de bens, a não ser
quando os noivos especificavam que desejavam outro tipo de união.
Entretanto, pelo alto número de casamentos por interesse na herança da
família do cônjuge, alguns deles até mesmo terminando em morte, a lei foi
alterada e o formato padrão dos casamentos agora era a união parcial. Não
deixei isso entristecer um dia tão alegre, mas não pude deixar de ficar
perplexo ao pensar na ganância de muitas pessoas sobre a herança do marido
ou da esposa.
O rei Davi também desejou uma herança, mas desejou-a de modo muito
diferente. Na verdade, a própria herança era de natureza diferente e Davi
escreveu sobre ela no Salmo 16. Mais uma vez ele escreveu um salmo
quando era perseguido por inimigos. Entretanto, a diferença entre esse salmo
e os outros é que, em lugar de o autor falar da sua confiança na libertação
divina, ele olha para o que Deus representa para ele fazendo nublar ao redor
os seus problemas.
Depois de declarar que Deus é seu refúgio e que o destino dos ímpios é
terrível (vv.1-4), Davi declara o que Deus significa para ele (v.5): “Minha
porção da herança” (menat-helqî). Como no v.2 o salmista diz “minha riqueza
não está além de ti” (tôbatî bal-‘aleika), parece que a figura central que
molda seu pensamento enquanto escreve é o aspecto do Senhor como “a
verdadeira riqueza dos seus servos”. Ele diz mais, no v.5, descrevendo Deus
como “o meu cálice e aquele que me faz próspero” (wekôsî ’attâ tômîk
gôralî).
Depois de falar sobre tanta riqueza, era de se esperar que o salmista
apresentasse, agora, uma lista de bens como palácios, peças de ouro e prata,
propriedades e povos que o servem e que lhe são tributários – tudo isso dado
por Deus. Mas não é isso o que acontece. O salmista fala, sim, sobre riquezas,
mas sob um prisma diferente que revela a escala de valores que ele tem. Ele
aponta quatro riquezas que vêm do Senhor a ele.
A primeira é o ensino reto (v.7). Davi diz, nesse sentido, duas verdades.
Uma, referindo-se à atuação de Deus, é “o Senhor que me aconselhou”
(yehwâ ’asher ye‘atsanî). A segunda, completando a primeira cláusula, trata
do modo como Deus transmitiu tal conselho a Davi: “Pois meu íntimo me
instruíu durante as noites” (’af-leylôt yisserûnî kilyôtay). É muito provável
que Davi se refira, por meio desse versículo, à direção de Deus no seu
coração lhe revelando os pecados que o atormentavam durante as noites, em
sua cama. O resultado final dessa atuação divina foi o arrependimento do rei
de Israel e sua mudança de atitude. Em resumo, quando Davi pecou, o Senhor
lhe ensinou o que fazer.
A segunda é a presença constante (v.8). O salmista diz: “Tenho o Senhor
diante de mim continuamente” (shiûîtî yehwâ lenegdî tamîd). Isso representa
tanto a presença contínua de Deus com seu servo como a comunhão do servo
para com o Senhor. É um relacionamento bilateral que, contudo, é dirigido
pela graça de Deus. Este, apesar da indignidade do servo, não o abandona
jamais. O resultado de um relacionamento como esse é descrito nos seguintes
termos: “Pois estando [o Senhor] à minha direita não fracassarei” (kî mîmînî
bal-’emmôt).
A terceira é a proteção pessoal (vv.9,10). Davi exulta em seu coração,
pois, apesar dos frequentes ataques e tramas vindas de seus inimigos, sua
certeza é: “Meu corpo repousará em segurança” (besarî yiskon labetah). É a
confiança de que, pela proteção de Deus, seus inimigos não conseguiriam
matá-lo. O v.10, segundo Pedro e Paulo, faz referência à ressurreição de Jesus
(At 2.25-31; 13.35,36). Contudo, apesar de Davi tê-la profetizado, a aplicação
desse texto ao seu contexto imediato corrobora a confiança na proteção
divina demonstrada do v.9, dizendo: “Pois tu não deixarás minha alma ir para
a sepultura, nem permitirás que teu servo veja o túmulo” (kî lo’-ta‘azov
nafshî lish’ôl lo’-titten hasideka lir’ôt shahat).
A última é o rumo sábio (v.11). Finalmente, o salmista diz: “Tu me
indicarás o caminho da vida” (tôdî‘enî ’orah hayyîm). Deus age aqui como
um mapa, dando a conhecer ao que está perdido o caminho correto que o leva
seguro e “vivo” ao seu destino. Ao mesmo tempo, para tanto, afasta-o do
caminho oposto, o caminho da morte. Entretanto, não podemos reduzir Deus
a um aparelho de localização por satélite. Sua atuação não é apenas marcar
um caminho no mapa, mas guiar e conduzir o perdido, seu servo, por meio
dele.
Mesmo depois de mais de dez anos de casado, não tenho grandes posses ou
uma herança considerável. Entretanto, como Davi, também sou enriquecido
pelas atuações de Deus que garantem minha segurança e eterna felicidade.
Assim como para o salmista, o Senhor também é minha porção da herança.
Nada tenho de maior valor que meu Salvador. Talvez seja por isso que me
identifiquei tanto com o v.6. Ele diz – e eu também – “linda herança é a
minha” (nahalat shafrâ ‘alay).

SALMO 17
A Busca de uma Justiça Superior

Um episódio marcante na história americana foi o julgamento, no século


19, envolvendo os “passageiros” do navio L’Amistad (“A amizade”, em
espanhol). Eram escravos provenientes da África cujo destino era serem
vendidos em Cuba. Liderados em um motim por Cinque, 53 escravos
mataram quase toda a tripulação e obrigaram dois sobreviventes a levá-los de
volta à África. Desconhecedores de princípios de navegação, não perceberam
que foram, na verdade, conduzidos à costa dos Estados Unidos, onde, em
agosto de 1839, a guarda costeira os deteve. Foram levados a um tribunal,
acusados de homicídio, enquanto os sobreviventes da tripulação, a coroa
espanhola e oficiais americanos reclamavam a posse dos escravos a fim de
vendê-los. As coisas se complicaram ainda mais à medida que as eleições
presidenciais se aproximavam e ameaçavam afetar o resultado do julgamento
com motivações políticas.
Diante de tantos fatores externos e tantos interesses espúrios, o julgamento
dos 53 passageiros do L’Amistad tinha tudo para contrariar todos os conceitos
de “justiça”. Nesse momento, o ex-presidente John Quincy Adams,
recorrendo à Suprema Corte dos Estados Unidos, lutou para que a justiça
garantisse a liberdade e a recolocação daqueles homens ao seu país. O
resultado final, já no ano de 1841, foi a confirmação da decisão do primeiro
julgamento no sentido de libertá-los e entregá-los ao presidente para que os
conduzisse de volta à África, declarando os 53 negros livres e dispensando-os
imediatamente da custódia da corte. Certamente, essa decisão deu novos
rumos à aplicação da justiça e à história norte-americana. É também uma
decisão inspiradora, pois, a despeito de todos os interesses políticos e
financeiros, a justiça realmente prevaleceu.
O rei Davi também recorreu à justiça suprema – não de uma corte, mas do
supremo juiz. O Salmo 17 é um clamor por justiça diante dos fatos
apresentados pelo salmista. Sua petição é “Senhor, ouça o que é justo! Escuta
o meu clamor! Ouça a minha oração!” (shim‘â yehwâ tsedek haqshivâ rinnatî
ha’azînâ tefillatî). É um clamor à suprema corte, ao único que pode decidir
justamente e fazer valer a decisão.
A partir de então, as provas apresentadas pelo requerente, Davi, são, em
primeiro lugar, seu procedimento justo. Não significa que ele nunca pecasse,
mas que buscava obedecer ao Senhor e andar em consonância com sua
santidade, fosse pela luta contra o pecado, fosse por meio da busca do perdão
divino. Assim, ele diz (v.1) que sua causa “não vem de lábios mentirosos”
(belo’ siftê mirmâ). Diz ao Senhor (v.3): “Não encontras maldade nos meus
intentos; a minha boca não transgride” (bal-timtsa’ zammotî bal-ya‘avar-pî).
Ele completa o quadro (v.4) afirmando: “Eu me guardei dos caminhos do
violento” (’anî shamartî ’orhôt parîts). Essa é a descrição de um servo
dedicado ao Senhor cujos procedimentos são moldados pelo bem e pela
retidão. O que fala é verdadeiro; seus propósitos mais secretos são isentos da
maldade; suas palavras são retas e produzem o bem e não atitudes traiçoeiras;
suas atitudes são pacíficas e dignas de um homem cuja ética é santa.
Em segundo lugar, as provas apresentadas pelo requerente são os pecados
dos seus inimigos que o perseguem e procuram uma oportunidade para matá-
lo (vv.8,9). Davi diz (v.10) que “eles endureceram sua boca; falaram com
arrogância” (helbamô sogrû pîmô dibberû bege’ût). Mas não é só isso. Davi
ainda afirma que “os olhos deles estão postos [sobre os inimigos] para que
caiam por terra” (‘ênêhem yashîtô lintôt ba’arets). Finalmente, para fins
ilustrativos, Davi fala deles por meio de uma comparação (v.12), dizendo que
“eles são semelhantes ao leão ávido para dilacerar a presa” (dimyonô ke’aryeh
yikkôf litrôf). Esse é, definitivamente, um quadro de homens orgulhosos,
mentirosos, perigosos, cujas ações contra aqueles que consideram inimigos
são destruidoras.
Assim, Davi, com as provas sobre a mesa, apresenta (v.13) sua solicitação
ao reto juiz: “Livra minha alma dos ímpios pela tua espada” (palletâ nafshî
merasha‘ harbeka). Essa é a causa do solicitante. Ele, mediante a
apresentação dos seus retos caminhos, condição necessária para o clamor por
justiça, e da perversidade dos seus inimigos, pede para que Deus o proteja de
tais homens maus. É a última instância da justiça, visto que, ao que parece,
ninguém mais pode ajudar Davi.
O fato é que o salmo não especifica a resposta do divino juiz. É bem
possível que o salmo tenha sido escrito enquanto a perseguição ocorria, antes
do livramento almejado pelo salmista. Os inimigos ainda perseguiam e Davi
ainda esperava pela libertação. Entretanto, enquanto espera e sofre com a
injustiça, o salmista demonstra uma atitude exemplar que deve inspirar todos
os servos do Senhor ainda hoje. Ele diz (v.15): “Ao acordar, eu me satisfarei
com o teu semblante” (’esbe‘â behaqîts temûnateka). Essa oração, um pouco
misteriosa e intrigante, revela que o salmista, mesmo que ainda não tenha
sido aliviado do seu jugo, sente-se suficientemente feliz e grato por ter
“comunhão com Deus”, como se pudesse vê-lo face a face. Davi realmente
desfrutava a presença do Deus vivo e isso lhe bastava, ainda que nutrisse a
esperança do livramento.
Essa atitude exemplar de Davi não é gratuita. Ele conhece o Senhor a quem
serve. E mais: ele ama seu Senhor e sabe muito bem que por ele é amado.
Tem a perfeita noção do que tal relacionamento significa para sua vida
presente e futura. De fato, temos de aprender com Davi e nutrir maior deleite
no relacionamento com Deus a despeito de tudo que nos cerca. Afinal, o
Senhor Deus é alguém com quem se pode ter a verdadeira e perfeita amistad.

SALMO 18
O Dia da Libertação Que Vem do Senhor

Recentemente, em uma disputa presidencial em nosso País, alguns


candidatos, desejosos de angariar votos entre os evangélicos, foram a
diversas igrejas, leram textos bíblicos, falaram sobre religião e até oraram.
Quem os via tinha a impressão de que eram servos do Senhor de longa data e
tinham, na pessoa de Deus, seu interesse primário em termos de obediência.
Entretanto, as eleições aconteceram e definiram-se o vencedor e o perdedor.
Ambos agradeceram, de público, a seus partidos, seus eleitores, seus cabos
eleitorais e até seus secretários particulares, mas não deram qualquer palavra
de agradecimento a Deus. O Senhor foi apenas um pretexto, durante breve
tempo, para se fazer campanha entre certo grupo de eleitores. Nem mesmo
quem saiu vitorioso deu uma palavra de reconhecimento àquele que institui
as autoridades (Rm 13.1) e escolhe o líder a quem quer revestir de poder (Dn
4.17,25).
Na verdade, esse tipo de ingratidão é muito comum. Quem de nós, depois
de ajudar alguém em problemas, nunca foi completamente esquecido depois
da solução dos males? Entretanto, Davi não agia desse modo e o Salmo 18 é a
prova disso. Trata-se de um salmo muito interessante devido ao seu registro,
praticamente idêntico, em 2Sm 22. Em ambas as referências, o contexto da
composição do salmo por Davi é descrito: “O dia em que o Senhor o livrou
de todos os seus inimigos e das mãos de Saul”. Diante de tão grande bênção,
sabendo quantas vezes Davi orou pedindo por libertação dos inimigos, o
salmista demonstra atitudes que realmente são necessárias ao servo de Deus
quando tem sua oração atendida.
Em primeiro lugar, Davi valoriza seu relacionamento com Deus. É
comum as pessoas se esquecerem de Deus e até abandonarem a igreja quando
seus problemas são resolvidos. Isso não aconteceu com Davi porque seu
relacionamento não era fundamentado nos seus interesses, mas no seu amor.
Ele inicia o salmo dizendo (v.1): “Senhor, eu te amo, ó minha fortaleza”
(’erhomka yehwâ hizqî). Dito isso, Davi usa, novamente, o sufixo hebraico de
pronome possessivo “meu” por sete vezes no v.2 em referência a Deus. Entre
elas, chama o Senhor de “meu Deus” (‘elî). Ele diz “meu” porque tem um
relacionamento pessoal com ele; e diz “meu Deus” porque tal relacionamento
se baseava, por um lado, na soberania de Deus e, por outro, no seu amor
pelos servos.
Davi também se lembra dos feitos de Deus a seu favor. Essa lembrança,
obviamente, envolve também seu sofrimento passado, incluindo o risco de
ser morto (vv.4,5). Ele recorda sua angústia que o levou, em prantos, à busca
de Deus por meio da oração (v.6). Então, em uma virada no tom da sua pena,
o salmista contempla a recordação do Senhor atendendo seu pedido, o que ele
assim descreve: “Do seu templo o Senhor ouviu a minha voz e o meu grito a
ele por socorro chegou aos seus ouvidos” (yishma‘ mehêcalô qôlî weshaw‘atî
lepanayw tabô’ be’oznayw). A partir de então (vv.7-19), ele se lembra do que
Deus fez em termos figurados que dão um tom vivo à incrível e poderosa
libertação do servo e vitória de Deus sobre seus inimigos. Nada escapa da sua
memória.
Ele, ainda, reconhece sua condição de fraqueza. No v.17, ao declarar a
ação divina na sua libertação, o salmista relata que foi salvo de alguém que
nomeia de “meu inimigo forte” (’oyebî ‘az). Obviamente, ao citar esse
inimigo na forma singular seguido do complemento no plural “e dos que me
aborreciam”, Davi tem em mente, como “inimigo forte”, o rei Saul que o
perseguiu com toda ira e com seu poderio militar durante muito tempo.
Apesar de ser comum os homens se sentirem “poderosos” quando se veem
livres de um mal, Davi não age assim. Ele reconhece sua fraqueza ao explicar
que seus inimigos “eram mais fortes do que eu” (’omtsû mimmennî). Esse
vislumbre impede que ele se sinta como quem deu fim ao problema,
esquecendo-se de glorificar o verdadeiro responsável pelo bem – Deus.
Davi, mesmo diante do alívio, permanece cumprindo a vontade do
Senhor. Diferente de pessoas que se aproximam de Deus quando têm
problemas e se afastam quando são socorridas, Davi continua na mesma
atitude de submissão a Deus e às Escrituras. Podemos perceber tal disposição
na afirmação do v.21 em que Davi apresenta seu procedimento reto: “Eu
guardei as palavras do Senhor e não reneguei o meu Deus” (shamartî darkê
yehwâ welo’-rasha‘tî me’elohay). O modo de Davi se expressar não é
pesaroso como se olhasse para uma realidade que se foi, mas com a confiança
de que tal afirmação ainda pode ser notada no seu procedimento. Ele
permanece obedecendo a Deus e agindo com retidão e santidade.
Depois de narrar vividamente como o Senhor o abençoou pela sua justa
instrução e como o fez vencedor dos inimigos (vv.25-45), Davi louva ao
Senhor pela sua grandeza. Ele exulta (v.46) e diz: “Exaltado é o Deus da
minha salvação” (yarûm ’elôhê yish‘î). A palavra traduzida como “exaltado”
dá a ideia de alguém “levantado ao alto”. Assim, Davi reconhece que Deus é
tremendamente superior a tudo que existe, tanto que o eleva em seu louvor
declarando sua glória. Nesse caso, a tradução “seja exaltado” cumpre o papel
de glorificar aquele que ouviu as orações de Davi e o salvou de inimigos mais
fortes e mais numerosos que ele.
Durante a exaltação ao Senhor, o salmista testemunha daquilo que lhe fez
o Senhor. Ele diz (v.49): “Portanto, eu o aclamarei, Senhor, entre as nações”
(‘al-ken ’ôdeka baggôyim yehwâ). Assim, Davi reconhece publicamente as
ações de Deus em seu favor e lhe agradece em meio ao louvor. Esse grato
testemunho produz salmos, como este, cantados diante de ouvintes a quem o
salmista dá testemunho da grandeza de Deus. Tal desejo é afirmado na
oração: “Faça eu cânticos ao teu Nome!” (leshimka ’azammerâ).
Essas são as atitudes de Davi no dia em que foi liberto por Deus dos seus
inimigos. Entretanto, elas são consequências de uma vida transformada pela
fé, pelo relacionamento íntimo com o Senhor e pelo tratamento da Palavra de
Deus sobre o salmista. Ele é grato a Deus porque também é amigo de Deus,
servo de Deus e beneficiário da graça de Deus. Quanto aos candidatos que
vimos por aí, Deus é somente pretexto para seus propósitos, assim como o é
para muita gente que “o busca” somente quando lhes interessa. E quanto a
você: quer ser um candidato interesseiro, ou quer ser um amigo daquele que
ama e age em prol dos seus servos?

SALMO 19
A Grandeza da Revelação de Deus

Certa vez, entrando em um restaurante para jantar com minha esposa e


minha filha, notei um grupo de pessoas conhecidas que também perceberam
minha entrada. Com ouvido aguçado, escutei alguém do grupo dizer a outro
que falasse mais baixo, pois eu estava próximo a eles. Qualquer que fosse o
assunto, em lugar de intimidar o rapaz, esse alerta fez com que ele se virasse
para mim – foi quando o reconheci – e dissesse em um tom alto de voz: “Não
é verdade que isso está na Bíblia, Thomas?”. Ao perguntar a que ele se
referia, a resposta foi: “... que em mulher não se bate nem com uma flor”.
Diante do patente desconhecimento das Escrituras, só pude responder que,
apesar de esse ditado popular não vir exatamente da Bíblia, eu realmente
concordava com ele. Entretanto, o que me chamou mesmo a atenção foi
perceber como as pessoas “acham” que sabem o que Deus revelou aos
homens.
Davi sabia bastante sobre a revelação de Deus. Ele foi um salmista
profícuo, o que quer dizer que passou uma boa parte do seu tempo dedicado à
composição de salmos que, na verdade, são poesias e cânticos. É o autor que
tem o maior número de composições no livro de Salmos. Entretanto, música e
poesia parecem não ser as únicas habilidades da pena de Davi. Em termos de
teologia ele abriu o caminho para grandes servos de Deus registrarem os
aspectos mais profundos da revelação bíblica. Os apóstolos escritores citaram
inúmeras vezes salmos de Davi e ensinaram à igreja dos seus dias – e dos
nossos – diversos conceitos registrados pelo rei poeta um milênio antes deles.
O apóstolo Paulo, talvez o autor cujos escritos bíblicos sejam os de maior
profundidade e importância teológica que temos, foi um dos escritores que
citaram salmos davídicos em seus escritos. Um dentre os muitos temas
abordados pelo apóstolo em suas cartas é aquele que fala sobre a própria
revelação de Deus ao homem. Nesse sentido, Paulo apresenta dois meios que
Deus utiliza para se revelar. O primeiro se dá por meio da Criação: “Porque
os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua
própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo,
sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas...” (Rm 1.20). O
segundo se dá por intermédio das Escrituras: “Toda a Escritura é inspirada
por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a
educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17). Os teólogos
denominam esse dois meios da revelação divina de “revelação geral” e
“revelação específica”, respectivamente.
Toda vez que se fala em revelação, citam-se esses dois textos escritos por
Paulo. Entretanto, pouco mais de um milênio antes de o apóstolo registrar tais
conceitos, o rei Davi fez o mesmo, sem economizar tinta, no Salmo 19. Esse
cântico é o registro tanto da grandeza da verdade revelada por Deus aos
homens como dos meios utilizados pelo Senhor para se fazer conhecido a
nós.
Assim, em termos de revelação geral, Davi afirma (v.1): “Os céus
anunciam a glória de Deus e a abóbada celeste torna conhecida a obra das
suas mãos” (hashamayim mesafferîm kevôd-’el ûma‘aseh yadayw maggîd
haraqîah). Deve-se notar o paralelismo sinônimo entre “céus” e “abóbada
celeste” e, também, entre a ação de “anunciar” e de “tornar conhecido”, pois,
seguindo esse raciocínio, percebemos que estão em paralelo, também, a
“glória de Deus” e a “obra das suas mãos”. Tal percepção é importante para
entender que o que Davi quer dizer com glória está relacionado à obra da
criação – não que esse seja o único aspecto glorioso no Senhor. Essa é uma
declaração de que tanto o ato da criação foi revestido de glória como o
próprio Criador é glorioso. É também a afirmação de que a natureza gloriosa
de Deus e da sua atuação pode ser deduzida pela observação do Universo.
Afinal, somente um Deus glorioso e perfeito pode produzir uma obra tão
perfeita e magnífica. Por isso, completa (v.4): “Sua voz foi ouvida em toda a
Terra e suas palavras, na extremidade do mundo” (bekol-há'arets yatsa’
qôlam ûbiqtseh tevel millêhem).
Quanto à revelação específica, aquela que se dá por meio das Escrituras,
tema muito abordado pelo rei salmista – tome-se como exemplo o Salmo 119
–, seu julgamento é categórico (v.7): “A lei do Senhor é perfeita” (tôrat yehwâ
temîmâ). A partir dessa afirmação, Davi apresenta quatro ações da revelação
de Deus nas Escrituras sobre os homens (vv.7,8): Ela é “quem recobra a
alma” (meshîvat nafesh), “reforça a sabedoria do ingênuo” (ne’emanâ
mahkîmat petî), produz “as alegrias do coração” (mesammehê-lev) e “traz luz
aos olhos” (me’îrat ‘ênayim). Alento, sabedoria, alegria e o caminho correto
são as bênçãos produzidas por aquilo que Deus revelou por meio dos profetas
e apóstolos.
Mas, há que se fazer uma ressalva. Davi não tem em mente nenhum tipo de
superstição como exibir em casa uma Bíblia aberta acreditando que, assim, a
casa fica protegida e abençoada. O que Davi ensina, nesse salmo, é que tais
bênçãos veem da leitura e aplicação dos ensinos de Deus pelos seus servos e
que, assim (v.11), “há muita recompensa em cumpri-los” (beshamram ‘eqev
rav). O salmista olha para essa esperança de modo aplicativo e pessoal,
afirmando o que espera para si pela obediência às Escrituras (v.14): “Serei
íntegro e limpo de muitas transgressões” (’êtam weniqqêtî miffesha‘ rav).
Guiado pela sabedoria de Deus, sua mais profunda aspiração é: “Sejam
aceitáveis diante de ti, Senhor, as palavras da minha boca e a meditação do
meu coração” (yihyû leratsôn ’imrê-pî wehegyôn livvî lepaneyka yehwâ).
Portanto, o servo de Deus só pode ser guiado pelo seu Senhor se tomar e
ler suas instruções, seu mapa para nossa vida. Em lugar de tentar adivinhar o
que a Bíblia ensina ou, pior, querer colocar sob sua autoria o que ela nem
sequer diz, cada pessoa deve lançar mão do privilégio de ter acesso à vontade
de Deus expressa nas Escrituras. O conhecimento salvador contido na
mensagem graciosa da cruz de Cristo e a perfeita ética cristã moldada pelo
próprio Senhor só são acessíveis ao homem por meio da Palavra de Deus.
Afinal, ditados e provérbios populares podem ser interessantes, corretos e até
úteis, mas jamais podem tornar os homens aceitáveis ao santo e justo Senhor.

SALMO 20
Tempo de Oração em Tempos de Crise

Duas histórias me marcaram dias atrás, ambas relacionadas com a prática


da oração. A primeira delas é sobre Martinho Lutero. Dizem os estudiosos
que Lutero foi um homem dedicado ao extremo à obra de Deus.
Incansavelmente, desde o raiar do dia, ele investia horas a fio no estudo,
tradução e comentários teológicos, produzindo um vasto material e um
grande legado. Apesar de tantas obrigações autoimpostas, Lutero passava
uma ou duas horas do dia orando. Curiosa mesmo era sua explicação para
orar tanto tempo: “Eu oro muito porque tenho muita coisa para fazer”.
A segunda história tem como pano de fundo as atividades de uma comissão
eclesiástica para a contratação de um pastor. Enquanto a comissão examinava
o candidato sobre suas posições teológicas e sua experiência administrativa,
uma senhora piedosa o interrogou a respeito de quanto tempo ele gastava em
oração. Um silêncio profundo foi sentido até que outro membro da comissão
explicou que o pastor, antes de pregar, dirigiu a igreja em oração por cerca de
quatro minutos. A gentil senhora então explicou: “Não foi isso o que eu quis
dizer. Eu quero saber quanto o senhor ora pela igreja, pelos membros e por
você mesmo em seu tempo devocional”.
Essas duas histórias chamaram minha atenção, pois falam da oração feita
em momentos em que se imagina que ela consome tempo e esforço
necessários para tarefas “mais importantes”. As duas histórias nos lembram
como esse conceito é falso e quanto a oração é necessária, inclusive – se não
“principalmente” –, nos momentos mais atarefados e difíceis da vida.
O rei Davi é um bom exemplo, no Salmo 20, de priorização da oração em
momentos difíceis. Ao que tudo indica, ele vivenciava a iminência de uma
guerra. A batalha se aproximava e todos os preparativos deviam ser feitos: o
deslocamento das tropas, a preparação das armas, a instrução dos
comandantes, a organização das provisões, o encorajamento dos soldados e
muitas outras tarefas imprescindíveis para enfrentar militarmente um inimigo.
Tudo isso leva tempo e dá muito trabalho. Na verdade, exige empenho total,
principalmente por parte do comandante – nesse caso, o rei.
É nesse momento tão atarefado que Davi encontra tempo para orar, ou
melhor, ele prioriza a oração. E não somente para ele, mas para todo o povo.
O Salmo 20 é uma composição a fim de os israelitas se dirigirem a Deus em
oração pedindo suas bênçãos sobre o exército e clamando por vitória para seu
rei. O mesmo salmo parece servir como veículo para levar o povo da terra e
os soldados a atitudes corretas diante de Deus a fim de, com a verdade em
mente, cumprir cada um seu papel em consonância com a vontade do Senhor.
Pelo menos três atitudes são incentivadas por Davi por meio do salmo que
deveria ser repetido, em espírito de oração, pelo povo.
A primeira delas é a petição. O salmo inicia com o povo orando pelo rei
(v.1): “Que o Senhor te atenda no dia perigoso. Que o nome do Deus de Jacó
te defenda” (ya‘anka yehwâ beyôm tsarâ yesaggevka shem ’elohê ya‘aqov).
Como o rei Davi lutou com o exército e o liderou no campo de batalha por
boa parte da sua vida, o povo clama a Deus que lhe dê proteção diante do
perigo de ser ferido na luta e para ser mantido seguro. A ideia é ser colocado
em um lugar alto, como um pequeno filhote, para os predadores não o
alcançarem. Apesar de haver um exército para proteger o rei, sem falar na sua
guarda pessoal, o povo clama por um auxílio que vem de outra fonte que não
soldados e generais. O pedido é (v.2): “Que envie ajuda para ti do santuário e
de Sião te sustente” (yishlah-‘ezreka miqqodesh ûmitsîyôn yis‘adeka). A fonte
da ajuda a Davi deveria vir do “santuário” e do “monte Sião”, ambos
localizados em Jerusalém. Na verdade, essa é uma figura de linguagem para
se referir àquele que era adorado no santuário e em Sião. É o Senhor Deus a
fonte da proteção do seu servo na batalha. Esse tom de petição permanece até
o final do salmo (v.9): “Preserve o rei, ó Senhor” (yehwâ hôshî‘â hammelek).
A segunda atitude é a submissão. Apesar de o desejo do povo, dos
soldados e do próprio rei ser a vitória, sua petição se submete ao plano e ao
desejo do Deus dos exércitos. Sua oração não age como se fosse um modo de
convencer Deus a cumprir a vontade dos pedintes. Ao contrário, é um ato de
confiança e de submissão àquele cuja vontade é boa (Rm 12.2) e cuja
soberania é imbatível (Dn 4.35; Ef 1.11). Assim, eles oram (v.4): “Dê-lhe
conforme o teu coração e cumpra todos os teus planos” (yitten-leka kilvaveka
wekol-‘atsatka yemalle’). Essa é uma oração corajosa. Lógica também, pois se
baseia na revelação das Escrituras de que Deus faz tudo conforme lhe apraz.
Entretanto, é corajosa por abrir mão de decidir seu rumo confiando que os
rumos do Senhor, coincidindo ou não com o dos solicitantes, são sempre os
melhores. Portanto, não é uma coragem irresponsável, mas a confiança
corajosa de quem conhece seu Senhor. Por isso, eles declaram (v.7): “Uns
confiam nos carros e outros nos cavalos, mas nós invocaremos o nome do
Senhor nosso Deus” (’elleh barekev we’elleh bassûsîm wa’anahnû beshem-
yehwâ ’elohênû nazkîr).
A terceira é a gratidão. Mesmo parecendo extemporâneo, o povo, pela
escrita de Davi, já fala de agradecimentos e louvores a Deus pela vitória.
Devemos notar que não há aqui qualquer tipo de superstição do tipo
“agradeça antes para que venha a acontecer”. O salmista conhece o modo de
Deus agir nas situações da vida. Não era a primeira vez que Davi lutaria
apoiado por Deus. Ele sabia como Deus o suportou no passado e como o
sustentava agora. Portanto, depois de exibir confiança no Senhor, ele leva
agora o povo a declarar sua gratidão a Deus e se preparar para louvá-lo na
sequência da sua atuação em prol dos servos. Consequentemente, eles
proclamam (v.5): “Celebremos nós pelo teu livramento e icemos a bandeira
pelo nome do nosso Deus” (nerannenâ bîshû‘ateka ûbeshem-’elohênû nidgol).
Só então, depois de escrever um salmo, reunir o povo e levá-los a orar a
Deus pedindo proteção e vitória para o rei e seu exército, é que os
preparativos para a guerra encontram oportunidade de acontecer. A lição
parece ter-se perpetuado, pois, Josafá – mais de um século depois, ao receber
a notícia de que três exércitos se aproximavam por um caminho inesperado e
sem defesas (2Cr 20), estando a menos de um dia de Jerusalém –, em lugar
de se desesperar e correr atrás dos preparativos para a guerra, em primeiro
lugar, se dobrou em oração perante o Senhor e levou o povo a fazer o mesmo
(2Cr 20.3,4). O resultado foi uma vitória fantástica (2Cr 20.22-25).
Que exemplos como esses nos ensinem e nos motivem a buscar Deus, não
apenas “apesar da falta de tempo”, mas, principalmente “por causa da falta de
tempo”. Afinal, qual é o preparativo ou a providência que não vêm das mãos
daquele que é soberano sobre tudo e que cuida com amor e zelo daqueles que
lhe pertencem?

SALMO 21
Ações que nos Levam a Agradecer

Li, certa vez, sobre um capelão do Exército americano chamado Clark


Vandersall Poling, ex-aluno da Yale Divinity School. Em 3 de fevereiro de
1943, em meio à Segunda Gerra Mundial, ele estava a bordo do navio
cargueiro U.S.S. Dorchester, que transportava mais de novecentos homens,
quando sofreu um ataque de torpedos. Era madrugada e eles estavam no mar
gelado cheio de icebergs. Vinte e cinco minutos foram suficientes para
afundar o navio e lançar no mar da magrugada fria os quase mil homens. A
contagem de mortos foi de 678 homens – mais de dois terços do total. Entre
eles havia quatro capelães, incluindo Clark Poling. Relatos dão conta de que
os quatro cederam a outros os seus coletes salva-vidas e foram vistos pela
última vez de mãos dadas orando pela segurança dos soldados. Tal atitude de
bravura e abnegação fez com que os quatro capelães tivessem seus nomes e
rostos estampados em selos, placas comemorativas, pinturas, vitrais e até em
um monumento em homenagem a eles.
Atitudes como as desses capelães são lembradas e recontadas muitas vezes,
muito tempo depois de acontecerem. Geram um misto de sentimentos nas
pessoas como admiração, tristeza e agradecimento. A guerra, em meio às suas
atrocidades, consegue destacar atitudes heróicas e desprendidas de homens
que, mesmo mortos, dão bons exemplos e encorajam outros a darem o melhor
de si. Por isso, nos muitos documentários que li e vi em vídeos, percebi que
algo se repete como um eco. Muitos guerreiros, de volta às suas casas,
costumam dizer duas coisas: a primeira é que “os verdadeiros heróis são
aqueles que morreram nos campos de batalha”; a segunda é que são gratos a
alguém que fez algo incrível por eles, às vezes dando a própria vida para
salvá-los.
O rei Davi também era grato por ações de outro nas batalhas, a saber, ao
próprio Deus. O Salmo 21 é um cântico de gratidão por ações ainda mais
eficazes que as dos heróis guerreiros. Davi demonstra uma alegria
contagiante ao lembrar o que Deus fez por ele. Por isso, o salmista inicia (v.1)
seu cântico dizendo: “Senhor, o rei se regozija no teu poder e quão grande é a
alegria no teu livramento!” (yehwâ be‘azzeka ismah-melek ûbîshû‘ateka mah-
yageyl me’od). O rei em questão é o próprio salmista que, curiosamente, se
refere a si mesmo na terceira pessoa (ele) por todo o salmo. Quanto à sua
exultação, ela tem motivos bem definidos. Há, nesse salmo, pelo menos cinco
ações de Deus que costumam produzir louvores nos seus servos.
A primeira delas é atender as orações. Davi diz (v.2) a Deus:
“Concedeste-lhe os desejos do seu coração” (ta’awat livvô natattâ lô). Esse
tipo de linguagem quase sempre está ligado não apenas aos desejos do servo,
mas à sua oração por eles. É o caso desse exemplo. O salmista não apenas
tem necessidades, mas pede a Deus que intervenha nelas. O pranto se torna
riso quando Deus, não alheio à condição e aflição do servo, ouve a súplica do
rei e a atende. A exultação de Davi está, portanto, no fato de o Senhor ter
respondido seu pedido. Por isso escreve: “E não negaste o pedido dos seus
lábios” (wa’areshet sefatayw bal-mana‘ta).
A segunda é agir com bondade. A palavra “pois” (kî), no início do v.3,
demonstra que o que ele vai dizer a seguir está relacionado com o que já
afirmou no verso anterior. É uma explicação que associa a resposta de Deus
com sua bondade. O texto traz: “Pois leva-lhe bênçãos de bondade” (kî-
teqaddemennû birkôt tov). É a ideia de alguém que deixa seu conforto para
“sair ao encontro” de outro a fim de, especificamente, entregar-lhe coisas
boas que são fruto de um coração benigno e amoroso. Não é de espantar que
Davi, diante do Senhor dos senhores, que de ninguém precisa, fique alegre a
agradecido por vê-lo agir desse modo. A visão da bondade de Deus se perfaz
no resultado da ação: “Colocas sobre a sua cabeça uma coroa de ouro
refinado” (tashit lero’shô ‘ateret paz). Esse é o vislumbre da vitória de Davi
sobre seus inimigos e o reconhecimento público da sua entronização sobre
Israel, tudo isso efetivado pelo Senhor.
A terceira ação é produzir alegria. Depois de os vv.4,5 corroborarem a
visão das benesses de Deus sobre o rei, o v.6 explica que as “bênçãos de
bondade” não foram dadas de modo transitório. Davi está extasiado diante do
Senhor “pois lhe preparaste bênçãos perpétuas” (kî-teshitehû berakôt la‘ad).
“Bênçãos sem fim” também é uma tradução possível para a expressão usada
pelo salmista. Deus não foi parcimonioso com seu servo. Resolveu abençoá-
lo e nada vai mudar tal desejo ou a aplicação da soberania divina. O resultado
de uma ação desse porte é a resposta alegre de Davi. Na verdade, as bênçãos
de Deus aqui descritas produzem, por si só, tal alegria. Portanto, Davi
completa: “Encheste-lhe de alegria com a tua presença” (tehaddehû besimhâ
’et-paneyka).
A quarta ação de Deus que gera louvores é fortalecer os servos. Sempre
que se fala de Davi, seja como rei, seja como salmista, seja como refugiado,
precisa-se apontar sua constância como servo de Deus. Ele não era uma
pessoa que agia de um modo quando tudo ia bem e de outro quando as coisas
ficavam difíceis. Sua constância estava embasada na constância e na bondade
do próprio Deus em quem esperava. Por isso, proclama o salmista (v.7): “O
rei, pois, é alguém que confia no Senhor” (kî-hammelek boteah bayhwâ). Se
isso é realidade enquanto escreve o salmo, sabe ele que também o será no
futuro, pois acrescenta: “E com a fidelidade do Altíssimo ele não falhará”
(ûbehesed ‘eleliôn bal-yimmôt).
Por fim, a quinta ação é vencer o mal. A confiança de Davi não é sem
razão. Depois de andar toda sua vida na presença de Deus, aprendeu sobre o
modo de ele agir contra aqueles que lhe são contrários. Assim, os inimigos de
Deus, que também eram inimigos do seu servo, seriam alvo da mão punitiva
do reto juiz. Na certeza de que mais uma vez tal seria a ação de Deus em seu
favor, Davi se alegra desde já dizendo (v.8): “A tua mão cairá sobre todos
quantos lhe são hostis; a tua destra atingirá aqueles que te odeiam” (timtsa’
yodkâ lekol-’oyebyeka yemîneka timtsa’ sone’eyka). Assim, tantos os “maus”
como o “mal” que produzem encontrarão um fim nas mãos punitivas do santo
Deus.
Não é pouco o que fez o Senhor por Davi para produzir nele todo o louvor
e gratidão demonstrados nesse salmo. Na verdade, nem é pouco o que o
Senhor tem feito pelos seus servos, incluindo a nós mesmos. O problema,
muitas vezes, longe de estar nas mãos do Senhor, está nos olhos dos servos
que deixam passar despercebidas atuações divinas tão grandiosas como essas.
Quando os olhos dos servos, desprovidos de confiança e esperança, voltam-se
apenas para as circunstâncias e dificuldades da vida e se afastam da bondade
do Soberano, a benesse do Senhor não é notada. Isso cria crentes lamuriosos
e descontentes.
Contudo, basta notar o que Deus tem feito e sido para seu povo. Basta ver o
modo como responde suas orações, como age com bondade para com eles, a
alegria que sua presença lhes causa quando mantêm comunhão, o modo como
os fortalece e como os livra do mal. Essa observação produzirá, certamente,
em todos nós que já entregamos a vida a Cristo e que pertencemos ao Senhor
da igreja, a mesma conclusão (v.13) com a qual Davi encerrou o Salmo 21:
“Cantemos e façamos músicas sobre a tua força” (nashîrâ ûnezammerâ
gebûrateka). Em outras palavras, “louvemos e sejamos gratos ao nosso santo
Deus”.

SALMO 22
Quando o Rei se Faz Servo

Recentemente, assisti ao filme 300, que conta a história real de uma parte
da resistência grega à invasão medo-persa na Segunda Guerra Médica (século
5 a.C.). Por mais que o filme contenha cenas exageradas, a história é real. Em
meados do ano 480 a.C., Leônidas I, rei de Esparta, liderou cerca de 7 mil
soldados gregos, dos quais apenas trezentos eram espartanos, contra o
inumerável exército de Xerxes I, também conhecido como Artaxerxes no
livro de Esdras – apesar de alguns estudiosos o identificarem com o Assuero
do livro de Ester. Não obstante o sucesso em repelir os ataques iniciais dos
persas, a descoberta de um caminho que possibilitou ao exército de Xerxes
cercar os gregos fez restar, na resistência final, apenas o rei Leônidas, seus
trezentos soldados espartanos e alguns tebanos e tespienses que se recusaram
a se retirar. O morticínio, obviamente, foi completo.
Mesmo com a derrota, essa história é um marco inspirador na história
grega e – por que não? – na história da humanidade. O compromisso
daqueles homens com seu país e sua obediência às leis foram tão
impressionantes que fizeram jus aos dizeres do poeta Simônides de Ceos
grafados em um monumento em homenagem aos trezentos: “Estrangeiro, vá
contar aos espartanos que jazemos aqui em obediência às suas normas”.
Entretanto, o que mais me impressiona é o fato de um rei, sem quaisquer
chances reais de vitória, ter lutado e se sacrificado como um soldado comum.
Não é sempre que vemos reis à frente dos seus soldados. Não é sempre que
vemos reis servindo seu povo até o último suspiro de vida.
Felizmente, esse não é o único exemplo de um rei que se fez servo e deu a
vida para defender seu povo. O Salmo 22 prenunciou atitudes reais de outro
rei que se fez servo. Não me refiro a Davi, autor do salmo. É certo que ele
escreveu a respeito da sua realidade no salmo em questão. Assim como em
outros cânticos que compôs, ele apresenta a Deus sua situação de desespero
(vv.1,2), sua confiança no Senhor (vv.3-5), a consciência da sua condição
humana limitada (vv.6-8), sua dependência de Deus (vv.9-11), sua queixa
contra a perseguição dos inimigos (vv.12-18), o clamor a Deus por livramento
(vv.19-21) e a exaltação do Libertador (vv.22-31). Contudo, o Espírito Santo
de Deus, autor último das Escrituras (2Tm 3.16; 2Pe 1.21), parece ter
revelado, por meio de Davi, no seu salmo de clamor por socorro, realidades
da vida e da obra de outro rei. O Novo Testamento mostra que tal rei, o
Messias, mais ainda que o rei de Esparta, agiria como um servo para seu
povo.
O salmo inicia com o primeiro traço da obra do Messias contido no texto
que é o fato de que ele foi alvo do juízo divino em lugar dos pecadores. O
v.1 diz: “Meu Deus, meu Deus, por que tu me abandonaste?” (’elî ’elî lamâ
‘azavtanî). Essas palavras foram ditas na cruz por Jesus, o Messias, por volta
das três horas da tarde, ou seja, poucos minutos antes de morrer (Mt 27.46;
Mc 15.34). A Bíblia explica que sua morte não foi um acidente de percurso
ou um efeito colateral de um plano maltraçado. Jesus deliberadamente deu
sua vida (Jo 10.18). O motivo foi salvar aqueles que creem em seu nome (Jo
3.16; 1Jo 3.16). Para isso, teve de trocar de lugar com aqueles que ia salvar
assumindo sua condenação (1Pe 3.18 cf. Gl 3.13,14). Ele serviu seus amados
dando a vida por eles e se tornando o objeto do juízo de Deus sobre os
pecados dos eleitos. O v.16 completa: “Como faz um leão, perfuraram
minhas mãos e meus pés” (ka’arî yaday weraglay). Diante de uma frase como
essa, não é possível esquecer do que disse Isaías: “Mas ele foi traspassado
pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades” (Is 53.5).
O segundo traço da obra servil do Messias é que ele foi um homem de
condição humilde e destituída de glória. O v.6 pinta um quadro nada
glamoroso ao dizer: “Vergonha da humanidade e desprezado do povo”
(herpat ’adam ûbezûy ‘am). O profeta Isaías, ao falar do Messias, a quem
costuma chamar de “servo de Deus”, escreve, em um dos capítulos mais
conhecidos do seu livro: “Não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo,
mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais
rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e,
como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não
fizemos caso” (Is 53.2,3). Ao contrário do que todos poderiam esperar, Jesus
não exibiu externamente em seu corpo a glória da sua divindade. Foi um
trabalhador braçal – um carpinteiro – até o início do seu ministério. As
pessoas o olhavam e viam apenas uma pessoa simples, sem nada a ser
honrado ou admirado.
Em terceiro lugar, ele foi zombado e tratado com desprezo. O v.7 traz
uma cena que entristece nosso coração ao lembrar o que Jesus passou
enquanto, pregado à cruz, aguardava a morte. O salmista escreveu: “Todos
aqueles que me veem caçoam de mim” (kol-ro‘ay yali‘gû lî). É o retrato de
uma turba zombando e se mostrando ao desprezado. O texto continua: “Eles
meneiam a cabeça” (yanî‘û ro’sh). Trata-se não apenas de uma atitude
irreverente e desrespeitosa, mas de uma demonstração maldosa de desprezo
com a intenção de causar sofrimento e vergonha. O v.8 completa o quadro:
“Recorra ao Senhor! Ele o livrará! Ele o salvará, pois se compraz nele!” (gol
’el-yehwâ yepalletehû yattsîlehû kî hapets bô). Longe de serem palavras de
encorajamento, trata-se de pura zombaria contra alguém aparentemente
indefeso. O que foi dito nos vv.7,8 se cumpriu literalmente, em meio a
gargalhadas, durante a permanência de Jesus na cruz (Mt 27.39,43).
Em quarto lugar, Jesus foi perseguido na sua infância. Herodes, rei de
Israel, ao saber do nascimento de Jesus, ordenou a morte de todas as crianças
com menos de dois anos que viviam na cidade de Belém (Mt 2.1-12,16-18).
Jesus teria sido vítima de tamanha crueldade se Deus, por meio de um anjo
que apareceu a José, não tivesse tirado Jesus de Belém a tempo, enviando-o
para a terra do Egito (Mt 2.13-15), o que o fez sofrer, ainda infante, o exílio
da sua terra natal. Tal acontecimento se deixa prever nas palavras do salmista
(v.9): “Conduziu-me em segurança no colo da minha mãe” (mavtîhî ‘al-shedê
’immî).
O quinto traço da obra de Jesus é que ele foi espoliado e seus bens foram
repartidos. No v.18, escreve o salmista: “Eles repartem as minhas vestes
entre si e jogam pela a minha túnica” (yehalleqû begaday lahem we‘al-lebûshî
yaffîlû gôral), mais uma peculiaridade cumprida perfeitamente na
crucificação por meio dos soldados romanos que, tomando as roupas de Jesus
– os condenados eram crucificados nus –, fizeram exatamente o que o Salmo
22, escrito mais de mil anos antes, descreveu (Jo 19.23,24).
Jesus, Deus eterno (Jo 1.1), sabia que cada um desses fatores era necessário
para o cumprimento do propósito de salvar seu povo, sua igreja. E assim o
fez, com a atitude real de um servo – ou, com a atitude servil de um rei. Um
rei que assumiu uma carga que não exigiu de seus súditos. Um rei que, apesar
da glória, morreu para salvar e proteger seu povo de quem, mesmo ultrajado
na cruz, não se envergonhou. Um rei que, em lugar de ser servido, serviu aos
que ama.
Diante de tão grande desprendimento do rei Jesus, cabe agora à igreja,
beneficiada por sua morte, manter viva a proclamação da mensagem do rei
eterno, salvador dos que nele creem e confiam. Cabe também a ela manter o
testemunho de vida compatível com a grandeza e a santidade do seu
soberano, sem nunca se envergonhar dele ou do seu evangelho. E se o
mundo, com sua falsa sabedoria e tola arrogância, quiser tirar da igreja suas
convicções e responsabilidades, os súditos daquele que os salvou devem se
unir e, com a coragem e a ousadia dadas pelo Espírito Santo, devem bradar o
mesmo que está escrito sob uma estátua de Leônidas I, na Grécia, que é o
registro em pedra do que respondeu ele à ordem persa de entregar suas armas:
“Venham tomá-las!”.
SALMO 23
O Pastor e Suas Ovelhas

Lembro-me, em meio a risos, de certa vez que fui a uma pizzaria de uma
cidade pequena. Olhei o cardápio enquanto a atendente me observava.
Decidi, finalmente, e pedi uma pizza portuguesa. A atendente me respondeu
que seria impossível atender ao meu pedido porque eles não tinham ovo.
Então, pedi sem ovo. Mas, segundo ela, também não tinham presunto. Corri,
novamente, os olhos pelo cardápio e escolhi uma pizza de calabresa, a qual, a
ouvi dizer, estava em falta. Sem olhar o cardápio, daí para frente, fui pedindo
outros sabores: pedi frango com Catupiry – não tinha frango –, champignon –
também não – e muzarela – só tinham queijo prato.
Numa iniciativa pra lá de prática, perguntei, então, que tipo de pizza eles
poderiam fazer, disposto a pedir qualquer uma cujo pedido pudesse ser
atendido. A surpreendente resposta foi: “Nenhuma! Hoje não temos massa”.
Fiquei olhando para a moça, calado, sem saber como reagir a essa
informação. As perguntas que corriam por minha mente eram, em primeiro
lugar, “por que ela não me disse isso logo no início, em vez de me deixar
pedir sabor após sabor?”; e: “Como pode uma pizzaria que está aberta não ter
nenhum ingrediente para fazer pizzas?”. Bem, não comi pizza naquela noite,
mas ganhei uma história curiosa para contar.
Em contraposição a essa incabível falta de ingredientes, o rei Davi falou
sobre uma fonte onde nada falta. O Salmo 23 é uma declaração da confiança
irrestrita do salmista no Deus eterno a quem nada pode limitar. Trata-se de
um Senhor que nunca age com infidelidade ou indiferença para com os que
lhe pertencem.
Se o salmo inteiro não é conhecido de todos, o trecho “o Senhor é meu
pastor e nada me faltará” é um dos versículos mais conhecidos do Antigo
Testamento e de toda a Bíblia. Mesmo muito conhecido, o salmo nem sempre
é corretamente compreendido. Para tanto, é preciso entender o seu contexto,
ou seja, o momento pelo qual Davi estava passando. Se o início do salmo é
um tipo de metáfora na qual Deus é descrito como um pastor e o salmista
como uma ovelha, o v.5 deixa escapar um pedacinho da realidade do escritor:
“Tu preparas uma mesa diante da minha face à vista dos meus inimigos;
unges com perfume a minha cabeça; minha taça está cheia” (ta‘arok lefanay
shulhan neged tsoreray disshanta basshemen ro’shî kôsî rewayâ). Dois fatores
nos são acessíveis diante desses dizeres. Em primeiro lugar, Davi sofria com
a perseguição dos inimigos e com os riscos advindos dela. Depois, ele
confiava plenamente no fato de que o Senhor o livraria dos inimigos e
tornaria pública sua atuação favorável ao servo. Deus, a seu tempo, também o
honraria como rei diante do povo com todos os privilégios que acompanham
o cargo.
Compreendendo o contexto, é possível, então, perceber a confiança de
Davi por meio da comparação do cuidado de Deus em relação ao seu povo
com o cuidado de um pastor em relação às suas ovelhas. Nesse sentido, cinco
ações de um pastor representam as próprias bondade e proteção divinas que
Davi esperava receber, motivo pelo qual declara (v.1): “O Senhor é meu
pastor, não terei necessidades” (yehwâ ro‘î lo’ ’ehsar).
A primeira ação é alimentar as ovelhas. Falando de Deus como pastor
(v.2), diz o salmista que “ele me faz deitar em pastagens de erva verde”
(bin’ôt deshe’ yarbîtsenî). Essa é uma figura muito representativa do trato de
ovelhas. Elas se alimentando de ervas nutritivas e gostosas, fáceis de serem
arrancadas e deglutidas. Podemos até brincar dizendo que é o sonho de toda
ovelha. Representa muito bem o alimento dado por Deus aos crentes por
meio da sua Palavra (Hb 5.12-14), a qual nos fortalece para a jornada cristã e
nos dá o prazer de conhecer melhor nosso redentor e sua vontade para seu
povo.
A segunda ação é conduzir com segurança. Ainda no v.2, Davi escreve:
“Ele me leva a fontes tranquilas” (‘al-mê menûhot yenahalenî). Considerando
que algumas regiões de Israel são montanhosas, onde há rios cujas águas
correm mais rápido que as águas de rios de planície, uma das
responsabilidades do bom pastor era levar suas ovelhas aonde as águas não
fossem do tipo “corredeiras”. Essa necessidade vem do fato de as ovelhas
terem uma pelagem densa e farta que, quando molhada, aumenta o seu peso
até ao ponto em que ela não possa se sustentar na correnteza e afunde para a
morte. Assim, essa tarefa pastoril é relativa ao cuidado do Senhor com suas
ovelhas ao lhes alertar sobre o pecado e suas consequências (Tg 1.15) a fim
de que fujam daquilo que certamente lhes causará mal.
A terceira é produzir descanso. O v.3, em uma das duas possíveis
traduções, diz: “Ele devolve as forças à minha alma” (nafshî yeshôvev). Uma
segunda tradução possível, cujo sentido é também verdadeiro, é: “Ele
reconduz minha alma” – no sentido de produzir arrependimento no pecador.
Essa tradução se encaixaria na figura do pastor buscando a ovelha
desgarrada, mas, dada a sequência natural do texto, o sentido mais provável
parece recair sobre o descanso, ou o refrigério. De qualquer modo, as duas
possibilidades são verdadeiras. Deus tanto dá descanso ao filho cansado,
sobrecarregado e oprimido (Mt 11.28), como corrige o filho que se desviou
(Hb 12.5-11).
A quarta é guiar por caminhos corretos. Ainda no v.3, o salmista declara:
“Ele me guia no trilho da justiça por causa do seu nome” (yanhenî bema‘gelê-
tsedeq lema‘an shemô). Fica claro que o sentido figurado do pastor e das
ovelhas começa a perder um pouco seu enfoque para dar lugar às ações, de
fato, de Deus para com seus filhos. Os servos de Deus, como suas ovelhas,
têm, diante de si, um caminho moralmente justo e compatível com o santo
nome de Deus. Sua preocupação, diferente da das ovelhas, não é apenas ir
para onde haja comida e água, mas fazer o que é moralmente correto. E nesse
sentido, Deus, o bom pastor dos que creem, não apenas aponta o caminho da
justiça, mas guia o seu rebanho para lá (Mt 2.6).
A quinta ação é dar verdadeiro consolo. Diz o v.4, texto também muito
conhecido e citado: “Até mesmo quando eu andar no vale da escuridão, não
temerei mal algum, pois tu estás junto a mim” (gam kî-’elek begê’ tsalmawet
lo’-’îra’ ra‘ kî-’attâ ‘immadî). Essa é uma declaração muito encorajadora.
Entretanto, podemos nos perguntar o porquê de ele não ter medo. Será que a
presença de Deus o livraria de todo mal? Bem, essa esperança, por parte do
salmista, está presente no Salmo 23, mas não no v.4. Nesse caso, o motivo
dado pelo escritor para sua ausência de temor é baseada em mais algumas
figuras pastoris: “O teu bordão e o teu cajado, ambos, me consolam” (shivteka
ûmish‘anteka hemmâ yenahamunî). Deus, em lugar de livrar total e
imediatamente, trabalha com seus servos “tranqüilizando-os”, enquanto os
guia e protege. É uma ação maravilhosa e surpreendente que não se aplica na
situação, mas acima dela (Jo 14.27; 16.33). Não é de surpreender que Davi
termine o salmo dizendo: “Bondade e misericórdia me seguirão todos os dias
da minha vida” (’k tov wahesed yirdefûnî kol-yemê hayyay).
Se o Senhor era o pastor de Davi, é também o pastor de todos aqueles que
creem em Jesus. Nosso salvador disse certa vez: “Eu sou o bom pastor” (Jo
10.11). Como tal, disse que deu sua vida pelas ovelhas. É um pastor
verdadeiro que ama como ninguém as suas ovelhas. Foi esse pastor que nos
redimiu e nos libertou do pecado por sua morte. A partir de então, ele
promove todo bem, proteção e direção que precisamos. Ele não se esquece de
nada, nem fica ocupado demais para cuidar de nós. Assim, podemos repetir,
com toda certeza, a famosa frase que até criancinhas sabem de cor: “O
Senhor é meu pastor e nada me faltará”.

SALMO 24
Quem Tem Direito de Estar com Deus?

Há muito tempo não existem bons programas humorísticos na televisão


como havia em meus tempos de criança. Hoje, os programas são apelativos e
imorais, além de deixarem o humor completamente de fora. Para sanar esse
vácuo, gosto de assistir àqueles concursos musicais em sua fase inicial.
Diferente das fases seguintes, qualquer pessoa pode participar, tendo ela
muita, pouca ou absolutamente nenhuma noção de música. Nesse aspecto, o
programa passa a ser muito engraçado devido a apresentações emblemáticas
de participantes que nunca serão cantores na vida.
O interessante é que muita gente vai lá, munida de extremo bom humor,
somente para fazer apresentações estranhas e rir depois com os amigos. É
aquela história dos “quinze minutos de fama”. Contudo, o que me deixa
espantado são as reações de alguns candidatos que, após apresentações
“horríveis”, ficam surpresos ao serem rejeitados pelos jurados. Alguns
reclamam, choram, dizem não saber o motivo da reprovação e atacam os
jurados como se fossem pessoas injustas ou como se desconhecessem a boa
música. Nisso, o que me choca é o fato de tais candidatos realmente se
acharem no direito de serem aprovados, apesar da total ausência de senso e
de talento musical.
Infelizmente, esse não é o único campo em que falta noção aos homens.
Muita gente, longe dos palcos musicais, se acha no direito de ter acesso a
Deus sem antes ser tratada pela sua graça e pela sua Palavra. Quase todos já
ouviram pessoas defendendo seu direito ao céu por serem pessoas boas – as
obras são as bases desse tipo de defesa e não a graça de Deus. Para esses, o
fato de nunca terem matado ou roubado ninguém lhes dá livre acesso à
presença de Deus. Outros defendem o mesmo direito com base na suposta
disposição de Deus de dar um “jeitinho” para que ninguém seja rejeitado.
Alguns até dizem que “Deus é brasileiro”.
Nenhuma afirmação está mais distante da verdade. O Salmo 24, escrito por
Davi, oferece alguns parâmetros para reconhecer aqueles que terão acesso a
Deus enquanto outros serão rejeitados. Uma pergunta chave levantada pelo
salmo é (v.3): “Quem subirá ao monte do Senhor e quem permanecerá no seu
lugar santo?” (mî-ya‘aleh behar-yehwâ ûmî-yaqûm bimqôm qadshô). A
pergunta vislumbra a cidade de Jerusalém – onde está o Monte Sião –
(“monte do Senhor”) e o tabernáculo construído por Davi (“seu lugar santo”)
ao trazer de volta a arca do seu exílio, primeiro entre os filisteus e, depois, em
Quiriate-Jearim (2Sm 6 cf. 1Sm 6.21). Entretanto, é bem provável que o
salmista tivesse em mente menos a geografia que o contato do adorador com
seu Senhor. Desse modo, a pergunta não é sobre quem pode chegar a
Jerusalém, mas sobre quem pode permanecer na presença de Deus. Segundo
se depreende do salmo, aqueles que se relacionam com Deus e estarão para
sempre com ele têm pelo menos três características inegociáveis.
A primeira é que são conscientes da supremacia divina (vv.1,2). O
salmista inicia seu cântico dizendo (v.1): “Do Senhor é a terra e tudo o que
existe nela” (layhwâ ha’arets ûmelô’ah). O Senhor, como Criador do
universo, é também o proprietário da criação. Isso lhe confere um posto
singular, não apenas como Deus no sentido religioso, mas também como o
Senhor de tudo que envolve o dia a dia da criação, pois tudo é dele. Antes
que alguém pense que isso tem a ver apenas com a natureza e não com a
humanidade, Davi completa: “O mundo e seus habitantes” (tebel weyoshebê).
Assim, não há quem não esteja sob o domínio e a soberania do Senhor, de
modo que possa, Deus, dispor de tudo e de todos como bem lhe parecer (Rm
9.20,21, Ef 1.5). O verdadeiro adorador do Senhor sabe dessa supremacia
sobre tudo e se submete, não compulsoriamente, mas de coração como fazem
os servos. Ele se deixa guiar por aquele que, por direito, o possui. Trata-se de
alguém que é, em tudo, influenciado por Deus e que lhe tem como Senhor, de
fato, nos mínimos detalhes da sua vida.
A segunda é serem santificados pelo Senhor (vv.3-6). A santificação –
separação gradual e progressiva dos pecados e da mentalidade mundana – é
um fator presente na vida dos que permanecerão diante do Senhor (Hb
12.14). Apesar de a Bíblia demonstrar que as obras não podem salvar o
homem (Rm 3.20; Ef 2.9) e que a purificação do crente vem mediante a
atuação de Deus (Jo 17.17), o salmista olha para a demonstração externa da
santificação como uma evidência da efetiva preparação para levar o servo ao
seu Senhor. Diz ele (v.4), respondendo à pergunta do v.3: “O de mãos puras e
de coração limpo” (̃neqî caffayim ûbar-levav). Isso significa que a
santificação daqueles que são alvo dessa graça divina muda suas ações –
“mãos puras” – e, também, suas intenções – “coração limpo”. Além disso, o
que Deus inicia na justificação completará na glorificação (Rm 8.30), pois,
conforme declara o salmista (v.5), “esse levará consigo a bênção do Senhor e
a justiça do Deus da sua salvação” (yissa’ berakâ me’et yehwâ ûtsedaqâ
me’elohê yishô‘). Portanto, o que Deus iniciou nesta vida será também
realidade no futuro dos servos santificados pelo seu Senhor.
A terceira característica é que eles são súditos do Rei da glória (vv.7-10).
O v.7 anuncia, de um modo peculiar que transmite a ideia de um
acontecimento glorioso, a vinda de quem ele chama de “o Rei da glória”
(melek hakkavôd). Trata-se de uma menção ao Messias que vem para reinar;
aquele que, segundo o v.8, é “o Senhor valoroso e poderoso; o Senhor
poderoso de guerra” (yehwâ ‘izzûz wegibôr yehwâ gibôr milhamâ). O Deus
dos exércitos (Sl 59.5) é aquele que irá reinar, a quem Davi aguarda. O
salmista e todos aqueles que são servos desse supremo Senhor agem,
portanto, como seus súditos. Isso significa honrá-lo como governante
máximo, respeitando e reverenciando seu nome, e, também, dando a ele o
melhor de tudo. Não dá para ser súdito desse rei honrando-o apenas com o
que sobra. Ele tem prioridade na vida dos seus vassalos. O melhor do seu
tempo, da sua força, dos seus esforços e do seu amor deve ser empregado a
serviço do Rei dos reis.
Tais são as características daqueles que, respondendo à pergunta do v.3,
“subirão ao monte do Senhor e permanecerão no seu lugar santo”. A presença
de Deus não está aberta a qualquer um que queira, mas àqueles que sabem
quem Deus é – e creem nele assim como se revelou –, que são santificados
pela fé nele e que são súditos fiéis do maravilhoso Rei. Por isso, decreta o
escritor do salmo (v.6): “Este é o que o busca, aquele que procura a presença
do Deus de Jacó” (zeh dôr dôreshô mebaqshê paneyka [’elohê] ya‘aqov).
O Salmo 24 é muito bom para avaliarmos o tipo de relacionamento que
temos com Deus e, principalmente, se estamos entre aqueles que
comparecerão e permanecerão na presença de Deus com todos os benefícios
de se estar lá. Aqueles que podem responder positivamente ao
questionamento do salmista devem, cada vez mais, aprimorar as
características descritas no salmo. Contudo, aqueles de cuja resposta se tem
um “não”, devem, imediatamente, se submeter pela fé ao “Rei da glória”
pedindo perdão por seus pecados e entregando a ele suas vidas. Caso
contrário, serão como aqueles “cantores de chuveiro” que, achando que
merecem ser ídolos, reclamarão pelo resto da sua existência que foram
injustiçados por alguém que não entende de música.

SALMO 25
Pedidos a Serem Feitos ao Senhor

Conheço um rapaz com quem sair para jantar é, às vezes, divertido e,


outras vezes, enervante. Isso se deve ao modo como ele faz seus pedidos ao
garçom. Enquanto todos à mesa, depois de examinarem o cardápio, fazem
seu pedido da maneira mais simples possível, essa pessoa a que me refiro
pede, não somente pratos, mas detalhes que nenhum chef jamais imaginou.
Os outros pedem um “filé ao ponto”. Porém, o pedido do meu amigo é
mais ou menos assim: “Quero um “filé ao ponto... desde que não haja
diferença entre a quantidade de fritura entre os lados da carne... A cebola, em
vez de frita com azeite, quero-a frita na manteiga... manteiga sem sal... sirva-
a separada e não sobre a carne... A salada não deve tocar o filé e o molho
deve vir à parte... por falar em salada, quero que ela seja rasgada com as
mãos e não cortada com faca... assim está bom, gosto de uma comida
simples”.
Esse é o gosto do meu amigo, mas – “cá para nós” – são exigências
dispensáveis em um bom e gostoso pedaço de carne bem macia e temperada,
frita com a experiência de um bom cozinheiro.
Bem, longe de fazer pedidos irrelevantes, o rei Davi, no Salmo 25, pediu a
Deus bênçãos da maior importância para a vida dos seus servos. Pedidos que
devem ser repetidos por tantos quantos andam ao lado daquele que, pela
graça, os salvou.
Tais pedidos podem ser identificados, no salmo, pela forma dos verbos que
o salmista utilizou. A forma imperativa do verbo serve para aplicar uma
ordem que pode ser dirigida a uma pessoa, a um grupo e até a si mesmo.
Quando a ordem é para outra pessoa – a segunda pessoa do singular ou do
plural – chamamos tal forma, na gramática hebraica, de jussivo. Ela
representa uma ordem a outrem, ou um pedido – este é o caso do salmista
quando se dirige, desse modo, a Deus. Assim, identificando os jussivos no
salmo, identificamos, também, alguns dos importantes pedidos pelos quais o
rei Davi costumava clamar em suas orações. Há pelo menos cinco clamores
feitos pelo salmista.
O primeiro clamor é por ensino. Nos vv.4,5, o salmista é insistente, ou
enfático – utiliza quatro jussivos –, em sua oração a Deus a fim de ser
ensinado por ele: “Faz-me conhecer os teus caminhos, ó Senhor; ensina-me
os teus trajetos; instrua-me na tua verdade e me ensina” (derakeyka yehwâ
hôdî‘enî ’orehôteyka lammedenî hadrîkenî ba’amitteka welammedenî).
Quando o salmista usa os termos “caminhos” e “trajetos” é óbvio que não
tem em mente a geografia. Esses são modos de se referir aos ensinos de Deus
sobre como seus servos devem agir. O fato de estarem no plural demonstra
que se trata de várias orientações, às quais o salmista deseja atender, pelo que
também ora a Deus. Por sua vez, a ocorrência do termo “verdade” na forma
singular, contrastando com os plurais precedentes, demonstra que o salmista
almeja andar de conformidade com o caráter de Deus que é bem definido e
imutável.
O segundo clamor do salmista é por relacionamento. Os três jussivos de
Davi nos vv.6,7 apontam para a memória de Deus. Contudo, o salmista tem
plena consciência de que não há nada que o Senhor não saiba. Não é possível
lembrar Deus de algo que lhe tenha escapado ou vê-lo esquecer qualquer
coisa (Sl 139). Assim, quando Davi pede que o Senhor se lembre de algumas
coisas e não se lembre de outras, sua intenção não é a memória de Deus, mas
o modo de o Senhor se relacionar com ele diante das realidades da
misericórdia divina e do pecado do homem. Ele escreve: “Lembra-te da tua
compaixão, ó Senhor, e da tua misericórdia, pois elas existem desde a
eternidade; não te lembres dos pecados da minha juventude, nem das minhas
transgressões; conforme a tua misericórdia, lembra-te de mim por causa da
tua bondade, ó Senhor” (zekor-rahameyka yehwâ wahasadeyka kî me‘ôlam
hemmâ hatto’ôt ne‘ûray ûpesha‘ay ’al-tizkor kehasdeka zekar-lî-’attâ lema‘an
tubeka yehwâ). Davi pede que Deus, valorizando seus atributos de bondade e
compaixão e perdoando o seu pecado, venha a agir com ele de modo
favorável e paternal. O resultado final da aplicação da misericórdia do Senhor
para com o servo falho é a manutenção de um bom relacionamento com ele.
O terceiro é por consolo. Nesse ponto (vv.16,17), Davi apresenta suas
aflições a Deus e pede que o alivie delas. Contudo, ao fazer suas solicitações,
parece que Davi tem menos em mente os problemas em si que o modo como
elas o estão afetando. Por isso, ainda que deseje ver o fim das oposições e
perseguições, seu pedido a Deus é ser consolado da tristeza, solidão e
desânimo. O efeito de tais sofrimentos é descrito no início do v.17: “Eles
alargaram a aflição do meu coração” (tsarôt levavî hirhîvû). Assim, a primeira
cláusula desse pedido de Davi é (v.16): “Volta-te para mim e me tenha
piedade, pois eu estou solitário e aflito” (peheh-’elay wehonnenî kî-yahîd
we‘anî ’anî). Davi expressa o que vem sentindo devido às circunstâncias.
Sente-se sozinho, lutando contra todos sem ter com quem contar. Mas, ele
olha para Deus, em oração, com a esperança de não se achar desprovido de
tal apoio. Por isso, completa seu pedido (v.17b): “Retira-me das minhas
angústias” (mimmetsûqôtay hôtsî’enî).
O quarto é por perdão. De modo muito interessante, mas nada incomum,
os sofrimentos de Davi o levam a refletir sobre seus atos. É possível que
perguntasse a si mesmo durante as noites: “Será isso tudo uma disciplina de
Deus para me corrigir? Que tenho feito de errado para que Deus me alerte
com tais tribulações?”. Tal dedução vem da conexão que Davi faz, no v.18,
entre o sofrimento e seu próprio pecado. Davi não diz a Deus algo do tipo
“veja o meu pecado e perdoa-o”. Ele diz: “veja o meu sofrimento e o meu
cansaço e leva todos os meus pecados” (re’eh ‘onyî wa‘amalî wesa’ lecol-
hatto’wtay). Ao dizer “leva meus pecados”, a ideia do salmista é ser
perdoado deles, além de ser liberto de seu domínio. Ele pede um auxílio
amplo de Deus no tocante às suas faltas. Seus pecados realmente o
preocupam. Nenhuma turbulência serve de motivo para Davi descuidar da
sua vida espiritual ou para dar desculpas do tipo: “não estou com cabeça para
pensar em pecados ou para me arrepender... você não vê como estou
sofrendo?”.
O último clamor de Davi nesse salmo é por socorro. Ele inicia seu pedido,
assim como o anterior, dizendo “veja” (re’eh). Entretanto, seu desejo é que os
olhos de Deus repousem, dessa vez, sobre seus inimigos e sobre o mal que
lhe têm feito. Ele escreve (v.19): “Veja os meus inimigos, pois são numerosos
e me odeiam com um ódio cruel” (re’eh-’ôyevay kî-rabû wesin’at hamas
sene’ûnî). Eis o motivo da aflição de Davi: inimigos que, sem limites, o
perseguem e querem sua destruição. Assim, depois de o salmista abrir seu
coração a Deus dizendo-lhe o que o aflige, faz-lhe o pedido natural diante de
uma situação como essa (v.20): “Guarda a minha alma e me proteja”
(shomrâ nafshî wehattsîlenî). A expressão “minha alma”, nesse texto, tem a
intenção de apontar para todo o salmista. Ele não quer apenas proteção
espiritual, mas livramento das mãos dos que o odeiam. Assim, como Davi
quer se ver livre dos maus, quer ver, também, Israel desfrutando as bênçãos
de Deus longe das tribulações. Para tanto, completa (v.22): “resgata Israel, ó
Deus, de todas as suas aflições” (pedeh ’elohîm ’et-yisra’el mikol tsarôtayw).
Esses são os pedidos fundamentais que faziam parte das orações de Davi:
ensino, relacionamento, consolo, perdão e socorro. São clamores de um
homem falho que serve a um Deus magnífico, santo e soberano. Não há
ordens; não há orgulho; não há bravatas. Há apenas humildade, submissão,
dependência, confiança e desejo de andar com o Senhor. Tais motivações
também devem guiar as nossas orações, além das nossas atitudes e escolhas
durante toda a vida. Que outras preocupações deveríamos ter? Que outros
anseios? O que seria mais importante que tais coisas para a nossa vida?
Acaso, seria o modo de servir o molho da nossa salada?

SALMO 26
Como Deve o Justo Andar

Na minha adolescência, meu esporte favorito era o voleibol. Durante oito


anos me dediquei ao máximo a fim de defender minha cidade nas quadras da
região. Ainda tenho em casa algumas medalhas que, para mim, foram muito
significativas e que, por isso, guardo-as com muito carinho. Guardo também
as recordações de vitórias e derrotas que me ensinaram e me prepararam para
as lutas da vida, onde também venço e perco constantemente.
Olhando para trás, lembro-me de quão dedicado eu era e quão decidido no
meio dos jogos. Nos momentos mais complicados, eu me enchia de coragem
e de um brio de guerreiro e pedia – às vezes “ordenava” – que passassem a
bola para mim para eu decidir o ponto. Em uma dessas ocasiões, meu time
jogava uma partida amistosa de cinco sets corridos contra o campeão paulista
daquele ano. Já tínhamos perdido três sets por placares ridículos. Estávamos
“tomando uma surra”. No quarto set, quando faltava apenas um ponto para
perdermos, fui para o saque e comecei a forçá-lo até ao limite. Era arriscado,
mas eu não queria perder todos os sets da partida. O risco era grande, mas
minha confiança vinha de saber o quanto eu treinava aquele saque e como ele
me ajudou em outras ocasiões importantes. Vencemos aquele set e, ao perder
o próximo, já não me senti derrotado, mas como quem conseguiu algo
impossível.
Davi também foi confiante em algumas ocasiões muito complicadas. O
Salmo 26 não apenas demonstra a confiança do seu escritor, mas os motivos
pelo qual ele confiava que podia recorrer a Deus quando homens injustos
queriam fazer-lhe mal. Não que imaginasse que ele mesmo fosse perfeito ou
que nunca cometesse erros. Davi conhecia bem suas fraquezas (Sl 51). Mas
também conhecia seu amor pelo Senhor e seu esforço por obedecê-lo e viver
de modo agradável a Deus. Baseado no seu modo de proceder, o salmista tem
a confiança de pedir a Deus que compare sua vida com a de seus inimigos e,
assim, lhe faça justiça. Enquanto vemos por aí homens corruptos e culpados
nunca denunciarem crimes de outros para não serem, também, acusados,
Davi apresenta a Deus sua vida para ser analisada. É possível, a partir de
então, notar como deve andar um homem de procedimento justo. Por isso,
assim começa o salmo (v.1): “Faze-me justiça, Senhor, pois eu procedi
honradamente” (shoftenî yehwâ kî-’anî betummî halaktî). A confiança de Davi
na obediência que tem a Deus lhe possibilita oferecer seu “coração” e seus
“pensamentos” para ser escrutinado pelo Senhor (v.2).
Sabendo que Deus bem conhece seu interior, Davi passa a apresentar a
manifestação externa do seu íntimo, atos de um homem justo. Em primeiro
lugar, Davi afirma ser um homem munido de lealdade. A palavra hebraica
hesed tem muitas traduções que vão de misericórdia e benignidade até amor e
fidelidade. Normalmente, o contexto oferece indícios do que o escritor tinha
em mente quando utilizou a palavra. Nesse caso, Davi a associa à “verdade”
(’emet). Desse modo, uma tradução coerente do v.3 é: “Pois a tua fidelidade
está diante dos meus olhos e procedi na tua verdade” (kî-hesedka leneged
‘eynay wehithallaktî ba’amiteka). Dizer “tua fidelidade está diante dos meus
olhos” significa que Davi tem em mente o tempo todo o caráter leal de Deus
e, assim, o imita. Ele não é alguém em quem não se pode confiar. Não é uma
pessoa de duas palavras. O que ele diz é verdade. O que ele promete, também
cumpre.
Davi apresenta mais uma qualidade justa do seu procedimento: a
integridade. Segundo o que ele conta, não se deixou corromper pelas más
companhias, nem pelos seus hábitos vergonhosos (v.4): “Não me assento com
homens mentirosos, nem me acerco daqueles que agem às ocultas” (lo’-
yashavtî ‘im-metey-shawe’ we‘im-na‘alamîm lo’ ’abô’). Nenhum homem de
princípios questionáveis faz parte do grupo dos amigos de Davi. Ainda que
sejam homens divertidos e poderosos, sua amizade não é mais importante
para o rei que a comunhão que tem com Deus. Quando uma companhia
exclui a outra e o salmista tem de escolher, ele não tem dúvidas em rejeitar os
homens mundanos e permanecer na presença de Deus. E isso não se deve
apenas à lógica de que não é possível andar com Deus e com os pecadores ao
mesmo tempo. A própria integridade de Davi rejeita os hábitos e gostos dos
ímpios. Ele não tem qualquer prazer na sua presença. Seus hábitos
pecaminosos o incomodam, pelo que afirma (v.5): “Eu detesto a reunião dos
perversos e não permaneço com os ímpios” (sane’tî qehal mere‘îm we‘im-
resha‘îm lo’ ’eshev).
A próxima característica de Davi a seu favor, diante do escrutínio divino, é
a pureza. Ele usa uma figura de linguagem que quer dizer que tem “mãos
limpas” (v.6): “Eu lavo minhas mãos na inocência” (’erhats beniqqayôn
kapay). Podemos pensar em diversas aplicações para a expressão “mãos
limpas”. Entretanto, o próprio escritor descreve o motivo e o resultado dessa
realidade: “Portanto, que eu me acerque do teu altar, ó Senhor” (wa’asoveba’
’et-mitsbahaka yehwâ). O altar de Deus representa, aqui, sua própria
presença. Os sacerdotes, a fim de oficiar os sacrifícios no altar de Deus,
tinham de se purificar por meio da lavagem das mãos e pés na água que havia
em uma bacia de bronze (Ex 30.18-21). Só então podiam se aproximar do
altar. Davi se utiliza dessa figura para afirmar que também havia se
purificado, certamente não com água, mas por meio do arrependimento que
produz perdão, bem diferente daqueles orgulhosos que já se acham justos
sem terem de recorrer a Deus (Pv 30.12,13). Por meio da purificação que vem
da confissão de pecados a Deus (1Jo 1.9), Davi se sente preparado para se
acercar de Deus e do seu santo culto.
A última característica justa que confere confiança a Davi de que será
beneficiado pela justiça divina é a devoção. Solenemente, Davi proclama
(v.8): “Eu amo o Senhor, a habitação da tua casa e o local onde habita a tua
glória” (yehwâ ’ahavtî me‘ôn betêka ûmeqôm mishkan kebodeka). O amor de
Davi aponta para Deus e para o culto ao seu nome. Ele mostra que não é
possível amar a Deus sem desejar prestar-lhe todas as homenagens que
merece no local e do modo determinado pelo próprio Deus para esse fim. Se
Davi vivesse hoje, certamente não seria daqueles que dizem amar a Deus em
suas casas, longe da adoração prestada a Deus pelo seu povo, todos reunidos.
Em posse desses procedimentos justos, Davi clama pela justiça de Deus.
Ele se coloca sob sua avaliação e pede que ele o livre dos homens maus que
não procedem assim. Ele tem confiança de orar a Deus; tem confiança de
apresentar a ele a sua vida; tem confiança de pedir-lhe socorro. Por outro
lado, quem age com malícia, com desregramento, com irreverência, com
rancor e com desdém em relação a Deus e ao seu culto, vive sempre se
escondendo: tem medo de orar a Deus e não ser atendido, de pedir justiça e
ser ele mesmo disciplinado, de rogar por auxílio e ter de fazer mudanças
profundas no seu modo de viver. Qual desses dois é você? Aquele que no
jogo da vida cristã pede a bola para que possa definir o resultado ou aquele
que se esconde com medo de falhar?

SALMO 27
Escondido nos Braços do Pai

Quando minha filha era pequena, tinha um modo muito curioso de se


comportar. Nunca se arriscava. Descia pequenos degraus se apoiando nas
paredes ou em qualquer anteparo que a pudesse proteger de uma queda.
Gostava de interagir com animais, porém, à distância, sem se arriscar a tomar
uma mordida ou uma picada. Amava correr e brincar nos mais diversos
lugares, desde que não estivesse sozinha. Quando comparo tais atitudes com
os acidentes e “artes” comuns às crianças, sempre fico intrigado com a
cautela da minha filha sem que ninguém a tivesse ensinado.
Contudo, apesar de ser cuidadosa ao extremo, desde que estivesse comigo,
ela nunca teve medo de fazer coisas que dariam medo nas outras crianças.
Bastava eu dizer “confie em mim”. Essa era a senha para que ela fizesse
qualquer coisa. A impressão que eu tinha é que, no meu colo, nada a
amedrontava, não porque se sentisse poderosa, mas protegida. Não sei qual
era a visão que tinha sobre mim, ou quanto poder achava que eu tivesse, mas
a confiança que minha filha tinha no pai era ilimitada.
Davi não era criança, mas parecia compartilhar com minha filha a
confiança inabalável quando estava na presença do pai – não o carnal, mas o
Pai celestial. O Salmo 27 não foi escrito em uma situação de paz para o
salmista. Como nos salmos precedentes, Davi estava sofrendo por causa da
fúria e das tramas dos seus inimigos. Entretanto, o tom que prevalece nesse
salmo não é de clamor ou angústia, mas de confiança e ânimo, por incrível
que pareça. Todo o salmo se deixa guiar pela disposição demonstrada desde
seu início (v.1): “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem
temerei?” (yehwâ ’ôrî weyish‘î mimmî ’îra’). Segundo Davi (v.2), quando seus
inimigos o atacaram, “eles escorregaram e caíram” (hemmâ kashlû wenafalû).
Mesmo se a guerra fosse declarada e Jerusalém fosse cercada totalmente, diz
Davi (v.3): “Mesmo assim, eu sou confiante” (bezo’t ’anî bôteah).
Toda essa confiança não anula, contudo, a oração do salmista. Ele ainda
tem anseios e continua tendo petições. Mas elas são de surpreender aqueles
que, porventura, não têm uma ligação vital com seu Redentor. O maior desejo
de Davi, ao ver-se atacado por pessoas perigosas, é o de estar com Deus.
Sabendo do que tramam contra ele, conta ao Pai celestial seu anseio (v.4):
“Assentar-me todos os dias da minha vida na casa do Senhor” (shivtî bebêt-
yehwâ kol-yemê hayyay). O contexto sugere que Davi, ao dizer “casa do
Senhor”, tem em mente o tabernáculo localizado na cidade de Jerusalém.
Entretanto, os pedidos de Davi nos indicam que seu interesse maior não era o
local em si, mas a presença de Deus. Ele queria se sentir acolhido pelo
Senhor. Os motivos de se assentar diariamente na casa do Senhor são
expostos: “A fim de contemplar a beleza do Senhor e para refletir no seu
templo” (lahazôt beno‘am-yehwâ ûlebaqqer behêkalô). “Contemplar” e
“refletir” implicam a ideia da busca de um relacionamento íntimo com Deus.
O salmista quer meditar sobre quem Deus é e sentir-se em comunhão com
ele. Quer que sua felicidade venha do fato de ser amado pelo Senhor.
A preocupação primária de Davi – a contemplação do Senhor – é seguida
pelo seu anseio por um refúgio seguro. Tal fortaleza, porém, não consiste de
muralhas e de portas robustas, mas da proteção divina. Representando, ainda,
a presença de Deus pela figura do tabernáculo (v.5), Davi escreve: “Pois ele
me esconderá no tabernáculo no dia mau e me guardará no esconderijo da sua
tenda” (kî yitspenenî besukoh beyôm ra‘â yastirenî beseter ’ahalô). Davi não
almejava se esconder debaixo das cortinas da tenda, mas debaixo do cuidado
do Pai. É possível até imaginar uma criança no colo do pai escondendo seu
rosto do problema enquanto o pai o protege, consola e o “esconde” de todo
perigo.
Essa visão, exposta por Davi, é tão reconfortante que é improvável que os
beneficiários de um tratamento tão magnífico não sejam agradecidos à fonte
da sua segurança. Se pessoas salvas em incêndios ou em acidentes de carro
fazem quase sempre questão de demonstrar sua gratidão aos bombeiros que
os resgataram, imagine o desejo de Davi diante da atuação de Deus em seu
favor. De maneira quase incontida ele afirma (v.6): “Que eu ofereça, no seu
tabernáculo, sacrifícios de alegria; que eu cante e faça músicas ao Senhor”
(we’ezbehâ be’ahalô zivhê terû‘â ’ashîrâ wa’azammerâ layhwâ). “Gritos de
vitória” é um bom modo de entender o que são os “sacrifícios de alegria”
escritos por Davi com a intenção continuar utilizando a figura do tabernáculo
para representar sua busca e culto a Deus e, também, a disposição do Senhor
de ser encontrado, de proteger e de manter comunhão com o servo.
Quem não gostaria de ter o ímpeto de Davi de servir a Deus e adorá-lo com
todas as suas forças? Quem pensa assim, normalmente olha para Davi como
um “superservo” e se esquece de que ele, pecador como nós, também era
guiado por Deus para que assim agisse. Davi conta (v.8) que do seu íntimo
surgia um convite divino que lhe apontava o caminho da presença do Senhor:
“A teu respeito diz meu coração: ‘Busque a minha face’” (leka ’amar livvî
baqshô panay). O ensino do Novo Testamento sobre a atuação do Espírito
Santo como guia (Jo 16.13) parece encontrar, nesse texto, a comprovação da
ação correspondente no período véterotestamentário. Em resposta ao convite
paternal, Davi responde positivamente: “Buscarei a tua face, ó Senhor” (’et-
paneyka yehwâ ’avaqesh). Como quem vê o pai segurando as mãos frágeis do
filho, ensinando-o a andar passinho após passinho, Davi se sente dirigido por
Deus.
Os braços do Senhor, na visão do salmista, são tão seguros quanto
imutáveis. Não há em Deus apenas poder, mas também constância. Os
impulsos, mudanças e desapontamentos que fazem os homens mudarem de
atitude uns com os outros não estão presentes na natureza divina. Deus é
aquele em quem não há “variação nem sombra de mudança” (Tg 1.17). Por
isso, Davi sabe que, ainda que não seja sempre um bom filho, o Senhor nunca
o abandonará, nem nas circunstâncias mais extremas. Para expressar essa
certeza, ele sugere uma situação realmente extrema que exalta a fidelidade do
Senhor (v.10): “Se o meu pai e a minha mãe me desampararem, o Senhor,
contudo, me acolherá” (kî ’avî we’immî ‘azavûnî wayhwâ ya’aspenî).
Como não nos sentir seguros ao nos escondermos em braços paternos tão
poderosos, amáveis, constantes e fiéis? Não é sem motivo que Davi esperava
ser cuidado pelo Senhor, em quem se refugiava e se escondia do mal. Davi
imagina o contrário e não vê esperanças (v.13): “Que seria se eu não tivesse
crido que iria ver a bondade do Senhor na terra dos vivos?” (lûle’ he’emantî
lir’ôt betûv-yehwâ be’erets hayyîm). A resposta natural que nós mesmos
podemos dar é: “Não haveria esperanças”. Entretanto, a realidade é que
temos, ao nosso redor, braços que podem nos tomar como pequenos bebês e
nos dar o cuidado necessário. Assim como minha filha, nós também podemos
fazer as coisas mais improváveis para pessoas fracas e falhas. Basta
lembrarmos que nosso Pai nos estende as mãos e diz: “Confie em mim”.

SALMO 28
Um Tratamento Especial

Há alguns anos, testemunhei o início da carreira de um político que tinha


uma história de luta contra as dificuldades da vida. Em suas primeiras
semanas de mandato, flagrei-o carregando arquivos pesados em um posto de
saúde e fazendo serviço braçal nas ruas da cidade, de enxada na mão, com a
intenção de servir à população – apesar de esses trabalhos serem de
responsabilidade dos funcionários da prefeitura e não dele. O fato é que,
mesmo inexperiente na vida política, aquele homem, simples no falar e no
agir, realmente queria fazer jus ao cargo para o qual foi eleito.
Não somente as responsabilidades eram novidades para esse político, mas,
também, as prerrogativas. Ele se apresentava em todos os lugares como
detentor de um cargo eletivo a fim de ser admirado pelos outros ou tratado
com certa deferência. Certa vez, quando alertado por um motorista sobre a
possibilidade de ser multado caso fosse pego por um policial sem usar o cinto
de segurança do veículo, ele respondeu que não havia problema, pois bastava
mostrar sua carteirinha de político para que o agente da lei desistisse de
qualquer tipo de punição – o que popularmente chamamos de “carteirada”. É
claro que seu cargo não era tão alto assim, de modo que o desejo desse tipo
de tratamento diferenciado, principalmente ao infringir a lei, me pareceu até
risível.
Houve outro detentor de um cargo administrativo que pediu um tratamento
diferenciado e o obteve. Fora eleito por Deus para o cargo de rei da nação
israelita. Ele, o rei Davi, é o autor do Salmo 28, no qual clama a Deus para
ser tratado de um modo peculiar em relação a outro grupo de pessoas.
Contudo, ele não pede para receber vantagens em detrimento dos pobres e
necessitados. Ele, que possivelmente corria o risco de morrer na mão dos
inimigos (vv.1,2), clama a fim de ser tratado de forma diferente daquela que
Deus trata os perversos. Ele quer ser alvo da graça e da misericórdia do
Senhor, enquanto os ímpios são punidos com justiça. Para tanto, ele apresenta
a Deus três modos de agir dos perversos que não eram compartilhados por
ele, motivo pelo qual solicita, em humildade, um tratamento diferente.
O primeiro modo condenável de agir dos perversos é praticar o mal. Davi
escreve (v.3): “Não me arrastes com os ímpios e com aqueles que praticam a
iniquidade” (’al-timshekenî ‘im-resha‘îm we‘im-po‘alê ’awen). A palavra
hebraica para “iniquidade” (’awen) foi bem escolhida por Davi. Ela produz,
na mente do leitor, a ideia não apenas dos atos perversos em si, mas, também,
das suas consequências lastimáveis. Tais pessoas, na verdade, são
“produtoras de lamentos” nos homens, pois causam dor aos que os cercam.
Imagine que Raquel, pouco antes de morrer na sequência do parto de
Benjamim, registrou todo seu sofrimento, tanto do parto doloroso como da
iminência da morte, no nome do filho a quem chamou inicialmente de
ben-’ônî, cujo significado é “o filho do meu lamento”, utilizando a mesma
palavra hebraica (Gn 35.18). Davi pede para não receber o tratamento duro
que Deus daria a esses homens malévolos.
O segundo modo de agir dos perversos é falar falsamente. Davi se refere a
eles (v.3) como “aqueles cujas palavras são pacíficas para com seus
companheiros” (dovrê shalom ‘im-re‘êhem). Isso parece soar muito bem.
Faz-nos imaginar pessoas agradáveis e sorridentes que elogiam e parecem ser
favoráveis às pessoas ao redor. Entretanto, essa visão se torna turva e
tempestuosa quando Davi, na sequência, contrapondo a primeira impressão,
mapeia para os leitores o coração dos perversos: “Mas há maldade no coração
deles” (wera‘â bilvavam). A realidade era que, enquanto suas bocas adulavam
os ouvintes, seus corações tramavam o mal. Essa é uma atitude muito
perigosa para os alvos de tal procedimento, pois, não apenas é difícil criar
defesas contra os malvados ataques, como, às vezes, é improvável que se
descubram os tais ataques. Trata-se daquela circunstância em que, aquele que
é ferido, se senta à mesa com o agressor em plena comunhão aparente.
A terceira prática condenável dos perversos é desprezar Deus. O v.5
vislumbra o modo de Deus agir na história e na criação por meio das
expressões “os trabalhos do Senhor” (pe‘ullot yehwâ) e “a obra das suas
mãos” (ma‘aseh yadayw). Ao ouvir tais frases, recordamos da criação divina
de tudo que veio a existir a partir do nada (Gn 1.1; Hb 11.3), do modo como
Deus sustenta o universo e cuida do homem (Mt 6.28-34; Hb 1.3) e das
coisas que prometeu fazer no futuro (Is 61.11; Ap 22.6,7). Segundo o que
descreveu Davi, os perversos não se impressionam com nada disso, visto que
diz: “Pois não atinam para os trabalhos do Senhor, nem para as obras das suas
mãos” (kî lo’ yabînû ’el- pe‘ullot yehwâ we’el- ma‘aseh yadayw). A grandeza
da atuação de Deus não cria neles louvor, temor ou adoração. Eles desprezam
os atos de Deus por desprezarem o próprio Deus eterno. O “deus” de tais
homens é criado e sustentado por sua própria cobiça. Quanto ao Deus
verdadeiro e único, seus corações não têm espaço para ele por ignorarem
definitivamente sua revelação, seu caráter e seu poder.
Diante dessas três características dos homens maus e do caráter de Davi
como servo de Deus, o salmista pede um tratamento especial para o Senhor,
diferente do que receberão os ímpios. O resultado de cada tratamento é
descrito a fim de encorajar os leitores a servir a Deus em lugar de agirem mal.
Segundo o salmista, quanto aos ímpios, “ele [Deus] os demolirá e não os
reconstruirá” (yehersem welo’ yivnem). Davi descreve figuradamente,
tratando o caso como se fosse uma construção, o fato de que os ímpios
receberão uma punição permanente devido a uma decisão sem volta. Por
outro lado, a esperança de Davi – e sua oração – é que receba o tratamento
próprio daqueles que temem a Deus e esperam, pela fé, em sua bondade (v.8):
“O Senhor é a força deles” (yehwâ ‘oz-lamô). O povo de Deus não fica sem
amparo, pois ele é o seu defensor.
Infelizmente, o que acontece nos dias de Davi acontece hoje também. Há
muitos que agem conforme seus maus desejos e acreditam poder convencer
Deus do contrário. A arrogância do homem tem feito com que se ache
conhecedor de todas as respostas e dominador de todos os segredos. Para ele,
Deus faz parte de uma imaginação humana desnecessária para o século 21.
Até mesmo em muitas igrejas, o conceito de Deus se deteriorou dando lugar a
um tipo de antropocentrismo doentio. Por outro lado, a boa notícia é que,
assim como Davi temia e servia ao Senhor, há hoje, também, um grande
número de pessoas que, pela fé no salvador Jesus Cristo, foram
transformadas, perdoadas, justificadas e abençoadas com a dádiva da vida
eterna. Elas servem a Deus e anunciam o evangelho de Jesus Cristo. São
dirigidas pela Palavra de Deus e procuram santificar suas vidas à semelhança
do seu Senhor. Esses são aqueles que receberão um tratamento diferenciado
do Senhor com direito a viver por toda a eternidade ao seu lado.
Minha pergunta, diante disso, é uma: você já tem direito ao tratamento
especial que Deus dará aos seus filhos por crerem em Jesus, ou você, ao
comparecer diante do inevitável tribunal de Deus, pretende ver se pode se dar
bem por meio de uma “carteirada”?

SALMO 29
O Poder das Palavras de Deus

Um fato conhecido da humanidade é a capacidade que as pessoas têm de


criticar umas às outras. É claro que nem toda crítica é ruim. Bem ou mal
intencionadas, as críticas nos dão oportunidade de fazermos a reavaliação da
nossa vida ou das nossas tarefas, tirando-nos daquela zona de conforto da
qual, às vezes, não avançamos para um degrau superior no desenvolvimento
das nossas habilidades. Mesmo assim, é de causar surpresa o modo como
algumas pessoas reagem ao ver o que, normalmente, seria reconhecido nos
outros como qualidades e progressos.
Charles Haddon Spurgeon, grande pregador da Inglaterra no século 19,
contou, certa vez, o caso de um filósofo cínico do mundo antigo chamado
Antístenes, discípulo de Sócrates, nascido no século 5 a.C. na cidade de
Atenas. Ele, segundo o relato, ao ouvir dizer que Ismênias havia tocado flauta
muito bem em certa ocasião, respondeu: “Então, ele não é bom em mais
nada, caso contrário, não teria tocado tão bem”. O que dizer disso? Sob esse
modo cínico de ver as coisas, alguém que apresenta qualidades em
determinada área não é digno de reconhecimento pelo esforço e dedicação,
mas de reprimenda por ser inútil em outras tarefas. É claro que isso não deve
ser visto desse modo.
Ao que parece, Davi não tinha tal defeito. Ele sabia elogiar e reconhecer,
como ninguém, as qualidades que via diante de si. Principalmente, quando
elas vinham de Deus. Enquanto o cinismo é, muitas vezes, apontado até
mesmo para os céus por meio de comentários jocosos sobre os rumos da
história humana – basta haver uma enchente ou um maremoto para que os
ateus acusem Deus de não ser bom –, Davi, no Salmo 29, soube reconhecer e
glorificar o poder de Deus. Por intermédio da exaltação da “voz do Senhor”,
o salmista demonstra que Deus faz tudo que quer, de modo que ninguém
pode impedi-lo de fazer qualquer coisa que seja. Ao mesmo tempo, sabe
elogiar e reconhecer que sua poderosa voz está ligada à sua imensa bondade e
santidade para produzir atos maravilhosos e dignos dos maiores louvores.
Sob esse prisma, Davi inicia o salmo com uma convocação pública ao
louvor ao Senhor, dizendo (vv.1,2): “Prestai ao Senhor glória e firmeza;
prestai ao Senhor a glória do seu nome” (havû layhwâ kavôd wa‘oz havû
layhwâ kevôd shemô). A partir de então, ela passa a fazer comparações entre o
poder da “voz do Senhor” e o poder das forças da natureza. A intenção é
tripla, sendo a primeira reconhecer o poder de Deus, enquanto a segunda
delas é produzir adoração ao Senhor nos leitores ao vislumbrarem a
soberania divina.
Para produzir esses intentos, Davi inicia a descrição do poder de Deus (v.3)
afirmando que “a voz de Deus está sobre as águas; o Deus da glória troveja; o
Senhor está sobre águas abundantes” (qôl yehwâ ‘al-hammayim ’el-hakkavôd
hir‘îm yehwâ ‘al-mayim rabîm). Davi está criando na mente do leitor a
imagem de uma tempestade ou de uma poderosa enchente. Mas, segundo ele,
o poder destruidor das águas e o forte estrondo dos trovões são nada se
comparados à voz do Senhor. Um tsunami não passa de uma marola diante
das ordens poderosas e incontestáveis do nosso Deus.
A próxima figura aponta para algo de grande resistência. O v.5 diz que “a
voz do Senhor desarraiga os cedros” (qôl yehwâ shover ’arazîm). Apesar de o
cedro não estar atualmente entre aquelas famosas “madeiras de lei”, na época
e no local em que Davi viveu, o cedro era uma madeira nobre e muito
utilizada pela sua força e beleza. No mesmo versículo, Davi faz questão de
usar nessa comparação a melhor árvore dos seus dias, “o cedro-do-líbano”
(’arzê-hallebanôn). Trata-se de uma árvore alta e robusta com raízes fortes e
profundas que fazem dela uma árvore “bem arraigada”. Entretanto, nem
mesmo essa resistência é capaz de impedir o Senhor de, ao som das suas
ordens, arrancá-las da terra fazendo-as tombar. Na verdade, Davi afirma que,
caso a voz do Senhor assim ordene, tais árvores pulam de suas covas (v.6):
“E ele as faz pular como bezerro” (wayyarqidem kemô-‘egel).
O salmista faz uma afirmação dramática ao comparar o poder de Deus com
o poder do fogo. Ele diz (v.7): “A voz do Senhor arranca fagulhas das
labaredas de fogo” (qôl yehwâ hotsev lahavôr ’esh). Trata-se de uma tradução
difícil que, porém, cria uma imagem na mente do leitor. Apesar do poder
destruidor do fogo, Deus o ataca com poder ainda maior. O texto não indica
que isso é feito como quem apaga um incêndio com água, mas como se fosse
com mais fogo ainda. Lembra aquela técnica moderna de apagar incêndios de
poços de petróleo produzindo uma explosão de fogo ainda maior. Essa, talvez
seja uma boa figura para entender o quanto a voz do Senhor é mais poderosa
que o fogo.
Na sequência (v.8), diz que “a voz do Senhor estremece o deserto” (qôl
e
y hwâ yahîl midbar). Tanto a literatura como os filmes contêm alusões
abundantes aos perigos de um deserto como o forte calor, as tempestades de
areia e a escassez de água, três perigos mortais. Não é fácil entender que tipo
de alusão Davi faz, vistos tantos aspectos poderosos ligados a um deserto.
Entretanto, ao citar especificamente o “deserto de Cades” (midbar de
qadesh), é bem provável que Davi tivesse em mente as montanhas desérticas
da região. Ao fazê-lo, afirma que a voz de Deus é tão poderosa que sua
ordem pode, por meio de um terremoto, aplainar as montanhas da região,
tornando-as uma superfície plana.
O v.9, diferente dos outros, faz um contraste entre os efeitos produzidos
pelas palavras de Deus, mostrando que Deus dá vida e a tira quando quer: “A
voz do Senhor dá à luz o cervo e despoja os bosques” (qôl yehwâ yehôlel
’ayyalôt wayyehesof ye‘arôt). Não parece ser coincidência que os dois alvos
da voz do Senhor no v.9 ocupem o mesmo espaço. Entretanto, Deus age com
cada um conforme lhe apraz (Ef 1.11), pois tem poder para tanto.
A última comparação aponta para o meio da natureza que Deus utilizou no
evento mais destrutivo de toda a história da humanidade: o dilúvio. Dele
saíram com vida apenas oito pessoas porque foram conservadas por Deus na
arca. Ninguém, fora daquela arca, resistiu à força do dilúvio. Apesar disso,
diz Davi (v.10): “O Senhor presidiu o dilúvio e para sempre presidirá o
Senhor, o rei” (yehwâ lammabûl yashav wayyeshev yehwâ melek le‘ôlam). O
poder que demonstrou ter no passado ao enviar o dilúvio, ele ainda o tem e
sempre o terá.
Finalmente, depois de feita com exímia eloquência a descrição do poder de
Deus pelas comparações já vistas, Davi busca cumprir a terceira das suas três
intenções que é criar confiança nos servos de Deus. Todo esse poder sobre
a natureza não é um fim em si mesmo na mente do salmista. Ele está
argumentando que o poder que Deus demonstra por meio da natureza é o
mesmo poder que ele utiliza para cuidar dos seus servos, motivo pelo qual
eles não devem temer mal algum. Assim, Davi completa seu salmo dizendo
(v.11): “O Senhor dá força ao seu povo; o Senhor abençoa o seu povo com a
paz” (yehwâ ‘oz le‘amô yiten yehwâ yebarek ’et-‘amô bashalôm). Em resumo:
“Confiem seus caminhos ao Senhor, pois ele é poderoso para cuidar de cada
detalhe da vida de cada um de vocês”.
Reconhecimento, adoração e confiança foram três lições de Davi nesse
salmo não apenas para os homens dos seus dias, mas de sempre, incluindo a
nós. A lição permanece; o que pode variar é o nosso modo de olhar para as
circunstâncias da vida e para o poder de Deus. Alguns culpam Deus por tudo
dizendo que ele não é bom. Outros pensam que Deus se afastou e deixou tudo
sob o controle do homem ou de um destino cego que nem ele conhece.
Entretanto, os servos do Senhor conhecem seus atributos, cultuam-no por sua
grandeza e têm nele sua alegria e a força para andar nos dias maus. Esses
últimos sabem reconhecer cada qualidade do Senhor e vivem gratos por elas,
dando testemunho a todos do caráter divino. Eles olham para a perfeição do
Senhor sem nunca achar, como Antístenes, que ela é prova de fraquezas em
outras áreas. Em tudo eles confiam no Deus Todo-poderoso, seu Senhor.
SALMO 30
As Voltas que a Vida Dá

Um dos desastres naturais mais conhecidos da história da humanidade foi a


destruição de Pompeia, na Itália, no ano 79, devido à forte erupção do vulcão
de nome Vesúvio. O interesse por Pompeia e pela história da sua tragédia
sempre foi muito grande, principalmente depois das descobertas
arqueológicas. Parte da história de vários cidadãos da cidade foi reconstruída
a partir dos achados. Entre elas, está a de uma mulher rica. Ela, que devia ter
uma vida abastada e tranquila, cheia de respeito e pompa, viu sua sorte mudar
em questão de minutos quando quis, a todo custo, manter sua paz baseada nos
bens.
Enquanto boa parte de população decidiu fugir do alcance destruidor das
emissões do vulcão, essa mulher parece ter voltado, ou se demorado, a fim de
reunir e levar consigo suas riquezas. Antes que ela pudesse juntar tudo e
fugir, uma grande quantidade de cinzas a atingiu, tirando sua vida e
transformando-a em uma estátua que permanece, até hoje, com as mãos
recheadas de pérolas, diamantes, rubis, safiras, brincos e um broche de ouro,
riqueza que seria hoje avaliada em milhares de dólares. Essa mulher é uma
lição viva – ainda que por meio da morte – de que a paz proveniente da
prosperidade pode se esvair pelas vicissitudes da vida e trair aqueles que nela
confiam.
Quase onze séculos antes dessa tragédia, o rei Davi parece ter aprendido a
mesma lição. O Salmo 30 mostra que ele descobriu, a custo de sofrimento
pessoal, que a confiança nos bens e nas circunstâncias favoráveis pode ser
traída por mudanças bruscas e indesejadas. Por outro lado, ele também
aprendeu que o Senhor é a base da segurança e a fonte de alegria dos que o
buscam, ainda que passem por revezes. Além disso, o Senhor é aquele que,
conforme seu desejo e sabedoria, conduz a história dos homens, de modo que
seus servos devem sempre esperar dele tudo aquilo de que necessitam.
O salmo, que começa com o louvor do seu escritor a Deus, só deixa
compreender seu contexto à medida que avança para o final. O que Davi
revela sobre sua situação é que ele, que vivia tranquilo devido à posição
política e à riqueza, confiando que isso garantia seu descanso e alegria (v.6),
viu tudo ruir de uma hora para outra (v.7). Inimigos o deixaram em uma
situação tão complicada que Davi teve de recorrer a Deus (vv.2,8,10) diante
do risco de morrer nas mãos de tais homens (vv.1,3,9). Deus, então, atendeu
sua oração (vv.1-3,11), restaurou sua posição, pelo que o salmista agora o
louva (vv.4,12). Nesse contexto, Davi parece ter aprendido três lições sobre a
paz e o sofrimento na vida dos servos de Deus.
A primeira lição é que o sofrimento do servo de Deus não é uma
realidade final. É muito comum vermos as pessoas – o que inclui a nós
mesmos –, em meio a um revés, agir como se achassem que o sofrimento
jamais passará. Isso faz com que atitudes tolas e destrutivas compliquem até
o que parece não poder ficar pior. Se essa era a realidade de Davi, ele
percebeu que Deus é poderoso para mudar as piores situações e dar dias
melhores aos que lhe pertencem (v.5): “Ao anoitecer pousa o pranto, mas
pela manhã há alegria” (ba‘erev yalîn bekî welabboquer rinneh).
Davi parece associar tal pranto a uma ação disciplinar de Deus. E explica:
“Pois sua ira é momentânea; seu favor dura a vida toda” (kî rege‘ be’apô
hayyiym birtsônô). O salmista vê Deus, como disciplinador, trazer
desconforto ao servo até que mude novamente sua sorte, dando-lhe descanso.
O que Davi ensina faz eco às palavras do profeta Jeremias que, depois de
testemunhar a disciplina de Deus sobre Israel, reconhece sua graça como a
razão pela qual o Senhor retém a disciplina antes de ela dar cabo das pessoas:
“As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque
as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a sua
fidelidade” (Lm 3.22,23). A graça de Deus concede perdão e misericórdia e,
frequentemente, faz com que o sofrimento seja seguido de alívio.
A segunda lição é que a paz vinda da prosperidade é frágil e aparente.
Nesse ponto Davi é muito honesto ao confessar seu arrogante erro (v.6):
“Mas eu dizia: no meu bem-estar jamais serei abalado” (wa’anî ’amartî
beshalwî bal-’emmôt le‘ôlam). Uma das palavras hebraicas usadas por Davi
nessa frase – le‘ôlam – significa “para sempre” e é muito forte ao transmitir a
sensação de onipotência que Davi sentia quando tudo ia bem. Para ele
“nunca” haveria nada que pudesse afligi-lo, como se tivesse, ele mesmo,
poder para controlar tudo à sua volta e garantir, por seus próprios meios, o
sucesso e a felicidade.
Entretanto, tamanha arrogância foi quebrada por Deus por meio da
demonstração de quem é o soberano e quem é o alvo das mãos do soberano –
Deus e os homens, respectivamente. O salmista evidencia tal verdade ao dizer
resignado (v.7): “Tu ocultaste teu rosto e eu passei a viver em pânico”
(histarta paneyka hayiytî nivhal). Davi, que imaginava controlar seu destino
por meio do assento real e das riquezas que possuía, viu Deus simplesmente
desampará-lo e tudo que parecia seguro ruiu. Sem a mão protetora de Deus,
nenhum bem, posição, acordo ou exército pode garantir a paz de quem quer
que seja. Não é em tais coisas que o servo de Deus deve confiar. Todas elas
podem falhar e tolo é o homem que, orgulhosamente, põe nelas a sua alegria
e delas espera a paz.
A terceira lição é que a verdadeira alegria vem por meio da atuação de
Deus. A guinada na vida de Davi fez com que ele, munido de uma nova
postura, buscasse o Senhor. Como é fato que, diante de uma situação segura,
costumamos nos sentir poderosos e dominadores do nosso destino, é certo
também que, quando as circunstâncias mudam para pior, nos lembramos que
é Deus quem controla tudo e corremos para ele. Assim fez Davi (vv.8-10) e
isso em nada nos impressiona. O que surpreende, mesmo, é a disposição
constante de Deus de perdoar e restaurar.
Por isso mesmo, depois de receber a atuação benéfica de Deus, o salmista
testemunha (v.11): “Tu transformaste o meu lamento em festejos; retiraste
meu pano de saco e me vestiste de alegria” (hapakta mispedî lemahôl li
pittahta saqqî wate’azzerenî simhâ). Que transformação: o choro vira riso; as
vestes de luto viram vestes de comemoração. Somente Deus pode causar
tamanha mudança. Mas essa transformação tem um propósito. Se antes o
nome do Senhor fora deixado em segundo plano, Deus quer que, agora, ele
volte a ter primazia na vida do servo. Por isso, Davi explica o motivo do
favor de Deus nos seguintes termos (v.12): “Para que eu cante a ti e não
emudeça” (lema‘an yezammerka kavôd welo’ yiddom). Diante disso, o
resultado é: “Louvar-te-ei para sempre, ó Senhor, Deus meu” (yehwâ ’elohay
le‘ôlam ’ôdeka).
Essa lição marcante deve ter acompanhado Davi durante toda sua vida. O
mesmo deve acontecer conosco. Pode ser que tenhamos vivido experiências
do mesmo tipo ou pode ser que ouvimos histórias de pessoas que viram sua
autossuficiência desmantelada por um chacoalhão de Deus, vulcões que
abalaram suas vidas. De qualquer modo, o conhecimento, seja por
experiência própria ou de ouvir relatos como esse, deve nos fazer refletir
sobre a condição humana, a potência divina e o que realmente é valioso na
vida dos servos de Deus. Que isso nos impeça de menosprezar o nosso
Senhor como guia de nossas vidas e nos livre de parecermos estátuas mortas
com dinheiro preso aos dedos.

SALMO 31
Os Olhos Atentos de quem Ora

Uma revista científica, certa vez, citou um acontecimento interessante na


vida de Albert Einstein. De acordo com a publicação, desejoso de entender
melhor os terremotos, Einstein visitou, na Califórnia (EUA), um famoso
professor chamado Geno Gutemberg, chefe da cadeira de Sismologia de uma
universidade. Einstein fez ao professor muitas perguntas sobre a ciência dos
terremotos enquanto caminhavam pelo campus do California Institute of
Technology (Instituto de Tecnologia da Califórnia). A conversa prosseguiu
até que outro professor interrompeu os estudiosos e eles perceberam que
havia pessoas correndo para longe dos prédios por causa de um forte
terremoto. Por incrível que pareça, a conversa sobre as teorias dos terremotos
estava tão animada que os cientistas não notaram, sob seus pés, um dos
maiores terremotos que já ocorreram em Los Angeles.
Quisera eu dizer que acontecimentos como esse estão apenas nas
publicações sobre personalidades. Na verdade, eu mesmo, muitas vezes,
deixo passar despercebidas coisas importantes que deveriam ter minha
máxima atenção. Muitos de nós, de fato, com os olhos fixados em um gosto,
um afeto, uma prioridade, uma situação, uma notícia ou um sofrimento,
deixamos de notar fatos gritantes à nossa volta e acabamos por ser
penalizados pela desatenção. O que acontece no nosso dia a dia também
ocorre, por vezes, nas nossas orações. Prestamos atenção a cada dificuldade
que temos a fim de levá-las, em oração, ao Senhor. Mas, diante das respostas
divinas, deixamos de notar sua graça e nem sequer agradecemos ao
livramento que, com muito amor, nos concede.
Nesse aspecto, um bom exemplo a ser perseguido e imitado é o de Davi.
Sua atenção à graça de Deus, exposta no Salmo 31, deve nos ajudar a
valorizar as benesses de Deus e louvá-lo sempre pelo bem que nos faz. O
salmo em questão parece ser dividido em duas partes. A primeira (vv.1-18),
que faz coro com a maioria dos salmos anteriores, trata de pedidos a Deus
devido aos problemas enfrentados pelo salmista. Entre eles, Davi pede a Deus
proteção contra homens que lhe armam ciladas, contra a tristeza que lhe
invadiu o coração e contra o sentimento de ser desprezado pelos homens,
incluindo alguns dos seus próprios amigos. Entretanto, apesar de situação tão
triste e opressora, os vv.19-24 parecem demonstrar que a oração dos vv.1-18
foi atendida por Deus. O Senhor o ouviu e, agora, o salmista, que notou a
mão de Deus agindo, o agradece efusivamente. Desse modo, podemos
observar, nos vv.19-24, cinco livramentos do Senhor.
O primeiro livramento é dos opressores. O v.19 é uma virada de tom no
salmo. Enquanto na primeira parte Davi está desanimado e preocupado com
os rumos da sua vida, esse verso é uma explosão de alegria: “Quão grande é a
tua bondade que tu reservaste para os que temem a ti” (mâ rav-tôveka ’asher-
tsafanta lîre’eyka). Na sequência, o v.20 não deixa sem explicação tamanha
exultação: “Das armadilhas dos homens, tu os ocultas no esconderijo da tua
presença; de línguas briguentas, os escondes em um refúgio,” (tastîrem
beseter paneyka meruksê ’îsh titspenem besukâ merîv leshonôt). Davi insiste
na figura do “esconderijo”. É como se seus perseguidores o procurassem para
matar e Deus ocultasse Davi dos olhos deles. Se aplicarmos essa figura ao
reino animal, surge-nos a imagem de uma ave escondendo debaixo de suas
asas seus filhotinhos indefesos (ver Sl 17.8; 57.1; Mt 23.37). Essa é a
comparação do que Deus fez a Davi guardando-o dos opressores, motivo pelo
qual o salmista o louva.
O segundo livramento é do desespero. O v.21 fala da ação de Deus para
com Davi “em uma cidade sitiada” (be‘îr matsôr). Essa é uma ocorrência
difícil de reconhecer na história de Davi, pois não há relatos que apontem
nessa direção. Enquanto alguns estudiosos propõem se tratar do ataque
amalequita a Ziclague, cidade refúgio de Davi quando Saul ainda era rei,
outros sugerem a cidade de Maanaim, para onde Davi fugiu de Absalão –
lembramos que Davi não estava em Ziclague quando foi atacada (1Sm 30.1-
3) e que a batalha de Maanaim se deu no campo, sem que a cidade fosse
cercada (2Sm 17.24-26; 18.6-8). De qualquer modo, tendo experimentado
Davi um cerco ou não – talvez, ele apenas compare sua situação à de uma
cidade sitiada –, a ideia do cerco está presente e nos transmite os sentimentos
de quem está dentro dele. Uma cidade sitiada era um lugar de onde ninguém
saía e em que não chegavam alimentos, água ou reforços; ali, as pessoas que
estavam refugiadas aguardavam a morte pelas espadas do exército invasor ou
pela inanição quando acabavam os alimentos. Era uma situação
desesperadora. As pessoas costumavam perder a esperança e fazer coisas
terríveis como matar e comer seus próprios filhos (2Rs 6.24-30) ou tirar suas
vidas. Diante de uma situação desesperadora como essa, Davi afirma: “Ele
engrandeceu a sua misericórdia para comigo” (hiflî’ hasdô lîî). Independente
de que circunstâncias retumbem na memória do salmista, ele, quando esteve
sem esperanças, viu a mão misericordiosa do Senhor o consolar, fazer-lhe
suportar a dor e dar-lhe paciência até que viesse o alívio do sofrimento.
Em terceiro lugar, Deus livrou Davi do engano. Houve um tempo em que
Davi, diante de tantos problemas e sem refletir muito (v.22), chegou a uma
conclusão errada: “E, na minha precipitação, eu disse: fui excluído de diante
dos teus olhos” (wa’nî ’amartî behaftî nigraztî minneged ‘êneyka). Essa é, de
fato, uma conclusão equivocada que é fruto da precipitação muito comum
dos momentos de crise. Frequentemente, nesses casos, tiramos conclusões
erradas. Entretanto, Deus trouxe à tona a realidade a fim de tranquilizar Davi,
não o deixando perecer diante do que nem sequer existia. Assim, depois de
relatar sua conclusão temerária, Davi revela: “Certamente ouviste a minha
voz suplicante durante meu grito a ti por socorro” (’aken shama‘ta qôl
tahanûnay beshû‘î ’eleyka). Essa é a demonstração de que Deus nem tinha
abandonado Davi, nem ignorava suas orações, nem tampouco desejava que
ele guardasse tal sentimento.
O quarto livramento é da injustiça. O sofrimento de Davi, ao ser
perseguido, era intenso. Porém, havia uma característica dessa perseguição
que a tornava ainda pior: o fato de ela ser injusta, ou seja, sem que Davi
tivesse feito nada que merecesse ser perseguido. O ciúme de Saul e a
ganância de Absalão foram as causas de Davi ter de fugir do seu próprio
povo, das próprias pessoas a quem ele amava. Receber ataques imerecidos é
algo que nos entristece e nos deixa indignados. Entretanto, o salmista parece
ter percebido que havia um juiz maior que os homens que traria à luz a
verdade e puniria o que realmente era mal, sem dar ouvidos a acusações
infundadas e falsas. Por isso, Davi descansa ao dizer (v.23): “O Senhor
protege os fiéis, mas retribui com juros os que agem soberbamente”
(’emûnîm no‘er yehwâ ûmeshallem ‘al-yeter ‘oseh ga’awâ). Portanto, ainda
que os ímpios nesse mundo acabem por tirar vantagem dos outros e oprimir
os aflitos, o Senhor não permitirá que tal situação seja permanente.
Finalmente, o Senhor livra seus servos do desânimo. Algo sempre presente
em situações problemáticas é o cansaço. Para algumas pessoas ele vem logo,
enquanto, para outras, demora um pouco mais. Contudo, cedo ou tarde, todos
os que são perseguidos, que passam por lutas e que se veem desamparados,
acabam por sentir um forte desânimo e o desejo de desistir da luta.
Entretanto, a esperança em Deus age como um revigorante. Seu amor
sustenta seus filhos e lhes dá um novo ânimo que é estranho aos que andam
longe do Senhor. Davi deve ter sentido tal ação vinda do alto e a proclama
aos que estão ao seu redor, dizendo (v.24): “Fortalecei-vos e animai o vosso
coração” (hizqû weya’amets levavkem). Essa ação está além dos conselhos
dos livros de auto-ajuda, pois é dito a um grupo bem definido: “Todos os que
confiam no Senhor” (kol-hamyahalîm layhwâ). As mãos do Senhor são as
promotoras desse livramento.
Que lição para nós! Em meio a tantos problemas e a tanto sofrimento, Davi
conseguiu ver a mão de Deus agindo a seu favor e o livrando do mal. Seus
olhos estavam atentos a isso porque seu coração estava ligado ao Senhor. Ele
orava a Deus e permanecia atento às respostas do seu Senhor. Que o nosso
mais profundo anseio seja o de sempre notar a atuação e a bondade do nosso
Deus, ainda que os “terremotos” da vida estejam sob nossos pés! E que, fruto
dessa visão, sejamos fortalecidos e consolados por andarmos sob as asas
daquele que é o Senhor do universo e o protetor dos que o buscam!

SALMO 32
A Restauração que Vem do Perdão

Um dos grandes tesouros da literatura mundial é a obra Os miseráveis, de


Victor Hugo, escrita no século 19. Nela, há um personagem, um ex-
condenado chamado Jean Valjean, que é acolhido por um bispo que o recebe
em casa e lhe trata com dignidade. Em pagamento a tão bondoso tratamento,
Valjean rouba alguns talheres de prata e foge. Algum tempo depois, a polícia
vem à casa do bispo, com o ladrão sob custódia, a fim de conferir a versão de
que os utensílios valiosos em seu poder lhe tinham sido presenteados pelo
clérigo. Este, para surpresa do leitor, confirma o que foi dito por Valjean e
lhe diz, diante dos guardas: “Você se esqueceu de levar os candelabros”.
Ocorre, então, algo que muda a vida do ladrão. O bispo lhe entrega os
candelabros e diz: “Use esse dinheiro para se tornar um homem honesto.
Você já não pertence ao mal, mas sim ao bem. É a sua alma que acabo de
comprar”. O perdão e a generosidade do bispo foram algo tão marcante na
vida daquele homem que ele realmente mudou sua vida. Ele se torna um
homem honrado e altruísta, a ponto de ajudar outras pessoas necessitadas e
até de correr o risco de ser preso ou morto para fazer o bem a uma moça órfã
de quem ele acaba cuidando como se fosse sua própria filha.
Davi, o grande salmista, também foi um homem marcado pelo perdão e
benevolência que recebeu. Mas não o recebeu de outro homem e sim de
Deus. O Salmo 32 é um testemunho de Davi do perdão que recebeu mediante
sua confissão de pecados e dos efeitos que o perdão divino teve sobre ele.
Junto com o Salmo 51, o Salmo 32 é um lembrete e um encorajamento para
que os servos de Deus não se acostumem ou escondam seu pecado, mas
confessem-no ao Senhor e o abandonem a fim de que a comunhão com Deus
e tudo que decorre dela seja restaurado. Há, nesse salmo, pelo menos três
restaurações feitas por Deus aos homens que, contritos, lhe confessam os
pecados.
A primeira é a restauração do bem-estar. Os dois primeiros versículos
mostram a condição do homem que é perdoado por Deus. Segundo Davi,
trata-se de um homem feliz (v.1): “Felizes são aqueles cuja transgressão foi
retirada, cujo pecado foi coberto” (’asrê nesûy-pesha‘ kesûy hat’â). O motivo
de tal homem ser bendito é apresentado, na sequência, por meio da
experiência do próprio escritor (vv.3-5). “Bem-estar” é a última expressão
que pode ser aplicada para descrever a condição de Davi enquanto ele
escondia seu pecado. O texto revela que ele vivia aflito. Até mesmo seu
corpo – talvez, devido a sintomas psicossomáticos da culpa que carregava –
sentia os efeitos do seu mau procedimento escondido (v.3): “Quando eu
permaneci em silêncio, os meus ossos se consumiram pelo meu clamor
diário” (kî-heherashtî balû ‘atsamay besha’agatî kol-hayyôm). Esse silêncio
significa ausência de confissão do pecado. Entretanto, se Davi guardou
silêncio sobre o pecado, o próprio pecado, por sua vez, gritava em seu
interior e o fazia sofrer diariamente por evidenciar sua vida tomando um
rumo tão distante do que deveria. Parece que ele chorava e se lamentava
“todos os dias” (kol-hayyôm) a ponto de sentir seu corpo fraco e debilitado –
o que ele descreve como se seus ossos sofressem um desgaste. É um preço
muito alto para esconder a iniquidade.
Talvez alguém diga se tratar de uma consciência fraca que sucumbe ao
menor sinal de culpa. Entretanto, Davi oferece um fator externo para o seu
mal-estar e pesar (v.4): “Pois dia e noite a tua mão pesa sobre mim” (kî
yômam walaylâ tikbad ’alay yadeka). A simples consciência da santidade do
Senhor, além da sua disciplina, consumia Davi, não porque Deus seja cruel
ou incompassivo, mas porque Davi relutava em lhe confessar o seu pecado.
Aconteceu assim até que a situação ficou insustentável e Davi deu uma
guinada em sua atitude. Ele conta (v.5): “Confessei a ti o meu pecado”
(hatta’tî ’ôdî‘aka). Diante disso, Deus não respondeu tal confissão com algo
do tipo “agora é tarde”. Na verdade, o salmista foi realmente perdoado, pelo
que diz: “E tu retiraste a culpa do meu pecado” (we’attâ nasa’ta ‘aôn
hatta’tî). Pelo jeito, não foi apenas a culpa que Deus levou, mas os próprios
efeitos dela sobre a vida de Davi, fazendo com que, junto com o perdão,
viessem também o alívio e o bem-estar. É terrível andar longe de Deus, mas
voltar à plena comunhão com ele é uma restauração abençoada que se dá pelo
perdão.
A segunda é a restauração da alegria. Se o perdão retira da vida do
homem contrito o que havia de negativo como a tristeza, ele também produz
efeitos positivos como a alegria. Por isso, no v.7, o salmista afirma: “Tu me
cercas de aclamações de livramento” (rannê pallet tesôvevenî). Trata-se de
uma atitude de produzir cantos alegres em louvor a Deus por uma obra de
libertação – nesse caso, não de inimigos, mas do pecado. Davi passou da
lamúria à exultação. Ele não se sente mais como um servo ingrato e rebelde,
mas como um filho amado pelo Pai e grato por isso. Seus ossos não se
consomem mais. Seu vigor retornou. O que é consumida, agora, é a tinta
usada para escrever novos cânticos de alegria e de agradecimento a Deus por
tê-lo perdoado e restaurado. É o extremo oposto do que Davi vinha
enfrentando diante da relutância em confessar a Deus o mal que fez.
A terceira é a restauração do caminho. Os vv.8,9 que parecem vir de
outra fonte, como se outro escritor tivesse participado da composição do
salmo. Aqui é o Senhor quem dirige sua voz ao salmista e não o contrário –
um recurso literário e poético para expressar a atuação de Deus na vida de
Davi. Assim, o Senhor compassivo e perdoador diz ao servo (v.8): “Eu te
ensinarei e te guiarei no caminho em que tu andarás” (’askîleka we’ôreka
bederek-zû telek). Se a ausência de conhecimento da Palavra de Deus, sem
falar na desobediência a ela, é a razão de o homem se afastar do Senhor e de
fazer o que é mau, a instrução divina é quem promove o processo de
santificação revertendo a condição anterior (Jo 17.17). Esse conceito é
expresso várias vezes nas Escrituras, várias delas pelo próprio rei Davi: “De
que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o
segundo a tua palavra [...] Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar
contra ti” (Sl 119.9,11). E o mais surpreendente nesse processo é que a ação
de instruir e guiar, fator fundamental para a santificação da vida do pecador, é
uma iniciativa do próprio Deus. Ele é quem, tomando o servo pela mão, o
conduz no caminho correto dando-lhe como mapa as Escrituras.
Davi, como poucas pessoas, conhecia os “dois lados da moeda”. Sabia o
que é sofrer na rebeldia e na atitude impenitente. Conhecia também os efeitos
restauradores do perdão de Deus na vida do homem arrependido e contrito de
coração. Ele não cala tal experiência a fim de instruir os leitores a fugirem do
erro e a buscarem o perdão. Em uma postura que revela uma grande
sabedoria adquirida ao longo da vida, ele diz (v.10): “Muito pesar há para o
ímpio, mas a misericórdia cerca aquele que confia no Senhor” (ravvîm
mak’ôbim larasha‘ wehavvôteah bayhwâ hesed yesovevenû). Ele mostra aos
pecadores impenitentes dois caminhos e o faz de modo que fique fácil – e
óbvio – decidir pelo segundo: o da misericórdia. Não há motivos para que
aquele que peca procure desculpas para amainar a consciência sem se curvar
arrependido diante de Deus. Desculpas, como “todos fazem a mesma coisa”
ou “Deus sabe que sou pecador”, somente trazem, para quem as utiliza,
“muito pesar”. Não é algo que compense ou que faça o homem feliz.
Diante de tanta experiência e sabedoria do salmista e de tanto favor e
misericórdia do Senhor, chega a ser uma grande tolice sofrer os danos de
reter a confissão de pecados e de permanecer no mal. É grande insensatez
sofrer as perdas dessa condição enquanto se deixa de lado a restauração plena
que há no perdão que Deus concede aos seus. Não há razão para o cristão
passar por isso sem voltar atrás, para os braços do Senhor. Se um personagem
fictício de um livro muda o rumo da sua vida ao ter “figuradamente” sua alma
comprada para o bem, quanto mais os servos de Deus que foram, em
realidade, comprados por Cristo a custo do seu sangue (At 20.28) para lhe
pertencerem para sempre. Que a nossa luta seja contra o pecado e contra a
dureza do coração que teima em não se arrepender! Que o nosso prêmio seja
o perdão, a restauração e a comunhão com aquele que nos ama de um modo
incomparável! E que a nossa motivação para prosseguir seja o sacrifício e o
exemplo do nosso santo Mestre a quem servimos!

SALMO 33
As Credenciais do Senhor Todo-poderoso

Um fato curioso faz parte da história de um museu de arte de Viena


(Áustria), o Vienna’s Museum of Fine Arts. Trata-se de um personagem
curioso que era costumeiramente conhecido como “O Faraó”. Esse senhor
frequentou o museu por, aproximadamente, trinta anos, atuando como uma
espécie de guia. Sua especialidade era arte egípcia. Ele aguardava visitantes a
fim de lhes apresentar, com informações detalhadas, as obras egípcias do
museu. Seu conhecimento do assunto era tão profundo que poucas pessoas se
deram conta de que ele não tinha qualquer ligação com o próprio museu. Até
mesmo egiptólogos profissionais consultavam-no para dirimir dúvidas que
tinham em relação às obras egípcias e ao próprio Egito.
Contudo, apesar dos dotes singulares desse senhor, o fato mais curioso só
foi conhecido depois da sua morte: o maior especialista em Egito, de fato,
jamais havia ido ao Egito. Isso espantou muita gente que pensava que aquele
homem conhecia o Egito como ninguém, quando, na verdade, ele conhecia –
e muito bem – apenas as informações registradas sobre o país. Apesar do seu
exímio e singular conhecimento de egiptologia, ele era como um leigo que
estuda livros de medicina a ponto de conhecer a teoria médica melhor que os
próprios médicos, mas que nunca fez um exame físico em um paciente ou lhe
aferiu a pressão arterial. A bem da verdade, “O Faraó” não foi o único a dar a
impressão de ser quem não é. Quantas pessoas não se esforçam para
transmitir uma imagem irreal a fim de serem admiradas?
Por outro lado, há alguém que, em contraste a essa realidade, é tudo o que
diz ser: o Senhor Deus. As Escrituras atestam que Deus é Todo-poderoso
(2Co 6.18), conhecedor de todas as coisas (Sl 139.16) e soberano (Ef 1.11).
Alguém inigualável que pode fazer tudo que desejar (Sl 135.6) sem que
ninguém lhe possa impedir (Jó 42.2) ou instruir (Is 40.14). Entretanto, esses
atributos têm sido cada vez mais depreciados no mundo ateísta e até mesmo
em igrejas ditas cristãs, visto tratarem-no como se fosse um garçom, exigindo
dele bênçãos ao gosto do freguês. Entretanto, o rei Davi apresenta as
credenciais divinas para os títulos que as Escrituras lhe conferem. O Salmo
33 é um chamado público de louvor a Deus (vv.1-5) e as razões para tal
louvor são apresentadas por meio de quatro credenciais que somente um
Deus ilimitado e onipotente, merecedor de toda adoração, poderia ter.
A primeira credencial é a criação do universo (vv.6-9). Davi diz, no v.6,
que a magnífica obra da criação teve como fonte a vontade e a iniciativa
divina: “Pela palavra do Senhor os céus foram feitos e, pelo sopro da sua
boca, todo o seu exército” (bidvar yehwâ shamayim ûberûah pîw kol-
tseva’am). A expressão “todo o seu exército” é uma referência às estrelas do
céu (Gn 2.1). Em resumo, o universo mapeado e até as partes mais
longínquas e desconhecidas dos homens vieram a existir quando Deus as
ordenou. Se os céus são obras das mãos do criador, nosso planeta também é.
Nesse aspecto, o salmista recorda (v.7), pelo relato de Moisés (Gn 1.9,10), de
quando Deus fez a separação entre as águas e a terra seca: “Ele é quem reúne
as águas do mar como se faz em uma represa; quem lança os oceanos em
odres” (kones kanned me hayyam noten be’otsarôt tehômôt). É perceptível o
desejo do escritor de tornar a imensidão do mar um mero copo d’água diante
do seu criador.
A partir daí, não é mais necessário versar sobre outros aspectos magníficos
da criação como as montanhas, as plantas, os animais e a diversidade de tudo
que existe. Pela demonstração do poder de Deus diante dos mares – que
englobam a maior parte da superfície do planeta –, o salmista atingiu seu
propósito de apresentar tal credencial. Ele apenas completa a ideia apontando,
agora, para o criador como fonte de toda a existência (v.9): “Pois ele falou e
as coisas passaram a existir; ele ordenou e elas surgiram” (kî hû’ ’amar
wayyehî hû’-tsiwwâ wayya‘amod).
A segunda é o controle da história (vv.10-12,16-17). Se o poder dos mares
e o tamanho do universo não são nada comparados ao poder dos decretos de
Deus, o poder político e militar das nações – conceitos mais próximos e
conhecidos dos leitores – também sucumbem diante da onipotência divina
(v.10): “O Senhor frustrou o desígnio das nações; anulou as maquinações dos
povos” (yehwâ hepîr ‘atsat-gôyim henî’ mahshevôt ‘ammîm). Essa realidade
fazia parte da história dos israelitas, tantas vezes atacados pelas nações ao
redor, tantas vezes protegidos pelo Senhor. Eles aprenderam (v.16), por
experiência própria, que “nenhum rei é salvo pelo poderio militar” (’ên-
hamelek nôsha‘ berav-hayil gibôr). Deus, por sua vez, a despeito da
ineficácia dos intentos das nações e do poder dos seus exércitos, faz cumprir
perfeitamente tudo que planejou como só um Deus ilimitado e soberano pode
fazer (v.11): “O desígnio do Senhor dura para sempre” (‘atsat ‘atsat le‘ôlam).
A terceira credencial é o conhecimento de tudo (vv.13-15). Se Deus tudo
pode, também tudo vê. A falta de limites do Senhor é ampla e abrange os
mais diversos aspectos. Nesse sentido (v.13), Davi afirma que “dos céus o
Senhor observa; ele vê todos os filhos do homem” (mishamayim hivvîm
yehwâ ra’â ’et-kol-benê há’adam). Ninguém foge dos seus olhos penetrantes.
Nada passa despercebido por Deus. O v.15, que completa a ideia inicial, é
muito parecido com alguns aspectos expostos no Salmo 139, visto que diz:
“Ele é o formador de cada coração; é o conhecedor de todas as obras deles”
(hayyotser yahad livvam hammebîn ’el-kol-ma‘asêhem). Por “cada coração”
entenda-se “cada homem”. Deus, que criou a humanidade e planejou a vida
de cada ser humano, conhece tudo que cada um faz, pensa ou sente. Ninguém
mais no universo pode apresentar uma credencial como essa.
A última credencial é o cuidado dos fiéis (vv.18-22). O motivo pelo qual
Davi escreve o salmo é apresentado, nesse ponto, a fim de produzir segurança
nos servos de Deus e, consequentemente, louvor ao seu nome. Ele afirma
novamente o conhecimento pleno de Deus, mas, dessa vez, trazendo à luz o
motivo do olhar constante do Senhor (v.19): “A fim de livrar a alma deles da
morte e preservar suas vidas durante a fome” (lehatsîl mimawet nafsham
ûlehayyôtam bara‘av). Deve-se notar que a palavra “alma” nesse texto não
tem como intenção se referir ao espírito dos servos de Deus, mas a eles como
pessoas. Significa que Deus cuida de cada um dos que lhe pertencem.
Lembra também o cerco de uma cidade, onde os habitantes são privados de
suprimento e são oprimidos pela fome. É nesse contexto que os israelitas,
mais de uma vez, testemunharam o cuidado que Deus tinha com eles. Por isso
mesmo (v.20) Davi o chama de “nosso auxílio e nosso escudo” (‘ezerenû
ûmaginnenû).
Deus não é um charlatão que diz ser quem não é. Não são poucas as
credencias que comprovam o seu caráter e poder para que confiemos nas
coisas que sua Palavra nos ensina e para que esperemos pacientemente pela
sua proteção. Não há ninguém a quem possamos recorrer que nos trate como
o Senhor. O salmista também parece notar que os atributos de Deus não
pertencem apenas ao campo da teologia, mas ao campo das vidas práticas
daqueles que o buscam. O que a teologia defende, o servo de Deus sente e
testemunha no seu dia a dia. Assim, a conclusão que Davi tira dessas
verdades não poderia ser outra (v.12): “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”
(’ashrê haggôy ’asher-yehwâ ’elohayw).
Que mensagem seria mais apropriada para uma época em que profetas da
prosperidade e milagreiros ditos cristãos clamam para si a autoridade de dar
paz e alegria para quem os segue? Que lição seria mais necessária diante da
atitude moderna – ou pós-moderna – de ignorar a revelação de Deus e de
moldá-lo conforme a cobiça humana? Que exortação seria mais propícia para
lembrar a igreja de Deus de que métodos que anulem a confiança e a
obediência ao Senhor são como querer represar os mares com gravetos?
Que, como o salmista, nossa confiança esteja sobre aquele que tem todas as
credenciais para ser nosso protetor e que, como resultado dessa realidade,
nosso louvor e adoração só sejam menores que o tamanho e o poder daquele
que não pode ser contido por nada, nem por ninguém.
SALMO 34
Um Relacionamento de Duas Vias

Sempre gostei muito de bichos. Durante toda minha vida convivi com as
mais diversas espécies de animais. Apesar do meu gosto especial por gatos,
pássaros e peixes, nenhum deles se compara ao meu gosto pelos cães. Tenho
dois cães da raça rottweiller, o macho chamado Tímios e a fêmea, Malcah.
Apesar do terror que os cães dessa raça causam nos visitantes e nas pessoas
que passam na rua – esse é um dos propósitos deles –, essa não é toda a
verdade sobre os rottweillers. Trata-se de cães extremamente obedientes,
inteligentes e, acredite, dóceis – pelo menos com os donos. Não costumam
ser traiçoeiros e, a meu ver, são os cães mais bonitos que eu já vi, com um
porte inigualável.
Apesar dessas qualidades, há algo que me surpreende todas as vezes em
que penso nisso: a amizade que os cães mantêm com seus donos. Meus cães,
principalmente o macho, por ser mais velho, age com extrema fidelidade e
carinho para comigo. Faz de tudo para me agradar e para estar sempre por
perto. Mesmo quando estou dentro de casa, ele procura, ao redor da casa, o
lugar mais próximo de mim e só se levanta dali quando vou para outro
cômodo. Ele me protege e me faz companhia o tempo todo. Por outro lado,
eu o alimento, dou banho, zelo pela sua saúde e procuro passar tempo com
ele. Nesses momentos, tenho a impressão de fazê-lo muito feliz. No final das
contas, é um ótimo relacionamento, bom para ambas as partes. Eu chamaria
tal convivência de “relacionamento de duas vias”, pois cada um supre
necessidades do outro.
Há um outro tipo de relacionamento bilateral que supera qualquer outro e é,
de fato, inigualável: o relacionamento entre Deus e seus servos. Uma
diferença marcante desse relacionamento é que Deus não tem qualquer
necessidade a ser suprida pelos homens. Se ele se relaciona conosco, não é
porque precise de nós, mas porque decidiu fazê-lo. Apesar disso, como um
relacionamento bilateral, está presente a atuação de cada parte conforme suas
responsabilidades e capacidades. O que não pode – ou não deve – ser
realizado de um lado, encontra no outro alguém que faz o que lhe cabe no
convívio mútuo. O Salmo 34, escrito por Davi, apresenta atividades
realizadas tanto por Deus como por seus servos no relacionamento que
mantêm mediante a graça divina.
Pelo lado de Deus, a primeira das atividades voltadas aos servos é atender
as orações. Ao notar que o início do salmo o situa depois de uma libertação
do escritor em uma circunstância em que fica clara a atuação de Deus,
compreende-se melhor o ponto em questão. Quando era provável e quase
inevitável que Davi morresse nas mãos dos filisteus, ele diz (v.4): “Busquei o
Senhor e ele me atendeu” (darashtî ’et-yehwâ we‘ananî). Enquanto os filisteus
mantinham uma posição de cautela em relação a Davi, o rei acreditou
realmente, contra as expectativas, que se tratava de um homem louco e
poupou-lhe a vida. Diante do histórico guerreiro e vitorioso do salmista, a
credulidade do rei filisteu ou nos parece tolice, ou nos convence da atuação
divina na proteção do servo. Em outras palavras, a resposta de oração
garantiu a vida do salmista quando o máximo que ele podia fazer era fingir
ser doido diante dos inimigos.
A segunda atividade é proteger os servos. O v.7, muito conhecido e pouco
compreendido pelos cristãos, diz: “O anjo do Senhor acampa ao redor dos
que o temem” (honeh mal’ak- yehwâ saviv lîre’ayw). Não se trata de “anjos”,
mas do próprio Senhor em pessoa protegendo os servos como uma sentinela
que marcha em volta daquilo que está a proteger. A expressão “anjo do
Senhor” frequentemente se refere à pessoa de Deus (Gn 16.10; Ex 3.2).
Ainda que os anjos sirvam, sob as ordens do Senhor, aos homens que temem
a Deus (Sl 91.11; Hb 1.14), o soberano não se tolhe de guardá-los
pessoalmente.
A terceira atividade é opor-se aos injustos. Boa parte do sofrimento dos
servos de Deus tem como fonte homens que, em sua injustiça, os exploram e
oprimem. Ainda que o julgamento definitivo da maldade venha a ocorrer
somente no final da história terrena, Deus costuma intervir a favor dos seus
filhos quando sofrem diante dos maus. Enquanto protege os seus, o v.16
revela que “a face do Senhor está contra os que praticam o mal” (penê yehwâ
be‘osê ra‘). O Senhor toma as dores dos servos e se posta contra os ímpios.
A última é manter comunhão. Diferente do pensamento agnóstico que
postula que Deus se afastou da criação, Davi afirma que Deus permanece
junto aos seus (v.18): “O Senhor é próximo dos quebrantados de coração”
(qarov yehwâ lenishberê-lev). Tal proximidade é o que mantém a comunhão
entre eles. Deus não apenas se deixa encontrar como se faz sentir ao redor
dos que, arrependidos dos pecados e dependentes da graça e misericórdia do
Senhor, entregam-lhe o coração.
Já, pelo lado dos servos, a primeira das atividades visando ao bom
relacionamento com o Senhor é louvar a Deus. Em agradecimento a tamanha
bondade, Davi – que havia sido poupado milagrosamente dos inimigos – diz
(v.1): “Com a minha boca continuamente o louvarei” (tamîd tehillatô bepî).
Ele se propõe não apenas a adorar a Deus, mas fazê-lo publicamente. Esse é o
sentido de dizer que “com a boca” louvaria a Deus. Ele testemunharia todo o
tempo, em dias bons e ruins, que o Senhor é digno de ser adorado pelos
homens que o amam. Essa não é apenas uma atitude dos servos para com
Deus, mas o sentido da sua existência (1Pe 2.9).
A segunda atividade humana é desfrutar da bondade divina. O v.8
contém uma ordem aos homens: “Provem e vejam que o Senhor é bom”
(ta‘amû ûre’û kî-tov yehwâ). A palavra hebraica usada por Davi traduzida por
“provar” não é a mesma usada pelo profeta Malaquias em um texto muito
conhecido (Ml 3.10). Enquanto Malaquias propõe um “teste”, a palavra que
Davi utiliza propõe o ato de “experimentar” algo, assim como “provar” uma
comida ou “degustar” um vinho. Desse modo, o servo de Deus se “deleita”
no Senhor aceitando as bênçãos que, pela graça, lhe são oferecidas. Ele não
mendiga um pouco de alegria no meio do pecado. Ele se deleita nas palavras,
na companhia e na bondade do seu Senhor.
A terceira atividade é a exortação dos irmãos. Como testemunha dos atos
misericordiosos de Deus, Davi age também como transmissor dessa verdade
e doutrinador de outras pessoas. Ele se propõe a fazer o seguinte (v.11): “Eu
ensinarei a vocês o temor do Senhor” (yir’at yehwâ ’alammedkem). Temer a
Deus não é ter medo dele. É certo que o servo de Deus deve temer, sim,
desrespeitar o Senhor e ser por ele disciplinado. Mas o conceito presente no
temor do Senhor é maior que isso. Envolve reverência, obediência, respeito e
adoração. Davi, como homem temente a Deus, exorta seus conservos a terem
a mesma disposição e se oferece para ensiná-los e encorajá-los nesse sentido.
A última atividade é a santificação de vida. Lutar contra o pecado e se
deixar dirigir pelo Espírito de Deus é fundamental no convívio diário com o
Senhor. Por isso, o salmista ainda orienta (v.14): “Aparte-se do mal e faça o
bem” (sûr mera‘ wa‘aseh-tôv). A santificação é um esforço em dois sentidos.
Em primeiro lugar, lutar para abandonar o pecado em forma de pensamentos,
disposições e, obviamente, ações. Significa se empenhar para não fazer as
coisas que ofendem a santidade do Senhor. E, na sequência, manter o esforço
para fazer o que é correto obedecendo as instruções de Deus expostas nas
Escrituras. Nenhum desses aspectos se perfaz sem o outro. Não existe vitória
contra o pecado quando não há obediência; nem há santificação sem negação
pessoal a fim de sujeitar os impulsos pecaminosos. O servo de Deus, mesmo
diante de toda a dificuldade dessa batalha, luta para ser cada dia mais santo.
Com esse relacionamento de duas vias em ação, tanto a bondade de Deus
como a submissão voluntária do servo se completam e produzem um clima
de amizade, interação e união. Esse, sim, é um bom relacionamento cheio de
bênçãos para os homens e repleto de honras ao Senhor. Pela graça de Jesus e
seu sacrifício da cruz, podemos ser considerados, agora, por meio da fé,
amigos de Deus. E não há nada mais magnífico que isso na vida de um
cristão. Ou você, depois de refletir sobre tudo isso, ainda acha que é o cão o
melhor amigo do homem?

SALMO 35
A Dor de quem Espera

O primeiro de semestre de 2010 foi um tempo muito difícil para mim. No


final de janeiro, comecei a sentir certo formigamento na perna direita e,
alguns dias depois, dores nas costas. Como esses sintomas não melhoravam,
procurei o pronto-socorro de um hospital e ali foi diagnosticado meu
problema: hérnia de disco. Eu nem sabia que doença era essa até então.
Enquanto eu aguardava o dia da consulta com um neurologista, as dores
aumentaram abruptamente fazendo-me sofrer demais. Eu nunca havia sentido
dores tão lancinantes. Mesmo deitado e sob o efeito das medicações, o
sofrimento era enorme. Em poucos dias, tive de ser internado.
Mesmo nos melhores dias, era com o auxílio de uma bengala que eu
caminhava. Nos maus momentos, era inevitável terminar o dia no hospital.
Na pior ocorrência da dor, fui atendido e transportado pelo corpo de
bombeiros, recebendo, no hospital, uma das medicações mais fortes que
existem. Foram cerca de três meses de dores intensas e visitas ao hospital.
Hoje, apenas administro um problema que já não me aflige tanto. O
interessante é que, bem no começo, um amigo, que sofreu do mesmo mal, me
disse: “Tenha paciência! As dores fortes vão passar, mas demora um pouco
para que isso ocorra. Mas, não desanime, pois a crise vai passar”. Ele tinha
razão e eu sabia disso desde a primeira vez em que me falou tais palavras.
Não duvidei dele em nenhum momento. Entretanto, a espera, apesar da
certeza, foi dolorida e me trouxe um enorme sofrimento.
Davi, o grande salmista, atravessou uma situação parecida, não exatamente
de doença, mas em termos de sofrimento incessante. O Salmo 35, diferente
do anterior, nos mostra Davi em um momento de angústia, sem, contudo, ver
a resposta de Deus às suas orações. O problema não era a falta de esperança
do salmista. Ele, na verdade, demonstra ter certeza de que Deus o livrará.
Entretanto, não havia chegado o momento de ser aliviado da tristeza e do
perigo. Isso fez com que o salmo apresentasse três situações de sofrimento
duradouro e o devido encorajamento aos servos de Deus por meio da
esperança do livramento no momento correto, escolhido assim pelo Senhor.
A primeira das situações que são frequentemente duradouras e que causam
pesar nos servos de Deus é a oposição dos adversários (vv.1-10). Nos vv.1-3
Davi pede a Deus que lhe proteja dos inimigos na medida necessária a fim de
livrá-lo e de punir os que lhe atacam sem motivo. Uma pergunta importante
de se fazer diante disso é “quem são eles?”. Davi não cita seus nomes ou
títulos. Em vez disso, Davi descreve-os em sua atividade opositora. A
confiança do salmista no v.4 dá início a tal descrição. Diz ele: “Baterão em
retirada e serão derrotados aqueles que planejam o meu mal” (yissogû ’ahor
weyahperû hoshvê ra‘atî). Trata-se de pessoas que arquitetavam modos de
prejudicar Davi. A sutileza e a periculosidade de tais projetos são
transmitidas pelo salmista (v.7) ao escrever sobre o objetivo dos adversários
contra ele: “Pois sem motivos esconderam armadilhas para mim” (kî-hinnam
tamnû-lî). Traiçoeiramente, os adversários de Davi pensavam em modos de
fazê-lo cair em uma armadilha. É a figura de uma caçada em que os
opositores fazem o papel de predadores. Assim como caçadores de verdade,
eles armam emboscadas para pegar de surpresa a vítima indefesa. É uma
atitude desonesta e maldosa. A vítima, além de não poder se defender da
armadilha, nem imagina que ela existe, pois tudo é feito às escuras, já que
Davi, falando do inimigo (v.8), se refere às “suas redes às quais esconderam”
(rishtô ’asher-taman). É a mesma ideia da caça, com ênfase na traição oculta.
A segunda situação é a falsidade das pessoas próximas (vv.11-18). Quem
dera os inimigos fossem seus únicos motivos de desgosto! Davi, agora,
apresenta o sofrimento pessoal que teve como fonte pessoas a quem ele
chamou (v.11) de “testemunhas da injustiça” ou de “testemunhas da
violência” (‘edê hamas). Até aí, não há surpresas. Contudo, o v.12 introduz
um elemento que, sim, nos surpreende. Tratava-se de pessoas a quem Davi
havia beneficiado. Em troca, eles foram traidores e malévolos: “Eles me
retribuem o mal em lugar do bem” (yeshallemûnî ra‘â tahat tôvâ). É
revoltante! Davi foi bondoso com tais homens que, agora, são testemunhas
mentirosas e malvadas contra ele. Isso piora quando Davi explica melhor seu
procedimento bondoso para com eles no passado (v.14): “Eu agia como se
eles fossem amigos ou irmãos para mim” (kereah-ke’â lî hithallaktî). Muita
gente tem companheiros tão chegados que são como familiares. Assim eram
tais homens para Davi. Apesar disso, diz o salmista (v.15): “Mas, na minha
queda, eles se alegraram e se ajuntaram; se ajuntaram contra mim” (ûbetsal‘î
samhû wene’esafû ne’esfû ‘alay). Dá até para ouvir o grupo reunido rindo de
Davi e expondo como cada um trabalhou em prol da sua queda quando ele de
nada desconfiava. São risos que dão nojo nos homens justos. Olhar para esse
tipo de ajuntamento injusto e traidor realmente desanima qualquer um.
A terceira é a provocação arrogante (vv.19-28). Nesse ponto, Davi ora ao
Senhor pedindo que os impeça de agir conforme o mal que pretendem. É sob
esse prisma que percebemos suas atitudes. Davi diz (v.19) que tais homens
“piscam os olhos” (yiqretsû-‘ayin). A palavra traduzida por “piscar” tem uma
forte conotação de uma atitude maliciosa. Trata-se de um sinal com os olhos
que transmite arrogância e maldade contra seu alvo. Eles também zombavam
e tripudiavam a respeito da situação difícil de Davi (v.21): “Alargam suas
bocas contra mim dizendo: Aha! Aha!” (wayyarhîvû ‘alay pîhem ’omrû he’â
he’â). A interjeição aha é uma onomatopeia – figura de linguagem que
expressa sons como “pocotó” ou tique-taque – que simboliza “risos” ou
“gargalhadas”. Representa a exultação aberta por verem o mal do salmista. O
sonho desses homens era ver chegar o dia em que pudessem alegremente
dizer (v.25): “Nós o aniquilamos” (billa‘anûhû). Temos de ser sinceros: é
difícil conviver com uma situação como essa. Quanto tempo suportaríamos
maus tratos e provocações assim? Em quanto tempo desistiríamos de tudo ou
abandonaríamos o bem partindo para a briga com homens maus, ingratos e
arrogantes como os tais?
Entretanto, apesar do estado duradouro desses males, Davi revela seu
sofrimento, mas não seu abandono da esperança de ver dias melhores
modelados pelas mãos do Senhor eterno. O salmista, que ainda não viu seu
livramento, nem a derrocada dos inimigos, não tem dúvida de que ocorrerão.
Ele conhece o Senhor e sabe que tipo de cuidado amoroso ele tem para com
os seus. Assim, mesmo que o tempo de Deus não coincida sempre com a
pressa do servo de se ver imediatamente livre das pressões, Davi sabe que
chegará o dia em que o Senhor o livrará e lhe dará a alegria que se esvaiu
diante das circunstâncias. Essa esperança faz com que o salmista declare, do
meio do turbilhão, como será seu regozijo naquele dia (v.9): “E a minha alma
se alegrará no Senhor e regozijará na sua salvação” (wenafshî tagîl bayhwâ
tasîs bîshû‘atô). É muito interessante ver como, ao mesmo tempo, tal certeza
produz uma esperança futura e um consolo presente. Por causa dessa
esperança é que, depois de sofrer por tanto tempo, Davi persiste em se manter
na justiça e no serviço do Senhor, inclusive, louvando-o por meio desse
salmo.
Como Davi não foi o único a carregar problemas duradouros, essa
mensagem é de especial aplicação e atualidade para nós mesmos. Nós
também nos cansamos de sofrer injustiça. Também ficamos desanimados ao
tratar bem pessoas que nos retribuem com o mal. Infelizmente, também
somos, por vezes, alvo das chacotas e das provocações arrogantes de outros.
Pois é exatamente nesses momentos que nossa fé no Senhor deve ser
redobrada e nos fazer lembrar de tudo que ele nos fez e das coisas que ainda
nos fará. É nessas horas que a esperança cristã nos deve dar novo fôlego e,
por pura fé, nos fazer regozijar no Senhor pela libertação que ele ainda não
produziu. Independente dos detalhes dos planos de Deus para nós, sabemos
que o resumo deles é que ele cuidará dos nossos dias com todo seu amor até
nos receber no eterno lar, onde jamais sofreremos injustiça ou qualquer outro
tipo de mal. Portanto, lembre-se: “Tenha paciência! As dores fortes vão
passar. E mesmo que demorem um pouco para que isso ocorra, não desanime,
pois a crise vai passar”.

SALMO 36
O Maior de Todos os Contrastes

Em minha família, somos três irmãos: dois homens e uma mulher. Meu
irmão mais novo é alguém muito alegre e animado, assim como eu mesmo
costumo ser. Mas há um fator interessante entre nós: somos, no geral,
extremamente diferentes. Nossos gostos são diferentes. Nossos hábitos nem
sequer se parecem. Nossas habilidades são distintas. Fizemos cursos
superiores de áreas opostas. Nossas amizades nunca se dariam bem entre si.
Até nossa aparência difere, de modo que as pessoas que nos conhecem há
pouco tempo nem imaginam que somos irmãos. É difícil acreditar que fomos
gerados no mesmo ventre e educados no mesmo lar. Apesar de tanta
diferença, nos damos bem porque ainda guardamos muitas semelhanças e
compartilhamos de muitos valores.
Por maiores que sejam os contrastes entre meu irmão e mim, há um muito
maior. No Salmo 36, o rei Davi evidencia os contrastes entre o homem ímpio
e o Deus santo. Muitos são os contrastes nesse texto e eles podem ser
identificados sob diversas ópticas. Um deles é o disparate entre a ausência de
bem no injusto e a fartura das qualidades divinas e das bênçãos vindas de
Deus. Se precisássemos traduzir isso em termos de metragem, mediríamos o
pecador na escala de milímetros, enquanto o Senhor seria representado na
escala dos quilômetros.
O primeiro desses contrastes se dá no campo da confiabilidade. O homem
que não segue Deus não é alguém em quem se possa confiar. Seus padrões
morais e éticos não são guiados pela verdade e pela retidão. Há nele ausência
de um caráter justo (v.1), pois “não há temor de Deus diante dos seus olhos”
(’ên-pahad ’elohîm leneged ‘ênayw). Assim, não há limites nem escrúpulos
naquilo que faz, visto não ter medo de ser julgado por alguém superior aos
homens. Diante de tal ausência, Deus superabunda em termos de confiança
para os que o seguem (v.6), pois “aos céus chegam a tua fidelidade, ó Senhor;
a tua confiabilidade chega até as estrelas” (yehwâ behashamayim hasdeka
’emûnateka ‘ad-shehaqîm). Se pensarmos bem, não há como medir os
atributos do Deus ilimitado. Assim, quando o salmista cita os céus e as
estrelas, não é para oferecer uma medida ou um alcance exato, mas para
exaltar a “fartura” de tais atributos. É a comparação entre a ausência de
veracidade no homem amigo do pecado e a abundância da confiabilidade do
Senhor. É uma imagem que vislumbra a pequena estatura de um homem
comparado à distância entre o chão e as estrelas. É um contraste e tanto!
O segundo contraste está na área da justiça. O ímpio se sente bem com
seus procedimentos injustos. O v.2 diz que “ele lisonjeia a si mesmo aos seus
olhos” (hehelîq ’elayw be‘ênayw). Significa que ele se parabeniza ao
contemplar o seu pecado, a sua culpa e a sua ausência de justiça. Destilar sua
maldade sobre os outros não lhe causa rubor nem lhe afeta a consciência.
Antes, faz com que se vanglorie disso. Por outro lado, Deus transborda de
justiça (v.6): “A tua justiça é como as montanhas de Deus; o teu juízo é como
um oceano muito profundo” (tsidqateka keharrê-’el mishpateka tehôm ravvâ).
Mais uma vez, a grande dimensão das montanhas e a profundidade e tamanho
dos mares representam o proceder justo do Senhor. Aliás, não há ninguém
mais justo que ele. Sua justiça nem sequer pode ser mensurada.
O terceiro se dá no relacionamento. Relacionar-se com os injustos é difícil
e perigoso pela ausência da benignidade, ou seja, a disposição de promover o
bem alheio. Falando do homem ímpio, Davi afirma que (v.3) “as palavras da
sua boca são falsidade e traição” (divrê-pîn ’awen ûmirmâ). Conviver com
pessoas assim é um grande risco, pois, não somente não são confiáveis, como
também tramam males contra o próximo. Enquanto apertam as mãos das
pessoas, pensam em como causar-lhes dano para promover o benefício
pessoal. Suas palavras são boas aos ouvidos, mas suas tramas abrem uma
cova para quem os acolhe. Os homens ao redor devem se afastar dos injustos
a fim de se protegerem. De modo diametralmente oposto, a proximidade do
Senhor é o que protege seus filhos. Sobre Deus, diz o salmista (v.7): “Os
filhos do homem se protegem à sombra das tuas asas” (benê adam betsel
kenafeika yehesayûn). Como um grande pássaro, mais forte e poderoso que os
predadores, o Senhor protege aqueles que o buscam. Essa proteção é efetiva e
tem como razão a “benignidade” do Senhor. Ele não vira o rosto para quem o
busca. Antes, se relaciona com eles em meio à bondade. Ele oferece um
relacionamento extremamente saudável para seus servos, assim como um pai
ao se relacionar com os filhos ou como uma ave que abraça e protege seus
filhotes.
O quarto contraste surge na área do auxílio. Se pensarmos em termos de
ações positivas e benéficas em relação a outras pessoas, nosso modelo nunca
pode ser o homem injusto, pois (v.3) “ele renunciou ao entendimento e à
prática do bem” (hadal lehaskîl lehêtîv). O senso comum do bem não está
nesse homem. Ele age como se ignorasse os conceitos relacionados a fazer o
bem aos outros. Ninguém pode esperar dele um auxílio verdadeiro e
desinteressado, pois tais atos são desconhecidos para ele. Por outro lado, se
os servos do Senhor necessitam do auxílio divino (v.8), “eles se saciam de
gordura da tua casa” (yirweyun middeshen). Essa é a imagem de um homem
faminto sendo alimentado por um anfitrião generoso. O benfeitor oferece
comida em abundância; nada falta. Além disso, trata-se de uma comida
nutritiva que sustenta o faminto – deve-se levar em consideração que, nos
dias do salmista, a gordura, diferente de hoje, não era vista sob uma óptica
negativa, como produtora de doenças, mas como uma parte importante da
alimentação. Assim, Deus age como um benfeitor que supre as necessidades
dos aflitos de modo generoso e abundante. Esse fato é corroborado na
sequência do texto: “Tu lhes dá de beber da torrente das tuas delícias” (nahal
‘adaneyka tashqem). O auxílio divino é farto e fruto da sua bondade.
O último contraste está no caráter. O v.4 diz que o perverso “trama o mal”
(’awen yahshov). Entretanto, essa não é a causa do seu caráter perverso, mas
o efeito dele. O motivo de esse homem agir assim é que “ele não recusa a
maldade” (ra‘ lo’ yim’am). A perversidade faz parte dele. Seu caráter é assim
e, por isso, ele nunca se tolhe das más ações, nem se refreia. Tal homem vive
escravizado nas trevas do pecado. Deus é o oposto disso, pois, segundo o
salmista (v.9), “em ti está a fonte da vida; na tua luz nós vemos a luz”
(‘immeka meqôr hayyiym be’ôreka nir’eh-’ôr). O caráter de Deus é santo, justo
e amoroso, o que é representado, pelo salmista, por meio da ideia de “luz”.
Pela observação da natureza divina relevada nas Escrituras, o servo do
Senhor tem seu caminho iluminado e sabe por onde andar com segurança.
Ele, mirando no Deus santo e vivo, é preenchido com a verdadeira vida. Tudo
isso com sobra e abundância.
A aplicação desses tão grandes contrastes vem na forma de uma oração do
salmista ao Senhor. Ele, que parece ter desistido de confiar na força e na
sabedoria humana, talvez cansado de sofrer tantas decepções, roga a Deus
(v.10): “Alongue a tua bondade aos que te conhecem e a tua justiça aos que
são retos de coração” (meshok hasdeka leyode‘eyka wetsidqotka leyishrê-lev).
A confiança de Davi está na manutenção diária e abundante da bondade do
Senhor para com seus servos. Não poderia haver um contraste mais vantajoso
para os que creem em Deus e lhe são seguidores. Se o homem não é
confiável, o Senhor é a fonte de toda a confiança. Se o homem trama
armadilhas, Deus protege seus filhos delas. Se os pecadores são maus, Deus é
o exemplo máximo da bondade. A pergunta que fica é: “O que você quer?
Seguir os caminhos secos e tortos dos incrédulos, ou saborear a vida e a
santidade que vem de Deus a da sua Palavra?”
SALMO 37
Pequenas Brechas que Crescem

Havia um homem, em Nova Jersey (EUA), que morava ao lado de uma


rodovia. Todos os dias ele via milhares de carros passarem diante da sua
porta. Imagino que fosse uma casa muito barulhenta. Certo dia, esse homem,
olhando pela janela, notou o surgimento de um pequeno buraco no asfalto da
rodovia. Imediatamente, ele se propôs a deixar o conforto do seu lar e tampar
aquele buraco. O interessante foi o que ele disse após fazer esse pequeno,
mas importante gesto: “Me custou apenas um minuto. E eu, provavelmente,
economizei centenas de dólares de motoristas que passam por aqui. Isso
precisava ser feito e eu não estava ocupado”. Que lição inspiradora sobre
responsabilidade pessoal, abnegação e consideração pelos outros!
Há mais uma importante lição nessa história que não tem relação direta
com o benfeitor, mas com o buraco em si. Não houve maiores danos aos
motoristas e aos seus veículos porque o buraco foi fechado a tempo.
Entretanto, aquela pequena e, até então, inofensiva brecha no asfalto,
certamente continuaria a crescer e faria o que o homem de Nova Jersey
previu e evitou. Pequenas brechas, quando não reparadas, sempre crescem e
causam danos. Sempre!
Um campo fértil para problemas desse tipo é o coração do homem. E,
talvez, nenhuma outra brecha cresça mais que os sentimentos ruins e
pecaminosos. É provável que nenhum outro problema cause mais sofrimentos
e conflitos que corações magoados, enraivecidos e cobiçosos. Davi percebeu
algumas brechas nos corações dos servos de Deus e ensinou, no Salmo 37, a
importância de evitar que cresçam. Podemos identificar, nesse salmo, pelo
menos cinco sentimentos que os justos devem evitar.
O primeiro é a inveja. O contexto do salmo coloca os servos de Deus,
pessoas a quem Davi se dirige, diante de ímpios que, em lugar de sofrerem o
castigo de Deus por sua maldade, estavam prosperando com ela. Os justos,
por sua vez, não viam dias tão bons, nem desfrutavam de uma alegria como
“aparentemente” desfrutavam os ímpios. Essa situação revoltante fazia com
que os justos os invejassem, pelo que Davi lhes diz (v.1): “Não sinta inveja
daqueles que praticam a injustiça” (’al-teqanne’ be‘osê ‘awlâ). Podemos até
entender tal sentimento. Não é fácil lutar contra as dificuldades da vida para
ser uma boa pessoa e suprir sua família, enquanto se vêm homens desonestos
prosperando com a maldade. É certo que, um dia, todos os injustos serão
punidos pelo mal que cometeram (v.6). Mas, por hora, o pesar recai sobre o
justo que os vê, incólumes, praticar o mal. Por um lado há o sentimento de
revolta; por outro, a inveja e o desejo de também prosperar seguindo os
mesmo expedientes. Tal sentimento, ao crescer no coração do justo, traz a ele
corrupção e desvio. A receita de Davi para evitar esse mal é confiar no
Senhor (vv.3a,5): “Confie no Senhor e faça o bem [...] Entregue ao Senhor o
teu caminho e confie nele, pois ele agirá” (betah bayhwâ wa‘aseh-tov [...] gôl
‘al-yehwâ darkeka ûbetah ‘alayw wehû’ ya‘aseh).
O segundo é a ira. Davi aconselha os justos (v.7) da seguinte maneira:
“Não se exaspere por causa daquele que faz prosperar o seu caminho, o
homem que costuma fazer ardis” (’al-tithar bematslîah darkô be’îsh ‘oseh
mezimmôt). Apesar de o conselho ser claro, Davi não se contentou apenas
com ele. Tudo indica que a ira no coração dos justos, ao ver os ardis bem
sucedidos dos ímpios, os fazia arder sobremaneira. Portanto, Davi repete o
ensino de maneira mais séria e grave (v.8): “Abandone a ira; deixe a
indignação” (heref me’af wa‘azov hemâ). A preocupação primária de Davi
não é diretamente com os injustos ou com o que os justos possam, em sua ira,
fazer a eles. Davi olha para os servos de Deus e teme pelo que a ira pode lhes
causar, já que completa: “Certamente, isso serve para causar danos” (’ak-
lehareah). Como remédio a esse sentimento crescente e destrutivo, o salmista
oferece a esperança futura para os que agem da forma oposta (v.11): “Mas os
mansos herdarão a terra e desfrutarão de fartura de paz” (wa‘anawîm
yiyrshû-’arets wehit‘annegû ‘al-rov shalôm). Tal esperança é tão viva que
Jesus a incentivou no sermão do monte (Mt 5.5).
O terceiro sentimento a ser evitado é a ganância. O salmista deixa
transparecer o receio de ver seus irmãos imersos nesse sentimento ao graduar
o valor das riquezas usando a escala da justiça e da honestidade (v.16): “Bom
é o pouco para o justo mais que a riqueza de muitos ímpios” (tôv-me‘at
latsaddiq mehamôn resha‘îm ravvîm). Certamente seus leitores não
invejavam apenas os lucros das ações corrompidas, mas as riquezas que tais
ações acumulavam. Por outro lado, é possível que tivesse surgido neles uma
grande insatisfação com suas posses humildes, sem falar na ingratidão a Deus
pelo suprimento diário. Dá para entender a preocupação do salmista. Para
sanar esse tão grave desvio do coração, Davi oferece uma certeza mais que
confortante: o cuidado que o Senhor tem pelos seus servos. Diz ele, no v.19:
“Não serão envergonhados em tempos de calamidade, mas se saciarão nos
dias de fome” (lo’-yevoshû be‘et ra‘â ûbîmê re‘avôn yisba‘û). Não importa se
o servo de Deus não tem os recursos financeiros que garantem sua paz, pois
Deus, que é o dono de tudo, supre a necessidade dos seus filhos. A esperança
nos bens é passageira e inexata, enquanto, conforme revela o salmista, a
esperança em Deus é segura e fundamentada em um amor que nunca passa.
O quarto é o egoísmo. A ganância nem sempre é egoísta, mas o egoísmo
sempre é ganancioso. Por isso, diz o salmista (v.21), “o ímpio toma
emprestado e não restitui” (loweh rasha‘ welo’ yeshallem). A ganância do
ímpio não deixa que ele se incomode com o fato de prejudicar o outro. Nesse
ponto, seu egoísmo se revela: ele tem lucro sobre o prejuízo alheio, como se
somente o seu bem-estar e os seus interesses importassem. Esse é um
sentimento contra o qual o servo de Deus deve lutar o tempo todo, já que,
depois do pecado, o homem desenvolveu naturalmente uma disposição
egoísta. O objetivo do crente deve ser agir de forma contrária: “O justo,
contudo, tem compaixão e dá” (wetsadîq honen wenoten). É impressionante a
diferença! Em lugar de usurpar, como fazem os ímpios, o justo dá sem
esperar ser restituído. É o contrário do sentimento egoísta. Note bem: não se
trata de esbanjar, mas de auxiliar amorosamente. É um sentimento que faz jus
ao ensino de Paulo em Romanos 13.8: “A ninguém fiqueis devendo coisa
alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros”. Para encorajar tal
atitude, Davi lembra que, apesar da frequente escassez de posses nessa vida,
os servos de Deus serão possuidores de uma herança inigualável no futuro
(v.22): “Pois aqueles que são abençoados [pelo Senhor] herdarão a terra” (kî
meboracayw yiyrshû ’arets).
Por fim, o quinto sentimento a ser evitado é a malícia. Como importante
orientação, Davi ordena (v.27): “Afaste-se do mal e faça o que é bom” (sûr
mera‘ wa‘aseh-tov). Trata-se das ações malignas cujas motivações são da
mesma natureza. É um sentimento malicioso o responsável pelas más ações.
Por isso, o salmista oferece, em lugar da maldade, as boas ações como padrão
de vida para o servo de Deus. É um movimento duplo: se afastar do mal e se
apegar ao bem. O apóstolo Paulo ensinou o mesmo aos efésios: “No sentido
de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se
corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito
do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo
Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4.22-24). Entretanto,
devemos nos lembrar que essa batalha deve ser travada, em primeiro lugar,
no coração, já que Jesus afirmou que é dele que vêm as ações que
contaminam o homem: “Porque do coração procedem maus desígnios,
homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias”
(Mt 15.19). Por isso, o remédio que Davi oferece para impedir que a malícia
cresça no coração dos filhos de Deus é a transformação que ele sofreu na sua
conversão e a adoção da Palavra do Senhor onde antes só havia malícia e
corrupção (v.31): “Ele tem, no seu coração, a instrução do seu Deus” (tôrat
’elohayw belivvô).
Inveja, ira, ganância, egoísmo e malícia são sentimentos que têm muito em
comum. Eles acometem os servos do Senhor, causam destruição e crescem se
não forem impedidos a tempo. Isso faz com que seja primordial tanto a
atenção a eles como a decisão de abandoná-los e vencê-los. Muitas vidas
santas se deterioraram na história da igreja de Cristo por descuido e
autoconfiança em relação ao combate a esses males. Em um aspecto, são
muito parecidos com aquele buraco na rodovia da Nova Jersey: eles crescem
se ninguém os combater. Por outro lado, diferem daquele buraco em relação à
gravidade, pois não há dólares suficientes em termos de prejuízo que tornem
qualquer buraco mais destrutivo que os sentimentos pecaminosos florescendo
no coração do justo. Tampe esses buracos a fim de ter uma viagem feliz e
segura, sendo guiado e protegido pelo do nosso Senhor.

SALMO 38
Há Esperança para Mim?

No dia 17 de dezembro de 1927, um submarino da classe S-4 sofreu uma


colisão acidental com um navio da guarda costeira americana na costa de
Massachusetts (EUA). Avariado, o submarino, com 38 tripulantes, afundou
rapidamente até tocar o fundo do oceano, pouco mais de trinta metros abaixo
da superfície. Um grande número de navios com equipes especializadas se
uniu para tentar o resgate dos tripulantes. Apesar de todo o aparato utilizado,
a dificuldade não se resumia a um procedimento delicado em um lugar de
difícil acesso, mas a fazê-lo movido pela extrema urgência que a situação
exigia. Nenhum esforço teria êxito se os marinheiros morressem por falta de
oxigênio. Tanto as equipes de resgate como os marinheiros no submarino
sabiam disso.
Um mergulhador, se aproximando do submarino, encostou seu capacete no
casco e ouviu batidas vindas de dentro. Rapidamente, percebeu tratar-se de
uma mensagem em código Morse. Ela vinha de seis sobreviventes alojados
na sala de torpedos dianteira. Depois de estimarem que o suprimento de
oxigênio acabaria em cerca de 48 horas, a pergunta codificada que retumbava
dentro do enorme sepulcro de aço era: “Há alguma esperança?”. Às vezes, a
única coisa que resta ao homem é a esperança.
Se há alguém que soube o que é andar na corda bamba da vida apoiado
apenas pela vara da esperança, esse alguém foi Davi. A diferença, entretanto,
entre o rei de Israel e os marinheiros naufragados do S-4 é que os marinheiros
foram vítimas de um infeliz acidente, enquanto Davi foi vítima das
consequências do seu pecado. O Salmo 38 revela, em meio ao pedido de
perdão do salmista, a gravidade das consequências dos seus atos, ao passo
que frisa a esperança que tinha de ser perdoado e aliviado do fardo por meio
da bondade do Deus a quem servia.
O início do salmo mostra que o escritor, que bem conhecia seus atos,
interpretava o intenso sofrimento que atravessava como uma dura – e
merecida – punição por parte do Senhor (v.2): “Pois tuas flechas se fincam
em mim e cai sobre mim a tua mão” (kî-hitseyka nihatû bî watinhat ‘alay
yadeka). Por isso mesmo, seu pedido a Deus é (v.1): “Ao repreender-me, ó
Senhor, não o faças na tua ira, nem me castigues na tua irritação” (yehwâ ’al-
beqetspeka tôkîhenî ûbahamateka teyasserenî). Esse pedido visa a que Deus
limite seu castigo a fim de não destruir o salmista. Apesar da dureza com que
Deus o tratava nesse momento, Davi não culpa o Senhor nem lhe acusa de
injustiça. Na verdade, ele declara saber que o que sofre vem da sua própria
iniquidade (vv.3,4): “Não há bem-estar nos meus ossos por causa do meu
pecado, pois as minhas iniquidades ultrapassaram a altura da minha cabeça”
(’ên-shalôm ba‘atsamay mipenê hatta’tî kî ‘aônotay ‘ovrû ro’shî). Diante
disso, a atitude de Davi é exatamente aquela ensinada nas Escrituras. Ele
busca o Senhor e confessa a ele seu pecado, dizendo (v.18): “De modo que eu
confesso a minha culpa; estou inquieto devido ao meu pecado” (kî-‘aônî
’agîd ’ed’ag mehatta’tî).
A situação caótica enfrentada pelo escritor, descrita ao longo de todo o
salmo, não o fez desistir. É comum ver homens cometendo loucuras ao se
verem abatidos pelas reviravoltas da vida. Talvez Davi tivesse mais razões
para isso que a maioria dos que passam por duras provas. É certo que não era
a primeira vez que sofria perseguição de inimigos. Nelas, Davi sempre
mostrou forte convicção de que Deus olhava para a injustiça dos adversários
e o livrava das suas mãos. Mas essa situação era diferente. Quem o perseguia
dessa vez era a mão do Senhor punindo-lhe o pecado. O protetor divino,
nessa ocasião, era a fonte da dura disciplina. Mesmo assim, Davi permaneceu
de pé e, mesmo manco por causa dos golpes, prosseguiu sua jornada. O
motivo foi a esperança que tinha no próprio Senhor Deus. Podem-se notar, ao
longo do salmo, pelo menos quatro razões para a esperança de Davi na
situação desesperadora em que vivia.
A primeira razão para a esperança era a certeza de ser ouvido em oração.
As esperanças de Davi se revelam nos seus pedidos. Ele orava porque
acreditava que Deus o atenderia e isso o enchia de esperanças. Por isso ele se
dirige ao Senhor dizendo (v.9): “Diante de ti, ó Senhor, está todo o meu
lamento e a minha ansiedade não é oculta a ti” (’adonay negdeka kol-ta’awatî
we’anhatî mimmeka lo’-nistarâ). Davi sabia que não estava tratando com um
juiz impiedoso diante de quem não se pode pedir clemência. Conhecedor do
caráter divino, o salmista olha com esperança para a oração. Ele tem a certeza
de que Deus a ouvia e não se endurecia diante dela, além de notar, dentro do
coração do pedinte, a veracidade do seu quebrantamento. O escritor se
aquecia ao saber que Deus reagiria de modo compatível com seu caráter
diante do filho que implora o perdão do pai e que se derrama em lágrimas
com suas dores à vista.
A segunda razão para esperança era o relacionamento inquebrável com
Deus. Davi sabia da capacidade do Senhor no que tange ao conhecimento de
tudo e de todos, conforme demonstra no Salmo 139. Tal capacidade fazia
com que Deus conhecesse os pontos positivos do salmista, ao mesmo tempo
em que conhecia todo o seu pecado e impureza. Se Davi sabia que estava
sendo disciplinado, sabia também que Deus tinha ciência da sua iniquidade.
Ainda assim, ele revela confiança de isso não faria com que o Senhor o
rejeitasse definitivamente. Logo (v.15), ao dizer “em ti eu espero, ó Senhor”
(leka yehwâ hôhaletî), ele chama o mesmo Senhor de “meu Deus” (’elohay).
Para Davi, o Senhor continuava sendo o “seu” Deus. Tal relacionamento não
pode se quebrar porque a fidelidade do Senhor, e não a do homem, o mantém
nas situações adversas. No pecado, o Senhor disciplina o filho, mas não o
deserda.
A terceira razão é a presença constante do Senhor. O próximo pedido do
rei de Israel, ao qual tem esperanças de ver atendido pelo bom Deus, é (v.21):
“Não me abandone, ó Senhor meu Deus; não se afaste de mim”. Davi
certamente se lembrava de como o Senhor tratou Saul, retirando dele seu
Espírito e entregando-o aos tormentos do maligno (1Sm 16.14). Entretanto,
Saul, diferente de Davi, nunca demonstrou a disposição de servir de fato a
Deus, de crer nele e de se deixar guiar pelo soberano Senhor. Com o passar
do tempo, foi se endurecendo cada vez mais e terminou a vida em rebeldia. O
salmista não era assim e sua esperança era receber um tratamento diferente do
que foi dado ao antigo rei. Desse modo, sua esperança está no fato de que
sabia ser muito razoável pedir a Deus que não se afastasse dele e
permanecesse junto dele, mantendo também a comunhão. O Pai nunca
abandona seus filhos, mas permanece sempre ao seu lado.
A quarta razão para esperança era a confiança na sabedoria divina. Davi,
ao ver a situação de urgente necessidade que atravessava, faz uma ressalva
interessante em seu pedido (v.22): “Se apresse em socorrer-me, ó Senhor”
(hûshâ le‘ezratî ’adonay). Digo se tratar de uma ressalva interessante, pois ela
não está sempre presente nas orações davídicas. Enquanto a confiança na
bondade de Deus sempre transparece, a urgência nem sempre se faz perceber
nas poesias desse salmista. Contudo, esse é um caso diferente. A perseguição
dos inimigos parece ser tão feroz que o livramento urgente é necessário para
que Davi não pereça na mão deles. E, ao que parece, ao orar pedindo que
Deus se apresse ao socorrê-lo, Davi transmite a esperança de que a sabedoria
de Deus é capaz de avaliar cada situação e tratá-la de maneira individual, não
como uma força impessoal e mecânica, mas como um sábio que conhece as
peculiaridades das pessoas e das circunstâncias. Caso contrário, seria inútil
orar desse modo.
Infelizmente, a esperança dos marinheiros do S-4 foi inútil. Uma forte
tempestade atrasou o resgate e as opções escolhidas para o salvamento se
mostraram equivocadas. Todos morreram e a esperança dos marinheiros
pereceu com eles. Por decepções como essa, talvez muitos crentes, ao
pecarem, se afastam de Deus não somente pela iniquidade dos seus atos, mas
pela falta de esperança de continuarem a ser amados por ele. Desse modo, já
que a comunhão foi ferida pelo pecado, eles terminam de matá-la se
entregando ainda mais ao descaso e à falta de arrependimento. O ensino desse
salmo é que tais posturas são erradas e inúteis, visto que Deus está pronto a
perdoar o pecador arrependido. Essa é a melhor esperança que o pecador
contrito pode ter: a de que será recebido nos braços do Pai quando volta para
casa. Portanto, abandone seu pecado e busque o Senhor. Nele, a esperança
dos cristãos nunca naufraga.

SALMO 39
Como Agir no Meio da Crise?

O mês de março de 2011 ficará marcado na história da humanidade como a


ocasião em que o mundo viu uma grande tragédia: o tsunami no Norte do
Japão. Até antes de dezembro de 2004, quando um incidente da mesma
natureza deu-se na Indonésia, quase ninguém tinha ouvido falar do termo
tsunami. De lá para cá, duas terríveis ocorrências fizeram o mundo não
apenas conhecer o termo, mas também os fatores que causam os tsunamis e
sua capacidade tremendamente destrutiva. Nesse período, o mundo também
lamentou terremotos, guerras civis, ciclones, enchentes e grandes
deslizamentos de terra.
Quando eventos catastróficos ocorrem, as pessoas, ainda que distantes,
sentem um enorme pesar e são incomodadas com questões relativas às
“razões de acontecerem coisas ruins perante os olhos de um Deus bom”.
Diante disso, as reações das pessoas são as mais diversas. Uns dizem que
Deus não existe. Outros, que ele não ama de verdade as pessoas e, por isso,
não deve ser servido ou adorado. Há até quem, desejando justificar o Senhor
– como se ele necessitasse de advogados –, diz que essas infelicidades são
ocorrências alheias ao divino controle. Seriam apenas más sortes na esfera do
acaso. Alguns desses “defensores” chegam a dizer, de modo absurdamente
antibíblico, que Deus nem sequer sabia que tais catástrofes aconteceriam.
Apesar da tolice de tais afirmações, uma pergunta permanece: “Como os
cristãos de verdade devem se comportar diante de tragédias e situações de
crise?”. O Salmo 39 ajuda a responder, do ponto de vista do servo desejoso
de honrar a Deus, como reagir quando o mundo parece desabar. O tema é tão
importante para aqueles que pertencem a Deus, que Davi, autor do salmo,
dirigiu a recém-escrita obra aos cuidados de Jedutum, um dos homens
responsáveis pelo louvor a Deus no tabernáculo israelita (1Cr 25.1,3). Assim,
o salmo seria repetidamente cantado e serviria de testemunho a todos os que
adoravam, no tabernáculo, o Deus verdadeiro. A utilidade do salmo vem de
ele apresentar quatro reações necessárias ao servo de Deus em tempos de
crise.
A primeira reação é abster-se de murmurar contra Deus. O texto não
revela a situação específica de Davi, mas é claro em informar que não se
tratava de um problema qualquer. Davi atravessava uma grave crise. O v.13
deixa transparecer que ele corria risco iminente de morte, já que pede por
livramento, dizendo: “Antes que eu parta e já não exista” (beterem ’elek
we’ênenî). Essa é uma situação em que é comum se ver discípulos do Senhor
se sentirem no direito de murmurar até mesmo contra Deus. É como se tais
pessoas imaginassem que Deus, ao não evitar o mal, dá permissão para que se
digam absurdos, de modo irresponsável, sem que ele leve em conta. O
salmista, talvez conhecedor dessa tendência humana, tomou providências
para não incorrer nesse tipo de desvio. Ele propõe a si o seguinte (v.1):
“Guardarei os meus caminhos de pecar com a minha língua” (’eshmerâ
derakay mehatô’ bilshônî). A tentação de falar o que era indevido era tão
grande que Davi usa uma palavra forte para dizer como evitaria o mal. O
verbo hebraico “guardar” (shamar), na forma do particípio, é o termo usado
para se referir a um guarda, uma sentinela, um vigia.
Além de não querer pecar contra Deus, o salmista também estava
preocupado com seu testemunho perante o mundo. Assim, quando põe freios
na língua, o faz especialmente diante dos incrédulos – “que eu coloque uma
mordaça na minha boca sempre que o ímpio estiver na minha presença”
(’asîmâ lepî mahsôm be‘od rasha‘ lenegdî). O interesse dos incrédulos não é,
via de regra, meditar sobre a atuação de Deus diante do sofrimento e analisar
o ensino bíblico que trata o assunto. Seu primeiro impulso é atacar o Senhor e
justificar a postura humana de rebeldia e de incredulidade em relação a Deus.
Davi, ainda que acometido pelo sofrimento, não queria injetar combustível na
acusação pérfida dos pecadores. Resumindo, o salmista não acha que a
situação difícil que vive é um passe livre para pecar falando coisas injustas,
nem tampouco demonstrar ingratidão por todo o bem que Deus já lhe tinha
feito.
A segunda reação é reconhecer a transitoriedade do homem. Uma
dificuldade que os homens têm de atravessar as tragédias que os assolam é
que eles, às vezes, colocam nessa vida sua esperança e seus objetivos finais.
Essa é uma característica da vida de quem não tem a esperança da vida
eterna. Contudo, os próprios servos de Deus podem se esquecer de onde está
seu verdadeiro tesouro (Mt 6.19,20) e quanto tempo passarão na presença do
Senhor na pátria celestial (1Ts 4.17). Quando isso acontece, o mundo
presente passa a ser fator fundamental para dar sentido às suas vidas e ser
fonte de felicidade. É natural, para quem vê a vida sob esse prisma falho, que
ela perca o sentido quando as circunstâncias são dramáticas. O salmista
parece não sofrer desse mal. Diante do sofrimento, ele olha para o caráter
passageiro dessa vida a fim de aguçar sua esperança na vida futura. Diz ele ao
Senhor (v.5): “A minha longevidade é como nada diante de ti. É certo que
todo homem, incluindo aquele que é firme, não é mais que um sopro” (heldî
ke’ayin negdeka ’ak kol-hevel kol-’adam nitsav). Essa visão da fragilidade do
homem e do breve limite da vida faz com que o salmista não se surpreenda
demais ao ver o sofrimento ao seu redor e o faça esperar pelo alívio da vida
com Deus (Ap 21.4).
A terceira reação é buscar a purificação da vida. Davi, ao olhar para seu
sofrimento, não acha que ele é uma má sorte de um curso cego. Ele sabe que
Deus é soberano e que comanda o rumo da vida de cada ser humano (Sl
139.16). Sendo assim, o escritor vê, na sua situação, o propósito e a ação do
Senhor, visto que declara (v.9): “Fico em silêncio e não abro minha boca,
pois tu fizeste isso” (ne’elamtî lo’ ’eftah-pî kî ’attâ ‘asîta). A conclusão a que
Davi chega, conhecendo suas próprias ações, é que, entre os desígnios
insondáveis do soberano, está presente uma ação disciplinar. Portanto, sem
perder mais tempo, ele roga (v.8): “Livra-me de todos os meus pecados”
(mikal-pesha‘ay hatsîlenî). Isso não quer dizer que todo sofrimento da vida
seja uma disciplina de Deus. Mas, certamente, cada um conhece seu próprio
andar e tem bases para avaliar o modo de Deus tratá-lo. De qualquer forma, o
sofrimento é sempre uma oportunidade e um convite ao arrependimento e à
conversão, já que o homem se depara com sua fraqueza diante do poder do
Todo-poderoso que é santo.
A última reação necessária ao servo de Deus que atravessa uma crise é
dobrar-se em oração ao soberano. Essa reação pode parecer óbvia, mas, em
muitos casos, custa muito a ser efetivada. O homem, diante da crise, tem
muito mais inclinação para a murmuração e para busca das próprias soluções
do que a disposição de depender de Deus e orar pedindo alívio e direção.
Muitas vezes, por arrogância e autossuficiência do homem, essas atitudes
tipicamente cristãs são aplicadas somente quando não há mais recursos. Davi
não apresentou essa postura. Ao ver o perigo se acercando dele, curvou-se
diante de Deus e pediu (v.12): “Ouve a minha oração, ó Senhor, e dá ouvidos
à minha súplica” (shim‘â-tefillatî yehwâ weshaw‘atî ha’azînâ). Independente
das circunstâncias, Deus sempre quer que seus servos levem a ele suas
petições e lhe apresentem, com atitude de submissão, seus sofrimentos e
tristezas (Fp 4.6) – principalmente em momentos como esse.
As notícias de tragédias continuarão a ocupar os noticiários. Por mais que a
humanidade desenvolva novas tecnologias de previsão e de prevenção de
catástrofes, é certo que ainda veremos muito sofrimento acometer a
humanidade. Nessas horas, em lugar de tentar definir o que se não pode
esquadrinhar (Rm 11.33-35), a igreja de Cristo deve se portar como um servo
de um bom rei e não como um cliente mal-atendido de um restaurante. Os
discípulos de Cristo, em lugar de questionar a sabedoria e a bondade do
Senhor, devem aproveitar para divulgar a mensagem da cruz de Cristo ao
mundo perdido. Devem, também, deixar de rebaixar o Senhor a um
espectador impotente diante dos eventos do mundo com a finalidade de
protegê-lo de críticas. Em lugar disso, devem proclamar sua soberania, pela
qual ele guiará a história da humanidade até o “Dia do Senhor” – o juízo do
mundo –, quando separará os que lhe pertencem daqueles que receberão a
punição por rejeitarem a Cristo. Devem os servos de Deus, em todo
momento, testemunhar que o Senhor, em lugar de produzir um céu na Terra,
ou as bênçãos do futuro no tempo presente, é aquele que, em “verdadeiro
amor”, enviou seu Filho para dar a vida pelos pecadores (Jo 3.16; 1Jo 4.10) a
fim de conduzi-os à eterna pátria onde nada mais os abalará.

SALMO 40
Atividades que Marcam a Verdadeira Religião

Desde pequeno, me acostumei a notar, em diversas casas, alguns artefatos


que revelavam certa religiosidade – ou superstição – de pessoas conhecidas
da minha família. Budas, elefantes virados com a tromba para a parede,
pequenas estátuas pousadas sobre notas de dólar, velas dispostas em
pequenos altares nos cantos dos cômodos, cristais coloridos sobre as mesas,
livros de meditação, cartas de adivinhação, quadros com temas religiosos,
vasinhos com arruda e uma série de outros objetos dos quais nem consigo me
lembrar.
Apesar dessa variedade, um item me parecia ser unanimidade entre os
possuidores de tais hábitos: uma Bíblia aberta. Embora poucas dessas pessoas
tenham o hábito de ler a Bíblia, a maioria supõe que a presença dela, com as
páginas à vista, transmite uma espécie de “energia positiva” ou de “bons
fluidos”, protegendo a casa de forças negativas. E mesmo com o
desconhecimento grotesco do uso das Escrituras, tais pessoas sabem onde
estão alguns textos que falam de proteção divina. Nesse sentido, o Salmo 40 –
quase tanto quanto o 91 – é um dos textos mais utilizados para, segundo essa
visão supersticiosa, proteger a casa e abençoar seus moradores.
O que tais pessoas ignoram é que a proteção presente nesse texto é a que o
Senhor – e não uma página de livro – aplicou ao seu servo Davi. Trata-se de
uma oração por livramento que apresenta, no seu corpo, diversas atividades
que marcam a verdadeira adoração ao Senhor. Longe daquela religiosidade
popular e intuitiva, esse salmo apresenta cinco atividades presentes na
verdadeira religião, ou seja, no relacionamento entre o homem salvo e seu
Deus salvador.
A primeira atividade que marca a verdadeira adoração é recordar com
gratidão das bênçãos divinas. Diz-se que “brasileiro tem memória curta”.
Mas quando o assunto é o relacionamento com o Senhor, pessoas de todas as
nações, igualmente, tendem a olhar para o presente e se esquecer do que Deus
fez no passado. O salmista tinha o passado vívido em sua mente. Ele diz
(v.1): “Confiei plenamente no Senhor e ele se inclinou para mim” (qawwoh
qiwwîtî yehwâ wayyet ’elay). Nem mesmo as preocupações que invadiam o
coração do salmista o faziam esquecer as coisas que Deus lhe fez no passado,
nem as respostas de oração que ele testemunhou. Esse “inclinar” de Deus,
aproximando-se do servo, era algo vivo na memória de Davi lembrando-o de
que Deus tinha e mantinha com ele um relacionamento amoroso e
interessado. O resultado é a inevitável gratidão do salmista expressa no v.3:
“Ele pôs na minha boca um cântico novo, louvor ao nosso Deus” (wayyitten
bepî shîr hadash tehillâ le’lohênû). A gratidão vinda das recordações dos atos
divinos explodia no salmista em forma de louvores e cânticos.
A segunda atividade é priorizar a confiança no Senhor. Sempre que algo
complicado recai sobre alguém, é necessário buscar ajuda. Há duas opções:
recorrer a Deus ou recorrer aos homens. Nesse aspecto, o v.4 traz uma
importante lição para o verdadeiro servo de Deus: “Feliz é o homem que põe
no Senhor a sua confiança e não se volta para os presunçosos, nem para os
mentirosos” (’asrê hageber ’asher-sam yehwâ mivtahô welo’-panâ ’el-
rehavîm wesatê kazav). Apesar da nítida vantagem de buscar a Deus nas
dificuldades, a incredulidade humana faz com que o homem tenda a procurar
ajuda em braços que ele pode ver com seus olhos. Um exemplo disso foi o rei
Acaz, descendente de Deus e rei de Judá. Ao saber de uma coligação entre o
reino do Norte e a Síria, entrou em pânico (Is 7.2) e resolveu comprar a ajuda
do rei da Assíria (2Rs 16.7-9) em lugar de confiar na promessa de Deus de
livramento (Is 7.3-7). O resultado foi que, quando o rei de Judá se viu
novamente em apuros e lançou mão do mesmo expediente, o arrogante rei da
Assíria também se mostrou mentiroso e, em vez de ajudá-lo, o oprimiu como
faz um inimigo e não um aliado (2Cr 28.20,21). O verdadeiro servo de Deus
faz o oposto do que fez Acaz. Entre a opção de confiar em Deus e a opção de
confiar nos homens fortes, ele prioriza a confiança no seu Deus libertador.
A terceira é desenvolver uma atitude de obediência. Davi faz uma
curiosa afirmação sobre Deus (v.6): “Não desejaste sacrifício, nem oferta [...]
não pediste holocausto, nem oferta pelo pecado” (zevah ûminhâ lo’-hapatsta
[...] ‘ôlâ wahata’â lo’ sha’alta). Tal afirmação é curiosa porque Deus, de
fato, ordenou tais sacrifícios e ofertas, de modo que o texto parece
contraditório. Entretanto, conclui-se, Davi recordou das palavras de Samuel a
Saul, às quais, sem abolir os sacrifícios e ofertas, mostraram que Deus não
preferia os sacrifícios à obediência devida a ele: “Porém, Samuel disse: tem,
porventura, o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que
se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e
o atender, melhor do que a gordura de carneiros” (1Sm 15.22). Tentar
convencer o Senhor com atitudes de religiosidade externa em meio à
desobediência, não consegue comover seu coração, nem torná-lo devedor ao
homem. O que Deus quer, em lugar de atos religiosos, é que seus servos o
obedeçam como um filho obedece e honra ao pai.
A quarta atividade é louvar a Deus publicamente. Ainda que Davi
estivesse angustiado, o louvor a Deus não perdia seu lugar porque, na
verdade, não estava subordinado às condições em que se encontrava o
salmista, mas à eterna glória do Senhor. Por isso, escreve (v.9): “Anunciarei
as boas-novas de justiça na numerosa congregação. Eu não fecharei os meus
lábios” (bissartî tsedeq beqahal rav hinneh sefatay lo’ ’ekla’ yehwâ). Essa é a
expressão de um testemunho público a todas as pessoas ao redor. O salmista
não deseja guardar para si os santos ensinos sobre a justiça do soberano. Nem
tampouco se envergonha de se submeter à direção e correção do Senhor. Seu
desejo é expor tais fatos diante da multidão a fim de proclamar a justiça, não
própria, mas daquele que é justo sobre todos. Por intermédio do louvor
público, Davi quer, também, encorajar outros servos de Deus a fazer o
mesmo, pelo que os conclama (v.16): “Digam continuamente aqueles que
amam a tua salvação: engrandecido seja o Senhor” (yo’merû tamîd yigdal
yehwâ ’ohavê teshû‘ateka).
A última atividade da religião verdadeira é apresentar a Deus uma
oração humilde. Nesse salmo, Davi faz vários pedidos a Deus,
especialmente concentrados entre os vv.11-15: “Senhor, não retenhas de mim
a tua compaixão” (’attâ yehwâ lo’-tikla’ rahameyka mimmennî); “seja
favorável a me livrar, Senhor” (retseh yehwâ lehatsîlenî); “sejam
envergonhados e derrotados juntamente aqueles que buscam tirar minha
vida” (yevôshû weyahperû yahad mevaqshê nafshî lispôtah). Entretanto, ao
expor seus pedidos, expõe a Deus, também, suas fraquezas (v.12): “Pois as
minhas maldades se acercaram de mim” (kî ’affô-‘alay ra‘ôt). Ao apresentar
a Deus sua pecaminosidade e imperfeição, Davi abre mão de tentar obter
qualquer vantagem de Deus que se baseasse nos méritos. Ele se posta como
um pecador que nada merece, humilhado em sua condição, e, assim, suplica
ao Senhor que lhe tenha compaixão. Essa é a atitude correta da oração do
verdadeiro servo de Deus, que sabe ser ele mesmo homem limitado e pecador
diante de um Senhor que ocupa a posição de onipotente e santo.
Tais atividades, pela fé em Cristo, inevitavelmente revelam o afastamento
do homem da religiosidade vazia e mostram sua proximidade do Deus vivo e
verdadeiro. Livram o homem da escravidão produzida pela superstição e
pelos conceitos intuitivos da divindade e o tornam livre para andar em
comunhão com seu redentor. E mais: esvaziam as prateleiras dos servos de
Deus de objetos que, no passado, pretendiam ser o alvo da sua fé. Afinal, o
melhor livro aberto é a própria vida do crente, de cujas páginas reluz o
verdadeiro brilho de Cristo.

SALMO 41
Quando Alguém Parece Descartável

Todos aqueles que já assistiram a filmes de guerra, de um modo ou de


outro passaram a admirar os soldados. Não porque alguns filmes retratam
certos guerreiros que, sozinhos, conseguem vencer todo um exército. Não!
Refiro-me à admiração que cultivamos por eles quando, pelos filmes,
vislumbramos o comprometimento dos soldados diante dos horrores da
guerra. Nesse sentido, algo encorajador é ver como os soldados se importam
uns com os outros e têm a meta de nunca deixar ninguém para trás. Mesmo
feridos, aqueles que foram alvejados no campo de batalha são o alvo do
esforço de todos os companheiros que se arriscam para resgatá-los e levá-los
bem para casa.
Cenas como essas, ao mesmo tempo que nos encorajam, nos chamam a
atenção para o fato de que nem sempre é assim fora dos conflitos militares.
No dia a dia, notamos pessoas que, mesmo sem ferimentos de guerra, têm
limitações que as impede de produzir tudo que queriam ou deveriam. Nesse
momento, quando elas necessitam de ajuda, é comum as vermos relegadas ao
segundo plano. Exemplos disso são pessoas idosas e doentes. Ainda que
tenham sido muito queridas e solicitadas no passado, ao chegarem a uma
situação debilitante, pouca gente as procura ou tem paciência de estar ao seu
lado. Certamente, em momentos como esse é que se conhecem os verdadeiros
amigos.
O fato é que, quando debilitados, recebemos um tratamento diferente por
parte das pessoas. O Salmo 41 é um relato do tratamento que o rei Davi
recebeu quando esteve à beira da morte. Apesar de não haver um título no
salmo que dê com precisão o contexto em que foi escrito – assim como nos
salmos 3, 34 ou 51 – em seu corpo é possível notar algumas características da
situação vivida pelo salmista. Ele estava doente, de cama (vv.3,8), e correndo
risco de morte (v.5). Talvez, o último versículo do salmo indique que a
situação já tinha passado, mas, ainda que seja assim, Davi faz uma análise de
como se comportaram os homens diante da sua debilidade e, também, como
agiu o Senhor a quem ele servia. Tal análise nos fornece três contrastes entre
o tratamento humano e o divino quando estamos debilitados.
O primeiro contraste está no campo da valorização da vida daquele que
está perecendo. Ainda que tal regra não valha para os amigos de verdade –
esses são poucos –, os homens tendem a desvalorizar a vida de quem não tem
mais as mesmas capacidades que antes, nem pode contribuir da mesma
forma. Por causa disso, não se importam se a pessoa vive ou morre. E quando
morre, parece que a perda é apenas motivo de conversas vãs. O v.5 indica que
quem está perecendo é descartado pelos homens ao redor: “Os meus inimigos
dizem coisas ruins a meu respeito: ‘Quando ele morrerá e perecerá o seu
nome?’” (’ôyevay yo’merû ra‘ lî matay yamût we’avad shemô). Com essas
palavras, tais homens demonstram não ver qualquer valor no debilitado, além
da ausência do sentimento de perda ao vê-lo partir.
Por outro lado, Deus age de modo contrário. Não abandona o que está
fraco, mas, vendo o valor que possui – não em si mesmo, mas como alvo do
amor divino – age em seu favor. Nesse sentido (v.2), “o Senhor o guarda e
lhe mantém a vida” (yehwâ yishmerehû wîhayyehû). Entretanto, Deus não
quer que o servo apenas tenha seu coração batendo e seus pulmões
respirando. Ele tem para aquele a quem ama mais do que a simples
sobrevivência. Quer lhe dar uma vida completa e, por isso, “o faz feliz na
Terra” (wî’asherehû ba’arets). É certo que todos nós partiremos desse mundo
e Deus, que ama os filhos, os toma para si por meio da morte. Contudo,
quando não é chegada a hora de tal encontro, Deus não desvaloriza o servo
pela suas debilidades. Para Deus, os homens que o buscam nunca são
descartáveis. Por isso os preserva e lhes dá consolo e alegria apesar das
circunstâncias contrárias.
O segundo contraste se dá na veracidade do relacionamento. A
incapacidade de alguém pode criar nas pessoas ao redor um relacionamento
puramente superficial e não genuíno. Davi recebeu muitas visitas em seu leito
de dor. Nem todas foram expressões autênticas do que sentiam as pessoas que
o visitavam. Diz o salmista (v.6): “Se alguém entra para me ver, diz coisas
fingidas” (we’im-ba’ lir’ôt shawe’ yedaber). Essa descrição me lembra de
conversas quando não se tem assunto, nem há interesse pelas pessoas com
quem se fala. Trata-se daquela conversa sobre “nada”, mais para se
desincumbir do dever de visitar o doente que para saber como ele está e como
pode ser ajudado de verdade. Entretanto, quando a visita acaba, o coração
expõe as verdadeiras intenções: “No coração ele ajunta perversidades para si;
quando sai, ele fala mal de mim” (livvô yiqbats-’awen lô yetse’ lahûts
yedaber). É o retrato da falsidade posta em prática.
O Senhor, por sua vez, não apenas age do modo oposto como intervém na
maldade dos falsos companheiros (v.2): “Tu não o entregas ao desejo dos
seus inimigos” (welo’-tittenehû benefesh ’oyevayw). Enquanto os homens
usam de falsidade, Deus confirma sua fidelidade no relacionamento com
aqueles que lhe pertencem. Por isso, não abandona o servo. Por isso, continua
protegendo-o daqueles que lhe querem fazer mal. Se as circunstâncias
mudaram, o amor de Deus não muda. Ele permanece sempre o mesmo.
O terceiro contraste se pode ver na manutenção da amizade. Davi, como
rei, ajudava muita gente a quem mostrava seu favor. Sustentava muitos,
recebia-os em seu palácio, separava-lhes lugar à sua mesa. Como não poderia
deixar de ser, muitos desses não frequentavam a mesa do rei por simples
amizade, mas por interesse, quer financeiro, quer político. Para obter seus
intentos, estendiam ao rei seus braços de amizade. Contudo, diante da virada
da situação, deixaram de ter interesse na manutenção dessa “amizade”. Por
isso, Davi se queixa (v.9): “Também o meu amigo em quem eu confiava,
aquele que comia o meu pão, levantou o calcanhar contra mim” (gam-’îsh
shelômî ’asher-batahtî bô ’okel lahmî higdîl ‘alay ‘aqev). A expressão
“levantar o calcanhar” produz a ideia de uma traição, pelo que é aplicada a
Judas que, sendo “amigo” de Jesus, mudou de atitude e o entregou aos
adversários (Jo 13.18). Talvez uma boa tradução, com outra expressão
figurada, para “levantar o calcanhar”, seja “passar uma rasteira”. Os antigos
“amigos”, diante da debilidade do salmista, lhe “passaram uma rasteira”,
mostrando a fragilidade da sua relação.
O Senhor não é um amigo desse tipo, nem permanece ao lado dos servos
apenas quando seus interesses são beneficiados. Ele permanece mesmo nos
piores momentos, mostrando-se um amigo verdadeiro. Por isso, diz o texto
(v.3): “O Senhor o sustenta sobre o leito de doença” (yehwâ yis’adenû
‘al-‘eres deway). Ou seja, quando uma doença abate o servo de Deus a ponto
de ele ficar acamado, sofrendo e incerto de seu futuro, o Senhor não o
abandona. Na verdade, faz de modo exímio o que fazem os amigos que se
assentam ao lado do doente para ajudá-lo a atravessar aquele duro momento,
dividindo um pouco da dor e da tristeza. Essa ação de consolo, prova da
verdadeira amizade, ajuda o abatido a transpor a dor com coragem, sentido
um grande alívio, como se o leito fosse mais confortável do que é, visto que
está escrito: “Na sua doença transforma toda a sua cama” (kol-mishkavô
hafakta beholyô). A ideia parece ser a de alguém que remexe o leito a fim de
não se tornar duro e desconfortável. Resumindo, o Senhor faz com que as
agruras de uma situação como a de Davi seja atravessada com mais conforto,
consolo e coragem. É, de fato, a atitude de um verdadeiro amigo.
Esse salmo é uma lição para nós. Em primeiro lugar, nos ajuda a
diferenciar os verdadeiros amigos daqueles que assim falsamente se dizem.
Em segundo lugar, nos ensina o quanto é incerta a confiança que temos nas
pessoas. Finalmente, o quanto precisamos cultivar nosso relacionamento com
Deus, o verdadeiro amigo. Tais momentos de luta e de dor, além de nos
revelar a verdade sobre as pessoas ao redor, devem nos lançar de tal modo
nos braços do Senhor que jamais desejemos nos afastar dele. No final das
contas, está mais do que comprovada a veracidade do texto que diz que “na
angústia se faz o irmão” (Pv 17.17). Principalmente, se esse for o Deus
eterno.

SALMO 42
Os Altos e Baixos da Vida

A história da humanidade contém trechos marcantes devido a grandes


feitos de homens que, ainda hoje, são considerados singulares. Entretanto,
poucos feitos podem ser comparados ao de Pedro, discípulo de Jesus, ao
andar por sobre as águas do lago Tiberíades, também conhecido como mar da
Galileia. Entretanto, além de singular, é um episódio curioso por mostrar
nuances tão marcantes quanto contraditórias na pessoa de Pedro. O mesmo
relato que o mostra como um homem de fé no poder de Jesus também o pinta
como um homem de pouca fé diante da força das ondas. Enquanto Pedro
tinha seus olhos fixos em Jesus, mantinha-se, também, sobre as águas. Mas
quando voltou seus olhos para as vagas, começou a afundar e teve de clamar
por socorro ao Senhor a fim de não perecer.
O Salmo 42, abertura do segundo livro dos cinco que formam a coletânea
de salmos que temos na Bíblia, mostra a dinâmica da vida dos servos de Deus
que lembra muito a experiência de Pedro. Os autores do salmo são os filhos
de Corá, os quais assinam outros dez salmos. Eram de uma família da tribo
de Levi, da linhagem de Asafe (1Cr 26.1), cuja função no Templo era louvar
a Deus por meio de cânticos (2Cr 20.19), além de trabalhar como porteiros
do Templo (1Cr 9.17-19). A ligação dessa família com o ministério no
Templo torna a lição do Salmo 42 de especial relevância para aqueles que
querem servir ao Senhor, mas que, vez por outra, desanimam diante das lutas
que enfrentam.
O salmo começa em um ponto alto. O salmista tem um grande anseio de
estar na presença do Senhor. Diz ele (v.1): “Como uma corça anseia por um
canal de águas, assim a minha alma anseia por ti, ó Deus” (ke’ayyal ta‘arog
‘al-’afîqê-mayim ken nafshî ta‘arog ’eleyka ’elohîm). Essa é uma comparação
interessante. A constante necessidade que uma corça tem de água,
principalmente em uma região seca e montanhosa, é a situação à que o
salmista compara sua necessidade constante de andar em comunhão com o
Senhor e seu prazer nessa presença. Ele olha para Deus e se sente refrigerado
e suprido. A figura continua mostrando que ele deseja cada dia ter mais
comunhão com Deus, dizendo (v.2): “Minha alma tem sede de Deus” (tsam’â
nafshî le’lohîm). A expressão “minha alma” não quer dizer, aqui, apenas a
parte espiritual do escritor. É uma figura usada para representar o homem
todo. Assim, ele anseia por Deus de todo coração, com todas as forças. E não
se satisfaz com o que tem. Deseja sempre mais – por isso, seu desejo será
coroado no encontro futuro com Deus: “Quando irei e me verei diante de
Deus?” (matay ’bô’ we’era’eh penê ’elohîm). Ele olha para o futuro e vive um
ponto alto da sua vida.
Entretanto, ele também olha para as circunstâncias problemáticas ao seu
redor e atravessa um ponto baixo da vida, pelo que diz (v.3): “As minhas
lágrimas se tornaram pão para mim dia e noite” (hoytâ-lî dim‘atî lehem
yômam walaylâ). Essa é uma descrição terrível. Em primeiro lugar, revela a
intensa tristeza do autor do salmo, a ponto de se desfazer em lágrimas. Em
segundo lugar, ele não conseguia se alimentar direito, tamanha sua tristeza.
Era como se seu pranto fosse o alimento dos seus dias. Que aflição profunda!
E o que causaria tamanho desgosto? O próprio texto dá uma forte indicação
do motivo: “Em dizerem para mim o dia todo: ‘Onde está o teu Deus?’”
(be’emor ’elay kol-hayyôm ’ayyeh ’eloheyka). O texto não revela o problema
em si, mas mostra o efeito. O escritor do salmo era zombado pelos outros por
algum sofrimento que perdurava. Tudo leva a crer que era, também, acusado
de ter sido abandonado pelo Deus a quem servia. Isso, pelo visto, o abateu
sobremaneira.
Mas o salmo dá outra virada ao apresentar um clima diferente quando o
salmista volta seus olhos novamente para o Senhor. Só que, em lugar de olhar
para o futuro, ele olha para o passado e se lembra do quanto já serviu a Deus
e com que prazer (v.4): “Lembro-me disso: [...] Caminhei com a multidão; eu
conduzi a multidão festiva até a casa de Deus em meio a brados de alegria e
gratidão” (’elleh ’ezkerâ [...] ’e‘evor bassak ’edadem ‘ad-bêt ’elohîm beqôl-
rinnâ wetôdâ hamôn hôgeg). A recordação do louvor a Deus, do culto no
Templo, da alegria da multidão por servir ao Senhor e do papel que exercia
de promotor de um culto verdadeiro fez com que o salmista, mais uma vez,
fosse transportado a um ponto alto da sua vida.
Apesar do bom momento, seus olhos voltam para o presente e o que ele
contempla é um homem abatido pelo peso das circunstâncias. Ele se pergunta
(v.5): “Por que a minha alma se encurva?” (mah-tishtôhahî nafshî). Ele se
sente sobrecarregado a ponto de encurvar-se diante das agruras que enfrenta.
O v.7 dá conta de que, apesar de tentar por todos os meios se livrar do mal,
ele sente que está caminhando “de abismo em abismo” (tehôm-’el- tehôm),
como se fosse atropelado pelas correntezas destruidoras de um tsunami:
“Todas as tuas vagas e tuas ondas passaram sobre mim” (kol-mishbareyka
wegalleyka ‘alay ‘avarû). É como se estivesse se afogando sem forças para
resistir por mais tempo.
Porém, mais uma vez o humor do salmista sai do fundo do poço de tristeza
e sobe até o céu de esperanças. Se há pouco ele declarou chorar dia e noite,
agora afirma (v.8): “De dia o Senhor estabelece a sua fidelidade e de noite eu
canto uma oração ao Deus da minha vida” (yômam yetsawweh yehwâ hasdô
ûballaylâ shîroh ‘immî tefillâ le’el hayyay). Que transformação! As lágrimas
que alimentam o salmista são convertidas em estrofes de cânticos de louvor e
em declarações de confiança e esperança naquele que é poderoso acima de
todos os males que afligem seus servos. A impressão que se tem desse ponto
do salmo é que, não importa o que aconteça, o salmista está pronto para
enfrentar todas as lutas tendo à mão a fidelidade do Senhor para protegê-lo
como um escudo.
Entretanto, uma nova linha do salmo é escrita. Por meio dela percebemos o
escritor novamente abatido, escrevendo do fundo do vale da tristeza. Ele
pergunta a Deus (v.9): “Por que se esqueceste de mim?” (lamâ shekahtanî). É
de surpreender que ele faça tal pergunta à pessoa sobre a qual declarou ser
fiel todos os dias. Não é, claro, gratuita a mudança de ânimo. Ele se vê ainda
sobrecarregado, conforme diz, “com a opressão dos meus inimigos” (belahats
’ôivay). O efeito da perseguição por parte de tais homens é a que ele declara
no v.10: “opressores me injuriaram com um alarido em meus ossos” (beretsah
be‘atsmôtay herefûnî tsôreray). Essa frase misteriosa parece indicar que as
zombarias e ataques por parte dos homens que o perseguem o atingiram
profundamente como se, com um barulho ensurdecedor, lhe abalassem os
ossos e lhe tirassem a capacidade de permanecer de pé.
Sua conclusão é a de um homem dividido entre a opressão que sente e a
confiança que tem. Ele escreve (v.11): “Por que a minha alma se encurva? E
por que se agita contra mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, o meu
salvador pessoal e meu Deus” (mah-tishtôhahî nafshî ûmah-tehamî ‘alay
hôhîlî le’lohîm kî-‘ôd ’ôdennû yeshû‘ot panay we’lohay). O salmista sofre,
mas também confia.
À primeira vista, parece se tratar de um salmo cheio de contradições. Ou
melhor, que o próprio salmista é contraditório e, talvez, uma pessoa instável.
Mas, na verdade, não há contradições. Deus não era fiel em um dia e infiel no
outro. Também a situação não era boa em um dia e ruim no seguinte. O que
parece mudar ao longo da experiência do salmista é a perspectiva com que
ele vê os acontecimentos. Quando ele olha para os problemas, deixa-se abater
e vive um momento baixo da vida, em meio à angústia e às incertezas. Mas,
quando olha para Deus, vive um ponto alto por saber que Deus é maior que
as circunstâncias, que é fiel apesar das nossas falhas e que tem um amor que
nunca acaba. Por isso, ele se enche de esperança e de alegria. Os altos e
baixos da vida do salmista, afinal de contas, não vêm das circunstâncias em
si, mas da sua perspectiva pessoal quando olha para os problemas ou de
quando olha para Deus.
Por fim, de certo modo, todos os que já fomos redimidos por Cristo
compartilhamos algo com esse salmista e com Pedro quando estava diante de
Jesus no mar da Galileia. Ao olharmos para o Senhor, somos elevados e
sustentados sobre as águas dos problemas desse mundo. Mas quando
desviamos o olhar do nosso Senhor e, em falta de fé, atentamos somente para
o tamanho das ondas ao nosso redor, começamos a afundar. Não há
encorajamento melhor que esse para que mantenhamos nossos olhos, pela fé,
no Senhor Jesus Cristo, aguardando aquele dia em que olharemos diretamente
em sua face.

SALMO 43
O Desejo de Retornar ao Lar

Um dos filmes mais famosos e queridos da história do cinema é ET, de


Steven Spielberg (1982). Ele conta a aventura fictícia de um extraterrestre
feio – há quem discorde –, mas extremamente simpático, que é deixado na
Terra. Enquanto ele demonstra um gosto ímpar pela flora terrestre, acumula
conhecimentos sobre a cultura humana e desenvolve uma amizade especial
com um garoto. Porém, seu objetivo é retornar ao seu lar. Um número
incrível de crianças, hoje adultos, cresceu brincando de esticar o dedo
indicador e falar a famosa frase que o pequeno E.T. repetia na versão dublada
para o português: “Minha casa”. Seu desejo de retornar ao lar é alcançado no
final do filme depois de uma incrível aventura vivida por ele e pela família do
seu amigo, um garoto que, enganando as autoridades, o conduz de bicicleta à
sua espaçonave.
O sonho de estar em casa não é exclusividade do personagem do filme ET.
Muita gente, por diversas razões, é forçada a se afastar do lar e anseia pelo
retorno. O escritor do Salmo 43 parece ser um deles. O contexto dos salmos
42 e 43 é o mesmo. Na verdade, eles fazem parte da mesma poesia e devem
ser lidos juntos – muitos manuscritos hebraicos antigos apresentam os dois
salmos como uma única obra. Eles até compartilham certa frase em três
locais, marcando o término de cada divisão da poesia (Sl 42.5,11; 43.5), que
diz: “Por que a minha alma se encurva? E por que se agita contra mim?
Espera em Deus, pois ainda o louvarei, o meu salvador pessoal e meu Deus”
(mah-tishtôhahî nafshî ûmah-tehamî ‘alay hôhîlî le’lohîm kî-‘ôd ’ôdennû
yeshû‘ot panay we’lohay).
Compartilhando o mesmo contexto, o Salmo 42.6 oferece, possivelmente, o
local da composição dos dois salmos ou dos fatos que os inspiraram. O texto
em questão diz que o salmista se lembra de Deus em três referências
geográficas: as terras do Jordão, o monte Hermom e o monte Mitsar. O
último não é conhecido, mas os dois primeiros sim. O monte Hermom fica no
Extremo Norte de Israel, local de onde brota o rio Jordão. O monte Mitsar
deve ficar na mesma região. É estranho ver o salmista, que servia no Templo
em Jerusalém, tão longe de casa. Uma sugestão, que condiz com o estado de
tristeza do escritor (Sl 42.3) e a referência à opressão dos inimigos (Sl
42.9,10; 43.2), é que se trata de um tipo de exílio, talvez devido a uma
derrota militar como exemplificado em 2Rs 14.14. Isso explica muito bem o
fato de que aquele que era imbuído do louvor no Templo dizer, vislumbrando
um tempo futuro, que irá ao altar de Deus e o louvará (Sl 42.5,11; 43.4,5).
Por isso, também, as lembranças do trabalho que fez no passado (Sl 42.4). E
ainda o seu desejo de ser conduzido de volta ao “monte santo” (Sl 43.3) – um
modo frequente de se referir a Jerusalém, local do Templo.
A fim de obter o esperado retorno ao lar, o salmista faz alguns pedidos ao
Senhor no Salmo 43. Seu anseio é que Deus lhe forneça o necessário para
atravessar esse momento duro e o conduza à sua pátria e à plena atividade
cultual como no passado. São três pedidos por atuações divinas, sem as quais
seu retorno não será possível.
O primeiro desses pedidos é justiça (v.1). Seu clamor é direto: “Julga-me,
ó Deus” ou “faça-me justiça, ó Deus” (shaftenî ’elohîm). É um pedido
corajoso. Digo isso porque há mais implicações nele que simplesmente dizer
“livra-me, Senhor”. Apesar de o objetivo final ser o mesmo, o meio que o
salmista utiliza para recorrer a Deus não é um simples clamor por
misericórdia, mas a efetivação da justiça. O salmista pede que Deus aja como
um juiz que decide sobre uma demanda. O reclamante é o escritor do salmo;
o reclamado é a nação que o privou do lar e o conduziu para as terras do
Norte, visto dizer: “Leve a julgamento a minha causa contra o povo infiel”
(rîvâ rîvî miggôy lo’-hasîd).
O peso desse pedido está no fato de o salmista se colocar nesse tribunal
junto com seus opressores. Ele quer ser escrutinado junto com eles na
confiança de que sua justiça, em comparação com a dos inimigos, lhe trará
um veredicto favorável e uma atuação benéfica da parte de Deus. É claro que
o salmista não imagina ser perfeito ou inculpável, mas sabe que sua
disposição de buscar a Deus e de manter uma vida compatível com a de um
servo do Senhor o faz estar longe do caráter daquele que lhe oprime, a quem
descreve como “homem mentiroso e injusto” (’îsh-mirmâ we‘awlâ).
O segundo pedido do salmista é receber de Deus força (v.2). À primeira
vista, não parece uma solicitação, mas apenas uma declaração: “Pois tu és o
Deus da minha fortaleza” (kî-’attâ ’elohê ma‘ûzzî). Essa aparente declaração
muda de função quando vemos os questionamentos levantados na segunda
parte do verso: “Por que me rejeitaste? Por que eu perambulo obscurecido
pela opressão dos meus inimigos?” (lamâ zenahtanî lammâ-qoder ’ethallek
belahats ’ôyev). Tais perguntas são mais do que a tentativa de entender os
fatos. O salmista está comparando duas realidades: o fato de Deus ser a sua
fortaleza e a situação deplorável que vive. O escritor do salmo, ao demonstrar
que tais realidades são contraditórias, o faz na intenção de ver Deus fazer
valer seu caráter protetor em relação aos seus servos a fim de afastar a
opressão dos inimigos.
É uma maneira poética, compatível com o estilo e com a época da
composição do livro de Salmos, de pedir a Deus que intervenha. Nesse caso,
o que o salmista tem em mente é que o Senhor atue fornecendo-lhe o que
uma fortaleza, ou seja, uma cidade fortificada, fornece às pessoas que nela se
refugiam: condições de resistir aos ataques dos inimigos. O salmista quer ser
protegido dos inimigos e resistir quanto tempo for necessário até que volte
para casa.
O terceiro pedido é consciência (v.3). Isso o salmista pede sob duas
ópticas: “Envia a tua luz e a tua verdade” (shelah-’ôreka wa’amitteka). “Luz”
e “verdade” são duas palavras que, cada uma ao seu modo, podem apontar
para a mesma coisa. Nas Escrituras, a palavra “luz” é frequentemente
utilizada de forma figurada para se referir ao que é verdadeiro, justo e que
representa o bem, como é o exemplo do dito de Jesus aos discípulos: “Vós
sois a luz do mundo” (Mt 5.14). Assim, é olhando para os justos preceitos de
Deus que o salmista espera ser beneficiado. O objetivo a ser alcançado pela
luz e pela verdade, nesse caso, é: “Elas me guiarão; conduzir-me-ão ao teu
monte santo e ao lugar da tua habitação” (hemmâ yanhûnî yebî’ûnî ’el-har-
qadsheka we’el-mishkenôteyka).
A pergunta é: “Como a verdade de Deus, ou seus preceitos santos, poderia
levar o salmista de volta a Jerusalém?”. Isso não fica claro no texto.
Entretanto, a julgar pelas queixas do salmista a respeito da injustiça com que
é tratado por homens iníquos, é possível que ele tivesse esperança de que
seus opressores fossem convencidos da sua maldade e do modo insensato de
proceder. Munidos, então, de tal consciência, recobrariam o proceder reto e
permitiriam ao salmista retornar à sua terra e às sua funções no Templo em
Jerusalém.
Justiça, força e consciência são as necessidades do escritor dos Salmos 42 e
43 para que possa retornar ao lar. Entretanto, também são as necessidades de
muitos crentes que, aprisionados pelo pecado e zombados pelo diabo,
anseiam retornar ao lar, à presença e à comunhão com seu Deus e salvador.
Eles necessitam que a justiça de Deus mais uma vez corra em suas veias,
fazendo-os lembrar de quem são e recordar quem lhes dirige a vida. Precisam
de força para abandonar o mal, para se afastar dos falsos amigos e para
enfrentar os custos de andar com Cristo. E precisam de consciência para
distinguir as ciladas do inimigo, por pequenas e camufladas que sejam. Eles
precisam voltar para o lar. Devem ansiar por ver novamente o monte santo do
amor de Deus. Precisam sentir saudade da segurança do seu recanto.
Resumindo, eles devem apontar o dedo para os céus e dizer esperançosos:
“Minha casa”.

SALMO 44
O Conhecimento que Passa de Pai para Filho

Meu avô era um homem interessante. Seu mau humor nos últimos anos de
vida, devido à sua debilitada condição de saúde, não conseguiu apagar as
memórias que tenho de vê-lo trabalhando em hortas que sempre produziam
uma quantidade impressionante de alimentos com qualidade tal que nunca vi
em outro lugar. Contudo, algo de que recordo atônito, ainda hoje, é de ele me
contar a história da Europa, do mundo antigo e das colonizações como se
fosse um professor. As histórias não eram apenas interessantes, mas
verdadeiras, visto que as confirmava nas minhas aulas de História. Meu pai,
mais que meu avô, me ensinou muita coisa. Mas ele era um homem estudado,
aprendeu na escola o que me ensinou. Já, meu avô, sabia apenas ler. Isso é o
que me deixava atônito.
Diante de tal espanto, certa vez lhe perguntei como é que ele sabia todas
aquelas coisas. Ele me contou que seu pai lhe havia ensinado tudo aquilo.
Dizia que se sentava com ele e o ouvia falar por horas. Em parte, essa
resposta me satisfez. Contudo, a dúvida que nunca tirei é: “Como meu bisavô
sabia tudo aquilo?”. O fato é que o ensino de pai para filho e de uma pessoa
experiente para alguém que está começando a vida é algo marcante e
produtivo. Quem dera tivéssemos mais tempo, no meio da pressa dos nossos
dias, para exercitarmos essas aulas informais ao redor da mesa da cozinha e
da garrafa de café!
O Salmo 44 dá mostras da validade e da importância desse ensino de uma
geração para a outra. O salmista, descendente de Corá e membro de uma
família dedicada ao serviço do Senhor no Templo, se vê em uma situação
complicada que parece envolver uma derrota militar (vv.9,10) e suas naturais
consequências como exílio (vv.11,12) e desprezo das nações vizinhas
(vv.13,14). O próprio salmista pode ser um dos que estão exilados, conforme
demonstram os salmos 42 e 43. Nesse contexto de sofrimento e desânimo,
percebe-se a importância do ensino passado pela geração anterior. O salmo
começa com a seguinte declaração (v.1): “Ó Deus, com os nossos ouvidos
ouvimos nossos pais nos relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias
remotos” (’elohîm be’oznênû shama‘nû ’avôtênû sifferû-lanû po‘al pa‘alta
bîmêhem bîmê qedem). Com esse conhecimento em mãos, o salmista obtém
quatro benefícios para sua vida.
O primeiro benefício é conhecer o caráter de Deus. As gerações passadas
de israelitas se esmeraram em guardar e transmitir as memórias dos atos de
Deus em seu benefício. Por isso, o salmista podia falar a Deus (v.2): “Por tuas
mãos tu expulsaste as nações e os [pais] assentaste; trouxeste dano aos povos
e os [pais] enviaste no lugar” (’attâ yadka gôyim horashta wattitta‘em tara‘
le’ummîm watteshalehem). Quando o salmista diz “os assentaste” e “os
enviaste” está se referindo aos pais que lhe contaram a história (v.1), apesar
de não aparecer a palavra “pais”, mas sim, um sufixo que aponta para eles.
Em resumo, trata-se da conquista de Canaã promovida por Deus para dar a
terra aos israelitas conforme a promessa feita a Abraão (Gn 13.14-17; 15.18-
20). Com isso, o salmista aprendeu que Deus é poderoso e, acima de tudo,
fiel para cumprir o prometido. Essa lição produziu no autor dois sentimentos:
confiança e gratidão. A confiança é expressa no v.6: “Não confio no meu arco
e não é minha espada quem me salva” (lo’ beqashtî ’evtah weharbî lo’
hôshî‘enî). A gratidão, no v.8: “Nós louvamos a Deus todos os dias e
celebraremos o teu nome para sempre” (be’lohîm hillalnû kol-hayyôm
weshimka le‘ôlam nôdeh). Que aprendizado melhor que esse para se obter por
meio da história daquilo que Deus fez por meio do seu caráter santo?
O segundo benefício é reconhecer a provação divina. Acontecimentos
ruins sobrevieram ao exército de Judá. Perderam batalhas e fugiram
derrotados pelos inimigos. Alguém poderia dizer “que má sorte!” ou “a culpa
é do general!”. Entretanto, o salmista parece conhecer o procedimento de
Deus pelo que ouviu dos antepassados. Com base nisso, soube que se tratava
de uma atuação deliberada de Deus (v.9): “Mas tu nos rejeitaste, nos
humilhaste e não sais com nossos exércitos” (’af-zenahtanû wataklîmenû
welo’a-tetse’ betsiv’ôteynû). Há nesse versículo uma mudança muito grande
no tipo de atuação de Deus. Antes (vv.1-8) o Senhor se mostrou um Deus
guerreiro ao lado de Israel e protetor do seu povo, enquanto, agora, deixa-o
marchar sozinho e não lhe favorece com a vitória. Aliás, Deus foi o autor da
desgraça militar de Judá nessa ocasião, já que o salmista diz, entre os vv.10-
14, “tu nos fizeste voltar atrás fugindo do inimigo” (teshîvenû ’ahôd minnî-
tsar), “tu nos entregaste como ovelhas de corte” (tittenenû ketso’n ma’akal),
“tu vendeste o teu povo por preço barato” (timkor-‘ammeka belo’-hôn), “tu
nos transformaste em objeto de escárnio para os nossos vizinhos” (tesîmenû
herpâ lishkenênû) e “tu nos transformaste em um provérbio entre as nações”
(tesîmenû mashal baggôyim). Para o salmista, é muita clara a participação de
Deus nos eventos que os assolam. O que esse salmo tem de diferente dos
vistos até aqui é que, diferente de Davi que via em tais situações uma
disciplina de Deus, esse salmista vê a mão do Senhor trazendo-lhes uma
provação apesar da fidelidade que ele e um remanescente fiel mantinham
(vv.17-22), apesar de o restante do povo ser possivelmente merecedor da
disciplina – e, talvez, para eles o fosse mesmo. Entretanto, o remanescente,
mesmo diante da provação, não se rebela contra Deus, nem desiste de servi-
lo.
O terceiro é manter-se fiel a Deus. Como dito acima, o escritor do salmo
olha para sua vida e se vê fiel a Deus (v.17): “Tudo isso veio a nós, mas não
nos esquecemos de ti, nem violamos a tua aliança” (kol-zo’t ba’atnû welo’
shekahanûka welo’-shiqqarnû bibrîteka). É uma frase realmente encorajadora
quando olhamo-la diante da situação em que vive o salmista. O conhecimento
que ele e seus pares receberam dos antepassados os ensinaram o suficiente
sobre o modo de Deus agir com suas ordens e com as circunstâncias para que
soubessem não se tratar de uma punição injusta (vv.18-21). Eles, certamente,
não conheciam os detalhes dos propósitos de Deus, mas sabiam quem Deus
era. Por isso, o escritor do salmo termina esse trecho afirmando sua
desventura, mas não com amargura. Na verdade, o faz em um tom que
glorifica a Deus e encoraja o leitor a ser fiel nos revezes e nas perseguições
que sofre por amor e fidelidade a Deus (v.22): “Assim, por ti somos mortos
todos os dias; somos tidos como ovelhas a serem executadas” (kî-‘aleyka
horagnû kol-hayyôm nehshavnû ketso’n tivhâ). É claro que o salmista não
fora morto até então, de modo que a figuração “ser morto todos os dias”
expõe as condições deploráveis em que eles viviam sob reais ameaças de
morte. E tudo isso eles passavam, segundo diz o texto, “por ti”, ou seja, por
amor a Deus e por se manterem fiéis a ele.
O quarto benefício é manter a esperança na provação. Uma lição
importantíssima que o conhecimento que veio das gerações anteriores
certamente transmitiu foi o valor e a importância da oração. Por isso, esse
salmo não poderia, depois de expor tanto sofrimento, terminar sem uma
oração esperançosa por socorro (v.23): “Desperta! Por que estás dormindo,
Senhor? Acorda! Não nos rejeite perpetuamente!” (‘ûrâ lammâ tîshan
’adonay haqîtsâ ’al-tiznah lanetsah). Dificilmente o salmista quer dizer, por
meio da figura do “sono de Deus”, que o Senhor está alheio à situação, ou
incapacitado, já que afirmou que ele é o responsável pela provação. Assim, o
salmista, figuradamente, refere-se à espera de Deus até o momento de libertá-
los. Apesar do silêncio divino em tal ação, o salmista aprendeu com os
antepassados que Deus é misericordioso e tem prazer em restaurar os seus –
vide o livro de Juízes, por exemplo. Portanto, é cheia de esperança a frase que
encerra a oração e o salmo (v.26): “Faça surgir socorro para nós e resgata-nos
por causa da tua fidelidade” (qûmâ ‘ezratâ lanû ûpedenû lema‘an hasdeka).
Depois disso tudo, quem, em sã consciência, ainda pode desprezar o estudo
das Escrituras ou lhe criar nomes que transmitam sentidos pejorativos?
Quem menosprezará a pregação bíblica nos cultos de adoração ao Deus que
nos deu sua palavra de modo tão maravilhoso? Quem poderá,
insensivelmente, desprezar as santas orientações para a vida cristã e para o
serviço de Deus? “Pois tudo”, afirmou o apóstolo, “quanto, outrora, foi
escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela
consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).
E mais: quem se omitirá em transmitir à próxima geração a mensagem que
temos agora aprendido? Afinal, chegará o dia em que será a vez de os nossos
filhos dizerem: “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos nossos pais nos
relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias remotos”.

SALMO 45
O Casamento dos Sonhos

Tenho um grande amigo que é pastor. Quando solteiro, ele pastoreava um


grupo de jovens em uma igreja batista. Era um grupo muito animado. Como
pastor e ovelhas se davam muito bem, foram efusivas as comemorações por
ocasião do casamento do meu amigo. O grupo de jovens começou a
demonstrar sua alegria por ver seu pastor feliz com o casamento dando-lhe
dois pinguins de geladeira que rendem risos até hoje. Entretanto, o mais
interessante foi, durante a cerimônia, o estouro de uma quantidade enorme de
fogos bem no momento em que a noiva disse “sim”. Foi um momento de
descontração. O tom solene exigido pela cerimônia foi, indubitavelmente,
marcado pela demonstração de alegria verdadeira dos jovens da igreja por
causa do seu pastor. Na verdade, toda a igreja estava feliz naquele momento.
Esse não foi o único casamento da história que gerou grande alegria nas
pessoas ao redor. O Salmo 45 é uma poesia cantada em homenagem a um rei
magnífico que desposaria uma mulher privilegiada. Ele é, conforme diz seu
título, “uma canção de amor” (sir-yedîdot). O escritor dedica o salmo ao rei
(v.1) e se declara um “escriba habilidoso”, ou um “hábil escritor” (sofer
mahîr). Quando alguém faz a si mesmo um elogio desse tipo, ou se trata de
alguém vaidoso, que não conhece suas limitações, ou de alguém cujo
reconhecimento amplo lhe dá o direito de falar assim sobre si. A julgar pela
qualidade do poema, ele é, sim, muito habilidoso e podemos esperar de sua
pena o uso de todos os recursos da retórica a fim de alcançar seu objetivo
que, nesse caso, é engrandecer o rei de Judá e a ocasião do seu casamento.
Devido à sua grande capacidade – e da supervisão de Deus sobre o escrito em
si –, temos nesse salmo um dos trechos mais bonitos da Bíblia e, também,
mais difíceis de serem compreendidos devido à aplicação que o Novo
Testamento faz do salmo à pessoa do Messias, o Senhor Jesus Cristo.
O rei em questão não é identificado, nem tampouco a rainha. Entretanto, o
rei parece ser um homem tremendamente respeitado pelo seu procedimento
(v.2) e um guerreiro com vitórias incontestáveis, dignas de um herói nacional
(v.3) que mantém o domínio sobre seu povo e sobre nações conquistadas
(vv.4,5). Ele parece exercer sobre o povo uma boa influência por ser exemplo
de justiça a ponto de, “figuradamente”, ser chamado de Deus pelo salmista
(v.6) – nesse caso, o salmista não tem a intenção de compará-lo ao Deus
eterno, mas lançar mão de um recurso utilizado outras vezes nas Escrituras
para exaltar uma qualidade ou uma função, nesse caso, a justiça; outros
exemplos desse uso são a função de Moisés na sua relação com Arão e com o
Faraó (Ex 4.16; 7.1) e o caso dito por Jesus em que homens foram chamados
de deuses (Jo 10.34 cf. Sl 82.6). O rei que está para se casar é um homem de
Deus, um homem reto, um bom governante, uma pessoa magnífica e honrada
(vv.7-9).
A noiva, por sua vez, pertencia a outro povo, o qual deixava para trás
(v.10), muito amada pelo seu noivo, a quem ela respeita (v.11). Ela era
estrangeira e seria honrada por pessoas de outras nações (v.12). Na presença
do seu rei, sua beleza é adornada e ela se torna ainda mais bela (vv.13-15).
Para completar o quadro glorioso, sua descendência, em conjunto com o rei,
seria distinta e numerosa, a qual traria grandes honras ao governante justo
(vv.16,17). Que quadro lindo! Que romance belo! Quanta alegria! Quantas
promessas! Toda essa alegria faz desse cântico um lindo salmo.
Entretanto, o Novo Testamento demonstra que Deus, movendo os escritores
bíblicos (2Pe 1.21) a fim de registrarem sua palavra inspirada (2Tm 3.16),
tinha aplicações ainda mais profundas e abrangentes para esse salmo, ainda
que seu escritor não o soubesse ou que ignorasse certos detalhes das suas
implicações futuras. O fato é que, quando Hebreus 1.8,9 aplica a Jesus o
texto do Salmo 45.6,7, este assume um novo significado e cumprimento. Na
verdade, o salmo parece se cumprir melhor no próprio Cristo que no rei que
está prestes a se casar. Pensando assim, o salmo apresenta algumas
características do reinado de Jesus, o Messias.
A primeira delas é a eternidade. O reinado de Jesus tem caráter
permanente. Sua singularidade será perpetuada sem que haja fim. O v.2 diz:
“Tu foste adornado mais que os filhos dos homens; a graça se derramou nos
teus lábios; por isso, Deus te abençoou para sempre” (yofyafîta mibbenê
’adam hûtsaq hen besiftôteika ‘al-ken berakka ’elohîm le‘ôlam). O mais
esplendoroso dos reis manterá seu caráter e seu trono perpetuamente porque
Deus assim o quis e instituiu. Nada nem ninguém podem impedi-lo.
A segunda característica é a soberania. O rei messiânico não é alguém que
pede favores, nem que torce para que seus planos se cumpram. Com poder
(v.3), aquele que é chamado de “forte” ou “valente” (gibôr) subjuga os
adversários e faz valer sua decisão. O resultado é um só e nem poderia ser
outro (v.5): “Os povos caem sob ti” (‘ammîm tahteyka yifflô). Ninguém é
mais poderoso que o rei eterno, de modo que os povos se lhe submetem ou
caem por sua espada. O fato é que não se deve resistir ao rei divino nem
contradizê-lo.
Apesar do receio que uma figura soberana possa causar, o rei Jesus não é
um déspota, visto que reina com poder, mas também com retidão. Isso porque
a terceira característica do Messias é a justiça. O v.6, citado em Hebreus 1,
diz: “Ó Deus, o teu trono é eterno e perpétuo; cetro de retidão é o cetro do teu
reino” (kis’aka ’elohîm ‘ôlam wa‘ed shevet mîshor shevet malkûteka). Esse
rei não abusa do poder que tem, mas não deixa de usá-lo na promoção do
bem, da justiça e da disciplina. São dirigidas a ele as palavras (v.7): “Tu amas
a justiça e odeias a perversidade” (’ahavta tsedek wattisna’ resha‘).
Tais características de onipotência e glória são expostas diante da presença
de uma pessoa que tanto é favorecida pelo rei, como lhe é motivo de alegria:
uma noiva. Sobre ela fala o v.9: “Uma consorte real está junto à tua mão
direita” (nitsvâ shegal lîmîneka). A rainha em questão é a esposa do rei de
Judá que estava para se casar na ocasião da composição do salmo. Entretanto,
a figura da igreja como “noiva de Cristo” (Ef 5.25) faz com que ela possa ser
comparada à rainha do Salmo 45 – ainda que identificá-la como tal é fazer o
texto dizer mais do que realmente pretende. Assim, como igreja de Cristo,
podemos olhar para a rainha israelita e entender como devemos nos portar
hoje a fim de honrar a pessoa e a posição do noivo, nosso rei Jesus Cristo.
A igreja, como noiva do rei salvador, deve deixar a velha vida para trás.
À rainha israelita foi ordenado (v.10): “Esquece o teu povo e a casa do teu
pai” (shikhî ‘ammeka ûbêt ’avîk). A igreja, resgatada do mundo perdido, deve
também se esquecer dele e se afastar do seu modo de vida pervertido e
egoísta, fugindo do pecado (Gl 1.4; Ef 4.22-24). Deve, também, ter uma
postura reverente e submissa, apesar de amorosa, que honre seu salvador
(v.11): “Ele é o teu Senhor; portanto, prosta-te diante dele” (hû’ ’adonayik
wehishtahawî-lô). A obediência a Deus deve ser uma marca distinta da igreja
que faz com que a luz de Cristo seja vista pelo mundo (Ef 5.8,9). Finalmente,
deve manter um caráter glorioso, compatível com o do noivo, visto que a
rainha é assim descrita no v.13: “A filha do rei é completamente bela” (kol-
kevudâ bat-melek). Cristo deve ser visto através da igreja (2Co 3.18).
Às vezes, penso que a igreja deixa de viver como uma rainha porque se
esqueceu que está casada com um rei. O que se espera de uma noiva tão
gloriosa, não por seu próprio caráter, mas pela dignidade do noivo, é que ela
seja um exemplo para os de fora; uma embaixatriz das qualidades do seu
Senhor. No âmbito do relacionamento com seu redentor, ela deve amá-lo e
cumprir sua vontade. Deve ser fonte de regozijo para aquele que governa
soberanamente sobre tudo. As pessoas devem olhar para esse casamento e ver
a alegria e o amor que transbordam dele. Por fim, o estilo de vida dos crentes
e seu contato íntimo com o Senhor Jesus devem ser, a exemplo do salmo,
uma viva “canção de amor”.

SALMO 46
Segurança no Meio do Caos

Sou um motorista bastante cauteloso. Não costumo correr, nem me arriscar


nas estradas. Isso não quer dizer que eu não goste de velocidade. Na verdade,
tenho certa predileção por competições em que a velocidade é o astro
principal. Gosto de ver corridas de carros, motos, caminhões e até aquelas
competições malucas de aviões traçando um percurso perigoso no menor
tempo possível. Infelizmente, sempre que há velocidade, há junto acidentes,
muitos dos quais têm desfechos fatais.
A fim de diminuir as mortes em tais acidentes, os engenheiros têm
desenvolvido sistemas de segurança cada vez mais sofisticados e resistentes.
Um deles é a “célula de sobrevivência”. Trata-se de um invólucro que
envolve o assento do piloto e seu próprio ocupante, cuja função é, em caso de
acidente, manter intacto seu conteúdo, ainda que todo o exterior do veículo
seja completamente destruído. Certa vez, assistindo a uma corrida de lanchas,
vi uma delas se despedaçar no mar a cerca de 400 km por hora. Os restos da
lancha viravam e reviravam batendo com força impressionante na superfície
da água a ponto de me fazer perder as esperanças de ver o piloto vivo.
Contudo, na imagem em câmara lenta, deu para notar que, apesar de toda a
“turbulência” do impacto, a célula de sobrevivência fora destacada do veículo
e, mesmo indo ao fundo d’água, manteve a vida do piloto. Uma equipe de
resgate içou a cápsula do fundo do mar e o piloto saiu dela andando e
acenando. Que susto!
Uma situação de “turbulência” intensa parece ser o pano de fundo do
Salmo 46. Ao que tudo indica, a cidade em que o salmista estava permanecia
sitiada e sob violentos ataques de um exército invasor. A iminência do
rompimento da muralha principal era o que aterrorizava os defensores da
cidade e os moradores indefesos. Sua maior necessidade era a manutenção
dos reforços da muralha e um refúgio dentro da cidade, caso o pior ocorresse.
Apesar da situação caótica, o salmo é tremendamente encorajador. Na
verdade, ele é um grito de confiança e esperança no poder de Deus que, para
o salmista, é indubitavelmente superior aos mais poderosos exércitos dos
homens. Enquanto o salmista parece viver uma situação que nos faria esperar
um salmo de lamento e de desespero, o que encontramos é uma ode à fé no
Deus que abriga os que lhe pertencem durante os piores males. Mesmo com a
subjetividade da fé, ela se torna bastante palpável e mensurável quando
olhamos as circunstâncias nas quais ela floresce.
O v.1 traz a primeira declaração da fé do salmista: “Deus, para nós, é
refúgio e fortaleza” (’elohîm lanû mahaseh wa‘oz). A escolha de palavras não
é casual. A necessidade do escritor era uma cidade que lhe servisse de refúgio
por meio de um muro forte. Entretanto, a ineficácia da cidade, para promover
sua segurança a longo prazo, faz com que ele compare Deus a uma cidade
que nunca sofreria o que seu refúgio atual vinha sofrendo. A razão de tal
necessidade é, possivelmente, um violento ataque que recebem de um forte
inimigo, a julgar pelas circunstâncias vislumbradas pelo escritor nas quais
Deus ainda lhe seria o protetor.
Os vv.2,3 trazem quatro situações nas quais o salmista afirma que não teria
medo por causa da presença e do cuidado de Deus: “Na alteração de terra”
(behamîr ’arets); “no agito dos montes no coração dos mares” (bemôt harîm
belev yammîm); “ao se agitarem e espumarem as águas” (yehemû yehmerû
mêmayw); e “tremerem furiosamente os montes” (yir‘ashô-harîm
bega’awatô). Trata-se de calamidades naturais como terremotos, tsunamis e
enchentes, todos com potencial destrutivo ilimitado. A “ênfase” faz parte
dessa descrição caótica. Ataques militares muito violentos devem ter
motivado tais figuras. Por isso, a confiança do salmista é expressa em termos
de fortificações da cidade e da capacidade de ela proteger seus moradores. É
desse modo que o confiante escritor vê o Senhor.
O v.4 parece oferecer outra nuance do sofrimento do salmista e do seu
povo: falta de água. Era comum, como tática de cerco, cortar o suprimento de
água da cidade sitiada, às vezes até mesmo mudando o curso do rio. Com
isso, ou a cidade se rendia ou morria de sede. Em ambos os casos, o exército
invasor vencia. A menção de um rio, pelo salmista, é bastante sugestiva nesse
sentido (v.4): “Há um rio cujo canal alegra a cidade de Deus” (nahar
pelagayw yesammehû ‘îr-’elohîm). Ao comparar a presença e a proteção de
Deus com uma cidade atravessada por um rio, o salmo pode revelar a
privação e a necessidade de água por parte dos sitiados, além do seu enorme
sofrimento e tristeza pela sede que os consome. Nesse caso, a confiança do
salmista está na atuação de Deus sobre as nações, fazendo-as tremer diante do
seu poder (v.6): “Os povos se agitam, os reinos tremem, ele levanta a sua voz,
a terra estremece” (hamû gôyim matû mamlakôt natan beqôlô tamûg ’arets).
A partir daí (v.7), o salmista produz uma declaração que é repetida no final
do salmo: “O Senhor dos exércitos está conosco; refúgio para nós é o Deus
de Jacó” (yehwâ tseva’ôt ‘immanû misgav-lanû ’elohê ya‘aqov). Parece ser
um tipo de eco do primeiro versículo. Mas, enquanto a palavra traduzida por
“refúgio” no v.1 (mahaseh) é sinônimo de “fortaleza” e pode, também,
significar “defesa”, “guarida” e “amparo”, a palavra traduzida por “refúgio”
presente nos vv.7,11 (misgav) significa “abrigo alto”, ou seja, uma cidadela.
Esta nada mais é que uma fortaleza dentro da fortaleza. Assim, caso a cidade
fosse invadida, havia outra muralha em uma posição mais alta para proteger
os moradores que perderam a primeira muralha. Para o escritor do Salmo 46,
Deus é como uma dessas cidadelas que, mesmo diante da queda dos muros da
cidade, continua protegendo o seu povo.
Ataques violentos, sede, medo, tristeza e caos não conseguem tirar a
confiança do salmista. Em lugar disso, ele passa a encorajar seus pares por
meio da lembrança de quem Deus é e das coisas que fez no passado. Ele faz
um convite aos aflitos (v.8): “Venham e vejam” (lekû-hazû). Outras vezes,
convites como esse são feitos na Bíblia. Apesar de usarem palavras diferentes
– e até idiomas diferentes –, o convite normalmente tem como pano de fundo
a manifestação de Deus, como, por exemplo: “Vinde e vede as obras de
Deus: tremendos feitos para com os filhos dos homens!” (Sl 66.5; ver
também Jo 1.39; 4.29). O Salmo 46 não é diferente. Nesse caso, o que deve
ser observado pelos homens é “a obra do Senhor, pela qual trouxe desolações
à Terra” (mif‘alôt yehwâ ’asher-sam shammôt ba’arets).
Tendo isso em mente, o salmista usa seu melhor argumento para trazer paz
ao coração dos israelitas em tempos de uma guerra atroz. Ele diz que
nenhuma guerra há quando Deus ordena que ela cesse (v.9): “Ele é aquele
que faz pararem as guerras até a extremidade da Terra, que quebra o arco e
destrói as lanças e que queima no fogo os carros” (mashbît milhamôt ‘ad-
qetseh há’arets qeshet yeshavver weqitsets hanît ‘agalôt yisrof ba’esh). Isso é
tudo que o povo sob ataque desejava e que somente Deus podia conceder.
Sabendo disso, o v.10 é escrito na forma de um alento vindo diretamente de
Deus, aquele que pode e quer proteger os seus: “Descansem e saibam que eu
sou Deus” (harpû ûde‘û kî-’anokî ’elohîm).
Diante da situação tão aterradora em que o salmista vivia e da confiança
inabalável que declarava, somente duas situações são compatíveis: a
existência de homem inconsequente ou iludido, que não liga para o que está
prestes a ocorrer, ou a presença de um Deus Todo-poderoso que ama tanto
seus filhos que se importa com seus destinos e com o sofrimento que
atravessam. Na verdade, é esse o Deus que a Escritura toda apresenta: o
redentor e protetor daqueles a quem ama e recebe como filhos. Por isso, a
confiança nele não é ilusória; nunca é inútil; jamais é infundada. Na pior
situação de caos que possamos atravessar, ele é o refúgio, ele é a cidadela, ele
é nossa célula de sobrevivência.

SALMO 47
O Monopólio Sobre as Nações

Uma das grandes facilidades dos dias modernos se chama “cartão de


crédito”. Curiosamente, é ele quem cria as maiores dificuldades financeiras
das famílias de hoje em dia. Entretanto, utilizado com sabedoria e
parcimônia, é uma ferramenta muito útil na administração dos gastos. Eu
possuía dois cartões de crédito, cada um deles de um banco diferente. Com o
tempo, um deles foi comprado por certo banco de destaque e, sem querer,
virei cliente dele. Passaram-se mais alguns meses e meu outro cartão também
foi comprado pelo mesmo banco. Hoje, meus dois cartões me fazem cliente
de um banco que eu nunca procurei. É desse modo que os monopólios
crescem e formam conglomerados comerciais e financeiros que chegam a ser
mais poderosos que muitos países pequenos.
O Salmo 47 revela um tipo de monopólio mundial. É um monopólio bem
amplo que não se limita ao segmento comercial, industrial ou financeiro. Ele
engloba tudo o que existe em todas as nações. O dono desse monopólio não é
uma empresa multinacional, nem um banco poderoso, mas o Deus Todo-
poderoso, criador de tudo o que existe. A ele pertence toda a Terra (1Co
10.26), todas as riquezas (Ag 2.8) e todas as pessoas (Sl 24.1). Ele, que tem
todo o poder (Jó 25.2), detém o controle sobre tudo e, por esse motivo, o
salmista conclama pessoas do mundo inteiro para exaltar o dono de tudo
(v.1): “Batam palmas, todos os povos; aclamem a Deus com gritos de
exaltação” (kol-ha‘ammîm tiq‘û-kaf harî‘û le’lohîm beqôl rinnâ). A razão de
tal convite vem a seguir (v.2): “Pois o Senhor altíssimo é tremendo, grande
rei sobre toda a Terra” (kî-yehwâ ‘elyôn nôra’ melek gadôl ‘al-kol-ha'arets).
O convite ao louvor é efusivo e enfático, tanto quanto é poderoso aquele
que deve ser louvado por todos (v.6): “Façam músicas a Deus, cantem
louvores; façam canções ao nosso Rei, cantem louvores” (zammerû ‘elohîm
zammerû zammerû lemalkenû zammerû). Apesar de, na Língua Portuguesa,
por uma questão de estilo, a mesma palavra ser traduzida de formas
sinônimas, mas diferentes, o v.6, no texto hebraico, possui quatro ordens
idênticas: “Cantem louvores” (zammerû – vide transliteração acima referente
ao v.6). Essa intensa repetição não revela pobreza de estilo, mas uma ênfase
na necessidade de os servos de Deus glorificarem seu nome publicamente. É
para isso que o salmista convida seus leitores e ouvintes.
A primeira esfera do domínio do “grande rei sobre toda a Terra” é a nação
de Israel. O Senhor, em sua soberania, elegeu Israel a fim de lhe dar um
privilégio especial entre os outros povos do mundo (v.4): “Ele escolheu para
nós a nossa herança, a exaltação de Jacó, a quem ama” (yivhar-lanû ’et-
nahalatenû ’et ge’ôn ya‘aqôv ’asher-’ahev). O resultado de tal eleição foi que
ele deu a Israel uma terra de onde, para tanto, foram desarraigadas outras
nações. Além disso, colocou Israel, nos dias do salmista, em uma função de
liderança política, conforme revela o salmo (v.3): “Ele nos submeteu os
povos e colocou as nações sob os nossos pés” (yadber ‘ammîm tahtênû
ûle’ummîm tahat raglênû). Eis a razão pela qual todos os israelitas são
chamados a louvar a Deus com todos os seus recursos. E foi de um modo
compatível com essas inegáveis vantagens que eles responderam à bênção
dada por Deus (v.5): “Deus se elevou entre gritos de vitória; o Senhor, com
som de trombeta” (‘alâ ’elohîm bitrû‘â yehwâ beqôl shôfar). “Elevar-se” aqui
faz alusão a uma entronização. É a figura de um rei assumindo seu trono em
meio à ruidosa e efusiva comemoração popular.
Dá para entender muito bem a alegria e o louvor dos israelitas. Entretanto,
as nações, sob essa primeira óptica, parecem ser relegadas a um plano inferior
nos decretos e nos cuidados de Deus. Que motivos, então, elas teriam para
louvar o Senhor? Se Deus tratou Israel de modo especial, por que os outros
povos deveriam cantar louvores àquele a quem os israelitas chamam (v.6) de
“nosso rei” (malkenû)? Porém, vale lembrar que o Salmo 47 não apresenta
como foco do louvor o “Deus de Israel”, mas o “grande rei sobre toda a
Terra”. Isso é enfatizado na segunda parte do salmo. Aliás, a parte que se
dirige em especial às nações do mundo, começa dizendo (v.7): “Pois Deus é
rei de toda a Terra” (kî melek kol-ha’arets ’elohîm). Assim, o salmista reforça
seu convite aos povos que não são israelitas, dizendo: “Cantem poemas
contemplativos” (zammerû maskîl).
Como bom rei (v.8), “Deus reina sobre os povos” (malak ’elohîm ’al-
gôyim). Por essa causa, tais povos se relacionam com ele como seu rei
pessoal. Deus não é, para eles, um déspota tirano. Na verdade, Deus é tão rei
das nações do mundo quanto o é em relação à nação de Israel. A submissão a
Deus, tanto dos povos, como dos israelitas, os torna, juntos, súditos do
mesmo rei. O resultado é que pessoas de todas as nações participam do
louvor que Israel encabeça (v.9): “Os nobres das nações se ajuntam, povo do
Deus de Abraão, visto que os escudos da Terra pertencem a Deus” (nedîbê
‘ammîm ne’esafû ‘am ’elohê ’avraham kî le’lohîm maginneh-’erets). Tal
ajuntamento de nações, nomeadas também de “escudos”, a fim de louvar a
Deus, reúne um grupo chamado pelo salmista de “povo do Deus de Abraão”.
A primeira notoriedade é ver nações de todo mundo, ao se submeterem a
Deus, serem chamados de “povo de Deus”. Entretanto, precisamos notar a
menção a Abraão a fim de identificar o Senhor. O Deus das nações é o “Deus
de Abraão”, o pai da nação israelita.
Essa aparente contradição se revolve diante da aliança que Deus fez com o
patriarca. Ao lhe prometer uma descendência numerosa (Gn 12.1-3) e uma
terra onde seus descendentes habitariam (Gn 13.14,15; 15.18,19), Deus
também prometeu benção, por meio de Abraão, não somente para Israel, mas
para pessoas de todas as nações: “Abençoarei os que te abençoarem e
amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias
da Terra” (Gn 12.3). Essa aliança, chamada “abraâmica”, previu bênçãos
para todos os povos, israelitas e gentios, por meio de Abraão, ao que Paulo
assim ressalta: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé
os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos
os povos. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão” (Gl
3.8,9). É claro que se pode perguntar o que Abraão teria de especial para
abençoar tanta gente. A isso, Paulo responde identificando a fonte da bênção
como o descendente ilustre de Abraão, o Senhor Jesus: “Ora, as promessas
foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos descendentes,
como se falando de muitos, porém como de um só: E ao teu descendente, que
é Cristo” (Gl 3.16).
A obra de salvação realizada por Jesus na cruz beneficia, independente da
nação e da etnia (Cl 3.11), todos os que nele crêem: “Mas, a todos quantos o
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que
crêem no seu nome” (Jo 1.12). Deste modo, rei sobre toda a Terra, o Senhor
dispõe a história como lhe apraz (Ef 1.11). Escolheu Israel para ser seu povo
particular, por meio de quem traria à humanidade o Deus eterno, Jesus Cristo
(Rm 9.4,5). Aprouve-lhe, diante da incredulidade dos israelitas, afastá-los do
foco da mediação da sua graça na Terra, fazendo com que crentes de outros
povos assumissem tal função e recepção da graça (Rm 11.11; 1Pe 2.9 cf. Ex
19.5,6) – apesar de reservar uma parte dos israelitas para continuar neles,
nesse tempo, sua atividade graciosa (Rm 11.2-5). E, um dia, aproximará
novamente Israel a si e cumprirá todas as promessas que fez aos seus pais
(Rm 11.15,24).
Eis aí um motivo para pessoas de todas as nações louvarem a Deus. Ele é
rei, não apenas de direito, mas também de fato. Ele controla a história, tanto
em relação aos grandes rumos das nações, como em termos de detalhes da
vida particular de cada pessoa. Tamanho controle, poder e majestade, deve
nos tocar como pessoas que observam tais qualidades em meio a grande
admiração e reverência. Tal visão da glória divina nos faz, sem dúvida, ouvir
e atender ao convite do salmista, ainda que o tenha feito há tanto tempo atrás.
Para nós, que servimos a Deus e nos admiramos de ver seu poder nos rodear,
o contive é tremendamente atual e relevante. A visão do monopólio de Deus
sobre o controle das nações assim nos chama (v.7): “Pois Deus é rei de toda a
Terra; cantem poemas contemplativos” (kî melek kol-ha’arets ’elohîm
zammerû maskîl).

SALMO 48
O Exército de Um Só Soldado

Uma das grandes diversões do brasileiro – e de pessoas de muitos países ao


redor do mundo – é o futebol. Um dos pontos positivos do futebol que o faz
tão aceito em todo mundo é o fato de ser bem flexível: pode ser jogado tanto
em um campo especialmente preparado, com dois times de onze jogadores
vestidos com uniformes próprios para o jogo, como pode ser jogado no meio
da rua por meninos descalços que chutam uma bola de meia para dentro de
um espaço demarcado por dois chinelos velhos.
Eu mesmo já fui adepto desse esporte em uma versão intermediária entre o
sofisticado e o rústico: o futebol em quadras disputado por times de garotos
“com” e “sem” camisa. Certa vez, em um grupo de meninos que formavam
oito times, joguei contra uma equipe que, em menos de dois minutos, vencia
e tirava o adversário. Isso era chato, pois eu jogava dois minutos e tinha de
esperar mais seis times jogarem. Alguns times eram vencidos em menos de
um minuto. Isso aconteceu à noite toda, até que, formando um tipo de
“seleção”, reunimos os melhores jogadores dos “times-de-fora” para
conseguir vencer aquele oponente tão duro e normalizar as partidas. Somente
um tipo de dream team conseguiu salvar nossa noite de diversão.
O escritor do Salmo 48 testemunhou algo parecido, mas não no campo
esportivo e, sim, no militar. O contexto parece nos levar a Judá, com sua
capital, Jerusalém, liberta de uma coligação militar entre nações agressoras.
Ao que tudo indica, houve uma virada no cenário das batalhas, pela mão
protetora do Senhor, e o exército estrangeiro teve de bater em retirada. O
resultado é que os israelitas não apenas comemoraram o desfecho vantajoso,
como olharam para Deus como o responsável pela bênção.
Diante de tal realidade, não haveria melhor modo de iniciar o salmo do que
dizendo (v.1): “O Senhor é grande e digno de louvor na cidade do nosso
Deus, seu monte santo” (gadôl yehwâ ûmehullal me’od be‘îr ’elohênû har-
qadshô). A “cidade do nosso Deus” é o mesmo lugar citado no v.2 como
“monte Sião” (har-tsiyyôn) e “cidade do grande rei” (qiryat melek rav).
Trata-se de Jerusalém, capital de Israel no tempo do reino unido sob as
lideranças de Davi e de Salomão e, também, capital de Judá (reino do Sul),
quando Israel foi divido em dois reinos (931 a.C.). Tal cidade foi protegida
pelo Senhor de um ataque estrangeiro. Por isso, o salmista associa Deus com
uma cidadela, uma fortaleza no interior de uma cidade fortificada que servia
de refúgio quando as muralhas eram invadidas (v.3): “Deus, nos palácios
dela, se faz conhecer como um refúgio no alto da cidade” (’elohîm
be’armenôteiha nôda‘ lemisgav).
O resultado da proteção de Deus pode ser visto entre os vv.4-8. Em
primeiro lugar (v.4), “os reis se reuniram e juntos partiram” (hammelakîm
nô‘adû ‘avrû yahdaw). Percebendo que não eram páreo para o Senhor, os
exércitos agressores desistiram da campanha militar e retornaram às suas
terras. A proteção de Deus à sua cidade e ao seu povo foi superior ao poderio
militar da liga de nações que declarou guerra a Judá. E, segundo expressa o
salmista, tal retirada não foi tranquila, mas se deu às pressas, de modo que
percebemos, pelo texto, as nações em fuga (v.5): “Assim que elas viram a
situação, se desconcertaram, ficaram aterrorizadas e fugiram
apressadamente” (hemmâ ra’û ken tamahû nivhalû nehpazû).
O motivo da fuga desenfreada foi, em primeiro lugar (v.6), que “o tremor
ali os tomou” (re‘adâ ’ahazatam sham) e, ainda, porque tiveram grandes
prejuízos (v.7): “Com um vento oriental ele destroçou os navios de Társis”
(berûah qadîm teshavver ’oniyyôt tarshîsh). Antes que haja má compreensão,
deve ser dito que não houve uma batalha naval. Aqui, o salmista fala de
forma figurada, utilizando a ideia do naufrágio de navios vindos de Társis
com grandes somas monetárias, a fim de representar as perdas que teve a
coligação militar que atacou Judá – Társis era um local distante no litoral do
mar Mediterrâneo (Jn 1.3; Sl 72.10; Is 23.6), possivelmente na Espanha, que
era fonte de grandes riquezas, dentre elas metais preciosos como ouro e prata
(1Rs 10.22; Is 60.9). Assim, os inimigos foram derrotados e fugiram com
grandes perdas. Quanto a Jerusalém, foi protegida de forma espetacular, visto
que (v.8) “Deus a estabelece para sempre” (’elohîm yekôneneha ‘ad-‘ôlam).
Este é o contexto em que o salmo foi escrito: o medo dos moradores de
Jerusalém, diante de um forte ataque estrangeiro, cede lugar à exultação
devido à incrível libertação vinda do Senhor. É claro que não há como ficar
indiferente diante de uma situação como essa. Por isso, vemos que a atuação
de Deus na proteção do seu povo produziu três reações nos seus servos,
reações estas que costumam – e devem mesmo – se repetir em situações
parecidas.
A primeira reação é contemplar a fidelidade de Deus. O salmista declara
ao Senhor (v.9): “Meditamos, ó Deus, sobre a tua fidelidade no interior do teu
Templo” (dimmînû ’elohîm hasdeka beqerev hêkaleka). A demonstração da
fidelidade do Senhor que, indubitavelmente, já era conhecida do salmista em
termos conceituais, leva-o a uma ação que ele chama de “meditação”. Longe
de ter qualquer nuança transcendental moderna, trata-se de um ato em um
contexto cultual, já que há a menção ao interior do Templo, representando os
sacrifícios e ofertas feitas a Deus nesse local. Assim, a reflexão sobre a
fidelidade do Senhor para com seu povo deve levar seus servos à reverente
contemplação do Senhor, que, por sua vez, deve conduzi-lo à adoração
pública e ao desejo de um conhecimento amplo e de um relacionamento
pessoal.
A segunda reação é louvar a Deus por sua justiça. Segundo o escritor do
salmo (v.10), “o teu louvor vai até os confins da Terra” (tehillateka ‘al-
qatswê-’erets). Isso não acontece sem motivo. A razão para tanto é que,
agindo Deus, “a tua mão direita é plena de justiça” (tsedeq mol’â yemîneka).
Ao dizer “mão direita”, o escritor se refere não a um órgão anatômico, mas à
atuação de Deus. O que ele quer dizer, de fato, é que tudo que o Senhor faz é
justo e isso se dá por todo o mundo. A consequência natural é a constatação
do louvor motivado pela justiça divina por parte dos seus beneficiários (v.11):
“O monte Sião se alegra; as filhas de Judá rejubilam por causa das tuas justas
decisões” (yismah har-tsiyyôn tagelenâ benôt yehûdâ lema‘an mishpateika).
E a terceira reação, por parte dos servos de Deus, é dar testemunho da
grandeza de Deus. O salmista, então, convida os moradores de Jerusalém
para fazer uma revista na cidade. Ele diz (v.12): “Rodeiem Sião” (sobû
tsiyyôn). A razão é fazer um tipo de inventário (vv.12,13): “Contem as suas
torres; prestem atenção na sua muralha; examinem o seu refúgio no alto da
cidade” (sifrû migdaleiha shîtû livvekem lehêlâ passegû ’armenôteiha). Como
não se sabe exatamente a época da composição do salmo, também é
impossível saber as condições das fortificações de Jerusalém. Assim, dentre
duas possibilidades, o salmista quer que tal inventário seja feito ou para notar
o modo pelo qual o Senhor fortificou a cidade para protegê-la, ou para que se
note que, apesar de fracas instalações, a libertação aconteceu – sem dúvida –
pelas mãos do Senhor. A intenção é bem definida (vv.13,14): “A fim de
relatar à geração seguinte que este é Deus, o nosso Deus eterno” (lema‘an
tesafferû ledôr ’aharôn kî zeh ’elohîm ’elohênû ‘ôlam).
O Senhor protegeu Israel e o livrou de exércitos poderosos. Não é sem
razão que é chamado, no v.8, de “Senhor dos exércitos” (yehwâ tseva’ôt).
Entretanto, diferente da liga militar formada para combater Judá, com seus
numerosos regimentos, o Senhor forma um exército de um só soldado que,
contudo, prevalece contra tudo e contra todos. Ninguém tem mais motivos
que seus servos para se alegrar e render a ele culto. O Senhor Todo-poderoso,
em quem confiam seus servos, é um dream team de uma pessoa só.
Louvemos e anunciemos pelo mundo o seu santo nome!

SALMO 49
A Visão do Outro Lado da Vida

Em 1991, fui convidado, junto com um amigo, a integrar a equipe de


voleibol de Jundiaí. Eu na posição de levantador e meu amigo como atacante.
Íamos três vezes por semana para lá a fim de participar dos treinos. Mas os
poucos horários de ônibus entre Atibaia e Jundiaí fizeram com que o tempo
que permanecemos nessa rotina fosse uma aventura muito cansativa. Tal
aventura começou no primeiro dia de treino. Não havia transporte de Jundiaí
para Atibaia depois das 17 horas. Como o treino terminava por volta das 21
horas, planejamos ir de ônibus até a cidade de Itatiba e, de lá, pegar outro
“suposto” ônibus para casa. Ao chegarmos em Itatiba, descobrimos que nossa
pesquisa foi falha e que não havia qualquer condução naquele horário.
Sem ter o que fazer, resolvemos esperar na rodoviária até o dia amanhecer
a fim de pegar o primeiro ônibus para casa. Nossa paciência durou apenas até
meia-noite. Não aguentávamos mais ficar ali sentados e, assim, tivemos uma
brilhante ideia: caminhar até Atibaia. Imaginamos que os cerca de trinta
quilômetros não seriam difíceis de serem transpostos já que estávamos juntos,
éramos atletas e iríamos conversando. Só percebemos que a sede e o treino
físico que fizemos em Jundiaí nos fariam sofrer por todo o caminho quando
já não dava para voltar. Andamos a noite toda e chegamos em Atibaia às 7
horas. O cansaço era inacreditável; as dores, também. Entretanto, não me
arrependo hoje de ter feito aquela horrível jornada, visto que já descansei dela
e que não sinto mais dor alguma. Agora que tudo já terminou, tenho apenas
uma história engraçada para contar.
O Salmo 49 trata de um conceito parecido. Ele fala de “valores
passageiros”. Segundo o texto, depois de esses valores ficarem para trás,
nenhum benefício trarão aos homens. Por outro lado, apresenta um valor
superior que perdurará para sempre, tornando-o caro ao homem e alvo de
uma busca séria e sábia. Na verdade, o Salmo 49 é, em certo aspecto, muito
diferente dos outros salmos, sendo mais parecido com o conteúdo de
Eclesiastes e de Provérbios. Podemos, com toda propriedade, chamar esse
capítulo de “salmo de sabedoria”.
O salmo inicia com um chamado geral (v.1): “Que todos os povos ouçam
isto; Que todos os moradores da Terra deem ouvidos” (shim‘û-zo’t kol-
ha‘ammîm ha’azînû kol-yoshvê haled). É importante notar que esse chamado
é mesmo para todas as pessoas, independente da situação de cada um, o que
inclui (v.2) o “rico” (‘ashîr) e o “pobre” (’evyôn). O que será dito no salmo
vale para todos igualmente. Poucas realidades são iguais para os ricos e os
pobres, a não ser aquelas ligadas à vida humana, em termos biológicos, e ao
destino eterno definido pelo relacionamento que se tem, em vida, com o
Senhor. Nessas áreas há duas certezas: todos morrem e todos são julgados por
Deus.
Tratando assuntos nesse campo, o escritor explica o teor do seu discurso,
que, na verdade, é uma aula para todos os homens (v.3): “A minha boca
falará de sabedoria e a minha reflexão será de prudência” (pî yedaber hokmôt
wehagût livvî tevûnôt). Ninguém deve duvidar da sabedoria que o salmista
afirma ter, pois o teor do seu ensino, em consonância com as Escrituras,
prova que ele fala o que é verdadeiro. Por isso, continua (v.4): “Inclinarei
meus ouvidos a um provérbio; exporei o meu enigma com uma harpa” (’atteh
lemashal ’oznî ’eftah bekinnôr hîdatî). Essa combinação das palavras
“provérbio” e “enigma” ocorre outras vezes no Antigo Testamento (Sl 78.2;
Pv 1.6; Ez 17.2; Hc 2.6) e está sempre ligada à exposição de um tipo de
literatura de sabedoria. Assim, a que o salmista se propõe é expor conceitos
que afetam de maneira fundamental a vida das pessoas. Aprender com sua
mensagem é ser sábio, ao passo que ignorá-lo é a típica ação das pessoas
tolas.
Tendo dito isso, o assunto é introduzido, a saber, o futuro inevitável de
todos os homens na morte (v.10): “Pois se vê que os sábios, sem exceção,
morrem, assim como sucumbem o tolo e o néscio” (kî yir’eh hakamîm
yamûtû yahad kesîl waba‘ar yo’vedû). Tal futuro, segundo o texto, não pode
de modo algum ser evitado (vv.7,9): “Um homem não pode remir o irmão,
nem pagar a Deus pelo seu resgate... para que continue a viver perpetuamente
e não veja o túmulo” (’â lo’-padoh yifdeh ’îsh lo’-yitten le’lohîm kafrô...
wîhî-‘ôd lanetsah lo’ yir’eh hashahat). “Remir”, nesse contexto, significa
“livrar da morte”. Ou seja, não há o que se faça para que os homens vivam
para sempre sem morrer. Quem se rende a lutar por essa finalidade, diz o
texto (v.8), “desiste” (hadal). Isso, certamente, torna os problemas presentes
menores aos nossos olhos e, por isso, o próprio escritor não supervalorizava
os problemas que atravessava na vida, pelo que diz (v.5): “Por que eu terei
medo, nos dias maus, quando me acercar a iniquidade dos meus
perseguidores?” (lammâ ’îra’ bîmê ra‘ ‘aôn ‘aqevay yesûvvenî). Afinal, no
final da vida, depois de tudo ter passado, que importa se a vida foi mais ou
menos difícil?
O texto revela que os homens, na esperança de superar o tempo e a morte
(v.11), tolamente “chamaram as suas terras com seus próprios nomes” (qar’û
bishmôtam ‘alê ’adamôt). Entretanto, o que têm de volta é o mesmo fim de
todo ser vivo (v.12): “Eles perecem como os animais” (kabbehemôt nidmû).
Inúteis são as riquezas, os feitos, as posses, as glórias e os elogios (vv.16-20).
É uma visão bastante pessimista da vida. Se o salmo terminasse aqui, só seria
fonte de tristeza e depressão.
Entretanto, o salmista vê mais longe que isso. Sua visão não é a de quem
olha a vida encerrar em um velório, mas de alguém que, de uma posição
superior, além da vida, a vê depois da morte. Surpreendentemente – para o
contexto do Antigo Testamento, segundo o conceito da revelação progressiva
–, o salmista tem conceitos muito definidos da vida eterna e do modo pelo
qual o homem pode ter acesso a ela (v.15): “Deus, porém, livrará a minha
alma das mãos da morte, pois me tomará para si” (’ak-’elohîm yifdeh nafshî
miyyad-she’ôl kî yiqqahenî). Davi também usou, com os mesmos termos, a
ideia de ter liberta “a sua alma da morte” (Sl 16.10). No seu contexto – do
Salmo 16 –, isso significava ser protegido da morte que intentavam os
inimigos. Mas, no Salmo 49, o contexto aponta para a inevitabilidade da
morte. Aqui, o significado do v.15 não é que Deus impede o servo de morrer,
mas que, quando ele morre, Deus não deixa seu servo sob os horrendos
efeitos da morte, nem, tampouco, que se perca dele. O Senhor o livra da
morte e o recebe para si.
O Novo Testamento, como porção final do que Deus revelou e, por isso
mesmo, portador de pontos específicos e aprofundados da doutrina bíblica,
concorda em todos os sentidos com o escritor do salmo. Jesus também disse
que as riquezas são transitórias diante do poder da morte, de modo que
chamou de “louco” aquele que coloca nos bens a sua alegria e não busca a
verdadeira riqueza do relacionamento com Deus (Lc 12.19-21 cf. Mt 16.26).
Na verdade, Jesus frisou a total incapacidade do homem perante a morte,
dizendo: “Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado
ao curso da sua vida?” (Lc 12.25).
Mas a Bíblia não se ocupa apenas dos efeitos físicos da morte e, assim
como o próprio autor do Salmo 49, olha para a morte sob um prisma mais
amplo e se preocupa com o modo de reverter os seus efeitos espirituais, ou
seja, a separação de Deus. Paulo escreveu aos romanos que “o salário do
pecado é a morte” (Rm 6.23a). Imediatamente, completa: “Mas o dom
gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6.23b).
Dizendo isso, ele tanto demonstra estarem na morte as consequências eternas
do pecado, como estar em Jesus a fonte da vida.
Se o salmista afirmou que o homem não pode promover o livramento dos
efeitos da morte e, também, que tinha a esperança de ver Deus atuando como
redentor, temos no Novo Testamento o perfeito paralelo. Paulo escreveu que
“o homem não é justificado pelas obras da lei” (Gl 2.16a), mas que, por outro
lado, é justificado “mediante a fé em Jesus Cristo” (Gl 2.16b). Jesus, como
Deus que é, cumpre a esperança do salmista de redimir a alma do servo para
que não permaneça na morte, segundo diz: “Tal como o Filho do Homem,
que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
muitos” (Mt 20.28). Para alegria do salmista – e de todos os que creem em
Jesus como seu Deus e salvador –, o resultado final de tal obra é que
viveremos para sempre na presença de Deus, sem sofrer os danos e a
condenação contidos na morte: “Em verdade, em verdade vos digo: se
alguém guardar a minha palavra, não verá a morte, eternamente” (Jo 8.51).
O efeito que essa verdade teve sobre o escritor do salmo é que ele mantinha
a tranquilidade nas provações e aguardava com esperança a redenção
completa da sua alma na vida eterna. E nós, temos tido essa mesma
esperança? Temos lançado as nossas preocupações na conta da certeza da
redenção divina? Ou, à semelhança da minha cansativa jornada noturna,
temos carregado um fardo por quilômetros e mais quilômetros sem fim?

SALMO 50
O Culto Verdadeiro e o Culto Inútil

Na cidade de Evanston, Illinois (Estados Unidos), certa vez se viu um


anúncio, no mínimo, curioso. Ele dizia: “Nós queremos que você se junte à
nossa fé como um ministro ordenado com o grau de doutor em divindades”.
No anúncio, eles explicavam se tratar de uma denominação de rápido
crescimento, que estava à procura de novos membros que acreditavam, como
eles, que todo homem deveria procurar a verdade da sua própria maneira, por
quaisquer meios que considerem corretos. Como vantagens oferecidas para o
cargo de ministro ordenado, o anúncio afirmava que os portadores do título
poderiam iniciar suas próprias igrejas e obter isenção de impostos; poderiam
realizar casamentos e ter todas as prerrogativas eclesiásticas. Além do mais,
dizia o texto, se os candidatos desejassem ser missionários daquela
denominação, obteriam grandes lucros, além de confortos como transportes,
hotéis e presença em teatros. Tudo isso pela “bagatela” de cem dólares pelo
curso que, segundo se afirmava, era válido e reconhecido em qualquer lugar
dos Estados Unidos.
Infelizmente, esse tipo de anúncio não é exclusividade do Estado
americano de Illinois. Eu mesmo já vi algo parecido no Brasil. Nesses casos,
a ousadia de afirmar que o curso confere o grau de doutor em divindades
demonstra, logo de cara, o caráter enganoso da proposta. Eu conheço
algumas pessoas que têm o grau de doutorado em Teologia e posso afirmar
que não o obtiveram por meio de um cursinho de cem dólares, mas passando
décadas das suas vidas em seminários e bibliotecas e, também, debruçados
sobre suas escrivaninhas, lendo e escrevendo milhares de páginas por ano.
Posso também dizer, conhecendo verdadeiros doutores, que é muito fácil
distingui-los dos falsos. Esse falso curso de doutorado, em Evanston, não
consegue resistir a uma breve conversa entre seus “falsos doutores” e os
verdadeiros estudantes das Escrituras que possuem, de fato, o referido grau
de ensino.
O Salmo 50, de autoria de Asafe, também traça uma nítida distinção entre o
“verdadeiro” e o “falso”. Nesse caso, o objeto de avaliação não é um título
educacional, mas o coração das pessoas que se dizem adoradores de Deus. O
próprio Senhor é quem, no salmo, os distingue e se manifesta diante da
falsidade dos seguidores nominais. O salmo parece ter sido escrito em um
contexto da manutenção de uma religião ritualista, por parte de alguns, que
consideravam a forma externa do culto como tudo que importava oferecer a
Deus. Não há como negar que, guardadas as devidas proporções, é uma
situação que nos lembra o ritualismo seco e morto dos dias do profeta
Malaquias: sacrifícios oferecidos diante de Deus por corações distantes, tanto
quanto possível, do Senhor digno de todo louvor.
Nesse sentido, os vv.1-6 tratam de uma convocação geral de Israel (v.1) a
fim de comparecer diante do tribunal de Deus. O tom sério e grave com que
tal convocação é feita é de “arrepiar” e fazer temer – e tremer. Diz o v.3:
“Vem o nosso Deus e não se cala; diante dele há um fogo que consome e, ao
seu redor, se abate uma enorme tempestade” (yabo’ ’elohênû we’al-yeherash
’esh-lepanayw to’kel ûsevîvayw nis‘arâ me’od). Tanto pela figura do fogo
como pela da água, a ideia é de uma inevitável destruição para aqueles que
forem apanhados por Deus. O motivo de Deus fazer a convocação é (v.4)
“para julgar o seu povo” (ladîn ‘ammô). Quanto ao juiz da questão (v.6),
“Deus é aquele que julga” (’elohîm shofet hû’).
Como que em uma grande assembleia, o Senhor se pronuncia contrário
àqueles que o desagradam (v.7): “Eu testemunharei contra ti” (’a‘îdâ bak).
Nessa ação, antes que haja qualquer mal-entendido, Deus já avisa os réus que
o motivo do seu juízo não se devia à natureza, em si, dos sacrifícios que lhe
ofereciam no Templo (v.8): “Eu não te reprovo devido aos teus sacrifícios e
aos teus holocaustos” (lo’ ‘al-zevaheyka ’ôkîheka we‘ôloteyka). Apesar disso,
o Senhor decreta (v.9): “Não aceitarei bezerro da tua casa, nem bodes do teu
cercado” (lo’-’eqqah mibbêteka par mimmikle’oteyka attûdîm). A pergunta
natural é: se o problema não era o sacrifício em si, tanto nas disposições
técnicas como na qualidade dos animais, qual, então, era o motivo da
repreensão?
Depois de o Senhor dizer que não precisa dos sacrifícios oferecidos a ele,
no sentido de não ter necessidades que possam ser supridas por ofertas
(vv.10-13), ele, então, toca no ponto sensível da questão: a motivação dos
ofertantes. Eles participavam dos rituais ditados pelo Senhor, mas seu
coração não acolhia nem seus ensinos, nem tampouco o amor por aquele a
quem sacrificavam. A triste situação de uma religião apenas nominal e
ritualista é exposta nos vv.16,17: “Mas Deus disse ao ímpio: que vantagem
tens em repetir os meus preceitos e em carregar a minha aliança na tua boca,
quando tu odeias o ensino e lanças fora as minhas palavras?” (welarasha‘
’amar ’elohîm mah-leka lesaffer huqqay watissa’ berîtî ‘alê-pîka we’attâ
sane’ta mûsar watashlek devaray ’ahareyka). Deus, que viu tais defeitos no
coração dos ímpios, deu-lhes prova, também, do conhecimento a respeito dos
efeitos externos da sua desobediência e da sua insubmissão. Deus lhes acusa
de aprovar a desonestidade e a imoralidade (v.18), de serem maldosos e
trapaceiros (v.19), de trair seus próprios irmãos (v.20) e de menosprezar a
santidade do Senhor (v.21). Eis os motivos pelos quais Deus rejeitou os
ímpios e os sacrifícios deles, a exemplo de Caim. Quando o Senhor rejeitou a
oferta de Caim, não foi pelo seu conteúdo, mas devido à maldade do
ofertante. Por isso, disse a Caim: “Se procederes bem, não é certo que serás
aceito?” (Gn 4.7a) – há quem diga que a oferta de Abel foi aceita por ser
“oferta de sangue”, mas a Bíblia não dá subsídios para tal visão
extemporânea e confere à fé de Abel o motivo pelo qual ele e sua oferta
foram aceitos (Hb 11.4).
Assim como Deus instruiu Caim sobre o modo de ser aceito, fez o mesmo
aos ímpios a quem se dirige, no Salmo 50, em tom reprobatório. Fazendo
isso, aponta três traços do culto verdadeiro. O primeiro deles é um coração
genuíno. A primeira parte do v.14 diz: “Ofereça sacrifícios de gratidão a
Deus” (zevah le’lohîm tôdâ). Apesar de os servos nominais do Senhor, pelo
que diz o próprio texto, apresentarem a Deus suas ofertas – aquelas que Deus
passou a recusar no v.9 –, Deus orienta o modo como deveriam ocorrer: com
gratidão. Parece redundante: “Sacrifícios de gratidão com gratidão”.
Entretanto, o que Deus quer ressaltar, por meio do salmista, é que a oferta
exterior deve corresponder à devoção interior. Nesse aspecto, a oferta deve
vir de um coração genuíno e, assim, fazer sentido e ser verdadeira. E isso vale
para todas as áreas pelas quais os cultos são prestados ao Senhor.
O segundo traço é a fidelidade a Deus. A sequência do v.14 diz: “E
mantenha os seus votos para com o Altíssimo” (weshallem le‘elyôn
nedareyka). O texto não explica que votos são esses, mas, quaisquer que
fossem, com fidelidade deveriam ser cumpridos. Independente de haver votos
pessoais e pontuais, cada geração de israelitas renovava com Deus a aliança
mosaica. Ela tinha um caráter bilateral. Diferente de outras alianças, tanto
Deus como os homens se comprometiam com especificações de deveres e
direitos. Do seu lado, Deus sempre foi fiel. Da parte dos servos, a ordem é
que ajam do mesmo modo.
Finalmente, o terceiro traço é a submissão dependente. Diferente dos
homens que desprezavam as palavras do Senhor (v.17) e, na verdade, o
próprio Senhor (v.21), o servo verdadeiro conhece sua posição e a posição de
Deus. Sabendo disso e obedecendo as orientações divinas, o v.15 revela um
dever do servo. Diz-lhe o Senhor: “E clame a mim no dia do perigo”
(ûqera’enî beyôm tsarâ). A dependência demonstrada nessa atitude revela a
submissão do servo ao Senhor por saber que somente Deus tem poder para
cuidar do homem que lhe pertence. E quando isso acontece, a atitude do
verdadeiro servo é assim descrita por Deus: “Você me honrará” ou “você me
glorificará” (tekavvedenî).
Tal é a distinção entre o servo verdadeiro e o servo falso; e a distinção
entre o culto verdadeiro e o culto falso; entre aquilo que Deus aceita e aquilo
que ele rejeita. Não há espaços para demonstrações vazias. Não há lugar para
ritualismos que não refletem a adoração viva vinda do íntimo dos adoradores.
Não quando Deus conhece tudo, incluindo o coração das pessoas. Nem
tampouco, quando se sabe que ele não se comove com as aparências, mas que
rejeita abertamente a adoração falsa. Com isso em mente, inevitavelmente
temos de trabalhar os nossos corações para nos arrepender de pecados, para
dedicarmos nosso tempo e nossos esforços a Deus e para sermos autênticos
quando declararmos nossa adoração ao nosso criador e salvador. Caso
contrário, ofereceremos a Deus um culto tão inútil quanto diplomas de cem
dólares que trazem, risivelmente, o título de “doutor em divindades”.

SALMO 51
A Mudança Necessária ao Servo de Deus

Recentemente, assisti com minha filha, na televisão, ao filme Free Willy 3:


O Resgate (Warner Bros.: 1997). Assim como nos filmes precedentes, o
enredo expõe o bom relacionamento entre Willy, uma baleia orca, e o menino
Jesse – nesse filme, já rapaz. Uma diferença, porém, no tema do terceiro
filme da série é que, enquanto no primeiro se defende a liberdade desses
grandes animais que vivem em cativeiro, o filme mais recente denuncia a
crueldade da caça ilegal das baleias. Para tanto, há um “vilão”, caracterizado
na forma de um caçador de baleias, que tenta, com insucesso, fazer com que
seu pequeno filho tome gosto pelo ofício familiar. Mas a amizade que o filho
cria com Willy e com Jesse, associado ao fato de o caçador ter sua vida salva
pela baleia orca, faz com que, no final, o vilão mude radicalmente seu modo
de ver os animais e abandone sua profissão. O objetivo do filme é promover
uma mudança de atitude nas pessoas para que ajudem a preservar as baleias.
O Salmo 51, um dos sete salmos penitenciais (6, 32, 38, 51, 102, 130, 143)
– provavelmente o mais famoso deles –, é um exemplo ideal do que significa
“mudança de atitude”. Seu escritor, o rei Davi, sofre uma grande
transformação que merece ser observada com atenção. A mudança pode ser
percebida não apenas no corpo do texto, mas no contexto indicado pelo título
do salmo: “Ao dirigente: Cântico de Davi, em vindo a ele Natã, o profeta,
depois de ter [Davi] se deitado com Bate-Seba” (lamnatseah mizmôr ledawid
bebô’-’elayw natan hannavî’ ca’asher-ba’ ’el-bat-shava‘). Essa introdução
nos remete a 2Samuel 11 e 12, onde são narradas as atitudes de Davi como
pecados singulares em sua vida. Esses capítulos mostram uma sequência
drástica de pecados cada vez piores que começam com a cobiça da mulher de
um amigo, seguido pelo adultério ao tomá-la em seu leito.
O que já era trágico, piora com a notícia de que a mulher, Bate-Seba, ficou
grávida. Davi, então, chama Urias, o marido, do campo de batalha e tenta
fazê-lo ir para sua casa a fim de parecer que era dele o filho que a mulher
esperava. Urias não atendeu à sugestão do rei que, em uma nova tentativa, o
embriagou a fim de convencê-lo. A falta de sucesso fez Davi lançar mão de
uma opção extrema, pela qual, deliberadamente, causou a morte do marido
traído. Com sua morte, Davi desposou a mulher gestante e acreditou que tudo
permaneceria em segredo. A farsa só teve fim quando o profeta Natã, usando
de um estratagema, fez o rei pronunciar uma condenação sobre si mesmo e o
repreendeu duramente pelo pecado.
Em outras ocasiões narradas nas Escrituras, como em 1Samuel 15.10-31,
repreender um pecado do rei promoveu reações raivosas do monarca. Mas,
com Davi, o resultado foi bem diferente. Houve “mudança de atitude” por
parte do rei pecador. Isso torna o episódio – e esse salmo – um material
importante a fim de aprendermos sobre o arrependimento e o perdão de
pecados. O Salmo 51, nesse sentido, nos mostra cinco implicações do pecado
na vida do homem que quebranta seu coração diante de Deus.
A primeira implicação é a consciência da condição pecadora do homem.
Davi, logo após ser admoestado por Natã, fez o que cabe a todo homem que
busca o Senhor ao se ver em pecado: reconhecer seu erro em lugar de
racionalizar a situação ou inventar desculpas para fingir que não pecou. Davi
diz (v.4): “Contra ti, contra ti somente, eu pequei e fiz o que é mal aos teus
olhos” (leka levaddeka hata’tî be‘êneyka ‘asîtî). Ao dizer que pecou somente
contra Deus, a ideia não é sugerir que não pecou contra Bate-Seba ou, pior,
contra Urias. A intenção é mostrar que seus atos de pecado feriram, primeiro,
o seu relacionamento com Deus. O pecado é pecado porque Deus é santo e
contrário ao mal. Isso, obviamente, desarma qualquer pessoa que peque
contra outrem ou que mantenha mágoas dos irmãos, que, ao mesmo tempo,
queira afirmar que mantém sua comunhão com Deus.
Davi desiste de se defender desse modo falso porque, ao ser acusado de
pecado, ele se lembra que sua pecaminosidade não pode ser negada, visto que
a tem desde o nascimento (v.5): “Eis que eu nasci com iniquidade e minha
mãe me concebeu com pecado” (hen-be‘awon hôlaletî ûbehete’ yehematnî
’immî). Tal afirmação levanta a questão da transmissão do pecado. Segundo
afirma o salmista, o pecado não está presente no homem apenas quando,
conscientemente, ele realiza um ato de pecado, como diz a linha doutrinária
conhecida pelo termo “pelagianismo”. Segundo diz o texto, desde a
concepção, o pecado já está presente nos seres humanos. Essa realidade se
perfaz desde os nascimentos dos filhos do primeiro casal e, a partir de então,
aos filhos de todos os casais, visto que todos são pecadores e ninguém há sem
iniquidade (Rm 3.10-12; 5.12). Enquanto as Escrituras dizem que Adão e
Eva foram feitos “à imagem de Deus” (Gn 5.1,2), seu pecado provocou uma
transformação tão profunda em sua natureza que seus filhos, a partir de então,
não nasceram à imagem de Deus, mas à imagem de Adão, homem pecador
que era (Gn 5.3).
A segunda implicação é a necessidade do perdão e da restauração.
Vendo sua condição pecaminosa, o homem olha para seus atos de pecados e
não os acha naturais, mas transgressões que ofendem o santo Deus. Por isso,
busca o perdão divino e uma mudança que o faça, novamente, ter comunhão
plena com o Senhor. A exemplo de Davi, ele roga (vv.1,2): “Apaga as minhas
culpas, lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu
pecado” (meheh pesha‘ay harbeh kabbesenî me‘aônî ûmehatta’tî taharenî).
A terceira implicação é o sofrimento como consequência do pecado. Para
o servo de Deus o pecado é fonte de dor por dois motivos. O primeiro é
porque ele causa consequências que fazem sofrer (Tg 1.15). O segundo,
porque o pecador perde seu contato próximo com o Senhor, o qual não
suporta o pecado e não fica alheio a ele (Is 59.1,2). No caso de Davi, por
ocasião do pecado com Bate-Seba e a triste sequência de pecados que
resultou na morte de Urias, o sofrimento não foi diferente, mesmo antes de
ser Davi repreendido pelo profeta Natã. Podemos notar essa realidade pelo
modo como Davi diz se sentir antes de confessar sua maldade (v.8): “Faze-
me ouvir regozijo e alegria e, assim, se alegrarão os ossos que tu trituraste”
(tashmî‘enî sasôn wesimhâ tagelenâ ‘atsamôt dikîta). Davi não teve fraturas
múltiplas. Ao dizer que teve seus ossos triturados ou moídos, ele se refere ao
sofrimento que sentia por ter pecado. A tristeza pelo pecado era tanta que lhe
parecia que seus ossos estavam esmigalhados. Por isso o pedido pela
restauração da alegria. O fato é que o pecado causa sofrimento a quem quer
seguir a Deus.
A quarta é a certeza de restauração para quem se arrepende. Apesar de
conhecer seu pecado (v.3), Davi sabia que, com o coração contrito, podia
recorrer a Deus a fim de ser perdoado e restaurado. Ele conhecia o caráter
transformador do Deus a quem servia. Assim, demonstra confiança em sua
oração quando pede que Deus lhe execute uma mudança profunda (vv.10,12):
“Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova no meu íntimo um espírito
estável... Recobra em mim a alegria da tua salvação e mantém em mim um
espírito enobrecido” (lev tahôr bera’-lî ’elohîm werûah nakôn hadesh
beqirbî... hashîvâ lî sesôn yish‘eka weruah nedîvâ tismekenî). Com os
benefícios das respostas da oração que dirige a Deus, o salmista não apenas é
perdoado, mas volta à ativa como um servo útil na obra de Deus.
A última implicação é a possibilidade de adorar ao Deus perdoador.
Ninguém deve buscar o pecado para, perdoado pelo Senhor, mostrar a todos a
graça de Deus que supera a maldade do servo (Rm 6.1,2). Entretanto, o fato
de sermos perdoados deve, sim, ser motivo tanto de louvor a Deus como de
testemunho público do amor do Senhor pelos que lhe pertencem. É por isso
que Davi, mesmo sabendo do seu pecado e da necessidade que tinha de
perdão e restauração que só podiam vir de Deus, se antecipa e anuncia o que
fará (v.13): “Eu ensinarei aos rebeldes os teus caminhos e os pecadores se
voltarão para ti” (’alammedâ posh‘îm derakeyka wehatta’îm ’eleyka yashûvû).
O efeito de tal anúncio parece encontrar seu par na vida dos israelitas de aí
por diante (vv.18,19).
Apesar da antiguidade do salmo, sua atualidade e utilidade não podem ser,
de modo algum, desprezadas. O pecado, tanto no mundo antigo como no
moderno, quebra a comunhão do servo com seu Deus e causa sofrimento ao
que peca e a quem é alvo do ato do pecado. Temos de, como igreja de Deus,
recorrer sempre à promessa de perdão e de purificação por meio da obra
redentora do Senhor Jesus Cristo (1Jo 1.9). Ninguém sabe tão bem o valor de
tal promessa como aquele que quer ser fiel a Deus. De coração ele busca o
perdão, já que (v.17) “sacrifícios a Deus são o espírito quebrantado; Deus não
despreza um coração quebrantado e abatido” (zivhê ’elohîm rûah nishbarâ
lev-nishbar wenidkeh ’elohîm lo’ tivzeh).

SALMO 52
A Obra e o Destino dos Ímpios

Todo o País ficou chocado com o massacre promovido por um atirador que
atingiu e matou várias crianças em uma escola em Realengo, Rio de Janeiro,
tirando sua própria vida após o crime. Além do choque de saber que muitas
crianças inocentes e indefesas foram feridas, enquanto outras foram mortas,
foi tenebroso ver os vídeos gravados pelo próprio assassino falando sobre o
que faria. Pelas gravações, é possível ver claramente a premeditação do ato e
os motivos fúteis dados pelo criminoso para a barbárie. Para mim, contudo,
houve algo mais marcante. Entre as explicações confusas e sem nexo do
assassino e as recomendações de como tratar seu corpo morto – como se
fosse um tipo de herói –, o que me atingiu foi vê-lo desfrutar da ideia do que
viria a fazer. Como não notar a vanglória com que explicava suas intenções?
E como é possível, para nós, não nos enojarmos e não nos revoltarmos vendo
algo desse tipo?
Há, na mídia, muitos outros casos de criminosos maldosos que se
vangloriavam das perversidades que cometeram. Conheço um assassino,
porém, que nunca apareceu na televisão. Seu nome era Doegue e ele é o
assunto do Salmo 52, escrito pela pena de Davi, antes de ser rei em Israel.
Davi, na verdade, estava fugindo de Saul para não ser morto devido ao ciúme
que o rei tinha dele. Nessa fuga, Davi, sem explicar a razão verdadeira, se
hospedou na casa do sumo sacerdote Aimeleque, em Nobe – local do
tabernáculo na época – e, conseguindo provisões, partiu para um tipo de
exílio. Nessa ocasião, um oportunista, empregado como pastor de ovelhas a
serviço de Saul (1Sm 21.7), aproveitou para tentar subir de posto diante do
rei. O que ele fez, descrito em 1Samuel 22.9,10, é também expresso no título
do salmo: “Quando Doegue, o edomita, relatou a Saul dizendo-lhe: Davi
esteve na casa de Aimeleque” (bebô’ dô’eg ha’adomî wayyagged lesha’ûl
wayyo’mer lô ba’ dawid ’el-bêt ’ahîmelek).
O resultado foi que Saul, já enfurecido e fora do bom uso da razão, quis
vingança contra Aimeleque e toda a sua casa. Ordenou que sua guarda os
matasse, mas eles se negaram a fazê-lo. Desse modo, o autor da chacina, sob
as ordens do rei, foi o próprio Doegue (1Sm 22.11-19). O único sobrevivente
da casa de Aimeleque foi Abiatar, o qual fugiu para Davi e foi por ele
acolhido e protegido (1Sm 22.20-23). Por meio dele Davi tomou
conhecimento do ocorrido e, posteriormente, escreveu o salmo em questão.
Nele, temos a oportunidade de notar certas características do homem que se
vangloria do mal que faz.
A primeira delas é a completa falta de temor a Deus. O início do salmo é
endereçado ao próprio Doegue. Davi lhe pergunta (v.1): “Por que te
vanglorias na maldade, ó poderoso?” (mah-tithallel bera‘â haggibôr). A
referência a Doegue como um homem poderoso pode tanto ser uma
referência ao prestígio que ele agora tinha na corte de Saul por causa do seu
ato traiçoeiro, como – o que é mais provável – ser uma acusação da tolice de
Doegue se achar alguém grande por fazer o mal à vista de Deus. Essa
segunda possibilidade fica mais clara quando olhamos a frase pela qual Davi
contrapõe sua pergunta: “A fidelidade de Deus está presente todos os dias”
(hesed ’el kol-hayyôm). O propósito desse contraste é evidenciar a loucura da
ação de Doegue movida pela completa falta de temor ao justo e soberano
Senhor. Em outras palavras, seria Davi perguntando ao malfeitor: “Como é
que você age assim e ainda se orgulha disso, sabendo que Deus é fiel para
sempre e que vai puni-lo por isso?”. Entretanto, tal raciocínio nem sequer
fazia sentido para o ambicioso e maldoso pastor do rei.
A segunda característica é a promoção do prejuízo alheio. Para um
homem assim, ninguém pode ser obstáculo para a concretização dos seus
desejos. Sob esse modo de ver a vida, as pessoas são descartáveis e, assim,
podem ser prejudicadas sem que o homem perverso se sinta constrangido por
suas ações. Por isso, Davi se dirige a Doegue mais uma vez e diz (v.2):
“Como uma navalha afiada, a maldade habita na tua língua, ó mentiroso”
(hawwôt tahshov leshôneka keta‘ar meluttash ‘oseh remiyyâ). Certamente,
Davi tem em mente o mal que Doegue produziu a Aimeleque e à sua família
sem sentir qualquer remorso. O relato do livro de 1Samuel mostra que Davi
não informou Aimeleque as suas reais condições diante de Saul. Para o
sacerdote, Davi estava em uma missão real (1Sm 21.2), de modo que, ajudar
Davi era servir à coroa. Aimeleque realmente não fez conscientemente nada
que fosse contrário a Saul. Entretanto, não foi isso que Doegue fez Saul
saber. Ele, que foi testemunha do que ocorreu em Nobe (1Sm 21.7), escolheu
que verdades contar – ou manipular – a fim de demonstrar ao rei sua
utilidade, mesmo que isso custasse a vida de homens inocentes.
A terceira característica é o apego natural à maldade. A atitude
destruidora de Doegue parece não ter sido apenas um fruto de uma
oportunidade, mas o ato de externar algo que se dava em seu íntimo. Davi
não apenas acusa seu ato pernicioso e assassino; não somente aponta para sua
consciência entorpecida. Davi denuncia o que passa no próprio coração de
Doegue. Utilizando-se do verbo “amar” (’ahav) para se referir às escolhas
feitas pelo traidor, Davi nos desvenda o apego daquele homem ao mal, pelo
qual agiu naturalmente ao fazer suas péssimas escolhas (vv.3,4): “Tu amaste
o mal mais que o bem; a mentira mais que as palavras justas; amaste todas as
palavras de destruição, ó língua enganosa” (’ahavta ra‘ mittôv sheqer
middaber tsedeq selâ ’ahavta kol-divrê-bala‘ leshôn mirmâ). Para Doegue
não foi grande coisa mentir sobre a atuação do sumo sacerdote no episódio
com Davi, nem, tampouco, fazer o que nem mesmo a guarda de Saul quis
fazer, a saber, assassinar os sacerdotes do tabernáculo de Deus. O assassino
naturalmente preferia o que era mal.
Depois de descrever o tipo de homem que Doegue era, Davi passa a falar
sobre as consequências de agir como ele (v.5): “Também Deus te derrubará
para sempre” (gam-’el yittatseka lanetsah). Se o que o traidor queria era
ascender à corte de Saul, o resultado seria o movimento contrário. A ascensão
temporária se tornaria uma queda permanente. E mais: “[Deus] te arrastará e
te arrancará da [tua] tenda e te desarraigará da terra dos vivos” (yahteka
weyissahaka me’ohel weshereshka me’erets hayyiym). Deus faz recair sobre o
malfeitor seus próprios atos, pois, assim como os sacerdotes foram tirados da
“tenda” do Senhor – o tabernáculo em que serviam – e foram mortos, o
mesmo aconteceria com Doegue. E, finalmente, o desejo de ser respeitado
pelas pessoas por causa dos favores do rei seria também frustrado pelo
resultado diametralmente oposto (v.6): “E os justos verão e temerão e dele
zombarão” (weyir’û tsadîqîm weyiyra’û we‘alayw yishaqû). Na verdade, o
texto não diz apenas que os justos zombarão, mas que também dirão dele na
sua queda (v.7): “Eis o homem que não faz de Deus seu protetor, mas que
confia nas suas muitas riquezas e que é forte na sua maldade” (hinneh
haggever lo’ yashîm ’elohîm ma‘ûzzô wayyivtah berov ‘oshrô ya‘oz
behawwatô).
Antes de encerrar o salmo, Davi se apresenta como um contraste em
relação à Doegue. Enquanto este é como uma planta que será “desarraigada
da terra dos vivos” (v.7), Davi diz de si mesmo (v.8): “Mas eu sou como uma
oliveira vigorosa na casa de Deus” (wa’anî kezayit ra‘anan bebêt ’elohîm).
Além de se comparar a uma planta em plena produção de frutos, Davi se
refere a uma planta que pertence a Deus e que, desse modo, é cuidada por ele
e dá fruto para ele. Esse é o modo de o salmista se distanciar da figura
horrenda do homem mal e de demonstrar que é um servo de Deus pela graça
que dele recebe. Tal sentido de dependência do Senhor em seu benefício se
vê nas palavras subsequentes: “Eu confio na fidelidade de Deus para todo o
sempre” (batahtî behesed-’elohîm ‘ôlam wa‘ed). Por isso, diferente do
malfeitor que buscava a alegria em uma busca inescrupulosa, Davi se mostra
agradecido a Deus, mesmo na situação de fuga em que vivia, confiado no
caráter divino (v.9): “Eu confiarei no teu nome, pois és bondoso perante os
teus fiéis” (’aqawweh shimka kî-tôv neged hasîdeyka).
Realmente, os ímpios agem como loucos, sem temor a Deus e sem
escrúpulos na busca do que desejam. Usam sua boca como armas mortais e
não se importam com os prejuízos que causarão nas pessoas ao redor. Quanto
a nós, que fomos retirados desse mundo perdido e desse sistema egoísta,
devemos, tanto quanto pudermos, nos afastar de tudo que nos faça parecer
com homens como Doegue. E, chocados com atuações malévolas como à do
assassino do Rio de Janeiro, devemos espalhar a mensagem do evangelho de
Jesus Cristo, sabendo que somente ele pode transformar pessoas assim em
“oliveiras vigorosas da casa de Deus”. Caso contrário, serão como o próprio
atirador do Rio de Janeiro que tinha o arrogante sonho de ser sepultado como
herói, conduzido, segundo disse, por mãos “puras” e com um lençol branco,
mas que, no final, foi enterrado em uma cova rasa, com autorização judicial,
sem a presença de nenhum parente, amigo ou qualquer outro acompanhante.

SALMO 53
Os Pontos Comuns da Iniquidade e da Justiça

Como cirurgião-dentista em tempo parcial, ainda atendo pacientes em meu


consultório. Além de utilizá-lo como um tipo de gabinete pastoral, o contato
com as pessoas cria sempre boas oportunidades. Dentre os pacientes que
atendo, há dois que me confundem. São dois gêmeos muito parecidos. No
começo, eu não sabia diferenciá-los. Mesmo depois de atendê-los, eu me
confundia vendo-os na sala de espera. Entretanto, com o passar do tempo e
com o decorrer das sessões, comecei a notar algumas diferenças físicas neles,
daquelas que só é possível ver depois de conviver certo tempo. Mas as
diferenças que realmente me ajudam a diferenciá-los têm relação com a
personalidade de cada um. Apesar de serem quase idênticos, eles me
cumprimentam de modo diferente e têm o humor completamente adverso.
Um deles é animado, engraçado e gozador, enquanto o outro é mais
introspectivo, sério e atento. Quando presto atenção a essas características,
fica mais fácil diferenciá-los.
O livro de Salmos também tem irmãos gêmeos. Mas, como todos os
gêmeos, eles guardam características singulares. Refiro-me aos salmos 14 e
53. A primeira semelhança entre eles é a autoria: ambos foram compostos por
Davi. Mas essa está longe de ser a única coisa que os aproxima. Na verdade,
o texto deles é extremamente parecido. As semelhanças entre os quatro
primeiros versículos do Salmo 14 e os cinco primeiros versículos do Salmo
53 são tão grandes que nos parecem ser o mesmo salmo. Uma diferença mais
substancial se dá apenas no final de cada um. Eles podem, com toda razão,
ser chamados de “salmos gêmeos”.
Porém, não são tão parecidos a ponto de ser inútil a presença dos dois no
saltério. Certamente, se um fosse mera cópia do outro, poderíamos ter apenas
149 capítulos no livro de Salmos ou ter, até mesmo, um salmo a mais que não
foi incluído no cânon. Mas o Deus soberano que nos deu seu ensino por meio
das Escrituras não fez nada disso. Ele, munido da sabedoria sem limites que
somente Deus tem, nos deu os dois salmos, cada um com seu próprio
propósito, cada um com seu próprio benefício. Portanto, para não repetir o
que já foi dito a respeito do Salmo 14, ao comentarmos o Salmo 53 daremos
especial atenção a algumas diferenças entre ele e seu irmão gêmeo.
A primeira diferença notável, excetuando o título mais longo do Salmo 53,
está presente no v.1 de cada salmo, na palavra utilizada para se referir ao
pecado do homem tolo. Enquanto o Salmo 14 diz que ele pratica a “má
conduta” (‘alîlâ), o 53 chama tais atitudes de “iniquidade” ou “injustiça”
(‘awel). A qualificação mais rigorosa da conduta ruim do ímpio demonstra
que Deus vê todo pecado como uma ofensa capital à sua própria santidade.
Tais palavras, associadas ao verbo que as precede em ambos os casos (ta‘av),
cujo significado no grau em que se encontra (hiphil) é “proceder de modo
abominável”, atesta o fato de que Deus não fica indiferente ou impassível
diante do mal. O pecado causa uma reação em Deus que o move, no devido
tempo, a promover a vingança contra o mal. Toda iniquidade que não for
tratada pela graça e pelo perdão de Deus, por meio da obra de seu filho Jesus
Cristo, será inevitavelmente julgada e punida no tribunal daquele que não
suporta a maldade, nem convive com pecadores endurecidos.
Algo que cuja forma difere nos dois salmos é que o Senhor é sempre
chamado de Deus (’elohîm) no Salmo 53, enquanto, na maioria das vezes, é
chamado no 14 de Javé (yehwâ). Apesar disso e de uma pequena diferença de
palavras na introdução do texto do Salmo 14.3 e do 53.3, onde o sentido
permanece inalterado, a próxima diferença notável se dá realmente no Salmo
14.4 e na primeira metade do 53.5. O primeiro diz: “Então eles temerão de
pavor, pois Deus está com gente justa” (sham pahadû pahad kî-’elohîm bedôr
tsadîq). Seu par, no capítulo 53, completa dizendo: “Então eles temerão de
pavor de coisas que não são temíveis, pois Deus esparrama dos ossos daquele
que te cerca” (sham pahadû pahad lo’-hayâ pahad kî-’elohîm pizzar ‘atsmôt
honak). Ambos predizem um terrível temor por parte dos injustos, mas cada
um dá uma razão para tanto.
Uma delas é a indiscutível predileção de Deus pelas pessoas cujas atitudes
são justas devido à ligação que têm com o Senhor. Tal predileção toma forma
de ações práticas quando os que pertencem a Deus são perseguidos – ou
cercados, conforme diz o texto – pelos perversos. Esse realmente é um
motivo de terror para os inimigos de Deus. O desenrolar é que o pânico, no
momento em que Deus se levanta para defender os seus, é tamanho que seus
inimigos temem até as coisas inofensivas. O motivo não é nenhum tipo de
paranoia, mas saber pela triste experiência o que acontece com aqueles contra
quem Deus se levanta. O texto traz uma figura muito forte ao dizer que esses
serão destroçados e seus ossos serão espalhados.
A sequência – o Salmo 14.6 e a segunda parte de 53.5 – contém mais
diferenças que se complementam na mensagem transmitida pelos salmos
gêmeos. No primeiro desses textos, o salmista se dirige aos injustos e lhes
diz: “Vocês envergonham o conselho dos humildes, entretanto o Senhor é o
refúgio deles” (‘atsat-‘anî tabîshû kî yehwâ mahsehû). A zombaria que os
injustos promovem volta para eles no Salmo 53.5, pois é dito ao justo: “Tu os
envergonharás, pois Deus os rejeitará” (hebishotâ kî-’elohîm me’asam). O
paralelismo é muito claro. Os perversos, que causavam vergonha nos
humildes, serão, como castigo, envergonhados. E isso porque Deus, que é o
refúgio dos humildes e os protege, rejeita os ímpios.
Ao olhar como as diferenças entre os Salmos 14 e 53 complementam a
ideia de que Deus é o protetor dos que lhe pertencem e é o vingador do mal
dos perseguidores injustos, entendemos porque esses dois salmos coexistem
no saltério. O resultado prático também não poderia ser mais claro: a
necessidade de submissão e contrição dos rebeldes diante do soberano Senhor
e de adoração e gratidão por parte daqueles por quem o Senhor luta. E que
ninguém se deixe enganar por ditos que fazem crer que todos os homens são
iguais para Deus. Mesmo parecidos por fora, até mesmo como pessoas
gêmeas, por dentro seus corações são diferentes e o Senhor os conhece,
sabendo quem, dentre eles, tem Jesus como seu refúgio e salvação.

SALMO 54
Como Agir Diante da Traição

Li na Internet uma história que me chamou a atenção. Ela contava que, em


1948, um dentista carioca viajou até uma pequena cidade do interior de
Minas Gerais a fim de colocar em ordem negócios familiares. O caso é que
sua irmã havia passado um tempo naquela cidade, onde fora seduzida pelo
clérigo local. A intenção do jovem dentista era dar uma solução ao estado
desonroso da irmã, convencendo o prelado a se casar com a moça. Como isso
não aconteceu, o dentista executou o sedutor. Ele, obviamente, foi preso e
houve grande comoção local. Percebendo a temperatura dos ânimos e como
isso poderia influenciar o julgamento, a defesa conseguiu transferir o
processo judicial para outro foro, onde alegou inocência do réu com base na
tese de “legítima defesa da honra”.
Esse argumento, hoje rejeitado pela maioria dos juristas, conseguiu livrar o
assassino da devida condenação que merecia em duas instâncias judiciais. Os
jurados, na época, acharam que o réu, desonrado como foi, tinha o direito de
matar a vítima. Apesar de surpreendente, esse não é um exemplo único de tal
decisão. Esse absurdo foi efetivado vezes e mais vezes na história do Direito
no Brasil, principalmente em casos de maridos traídos pelas esposas. Sob a
desculpa de defender a honra ferida pela traição, muitos maridos, no passado,
assassinaram suas esposas e saíram impunes.
A Bíblia também narra casos de traição. Um deles é pano de fundo da
composição do Salmo 54. Nesse caso, a traição não foi entre cônjuges, mas
entre israelitas da mesma tribo. Davi, o escritor do salmo, foi o alvo da
traição e sua reação foi – e ainda é – um modelo para os servos de Deus. O
contexto é apontado no título do salmo: “Quando vieram os zifeus e disseram
a Saul: acaso não está Davi conosco?” (bebô’ hazzîfîm wayyo’merû lesha’ûl
halo’ dawid mistater ‘immanû). Com essa menção fica fácil associar o salmo
aos episódios narrados em 1Samuel 23 e 26.
Davi, nessa ocasião, estava fugindo de Saul para não ser morto. Enquanto
fugia, ficou sabendo de uma invasão filisteia à cidade de Queila, no território
de Judá, tribo de Davi. Apesar do risco e do medo de serem pegos, Davi e
seus homens foram a Queila e a libertaram dos inimigos. Com a notícia de
que Saul vinha para cercá-los, fugiram da cidade e rumaram para o deserto de
Zife, a sudeste de Hebrom. A distância e a falta de informações do rei
mantinham Davi e seus soldados seguros. Porém, os homens de Zife,
israelitas que, como Davi, pertenciam à tribo de Judá (Js 15.24), quiseram
aproveitar a oportunidade para, traindo seu irmão, obterem vantagens do rei
(1Sm 23.19,20). A traição dos zifeus quase custou a cabeça de Davi (1Sm
23.25-28). O pior só não aconteceu porque os filisteus lançaram outro ataque
e Saul teve de abandonar a caçada para combater os invasores.
Ao reagir à traição dos seus irmãos, Davi exemplifica quatro reações que o
servo de Deus deve ter ao ser traído pelos homens. Em lugar de buscar
vingança por causa da traição, a primeira reação de Davi o faz buscar a Deus
por meio da oração humilde. Sem qualquer tipo de bravata ou juramento de
ser capaz, por si mesmo, de se livrar dos inimigos, Davi recorre ao Senhor
como alguém necessitado. A correta noção da sua situação e o conhecimento
do poder de Deus dão o tom humilde da oração davídica (vv.1,2): “Salva-me
pelo teu nome, ó Deus, e faça-me justiça com a tua força. Ouve a minha
oração, ó Deus, e atenta para as palavras da minha boca” (’elohîm beshimka
hôshî‘enî ûbigvôrotka tedînenî ’elohîm shema‘ tefillatî ha’azîâ le’imrê-pî). A
insistência na súplica é um traço marcante da humildade de Davi por causa da
incapacidade de lidar com os perigos que o cercavam. As rimas e os
paralelismos fáceis de notar tornam essa oração um singular cântico que
exalta o poder de Deus e ressalta a humildade do servo.
A segunda reação é o resultado coerente da primeira: a dependência de
Deus. Entretanto, nesse aspecto, Davi não faz segredos. O que, normalmente,
seria uma vergonha para alguns homens, visto ser a própria declaração de
impotência, para Davi a dependência parece ser um ato cultual. Desse modo,
ele demonstra com hombridade ter, de Deus, uma dependência pública. O
salmista não quer orar em secreto e fingir diante de todos que consegue lidar
com o peso das circunstâncias. Ele compõe um canto e nele declara a todos
(v.4): “Eis que Deus é o meu protetor. O Senhor é o sustentador da minha
alma” (hinneh ’elohîm ‘ozer lî ’adonay besomekê nafshî). Levando em conta
que “minha alma”, nesse contexto, é uma sinédoque que aponta para Davi
como um todo – a total dependência que Davi sente e declara ter em Deus é
motivo de encorajamento para os servos de Deus terem menos coragem em si
mesmos e mais confiança no Todo-poderoso.
A terceira reação, talvez a mais difícil delas, é manter a atitude justa.
Seguindo a lógica dos antigos tribunais brasileiros, Davi podia se dizer ferido
e traído, sentindo-se livre para agir como seu ímpeto mandasse. Poderia
buscar vingança por meio de um ataque violento aos zifeus, com seu pequeno
exército particular, explicando que ficou muito magoado com a traição. Podia
até dizer que sua honra foi ferida. Mas ele não fez nada disso. Mesmo se
sentindo traído por seu próprio povo a quem ele defendia com risco pessoal,
Davi entregou o caso ao Senhor, o justo e sábio juiz capaz de julgar situações
como essa. Por isso, afirma (v.5): “[Deus] fará o mal voltar aos meus
inimigos. Faze-os calar por meio da tua fidelidade” (yashiwb hara‘ leshoreray
ba’amitteka hatsmîtem).
Na verdade, esse é um traço marcante de Davi. Mesmo quando os homens
eram desleais com ele, ele não era desleal com os traidores. Outro exemplo
dessa atitude é a postura de Davi quando teve oportunidade de matar Saul,
acabar com a perseguição injusta e, como prêmio adicional, ser feito rei sobre
Israel. Nessa ocasião, Davi fez o que ninguém esperava. Quando seus amigos
lhe sugeriram um ataque mortal a Saul, Davi lhes explicou que cabia ao
Senhor vingar o mal: “Davi, porém, respondeu a Abisai: não o mates, pois
quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente?
Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o ferirá, ou o seu dia
chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto” (1Sm
26.9,10). O próprio Jesus apresentou a mesma disposição de manter a justiça
entregando os desmandos a Deus: “Pois ele, quando ultrajado, não revidava
com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele
que julga retamente” (1Pe 2.23). Tanto Davi como Jesus rejeitariam a tese da
“legítima defesa da honra” utilizada para acobertar uma vingança.
A quarta reação é a adoração voluntária ao Senhor. Ainda que o momento
fosse delicado para o salmista e ele tivesse inúmeras preocupações e afazeres
para manter a própria segurança e a dos seus homens, ele não deixa de pensar
na devida adoração que deve a Deus. Diz ele (v.6): “Que eu te ofereça
sacrifícios por iniciativa própria” (bindavâ ’ezbehâ-lak). Enquanto uma
acusação frequente aos israelitas, principalmente aos sacerdotes, era a
religiosidade vazia por meio de sacrifícios externos que não refletiam o
íntimo dos ofertantes, Davi se apresenta com uma disposição totalmente
diferente. Voluntariamente, ou “por iniciativa própria”, ainda que passasse
por problemas, ele adoraria ao Senhor e lhe ofereceria o fruto do seu louvor.
Nessa atitude ele deixa de fora qualquer tipo de barganha para tentar se
beneficiar do poder de Deus. Exime-se, também, de cumprir mecanicamente
preceitos que não traduzem seu desejo pessoal. Na verdade, ele não precisa
de tais expedientes uma vez que realmente confia no Senhor e depende da sua
bondade. Quando ele adora ao Senhor, o faz de coração, de todo coração.
Quem já passou dissabores e decepções com pessoas próximas, sabe o que
significa o exemplo que Davi deixou. Quem conhece o ardor da indignação e
da fúria que acomete aqueles que são trapaceados por pessoas em quem
confiam, sabem o alento obtido pelo exemplo de um homem que agiu
corretamente provando ser possível, pela graça de Deus, suportar a dor de
uma situação como essa. E quem quer, de fato, servir a Cristo, certamente
concorda que ver seu próprio mestre sendo exemplo de uma atitude tão
radicalmente contrária ao mundo é um encorajamento incomparável. Que em
momentos assim, palavras como “honra” nos lembrem do nosso dever para
com Deus e não do nosso orgulho ferido. E, lembrando disso, que sejamos
nós, discípulos de Jesus, aqueles que realmente promovem a “legítima defesa
da honra”, a saber, a “honra” do nome do nosso Deus.

SALMO 55
Nos Limites da Angústia

Os ingleses, certa vez, ficaram perplexos com a notícia de que um senhor


de 65 anos havia tirado sua própria vida em circunstâncias inusitadas. Ele,
que perdera a mulher, tinha uma vida solitária desde então. Essa é, contudo, a
história de muita gente que, nem por isso, dá cabo da sua vida. Porém, um
agente agravante pesou a balança para o lado de uma tristeza incontida. O
casal tinha um papagaio que aprendeu muitas frases ensinadas pela mulher.
Depois que ela morreu, o papagaio continuou a repetir diariamente aqueles
dizeres que relembravam o viúvo da sua falecida esposa, fazendo-o sofrer
constantemente. Isso prosseguiu até ao ponto de ele não suportar mais a falta
da mulher e o sofrimento por causa da saudade. Uma overdose voluntária
levou-o à morte.
Histórias como essa servem para nos lembrar que mesmo as pessoas mais
fortes e decididas têm seus limites ao suportar a angústia e o sofrimento. O
Salmo 55 foi escrito quando Davi, seu compositor, estava próximo dos seus
próprios limites. A descrição da angústia do salmista é dramática. Também
estão presentes expressões que revelam um desespero que, costumeiramente,
leva as pessoas a cometer loucuras. Contudo, o valor do salmo está em Davi
apontar o caminho que leva o homem a retornar à esperança e à confiança no
Senhor, impedindo-o de fazer coisas terríveis.
A perplexidade de Davi não era exagero de sua parte. A maldade ao seu
redor cresceu a tal ponto de fazê-lo identificar seu estado como o limite da
sua resistência. Ele diz (v.2): “Estou agitado com a minha queixa e vivo a
murmurar” (’arîd besîhî we’ahîmâ). Para entender melhor o ânimo de Davi
nesse momento, outro modo de traduzir o que escreveu na segunda parte do
v.2 é: “Não aguento mais a minha preocupação e ando muito perturbado”. Os
verbos dessa sentença não são usados por Davi em nenhum outro lugar.
Parece que ele escolheu termos adequados para representar poucas situações
da vida. Esse é um momento singular que lhe produz um sofrimento singular.
Sendo assim, os verbos foram escolhidos de modo a traduzir a singularidade
da sua perturbação.
A razão para tanto é dada logo na sequência (v.3): “Por causa da voz do
inimigo e da pressão do perverso” (miqqôl ’ôyev miffenê ‘aqat rasha‘). Essa
opressão não parece ser militar, mas, pior, uma batalha travada no campo das
palavras. Isso normalmente acontece por meio de difamações e tramas às
ocultas e o objetivo não é conquistar cidades fortificadas, mas corações de
ouvintes para que se voltem contra o salmista e engordem as fileiras dos seus
opositores. O fato de não ser um embate militar ou uma tentativa de
homicídio contra Davi não faz com que os ataques sejam menos violentos ou
perigosos, visto que o salmista completa a ideia dizendo: “Pois eles
descarregam problemas sobre mim e raivosamente me hostilizam” (kî-yamîtû
‘alay ’awen ûbe’af yistemûnî). Além da agressividade das ações e do meio
desleal de combater – fofocas e difamação –, outra razão para o abatimento
de Davi é que a fonte de tais ataques não são os inimigos declarados (v.12),
mas os amigos falsos (v.13): “Mas [o inimigo] és tu, ó homem que age como
se fosse meu companheiro, meu amigo e meu confidente” (we’attâ ’enôsh
ke‘erkî ’allûfî ûmeyudda‘î).
O impacto de tais ações, temperadas com toda a ira dos inimigos, produziu
algo que não se vê sempre nos escritos e nos relatos sobre Davi: ele se sentiu
realmente muito abalado. Os vv.4,5 são uma coletânea de expressões de
pavor que o salmista reúne para explicar o que passa no seu íntimo: “Meu
coração se retorce no meu interior e sobre mim recaem terrores de morte.
Temor e tremor me advêm e o pavor me encobre” (livvî yahîl beqirbî we’êmôt
mawet naflô ‘alay yir’â wara‘ad yabo’ bî watekassenî pallatsût).
No limite da sua resistência, Davi se vê diante de duas opções a fim de
sentir alívio. A primeira delas é se lançar às ilusões. Bem no início, depois
de lançar a Deus suas desesperadas queixas, ele deixa sua mente viajar um
pouco “nas asas da imaginação”, no mundo do “quem me dera?”.
Necessitando fugir do sofrimento, ele diz (v.6): “Quem me dera ter asas como
a pomba? Eu voaria e pousaria” (mî-yitten-lî ’ever kayyônâ ’a‘ûfâ
we’eshkonâ). Quando ele diz “posaria”, a ideia é “pousar em um lugar
distante”, “ir para longe”. Essa figura prossegue (vv.7,8): “Eu emigraria para
longe e ficaria no deserto. Eu apressaria a minha fuga das correntes dos
ventos fortes e da tormenta” (hinneh ’arhîq nedod ’alîn bammidbar selâ
’ahîshâ miflat lî merûah so‘â missa‘ar).
O uso da figura da pomba e do seu voo não constitui exatamente o que
queremos dizer com “lançar-se às ilusões”. A pomba, aqui, é apenas uma
figura de linguagem metafórica. O problema está em, longe das coisas reais
como as promessas de Deus, o salmista se satisfazer no consolo que a
imaginação pode fornecer. É como pensar: “Quem me dera desaparecer
daqui?”. É um pensamento parecido com o que a maioria das pessoas tem.
Quem passa por problemas financeiros, muitas vezes pensa: “Quem me dera
receber uma herança de um parente desconhecido?”. Quem está solitário,
pensa: “Quem me dera namorar o ator ou a atriz do filme?”. Quem se sente
diminuído pela sociedade, pensa: “Quem me dera ser o artilheiro da seleção
campeã do mundo e ser respeitado por todos?”. Tendo dito tais coisas, as
pessoas passam horas, até noites inteiras, imaginando como seria sua vida
caso o sonho fosse verdadeiro. O problema é que, apesar de trazer alívio em
momentos de sofrimento, esse tipo de ilusão tende a alienar as pessoas da
realidade, fazê-las se omitir das responsabilidades que têm e se causar
desinteresse pelas coisas reais, as quais se tornam cada vez mais enfadonhas
para o sonhador.
A segunda opção que o salmista tem é confiar em Deus. Apesar da
tentação de se ver livre do sofrimento por meio da mera imaginação de
soluções e situações maravilhosas, o salmista lança mão de encarar a
realidade e lançar suas esperanças no Senhor Todo-poderoso, o qual está
acima de todas as circunstâncias. Diz ele ao encerrar o salmo (v.23): “Mas eu
confiarei em ti” (wa’anî ’avtah-bak). Ele faz essa declaração ao contrapor o
que espera que Deus faça por meio da sua graça que protege os servos e por
meio da sua justiça que abate os injustos: “Tu, ó Deus, os fará descer ao
buraco da sepultura” (’attâ ’elohîm tôridem liv’er shahat).
Davi olha, nesse momento, para uma realidade que ainda inexiste.
Contudo, diferente das divagações das ilusões, os servos de Deus têm
elementos para, nessa esperança, apoiar-se. As promessas de Deus de cuidado
com os servos e de juízo para os maus, ainda que encontrem seu
cumprimento em um tempo futuro, são realidades nas quais os crentes podem
crer. Além do mais, mesmo que em uma medida menor do que o alívio
completo que o servo almeja, tais benefícios já são presentes no dia a dia dos
que pertencem ao Senhor. Por isso, Davi confia e, confiando, ora a Deus por
proteção e libertação da mão dos traidores (v.16): “Eu clamarei a Deus e o
Senhor me salvará” (’anî ’el-’elohîm ’eqra’ wayhwâ yôshî‘enî). Sua oração é
coroada pela esperança de vê-la atendida por Deus, pois, caso contrário, nem
haveria razão para as súplicas (v.18): “Ele resgatará com paz a minha alma
dos que guerreiam contra mim” (padâ beshalôm nafshî miqqarav-lî).
Essa é a diferença entre quem confia em Deus e quem divaga na terra dos
sonhos: a esperança do crente é real, enquanto as ilusões são meramente
imaginárias. Além de real, a esperança também é produtiva, pois leva o servo
de Deus a atuações que têm benefícios verdadeiros. Por outro lado, conheço
um monte de gente que nunca dá os passos necessários nessa caminhada, pois
perde tempo imaginando como seria em outras circunstâncias. Alguns
pensam tanto nisso, que acabam por nutrir esperanças baseadas na mera
imaginação. Enquanto os incrédulos chamam a esperança em Deus de “ópio
da alma”, tal efeito placebo advém das falsas esperanças de quem não têm
base em Deus, nem nas suas promessas. Ou nos lembramos que Deus é não
somente o nosso futuro, mas também o nosso presente, ou os problemas
dessa vida ficarão nos atormentando o tempo todo, como um papagaio que
repete sempre a mesma coisa até que nos faça desejar o nosso fim.

SALMO 56
Entre a Cruz e a Espada

A fácil divulgação de informações por meio da Internet democratizou os


famosos “quinze minutos de fama”. Pessoas desconhecidas, vindas dos mais
distantes rincões, têm a oportunidade de deixar sua marca por meio de textos,
fotos e vídeos. Recentemente, um rapaz ficou famoso ao ser preso. Na
verdade, não foi seu crime que o tornou famoso, mas as circunstâncias da sua
prisão. Segundo explicou, em entrevista dada a uma emissora de televisão,
ele tentou escapar da polícia pulando um muro. Nesse momento, recebeu uma
pedrada, que o fez cair, e foi detido por um morador.
A fama do meliante se deu devido ao modo engraçado de narrar sua prisão.
Ele contou que o morador, que era musculoso, o fez sofrer, nem tanto pela
força que empregou para detê-lo, mas pelos seus odores corporais, os quais
fizeram com que o criminoso implorasse para ser entregue à polícia. Essa
história, que virou piada entre os internautas e lhes forneceu novos jargões, é
uma lembrança de que há circunstâncias nas quais, independente do que se
escolha, o resultado será penoso. Para situações como essas, existe,
popularmente, a expressão “entre a cruz e a espada”, retirada da história de
muitos homens que, no passado, tiveram de decidir entre a fé e a punição
capital.
Outra história desse tipo, desprovida do humor da primeira, é a da fuga do
rei Davi do seu rei e sogro, Saul, que procurava tirar-lhe a vida por causa do
ciúme que tinha do jovem. Vários salmos foram escritos nesse ínterim. O
Salmo 56 é um deles. Seu título nos ajuda a, facilmente, identificar o
contexto: “Quando os filisteus o capturaram em Gate” (be’ehoz ’otô pelishtîm
begat). Essa breve descrição nos remete à 1Samuel 21. Conta o texto que
Davi, fugindo de Saul, conseguiu suprimentos no tabernáculo que ficava em
Nobe, nos arredores de Jerusalém, e fugiu em direção à terra dos filisteus
(1Sm 21.10), inimigos de Saul.
Davi devia estar realmente muito desesperado, pois sua fuga de Saul o
colocava diante de outro risco. Davi buscou refúgio na cidade de Gate (1Sm
21.11), cidade de Golias, herói filisteu morto pelo próprio Davi. Na verdade,
ele estava de posse da espada do gigante (1Sm 21.8,9). Reconhecido pelos
filisteus, Davi teve de fingir que era doido, babando e arranhando a porta da
cidade (1Sm 21.12,13). Normalmente, essa não seria uma técnica muito
efetiva, pois é bem provável que não acreditassem nele ou que, se
acreditassem, ainda assim quisessem matá-lo. Davi estava “entre a cruz e a
espada”. O fato é que Deus o protegeu e fez com que Aquis, rei de Gate,
acreditasse na loucura de Davi e o dispensasse (1Sm 21.14,15). O Salmo 56,
escrito depois disso, é uma declaração de fidelidade a Deus pela libertação
maravilhosa.
No decorrer do salmo, algumas coisas são enfatizadas por meio da
repetição. Tais ênfases rascunham para o leitor a história dos servos de Deus
que são perseguidos pelos ímpios. Há pelo menos três etapas dessa história
frisadas pela repetição de palavras na pena do salmista. A primeira é a
opressão. Davi se vê oprimido pelos inimigos que, nesse caso (v.1), são
“muitos” (ravvîm). Trata-se dos inimigos israelitas, a serviço de Saul, e dos
inimigos filisteus, oponentes dos israelitas. De ambos os lados Davi é
oprimido e corre riscos. Por isso, ele se utiliza da ideia da “continuidade”
tendo como intenção expressar o tamanho do problema que vive. Essa
continuidade é expressa pelo uso repetido da expressão “todos os dias” (kol-
hayyôm).
Ele diz (v.1): “Homens me oprimem todos os dias. Os opressores me
pressionam” (she’afanî ’enôsh kol-hayyôm lohem yilhatsenî). Davi passou
um bom tempo sem ter um dia sequer em que não se preocupasse com sua
vida e que não buscasse guarida. O uso indistinto da palavra “homem”
(’enôsh) – aqui traduzido no plural – aponta para o fato de haver tanta gente
atrás dele que não era possível identificá-los, nem fazer uma lista das pessoas
que representavam risco para o salmista. Ele continua dizendo (v.2): “Meus
adversários me perseguem todos os dias” (sha’afû shôreray kol-hayyôm).
Essa perseguição também é vista, no salmo, sob a óptica das emoções do
salmista no v.5: “Todos os dias eles infligem dor à minha condição” (kol-
hayyôm devaray ye‘atsevû). A descrição da perseguição constante se
completa no uso da palavra “todo” (kol) aplicada a outro objeto: “Todos os
planos perversos deles são contra mim” (‘alay kol-mahshevotam lara‘). Essa
situação está bem longe de ser cômoda ou tranquila.
A segunda etapa é a confiança. Ela é a resposta de Davi ao medo imposto
pelos inimigos (v.3): “No dia que eu tiver medo, confiarei em ti” (yôm ’îra’
’anî ’eleyka ’evtah). Para expressar melhor essa confiança e exaltá-la por
meio do salmo, Davi cria uma repetição de frases que se parece muito com
um tipo de refrão para o cântico. Trata-se do v.4 ecoando nos vv.10,11. Eles
só não são exatamente iguais porque, no v.10, há uma dupla repetição do
início do v.4, substituindo, na segunda ocorrência, a palavra “Deus” (’elohîm)
por “Javé” (yehwâ). Também porque a pergunta do final dessas orações
contém duas palavras para se referir aos homens, “carne” (basar) e “homem”
(’adam), nos versículos 4 e 11, respectivamente.
Tais diferenças são mínimas diante da semelhança dos textos em questão.
Assim, a confiança de Davi é expressa no refrão que diz (v.4): “Em Deus,
cuja palavra eu louvo, em Deus eu confio;” (be’lohîm ’ahallel devarô
be’lohîm batahtî). Ao enaltecer a palavra de Deus como alvo do louvor, o
próprio Senhor é aquele quem recebe a exaltação – o louvor dirigido à
“palavra” é uma sinédoque que vislumbra o todo, Deus, por meio de uma
parte. Contudo, por meio dessa figura, Davi também oferece as promessas de
Deus como razão pela qual o Senhor deve ser adorado por seus servos e pela
qual eles podem nele confiar. A consequência natural, ainda que pareça
contraditória diante das circunstâncias, é um inegável senso de segurança.
Por isso, sem hipocrisia ou falso otimismo, Davi diz: “Nada temerei” (lô
’ira’).
A terceira etapa é a proteção. Os mesmos refrões terminam com frases
parecidas. O v.4 diz: “O que fará a carne contra mim?” (mah-ya‘aseh basar
lî). Longe de ser uma preocupação de ordem alimentar, o que Davi tem em
mente é aclarado na frase correlata presente no final do v.11: “O que fará o
homem contra mim?” (mah-ya‘aseh ’adam lî). Quando Davi diz “carne”, ele
tem em mente os homens no sentido de serem mortais e impotentes diante do
Deus imortal. Para Davi, Deus é eficiente em proteger seus servos. A
primeira razão está em ele ser contrário aos pecadores, pelo que Davi ora com
confiança (v.7): “Abata os povos na tua ira, ó Deus” (be’af ‘ammîm hôred
’elohîm). A presença da menção da “ira de Deus” nos lembra que ele não é
indiferente ao mal e que assume uma postura contrária a ele.
A segunda razão para Davi esperar ser protegido pelo Senhor é o fato de
ele ser favorável aos servos (v.9): “Isto eu sei: que Deus é por mim” (zeh-
yada‘tî kî-’elohîm lî). Não há como ouvir essa declaração sem que se lembre
do que diz Paulo ao versar sobre a soberania de Deus e a segurança do crente:
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31). Essa proteção se dá,
segundo conta o salmista, com todo cuidado e atenção da parte de Deus.
Nenhuma das orações dos servos deixa de ser ouvida. Nenhum problema é
desconsiderado. O Senhor vê, ouve e guarda tudo cuidadosamente (v.8): “Tu
computaste o meu desterro. Puseste minhas lágrimas em teu odre. Acaso não
estão no teu livro?” (nodî safartâ ’atâ sîmah dim‘atî beno’deka halo’
besifrateka). Nenhum sofrimento daqueles que pertencem ao Senhor lhe
escapa. É como se ele registrasse cada um deles. Isso mostra que Deus não
apenas protege os servos. Ele se relaciona intimamente com eles e está
presente em suas vidas. A proteção é uma consequência do relacionamento
entre Deus e o servo devido unicamente à graça do próprio Senhor.
É interessante ver como cada uma dessas etapas é feita por uma pessoa
diferente e como as ações são compatíveis com a natureza e o caráter de cada
uma delas. Assim, o perverso “oprime”, o servo “confia” e o Senhor
“protege”. As atitudes dos perversos e do Senhor não podem ser controladas
pelo servo. Ele apenas é alvo de tais ações. Entretanto, suas próprias atitudes
são da sua responsabilidade e há um papel a ser cumprido. Um papel que é
compatível com a confiança e a obediência que eles têm em Deus, assim
como um filho que confia no pai ou como um soldado que confia no seu
comandante. Para tanto, todos nós, servos de Deus, devemos imitar o salmista
sendo “fiéis” e “agradecidos” (v.12): “Os teus votos estão sobre mim, ó Deus
e eu os manterei. Darei graças a ti” (‘alay ’elohîm nedareyka ’ashallem tôdot
lak). Tendo agido assim, não importa o tamanho dos músculos dos que
tentem nos deter. Deus sempre será o nosso protetor amado.

SALMO 57
A Quem Honra, Honra

O mundo conheceu grandes músicos e compositores. Um deles foi Franz


Joseph Haydn. Próximo do final da sua vida, um grande concerto de nome A
Criação foi apresentado em Viena. Com a saúde debilitada, Haydn foi levado
ao concerto em uma cadeira de rodas. Quando a apresentação chegou à parte
referente a Gênesis 1.3, que diz “e houve luz”, as vozes do coral cresceram
em intensidade e encheram o teatro ao ponto de a plateia, absorta e
maravilhada, ficar de pé e irromper em uma efusiva e crescente salva de
palmas. O compositor Haydn, então, com muito esforço e sofrimento,
levantou-se da sua cadeira agitando os braços e, em prantos, gritava para a
multidão: “Não, não de mim, mas de lá – lá dos céus é que tudo vem!”. Então
ele se sentou exausto e teve de ser retirado do grande salão.
Em Romanos 13.7, Paulo escreveu que, como servos de Deus, devemos
cumprir todas as nossas responsabilidades, incluindo honrar quem deve ser
honrado – o texto em questão é o título desse comentário. Costumeiramente,
esse texto é utilizado para homenagear homens sem que pareça que se está
omitindo a merecida honra devida a Deus. Entretanto, Davi faz uso de um
raciocínio diferente desse ao escrever o Salmo 57. Justamente quando toma
uma das atitudes humanas mais louváveis de toda a Bíblia, ele rende todo
louvor e glória a Deus. Apesar de se encontrar em uma posição muito difícil e
de ter produzido, na mesma situação, outros salmos em que se mostra
perplexo e aflito, nesse episódio específico da sua vida ele compôs um salmo
que destoa dos outros no sentido de demonstrar uma explosão de louvor a
Deus.
O título do salmo nos dá o sitz im leben – essa expressão alemã significa
“situação de vida” e é utilizada tecnicamente para se referir ao contexto por
detrás de uma passagem das Escrituras. Davi escreveu o salmo “ao fugir ele
da presença de Saul na caverna” (bebarhô miffenê-sha’ûl bamme‘arâ). Essa
referência nos leva aos acontecimentos narrados em 1Samuel 24, que contam
que Saul, recebendo a notícia de que Davi se escondia em En-Gedi, partiu em
seu encalço. No caminho, Saul utilizou uma caverna como um tipo de
banheiro sem saber que Davi e seus homens estavam escondidos justamente
ali. Era a oportunidade perfeita de Davi matar Saul e de dar fim àquela
perseguição injusta. Em lugar disso, Davi poupou o rei e deu provas da sua
justiça e da sua fidelidade para com Deus e para com o rei, ainda que este
buscasse tirar sua vida.
Esse é um episódio pelo qual Davi deve ter sido considerado um homem
singularmente justo. Seus soldados devem ter se sentado com os filhos, nos
dias futuros, e contado com que retidão Davi agiu para com o rei perverso.
Na verdade, é uma situação tão especial que normalmente seria contada pelo
seu próprio autor depois da conhecida introdução “modéstia à parte”.
Entretanto, Davi não faz isso. Ao contrário, compõe um cântico no qual ele
exulta de louvores a Deus rendendo a ele toda a responsabilidade pela
libertação do servo que, sem ele, é incapaz de lidar com os perigos da vida.
O cântico tem duas estrofes (vv.1-4 e vv.6-10), cada uma delas seguida pelo
refrão (vv.5 e 11) “seja elevado acima dos céus, ó Deus, e sobre toda a terra
esteja a tua glória” (rûmâ ‘al-hashamayim ’elohîm ‘al kol-ha’arets kevôdeka).
Essa é a mensagem do cântico. Este é o intento do salmo: render glórias a
Deus. O que introduz e emoldura essa mensagem está em uma exposição
crescente de louvor de Deus a partir da situação inicial de desespero do
salmista até a gloriosa libertação vinda do Senhor. O modo como Deus
transformou a sorte de Davi é a razão pela qual Deus é alvo dos mais
profundos louvores do salmista.
Com tal intenção, Davi compõe a primeira estrofe de modo a, mesmo
afirmando o auxílio divino, frisar o ataque feroz dos inimigos e o medo que
isso lhe produziu. Ele demonstra isso ao iniciar com um clamor por
misericórdia (v.1): “Tenha misericórdia de mim, ó Deus” (hannenî ’elohîm).
A razão dessa busca é a confiança que Davi tem no Senhor: “Tenha
misericórdia de mim, pois em ti eu busco refúgio” (hannenî kî beka hasayâ).
É um interessante uso de palavras, já que Davi estava refugiado em uma
caverna. Mesmo assim, ele mostra que sua confiança não se baseava na
qualidade do esconderijo, mas na compaixão de Deus.
Diante da oração (v.2), Davi vislumbra o agir de Deus em seu favor
protegendo-o (v.3): “Dos céus ele envia libertação a mim e afronta os meus
opressores. Deus envia a sua misericórdia e a sua fidelidade” (yishlah
mishamayim weyôshî‘enî heref sho’afî selâ yishlah ’elohîm hasdô wa’amittô).
Apesar de tal confiança, a primeira estrofe termina com a ferocidade dos
ataques dos perseguidores (v.4): “Estou cercado por leões, deitado ante aos
que devoram os filhos dos homens, cujos dentes são lanças e flechas e cuja
língua é uma espada afiada” (nafshî betôk leba’im ’eshkevâ lohatîm
benê-’adam shinnêtem hanît wehatsîm herev haddâ). A figura é temível e é
seguida pelo louvor a Deus no refrão do salmo. Essa primeira parte da música
nos lembra que Deus deve ser louvado, ainda que os problemas cerquem os
seus servos.
A segunda parte do salmo é diferente da primeira. O salmista, brevemente,
volta a falar do ataque dos opressores e da sua frágil condição (v.6): “Eles
prepararam redes para os meus pés. Minha alma sucumbiu” (reshet hekînû
lif‘amay kafaf nafshî). Esse é um resumo da primeira estrofe. Entretanto, um
novo elemento entre em cena. Há uma retribuição do mal. Os maus intentos
dos inimigos voltam para eles mesmos. Eles são alvo da própria armadilha
que armaram para Davi: “Eles abriram uma cova diante de mim, mas caíram
dentro dela” (karû lefanay shîhâ naflû betôkah). Certamente, é uma referência
ao modo como Saul, de caçador passou a presa ao alcance de Davi naquela
caverna. Ele não foi ferido fisicamente, mas saber que estava nas mãos do
jovem Davi foi como ser abatido por uma lança veloz. Diante do seu exército,
sua maldade foi exposta em contraposição à bondade e retidão do salmista
(1Sm 24.16,17). Foi uma derrota completa para Saul. Para Davi, foi grande
libertação, tanto da perseguição militar como da degradação do seu nome
pelos mentirosos que convenciam Saul de que seria traído por ele (1Sm 24.9).
O resultado é que, ainda que continue fugindo, Davi se sente firmado e
estabelecido (v.7): “Meu coração está firme, ó Deus, meu coração está firme”
(nakôn livvî ’elohîm nakôn livvî).
A partir de então, há uma explosão de louvor por parte de Davi. Apesar de
não ser novidade o fato de Davi dar tanta importância ao louvor, na situação
em que ele se encontrava e levando em conta os salmos que escreveu nessa
situação, esse louvor enfático se torna notável. O louvor começa de maneira
muito poética (v.8): “Acorda, alma minha! Acordem, harpa e lira! Eu
acordarei a alvorada!” (‘ûrâ kevôdî ‘ûrâ hannevel wekinnôr ’a‘îrâ shahar). A
personificação dos instrumentos musicais é apenas um modo de dizer que ele
irá tocá-los como modo de expressar seu louvor ao Senhor. A oração
“acordarei a alvorada” significa que ele cantaria e tocaria os instrumentos
durante toda a noite, até ao amanhecer.
A próxima expressão do louvor crescente de Davi é o compromisso de
fazê-lo ante os outros povos em forma de testemunho da glória do Deus de
Israel (v.9): “Proclamarei a ti entre os povos, ó Senhor. Cantarei louvores a ti
entre as nações” (’ôdeka ba‘ammîm ’adonay ’azammerka bal’ummîm). As
atuações de Deus são assunto não apenas para Davi e seus seguidores, mas
para todas as pessoas do mundo. A glória de Deus deve ser anunciada por
toda parte. Apesar de Deus ser glorioso e louvável simplesmente por quem
ele é, Davi tem em mente anunciar também o que Deus faz e o modo como
faz (v.10): “Pois chega até os céus a tua misericórdia e até as nuvens a tua
fidelidade” (kî-gadol ‘ad-shamayim hasdeka we‘ad-shehaqîm ’amitteka). Essa
estrofe também é coroada pelo refrão que louva o nome do Senhor (v.11).
O feito de Davi naquela caverna em Judá é motivo até hoje de tomarmos o
salmista como exemplo e de ensinarmos os mesmos valores com base na sua
experiência. Lemos o texto e elogiamos o caráter de Davi. Entretanto, Davi
não rendeu a si mesmo nenhum mérito. Com um louvor difícil de comparar,
ele rende toda a glória a Deus. Se ouvisse a interpretação moderna do texto
de Paulo em Romanos 13.7 para justificar longas homenagens a homens,
massageando seus egos, Davi discordaria dessa prática. O próprio Paulo
discordaria, pois quis dizer, com a frase “a quem honra, honra”, que os
crentes devem honrar as autoridades, demonstrando-lhes respeito e
obediência. O máximo que Davi faria – pelo que deveria ser imitado por nós,
cristãos – é, utilizando-se do modo errôneo de interpretar o texto de Paulo,
corrigir-lhe o sentido ao aplicá-lo à pessoa certa. Ele diria: “A quem honra,
honra. A Deus toda a honra!”.

SALMO 58
O Superior Tribunal de Justiça
Há pouco tempo, li uma história muito interessante. Era sobre um juiz que
abriu uma sessão no seu tribunal dizendo às partes: “Cavalheiros, eu tenho
em mãos dois cheques. Vocês podem chamá-los de propina. Um deles é do
reclamado, no valor de 15 mil dólares. O outro, de 10 mil dólares, é do
requerente. Diante disso, minha decisão é devolver 5 mil dólares ao
reclamado e julgar o caso baseado apenas nos méritos”. Apesar dos risos que
essa história tirou de mim, ela também me deixou pensativo: “Será que há
muitos juízes que aceitam propina para decidir a favor de alguém? Será que
há muitos governantes que vendem vantagens a pessoas e a grupos
empresariais em troca de benefícios financeiros? Será que os escândalos que
vemos nos jornais e na televisão são apenas a ponta de um grande iceberg?
Não sei a resposta exata para essas perguntas, apesar de ter bons palpites.
Mas uma certeza eu tenho: essa prática não é nova. Davi sofreu com pessoas
que, vendo a verdade e tendo plenas condições de agir com justiça,
resolveram, por interesse próprio, favorecer a parte forte e promover a
injustiça ao fraco e necessitado. O Salmo 58 é um apelo de Davi a Deus
justamente por não encontrar nos homens a justiça que barraria o mal e que
defenderia o inocente. O contexto de composição do salmo é tremendamente
debatido. Possibilidades como a rebelião de Absalão e a atuação destruidora
de seres demoníacos são aventadas por muitos estudiosos. Entretanto, o
salmo não parece apresentar algo diferente de outros produzidos no período
da perseguição de Saul a Davi. Na verdade, a reticência de Davi em tratar seu
filho Absalão como inimigo, durante o golpe de estado que ele efetuou, faz
com que as duras palavras contidas no Salmo 58 contra as autoridades
injustas se encaixem melhor no período em que ele fugia de Saul.
Ao que tudo indica, Davi estava indignado com os feitos iníquos dos
homens que assistiam o rei Saul. Todos eles conheciam Davi. Este, por ser
genro do rei e comandante do seu exército, frequentava a corte real em Gibeá
e convivia com todas as autoridades israelitas, tanto civis, como militares. É
certo que tais homens conheciam o caráter de Davi, assim como jamais
haviam testemunhado qualquer tipo de tramoia vinda dele no sentido de trair
o rei e lhe usurpar o trono. Contudo, quando Davi poupa a vida de Saul,
também lhe diz que ele não deveria dar ouvidos a pessoas que o difamavam
injustamente: “Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos
homens que dizem: Davi procura fazer-te mal?” (1Sm 24.9). Ao agirem
assim, tais homens pioravam, por pura ambição, a situação que já era terrível
entre Saul e seu genro Davi. Parece que é desses homens que Davi fala no
Salmo 58. Sobre eles Davi se queixa ao Senhor e clama por uma justa
vindicação. O salmo também mostra que, para que tal vingança exista, é
necessário um processo de três etapas.
A primeira etapa é a realização da maldade pelos injustos. Davi inicia o
salmo com duas perguntas (v.1): “Vocês realmente falam coisas justas, ó
autoridades? Julgam os filhos dos homens com retidão?” (ha’umnam ’êlîm
tsedeq tedaberûn mêsharîm tishpetô benê ’adam). Essas perguntas estão
envoltas em ironia da parte do salmista, sendo classificadas como perguntas
retóricas. Sendo assim, elas não são um tipo de questionamento, mas uma
acusação de injustiça, de parcialidade e de manipulação da verdade por parte
de homens que tinham condições – e obrigação – de fazerem o oposto. Parece
que Davi se refere ao procedimento mentiroso dessas autoridades para fazer
Saul crer que Davi era um traidor. A resposta, desprovida de ironia, é dada no
v.2: “De fato, no coração eles elaboram iniquidades e suas mãos distribuem a
violência na Terra” (’af-belev ‘ôlot tif‘alûn ba’arets hamas yedêkem
tefallesûn).
A acusação de Davi não para por aí. Com ela, vem anexada uma explicação
sobre o caráter desses homens (v.3): “Os ímpios se extraviaram desde o
ventre materno; os que falam falsidades se desviaram desde o nascimento”
(zorû resha‘îm merahem ta‘û mibbeten doverê kazav). Davi associa a maldade
e a falsidade dos homens poderosos, que injustamente o perseguiam, à sua
condição pecaminosa. Davi faz menção a essa mesma desventura do ser
humano quando se refere ao seu próprio pecado no caso de Bate-Seba e Urias
(Sl 51.5). A julgar pela gravidade do pecado confessado por Davi no Salmo
51, o fato de ele se referir nos mesmos termos ao pecado dessas autoridades,
faz com que a acusação seja revestida de seriedade e de gravidade. No campo
prático, o pecado com o qual nasceram – e que não foi tratado pelo perdão
divino e pela graça transformadora do Senhor – mostra-se na forma de
atitudes perigosas e destrutivas (v.4): “O veneno deles é semelhante ao
veneno da serpente” (hamat-lamô kidmût hamat-nahash). Utilizando-se da
mesma comparação – a serpente –, Davi os acusa de serem pessoas
incorrigíveis, portadoras de corações fechados à verdade e ao arrependimento
(vv.4,5): “Como uma cobra surda eles tapam seus ouvidos para não ouvirem a
voz dos encantadores” (kemô-peten heresh ya’tem ’oznô ’asher lo’-yishma‘
leqôl melahashîm). Com isso, Davi quis dizer que é mais fácil um encantador
domar uma serpente venenosa do que tais homens darem ouvidos à justiça.
Uma atuação malévola como a descrita por Davi certamente cria muito
sofrimento nos alvos da maldade, os homens indefesos. Portanto, a segunda
etapa é o clamor a Deus pelos injustiçados. O injustiçado, nesse caso, é o
próprio salmista. Sofrendo com o mal, ele clama a Deus (v.6): “Ó Deus,
quebra os dentes das suas bocas; arranca as presas de leões, ó Senhor”
(’elohîm haras-shinnêmô bepîmô malte‘ôt kefîrîm netots yehwâ). Esse pedido
violento, que continua nos vv.7-9, não condiz com o ânimo normal de Davi,
visto sua piedade com os perseguidores e sua fidelidade a Deus (ver como
exemplo 1Samuel 24). Assim, tais palavras duras certamente revelam o
sofrimento que afligia o salmista. Tendo em vista que Davi, no Salmo 57.4,
comparou as flechas e lanças dos inimigos com dentes de leões, seu clamor
mostra que ele está nos limites da sua resistência contra a perseguição militar
que está sofrendo. O que torna o clamor a Deus uma das etapas da punição do
mal é o fato de Deus se importar com o fraco e dar ouvidos ao seu clamor (Dt
24.14,15). Ele não ignora o pecado contra os fracos e injustiçados.
A etapa final no processo que conduz à vingança contra o pecado dos
opressores é a efetivação do castigo pelo justo Senhor. Apesar do momento
de dor, Davi já vislumbra o momento em que Deus o livraria punindo os
maus. Ele demonstrou tal esperança quando se absteve de resolver por si
mesmo, injustamente, sua difícil situação: “Davi, porém, respondeu a Abisai:
não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor
e fique inocente? Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o
ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha,
seja morto” (1Sm 26.9-10). Prevendo tal libertação, o salmista, então,
prenuncia sua alegria ao ver o Senhor agir (v.10): “O justo se alegrará quando
vir a vingança” (yismah tsadîq kî-hazâ naqam). Essa declaração atesta a
atuação de Deus em proteger os seus punindo os que lhe oprimem. A
conclusão, contrária ao que pensa o injusto (Sl 53.1), é que (v.11)
“certamente há um Deus que julga na Terra” (’ak yesh-’elohîm shoftîm
ba’arets).
Para ambos os lados, opressores e oprimidos, há lições importantes. Paulo
descreve um desses lados nos seguintes termos: “Pois muitos andam entre
nós, dos quais, repetidas vezes, eu vos dizia e, agora, vos digo, até chorando,
que são inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o deus deles
é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam
com as coisas terrenas” (Fp 3.18,19). As pessoas que se veem descritas
nesses dizeres devem, olhando para o Salmo 58, saber que Deus não deixará
tais atitudes impunes. Diante disso, devem se arrepender dos seus pecados e
buscar o único que pode mudar não apenas tal destino, mas o próprio caráter
dos que o buscam, fazendo-os “serem feitos filhos de Deus” (Jo 1.12).
Quanto aos que já pertencem a Deus, pela fé em Cristo, e atravessam
momentos difíceis como o de Davi, devem lembrar-se do seu futuro nos
braços do Senhor quando ele separar uns para a vida eterna e outros para a
vergonha eterna (Dn 12.2). De qualquer modo, devem eles aguardar o justo
juízo daquele que não aceita subornos, nem julga com base em interesses
espúrios: o maior de todos os juízes que se assenta no supremo tribunal.

SALMO 59
A Perseguição e Condenação do Inocente

Um japonês chamado Ishimatsu Yoshida foi acusado de roubar e matar um


turista em uma rua deserta. Duas testemunhas, reconhecendo-o no tribunal
como autor do latrocínio, selaram seu destino. Apesar de enfaticamente se
declarar inocente, ele enfrentou uma pena de 23 anos de prisão. Ao ser
libertado, iniciou uma caçada às testemunhas que o acusaram. Em pouco
tempo encontrou uma delas. Esta confessou o falso testemunho e revelou que
o autor do crime era a outra testemunha. Ishimatsu passou mais um ano
procurando o verdadeiro assassino até capturá-lo e fazê-lo confessar. A
reportagem dizia que Ishimatsu entrou com um processo para reconhecer sua
inocência, mas que, apesar disso, o que ele nunca conseguiu recuperar foram
os 23 anos perdidos da sua vida.
Quem dera esse caso ser o único erro judicial e a única condenação
indevida da história! Na verdade, muita gente inocente já pagou por crimes
que não cometeu. Davi se queixa justamente disso no Salmo 59. Sua queixa é
(v.4): “Sem que eu tenha culpa, eles se apressam e se dispõem [contra mim]”
(belî-‘aôn yerûtsûn weyikônanû). O motivo da queixa não é difícil de entender,
já que Davi fornece o contexto preciso por meio do título do salmo: “Quando
Saul enviou [pessoas] para vigiar a casa [de Davi] a fim de matá-lo”
(bishloah sha’ûl wayyishmerû ’et-habbayit lahamîtô).
Tais acontecimentos estão narrados em 1Samuel 19.11-18. O texto conta
que Saul enviou homens à noite para vigiar a casa de Davi para que ele não
fugisse e para que pudessem matá-no pela manhã. Mical, filha de Saul e
esposa de Davi, ao saber do plano, ajudou Davi a fugir pela janela e colocou
na cama uma estátua para simular a presença do marido. Ao amanhecer, os
homens, por ordem de Saul, vieram buscar Davi. Mical ganhou algum tempo
dizendo que Davi estava acamado por uma doença. Quando se descobriu a
farsa, Davi já estava longe, e em segurança, na casa do profeta Samuel.
Tendo como pano de fundo essa história de traição e de desejo assassino,
Davi compôs o cântico em uma estrutura que parece ter duas estrofes (vv.1-5
e 10-13) e dois refrões (vv.6-9 e 14-17). As mudanças temáticas marcam tais
divisões e os refrões são fáceis de reconhecer devido à repetição de uma frase
importante do contexto – o cerco noturno dos assassinos (vv.6,14).
Entretanto, a música não é de muitas repetições. Ao contrário, ela apresenta
um desenvolvimento tanto da história como dos sentimentos e convicções do
salmista. Por isso, um modo interessante de analisar esse salmo é seguir seu
raciocínio nas suas divisões.
Assim, a primeira estrofe contém um pedido de livramento divino por
parte do inocente perseguido. A oração inicial do salmo é (v.1): “Livra-me
dos meus inimigos, ó meu Deus, e ponha-me a salvo daqueles que se
levantam contra mim” (hatsîlenî me’oyevay ’elohay mimitqômemay
tesaggevenî). Além do pedido de livramento, Davi forma uma imagem
interessante de tal proteção. O que é traduzido como “ponha-me a salvo”
também pode ser entendido como um pedido para que Deus o levantasse e o
colocasse em um lugar alto que não pudesse ser alcançado pelos agressores.
É mais ou menos a figura de um pai levantando seu filho para que um cão
raivoso não o possa ferir – deve-se levar em conta que a figura do ataque de
cães raivosos é destacada no texto para se referir à ação dos assassinos. É
claro que, com isso, está implícita a ideia da impotência e dependência do
salmista como se ele fosse uma criança. Mas é assim mesmo que o servo de
Deus deve se sentir ante o poder de Deus.
Além disso, há um perigo adicional para Davi. Os homens que o
perseguiam (v.2) eram “assassinos” (’anshê damîm). Uma tradução literal
para a qualificação dada por Davi a esses homens é “homens de sangues”, ou
seja, homens que já derramaram o sangue de outras pessoas. E a tática usada
por eles era a perseguição velada e traiçoeira (v.3): “Eis que eles ficaram de
tocaia contra mim” (hinneh ’arvô lenafshî). Esse era o perigo que Davi corria.
E tudo isso sem ter feito nada que merecesse tal tratamento, visto que Davi
diz: “Homens fortes fazem cerco contra mim sem que eu tenha transgredido
ou que eu tenha pecado, ó Senhor” (yagûrû ‘alay ‘azîm lo’-pish‘î welo’-
hatta’tî yehwâ).
O primeiro refrão contém a confiança no poder de Deus apesar da fúria
dos inimigos. Os dois refrãos iniciam dizendo (vv.6,14): “Eles se volvem
durante a noite uivando como cães e rodeiam a cidade” (yashûvû la‘erev
yehemû kakkalev wîsôvevû ‘îr). Apesar do símile com a figura dos cães, essa é
uma descrição exata da tocaia armada pelos inimigos. Segundo Davi, tais
homens estavam totalmente confiantes do sigilo a respeito dos seus planos,
dizendo (v.7) entre eles mesmos “quem ouviu?” (mî shomea‘). Essa pergunta
é um modo retórico de dizer que os planos continuavam secretos e efetivos.
Contudo, a periculosidade dos adversários não consegue tirar a confiança de
Davi no Senhor, principalmente depois de, em seu poder, ter Deus feito
chegar aos ouvidos de Mical o plano que deveria ser secreto. Por isso, diz o
salmista (v.8): “Mas tu rirá deles, ó Senhor” (we’attâ yehwâ tishhaq-lamô). A
confiança de Davi é clara: o Senhor é mais poderoso que os poderosos e será
vitorioso sobre eles. Diante disso, nenhuma outra declaração seria melhor
para encerrar o refrão (v.9) que a afirmação “Deus é o meu alto refúgio”
(’elohîm misgavvî).
A segunda estrofe contém o vislumbre da libertação do inocente e do
castigo do ímpio. A confiança de Davi é tão firme que rapidamente evolui
para a “esperança”. Isso significa que ele tem tanta convicção de que Deus é
fiel e que irá socorrê-lo que ele já antevê a libertação e a derrota dos que o
perseguem. Ele afirma (v.10): “O Deus a quem amo virá ao meu encontro;
Deus me fará ver [a derrota] nos meus inimigos” (’elohê hasdiw yeqaddemenî
’elohîm yar’enî beshoreray). Confiado nessa certeza, Davi ora (v.13):
“Destrua-os com ira, destrua-os para que eles sejam como nada e saibam que
Deus é soberano em Jacó e até os confins da Terra” (kalleh behemâ kalleh
we’ênemô weyede‘û kî-’elohîm moshel beya‘aqov le’afsê ha’arets).
O segundo refrão contém o louvor e o testemunho do inocente pela
libertação de Deus. A confiança em Deus, munida da esperança firme e vida
da libertação, não poderia levar Davi a outra atitude que não a gratidão a
Deus e sua demonstração na forma de adoração. Assim, ele, mais uma vez,
inicia o refrão falando do cerco da sua casa pelos inimigos e o contrapõe com
sua atitude em resposta à situação (v.16): “Entretanto, eu cantarei sobre a tua
força” (wa’anî ’ashîr ‘uzzeka).
Tendo dito isso, Davi faz um contraste muito bonito, poético e sugestivo no
trecho em questão. Ele, que iniciou o refrão falando do cerco noturno, no
meio das sombras, em uma atitude condizente com as trevas, faz o refrão dar
uma virada como poucas. Ele diz: “Pela manhã eu exultarei pela tua
bondade” (wa’aranen labboqer hasdeka). Se durante a noite havia perigo, de
manhã já ocorreu a libertação. Se de noite reinava a maldade, pela manhã
reina a graça e a benignidade do Senhor. Se as trevas dominam o coração dos
perseguidores, um raio de luz de pura alegria e louvor brilha no coração do
salmista tão logo amanheça o dia. Que melhor maneira encerrar o cântico,
depois desse belo ápice, que Davi declarar a Deus o seu amor? Ele encerra
(v.17) chamando novamente o Senhor de “Deus a quem eu amo” (’elohê
hasdî).
Essa não é uma lição de poesia, apesar da beleza e de nos inspirar
tremendamente. Também não é uma lição de gramática, apesar de nos fazer
trabalhar com tantas figuras sugestivas e comunicativas. É, na verdade, uma
lição a respeito de Deus e da sua soberania sobre tudo e sobre todos.
Ninguém pode detê-lo ou intimidá-lo. Nenhum poder ou autoridade pode
fazer frente àquele que reina sobre toda a criação. Por outro lado, é também
uma lição sobre como os servos de Deus devem se portar nesse mundo.
A receita é sempre a mesma: quando o mundo mau se levanta para destruir
o povo de Deus, este ora ao Senhor, confia na sua bondade e louva o seu
nome, testemunhando sua bondade por toda parte. As circunstâncias podem
variar, mas aquele “em quem não pode existir variação ou sombra de
mudança” (Tg 1.17) está sempre a postos para, mais uma vez, demonstrar seu
amor por aqueles a quem chamou para compor o seu povo. Não importa se o
mundo nos considera culpados de não viver sob seu regime dirigido pela
carnalidade. Ainda que nos ameacem e persigam injustamente, como se
fôssemos culpados, aquele que tem voz e poder em última instância, e que
nos justificou por meio de Jesus Cristo, nunca há de nos abandonar ou nos
perder dos seus braços.
SALMO 60
A Dureza das Provações

Devido a problemas que tenho na coluna, tenho praticado natação três


vezes por semana. Tem sido muito bom para mim. Normalmente eu entro na
piscina com dores e saio sem, bem disposto para começar o dia de trabalho.
Geralmente é assim, a não ser nos dias de teste físico. Nesses dias, tenho de
nadar em sessões que são cronometradas. Para o meu estado físico, alguns
desses períodos são intermináveis. Preciso de todo o meu esforço e
determinação para não atender o impulso de parar no meio do teste. Ao
completá-lo, parece que cheguei ao final de uma maratona. Contudo, nem dá
tempo de comemorar, pois uma nova série é proposta e tenho de começar
tudo de novo, vez após vez. Em algumas ocasiões, penso que não serei capaz
de terminar e fico muito desanimado ao olhar o relógio que perece não andar.
Cada chegada me faz crer que em algum momento terei de desistir.
Meu sofrimento permanece apenas enquanto cumpro esses testes físicos e,
ao final, o máximo que pode me acontecer é estar mais cansado que o normal
e com algumas dores. Davi, entretanto, passou por provações que o fizeram
ficar desanimado e temeroso. O Salmo 60 foi escrito em uma dessas ocasiões.
O título do salmo diz “Quando ele guerreou com Aram Naharaim e com
Aram Zobá e quando Joabe voltou e feriu Edom no vale do sal, doze mil
homens” (behatsôtô ’et ’aram naharayim we’et ’aram tsôvâ wayyashav yô’av
wayyak ’et-’edôm begê’-melah shenêm ‘asar ’alef). Aram, a que o texto se
refere, é a Síria. Trata-se de um território muito grande onde Zobá está na
parte sul, fazendo fronteira com o limite Norte de Israel. Já Aram Naharaim,
que significa Aram “entre os dois rios” – o Eufrates e o Tigre –, fica ao norte,
na região conhecida como Mesopotâmia. Empreender uma guerra para
estabelecer um domínio político sobre toda essa região e comandar a
principal rota comercial entre a Mesopotâmia e o Egito não é uma tarefa de
pequena monta. Essa era a missão que Davi empreendia com muito custo.
Era também, além dos interesses comerciais, uma estratégia de defesa, já que
o território sírio servia, para Israel, como Estado “tampão” no caso de uma
invasão assíria.
Apesar do grande empreendimento, o texto de 2Samuel 8, que nos oferece
o contexto histórico do salmo, mostra que Davi já tinha pacificado o sul ao
subjugar os filisteus a sudoeste do território israelita e os moabitas a sudeste.
Diante disso, ele podia investir militarmente ao norte do seu país. Mas,
agindo com traição, o povo de Edom, ao sul de Judá, resolveu aproveitar a
oportunidade para atacar seu vizinho cujos exércitos estavam a cerca de
quinhentos quilômetros de distância. Isso obrigou Davi a enviar uma tropa
para defender o país dos edomitas, tropa que parece ter tido dificuldades para
repelir os invasores do Sul. Diante do cansaço da guerra, dos inúmeros
inimigos e do constante risco de ser derrotado, Davi escreve o salmo, na
forma de um diálogo com Deus, que ensina lições preciosas para o servo de
Deus que passa por provações longas e duras.
A primeira lição é reconhecer que as provas não fogem do controle de
Deus. O revés militar é imediatamente reconhecido por Davi como uma
atuação de Deus (v.1): “Ó Deus, tu nos rejeitaste, nos desmantelaste, pois tu
te enfureceste” (’elohîm zenahtanû peratstanû ’anafta). Entendendo que os
rumos da guerra vêm do Senhor, Davi não se ocupa apenas dos preparativos e
das táticas militares como se tudo dependesse dele. Em lugar disso, ele ora
àquele que conduz a história, dizendo: “Restaura-nos!” (teshôvev lanû).
Parece que o pensamento de Davi é que, se Deus dá a provação, somente ele
pode retirá-la. Por hora, segundo o plano traçado por Deus para esse
momento, Davi e seu exército estão abalados com as dificuldades em relação
ao número e à ferocidade dos inimigos (v.3): “Fizeste teu povo ver
dificuldades” (hir’îtâ ‘ammeka qashâ). Ao dizer isso, Davi não tem em mente
apenas o ato de “ver” a dificuldade, mas de atravessá-la, de sofrê-la
pessoalmente.
Segundo o salmista, o Senhor não só tinha um propósito em relação à
história de Israel, ao reinado de Davi e às suas conquistas militares, como
pessoalmente implementou tais propósitos. Contudo, o fez dentro dos
parâmetros que previu para tratar seu povo sem fazê-lo perecer (v.4): “Aos
que te temem deste uma bandeira para onde possam fugir do alcance do arco”
(natattâ lîre’eyka nes lehitnôses miffenê qoshet). Davi não explica que tipo de
bandeira ou “sinal” é esse a que se refere. Como não parece ser uma
descrição literal de um refúgio sinalizado por uma bandeira – já que isso era
algo que um exército sempre tinha e que não poderia se enquadrar em algo
especialmente dado por Deus nesse revés em particular – a linguagem de
Davi deve ser figurada e a “bandeira” poderia ser o próprio Senhor a quem
ele, agora em dificuldades, recorre para encontrar abrigo. A palavra
“bandeira” é a mesma que, com o sufixo possessivo, forma um dos nomes
pelo qual Deus é conhecido: “Jeová nissi” (o Senhor é minha bandeira) – ver
Êxodo 17.15. Essa interpretação é favorecida pela confiança que Davi tem de
orar a Deus no versículo seguinte (v.5): “Liberta-nos pela tua destra e
responde-nos para que os teus amados possam ser livres” (lema‘an yeholtsûn
yedîdeyka hôshî‘â yemîneka wa‘aneniw). No final das contas, é muito claro, na
mente do salmista, o domínio de Deus sobre a situação de Israel.
A segunda lição é saber que Deus conhece a hora de por fim às
provações. Esse trecho (vv.6-8) está escrito na forma de uma resposta de
Deus à primeira oração de Davi (vv.1-5). Pela pena do salmista, o Senhor
garante que chegará o momento de ele, novamente, favorecer os israelitas.
Discute-se se o conteúdo dos vv.6-8 é o registro de uma revelação divina a
Davi ou se o salmista está apenas lançando mão da confiança dada pelas
promessas do Senhor registradas nas Escrituras. De qualquer modo, Davi
tem convicção de que o mau momento passará e que os inimigos serão
subjugados. Ele escreve (v.6): “Deus, em sua santidade, disse: Eu exultarei,
pois dividirei Siquém e medirei o vale de Sucote” (’elohîm diber beqodshô
’e‘lozâ ahalleqâ shekem we‘emeq sukôt ’amaded). Siquem está situada em
Efraim, a oeste do Jordão, enquanto o vale do Sucote fica em Gade, a leste do
Jordão. O significado desse texto parece ser que o Senhor confirmaria a posse
aos israelitas da terra que lhes deu, tanto de um lado como de outro do rio
Jordão.
Ele continua (v.7) e valoriza territórios como Gileade e Manasses (a leste
do Jordão – Manasses também se estendia a oeste) e Efraim e Judá (a oeste
do Jordão). Por outro lado, humilha as nações ao sul, nações estas que
costumeiramente causavam problemas para Davi e seus súditos (v.8):
“Moabe é o meu lavabo; sobre Edom jogarei a minha sandália; sobre a
Filístia eu cantarei vitória” (mô’av sîr rahtsî ‘al-’edôm ’ashlîk na‘alî ‘alay
peleshet hitro‘a‘î). Com isso, os israelitas podiam esperar o término dos
confrontos pela subjugação dos inimigos. O próprio Senhor poria fim às
provações.
A última lição é submeter-se inteiramente a Deus como o único que
pode dar alívio. A partir do v.9 Davi volta a ser a voz do salmo e faz uma
pergunta que revela sua incapacidade inicial de vencer os edomitas: “Quem
me levará à cidade fortificada? Quem me guiará até Edom?” (mî yovilenî ‘îr
matsôr mî nahanî ‘ad-’edôm). Tais perguntas mostram que o exército
israelita, que tinha como meta tomar Edom e sua capital a fim de acabar com
os conflitos, não teve êxito nesse intento. A razão de tal ineficácia é o fato de
Deus não tê-los feito vitoriosos até então (v.10): “Acaso tu, ó Deus, não nos
rejeitaste? Por isso, ó Deus, não sais com nossos exércitos” (halo’-’attâ
’elohîm zenahtanû welo’-tetse’ ’elohîm betsiv’ôteynû). Sabendo disso, em
lugar de buscar outros recursos, Davi se volta inteiramente a Deus e suplica
seu auxílio (v.11): “Socorra-nos do adversário, pois nulo é o socorro do
homem” (havâ-lanû ‘ezrat mitsar weshawe’ teshû‘at ’adam). A submissão à
direção e à vontade de Deus dá, então, segurança ao salmista de que eles
sairão vencedores dessa intensa provação (v.12): “Em Deus nós faremos
proezas, pois ele investirá contra nossos adversários” (be’lohîm na‘aseh-hayil
wehû’ yabûs tsareynû).
O mesmo Deus de Davi, aquele que dá provações, que sabe em que medida
dá-las e que se compadece dos servos sustentando-os e livrando-os, é o
mesmo Deus de hoje, o Deus da igreja. Seus métodos e objetivos também são
os mesmos. Ele nos ensina por meio das dificuldades, nunca nos abandona,
nos lembra da sua constante presença e da necessidade que temos de
depender dele e nos protege do mal. É disso que eu me lembro quando passo
por lutas. E é por isso que eu continuo seguindo quando as forças dão mostras
de que acabarão. Como na piscina, o cansaço vem, mas vez após vez
completamos a prova com nosso Deus nos sustentando e nos impedindo de
afundar.

SALMO 61
As Recordações do que Deus Faz

Tenho muitas recordações maravilhosas do meu passado. Algumas delas,


surpreendentemente, de quando eu era muito pequeno. São lembranças que
vêm e vão, mas que, apesar da sua volatilidade em minha mente, ainda
produzem sensações agradáveis. Há também lembranças dolorosas – algumas
delas “literalmente” dolorosas. Refiro-me a lembranças das frequentes
injeções de antibióticos que eu tomava por causa de infecções de garganta
que insistiam em me atacar. O problema não eram as injeções em si, já que,
com a devida técnica e com a cooperação do paciente, nenhuma injeção é
realmente ruim. Mas cooperação era algo que não vinha de mim. Na verdade,
quando eu tomava injeções na farmácia perto da minha casa, ninguém podia
comprar nada até que eu fosse liberado, já que “todos” os funcionários
tinham de me segurar. Era terrível – e por culpa minha.
Depois de adulto, mas ainda com o trauma de criança, precisei tomar uma
sequência de injeções de antibióticos. Eram duas injeções por dia durante
quase uma semana. Já fazia pelo menos quinze anos que eu não recebia
nenhuma injeção. A primeira delas foi um drama para mim. Minha impressão
inicial era de que eu sentiria uma dor insuportável, coisa que nem de perto
aconteceu – na verdade, não senti nem a agulha. Nos próximos dias fui
recebendo novas doses, sempre em meio ao pânico. Isso perdurou até que me
lembrei, em certa dose, que em nenhuma das aplicações anteriores eu havia
sofrido qualquer dor. Lembrei-me de que, mediante minha cooperação,
nenhuma aplicação doeu. Foi nesse momento que deixei a experiência do
passado me acalmar e me livrar do trauma de infância. Hoje, tomo injeções
sempre que preciso sem sofrer com isso. Pode parecer pouco, mas para mim
foi a libertação de uma escravidão.
Eu não fui o único a me beneficiar de uma recordação. Davi, em um
momento de crise, manteve a esperança ao olhar para o passado. O Salmo 61
mostra uma sequência de considerações de Davi diante de uma crise que ele
atravessava. Não há um título no salmo que nos ajude a identificar o
momento histórico em que ele está inserido. Isso normalmente nos ajuda a
compreender cada frase proposta pelo escritor. Contudo, o próprio texto
deixa escapar algumas nuances da situação do salmista. Sabemos que Davi
estava abalado (v.2) pelos riscos que corria (v.4), riscos de perder o trono e a
vida (v.6). Nesse contexto, Davi atravessa três momentos em uma progressão
que o leva da angústia à esperança.
O primeiro momento de Davi nessa situação é a tristeza do presente.
Fossem quais fossem os detalhes dos acontecimentos ao redor do salmista, o
resultado nele é bem definido. Ele diz (v.2): “Da extremidade da Terra eu
clamo a ti ao desfalecer o meu coração” (miqtseh ha’arets ’eleyka ’eqra’
ba‘atof livvî). “Desfalecer o meu coração” é uma expressão muito forte. Ela
também pode ser traduzida como “no meu desespero”. Não se trata daquele
desânimo casual, mas de uma aflição intensa baseada na completa falta de
certeza sobre o futuro. O fato de Davi orar a Deus “da extremidade da terra”
pode indicar que ele está em uma campanha longe de casa. Uma guerra
distante dos próprios domínios é uma guerra em que o inimigo conhece bem
a terra e tem, próximo de si, suprimentos e reforços. Isso se dá de modo
exatamente oposto no caso dos invasores que, quanto mais longe vão, mais
distantes ficam de tudo que prezam e que lhes dá segurança. Não é difícil
imaginar como um revés militar em uma situação como essa pode atingir o
coração do rei. Davi devia se sentir muito desesperado com os
acontecimentos presentes.
Isso tudo o leva ao segundo momento que é o desejo quanto ao futuro.
Quem, em um momento de tristeza, não almeja o alívio? Davi não era
diferente. Ele olha para o futuro e se imagina protegido do perigo. Esse é seu
mais profundo desejo nesse instante. No entanto, como é extremo o seu
desespero, é também extremo seu desejo. Ainda no v.2 ele ora: “Que tu me
leves até a rocha mais alta que eu” (betsûr-yarûm mimmennî taghenî). Davi
quer, aqui, ser colocado em um lugar onde não possa, com suas pernas e
braços, alcançar, pois é alto demais para ele. Dificilmente se trata de um lugar
físico, mas, utilizando-se de uma figura de linguagem, ele se refere à
segurança que somente Deus pode fornecer e garantir. O próprio Senhor é
chamado algumas vezes pelo salmista de “rocha”, no sentido de ser o sumo
protetor dos que lhe pertencem (Sl 19.14; 62.7) – outros escritores se
referiram a Deus nos mesmos termos, sempre atrelando sua segurança
pessoal à atuação que vem dele (Dt 32.31; Ps 89.26; 94.22; Is 26.4). Assim,
o que Davi pede é algo que para ele é “inatingível”. Seu desejo quanto ao
futuro só pode ser alcançado pela mão protetora do Senhor. Somente Deus
poderia fazê-lo voltar em segurança para casa, para a presença dos seus
amados e para as funções do seu trono.
Como ninguém, exceto Deus, pode conhecer o futuro, o salmista não se
sente tranquilo simplesmente por ter desejos quanto ao que viria. Ele sabia
que era possível que seus anseios não se realizassem, visto que não estavam
sob seu controle. Essa correta percepção conduz, então, o salmista ao seu
terceiro momento na situação que é a lembrança do passado. Se Davi não
conhecia o futuro, certamente conhecia o passado. Sabia das experiências que
tivera com Deus. Se o Senhor agiu de maneiras diversas em cada dificuldade
que Davi atravessou, um fator esteve sempre presente: o cuidado de Deus
para com o servo. Com isso em mente, Davi justifica sua oração a Deus (v.3):
“Pois tu foste o meu refúgio, uma torre forte na presença do inimigo” (kî-
hayiyta mahseh lî migdal-‘oz miffenê ’ôyev). Eis o que há nas recordações de
Davi: o Senhor o ajudando nas dificuldades, protegendo-o dos inimigos e
dando-lhe vitórias gloriosas. “Por que ele agiria diferente agora?”, deve ter
pensado Davi. Por isso, a sequência do salmo contém declarações de
confiança e promessas de louvor e de fidelidade – exatamente o modo como
o servo de Deus deve se comportar em “todas” as circunstâncias.
Em certo sentido, os momentos vividos por Davi durante sua angústia estão
presentes na vida de todos nós. Sempre que os problemas crescem e parecem
que nos destruirão, ficamos desanimados e sem esperança. Somos abatidos
pela dor. Nesse instante, passamos a desejar um futuro melhor.
Vislumbramos o momento em que os fortes laços afrouxarão. Muitas vezes,
até encontramos consolo em ilusões que sabemos que, na realidade, não
ocorrerão. Se até aqui nossa experiência se iguala à do salmista, o terceiro
momento desse crescimento pode ou não surgir em nossa vida. Há quem,
durante os problemas, se afasta de Deus e, para tanto, utiliza-se de desculpas
como “não estou com cabeça para pensar em Deus no momento” ou “você
diz isso porque não sabe o momento difícil que estou atravessando”. Se isso
acontece, só se pode esperar mais dor e sofrimento.
Por outro lado, há quem, no passado, notou o amor de Deus sustentando,
dirigindo e libertando do mal. As recordações do lamento cedendo lugar ao
louvor dão a essas pessoas a devida esperança de que Deus continuará a lhes
proteger e a ser rocha que fica acima dos problemas, sua torre forte. E ao
fazerem isso, progridem na vida cristã, aprendem a depender mais de Deus,
conhecem melhor o Senhor e se submetem cada vez mais a ele. Nesse
processo todo, as recordações das bênçãos de Deus no passado são
ferramentas fundamentais. Afinal, se a recordação de injeções bem aplicadas
podem vencer um trauma de infância, imagine o que fará a recordação da
graça atuante de Deus em nossa vida!

SALMO 62
O Silêncio do Sofredor

O marquês de Condorcet contou, certa vez, que o grande matemático e


físico Leonhard Paul Euler (1707-1783) viveu em São Petersburgo nos dias
do tirânico domínio da imperatriz Anna. Quando ele teve a oportunidade de
se mudar para a Alemanha, a pedido do rei da Prússia, a rainha-mãe o
procurou desejosa de conversar com o famoso estudioso. Contudo, Euler não
se mostrou uma pessoa de muitas palavras. Suas respostas monossilábicas
acabaram incomodando a rainha, fazendo-a criticar sua timidez e indagar-lhe:
“Por que não queres me falar?”. Diante disso, o matemático explicou a razão
do seu silêncio: “Eu vim de um lugar onde, se um homem diz uma palavra,
ele é enforcado. Pessoas quietas e pacíficas raramente vêm a sofrer danos ou
causar danos”.
Esse triste relato nos leva à reflexão sobre os tipos de reação à tirania e à
perseguição. Um modo de reagir é, em meio à revolta, esbravejar contra a
injustiça e gritar, aos quatro ventos, as razões do sofrimento, exigindo
mudanças e alívio. Os livros de história estão cheios de capítulos heróicos
que narram atitudes como essa que serviram de prelúdio ou de motivação
para transformações sociais e políticas. Mas, também, há um grande vácuo no
qual pessoas poderiam ter feito diferença e não fizeram, simplesmente
porque, manifestando-se contra a injustiça, tiveram suas vidas ceifadas muito
cedo. Por outro lado, um modo de agir, diferente do primeiro, é suportar o
sofrimento em silêncio para não fazer algo que produza maiores
consequências e pesares.
Davi viveu situações em que lançou mão do segundo tipo de reação a fim
de depender totalmente do Senhor. Uma dessas situações surge como pano de
fundo do Salmo 62. Nele, Davi se dirige aos seus inimigos nos seguintes
termos (v.3): “Até quando arremetereis vós contra um homem?” (‘ad-’anâ
tehôtetû ‘al ’îsh). Essa é uma declaração de quem está no limite, com a
paciência e a disposição de administrar o sofrimento chegando ao fim. Não é
para menos: a perseguição estava intensa e prestes a causar a ruína completa
do salmista: “Todos vós sois assassinos tal qual uma parede que cai, um muro
a ponto de ruir” (teratsehû kullekem keqîr natûy gader haddehûyâ). Davi quer
dizer que seus perseguidores eram tão perigosos, em seu intento de matá-lo,
quanto os riscos de morte em um desabamento que deixa soterradas as suas
vítimas.
Utilizando-se ainda da figura do desabamento, Davi fala da dedicação
integral dos inimigos para prejudicar seu nome e sua honrosa posição (v.4):
“Eles ficam conspirando para derrubá-lo da sua condição digna” (’ak
misse’etô ya‘atsû lehaddîah). A ideia de conspirar ou de ficar planejando a
derrocada do salmista mostra que essa não é uma perseguição aberta ou de
caráter militar. Também não se trata de inimigos externos, mas de gente
próxima que mantém uma postura falsa, já que “eles se comprazem na
falsidade” (yirtsû kazav). Sendo assim, a aparência desses homens perigosos
e hipócritas, diante de Davi, era de pessoas de bem, amigos do salmista.
Porém, na verdade, de forma diametralmente oposta, eles nutriam ódio e
aguardavam a oportunidade de atacar, visto que “com sua boca eles
bendizem, mas no seu íntimo eles amaldiçoam” (bepîw yebarekû ûbeqirbam
yeqallû).
Diante dessa descrição, podemos perguntar: “Já que Davi sabia das tramas
e do ódio dos inimigos, por que, então, ele não tomava providências quanto a
isso?”. Como o salmo é dirigido a Jedutum, a quem Davi instituiu como
cantor e instrumentista a fim de louvar a Deus (1Cr 16.41; 25.6; 2Cr 35.15),
é certo que ele foi escrito quando o salmista era rei sobre todo o Israel. Logo,
tendo poder real, por que Davi não deu cabo dos traidores? Não sabemos o
porquê. Talvez, envolvesse pessoas na nobreza, de modo que a solução
poderia gerar uma crise política. Ou, talvez, o inimigo fosse da sua própria
casa e Davi não quisesse punir a quem amava. Seria o caso de Absalão que,
por quatro anos (2Sm 15.7 cf. vv.1-6), trabalhou para ganhar a simpatia do
povo e gerar descontentamento com relação ao rei (2Sm 15.1-6) – algo que
era impossível fazer sem que o rei soubesse. Mas, sendo filho do próprio
salmista, isso explicaria a falta de providências duras do rei e a ausência de
um clamor a Deus pela ruína dos adversários, como ocorre em outros salmos.
Finalmente, é também possível que Davi soubesse da existência de oposição,
mas não identificasse, exatamente, quem eram os opositores.
Assim, sem poder resolver por si a situação, o rei lança mão de um recurso
legítimo: esperar em Deus. Essa declaração, com pequenas diferenças no
texto hebraico, Davi faz duas vezes (vv.1,2 e vv.5,6). Em primeiro lugar,
surge o alvo da confiança: o Senhor. Ele diz (v.1): “Somente por Deus
minha alma se aquieta” (’ak ’el-’elohîm dûmîyâ nafshî). Se alguém podia dar
paz ou calma a Davi em uma situação tão terrível como aquela, esse alguém
não era ele mesmo. Na verdade, só um poderia produzir paz em meio à
guerra: o próprio Senhor. Assim, Davi não confia no seu cargo real, nem na
sua guarda pessoal, nem tampouco em recursos questionáveis. O alvo da sua
confiança é o Deus bondoso e soberano.
Contudo, essa confiança não existe a despeito dos sentimentos do salmista.
Ela interfere completamente no modo como Davi se comporta enquanto
espera em Deus. Assim, o texto nos revela o modo da confiança: a paz
(v.1). O mesmo texto que traduzimos acima, se tomado de modo literal,
significa: “Somente em Deus há silêncio para minha alma”. A palavra
“silêncio” (dûmîyâ) também significa “descanso”, “quietude” e “repouso”.
Ela aponta para o fato de Davi ter deixado de lado o desespero que leva a
ações impensadas e extremas. Em lugar disso, confiante em Deus, Davi
permanecia quieto a fim de não provocar outros problemas, nem desagradar o
Senhor.
Essa forma de proceder não se devia à covardia de agir ou à tolice do rei.
Ela se baseava em algo real e superior à lógica humana. O próprio Davi
apresenta a razão da confiança: a proteção de Deus (v.1): “A minha
salvação vem dele” (mimmennû yeshû‘atî). Diferente do que críticos do
cristianismo afirmam, Deus não é o ópio do povo. A figura do Senhor não
produz uma falsa sensação de segurança. Deus se relaciona com seus servos
e, de fato, olha para suas necessidades a fim de atendê-las. Isso não significa
sempre ausência de problemas, mas, também, conforto, proteção e firmeza
nas angústias (v.2): “Somente ele é a minha rocha e a minha salvação” (’ak-
hû’ tsûrî wîshû‘atî). Para completar a figura, Davi introduz a imagem de uma
guerra e um cerco militar para dizer que Deus é, para ele, como aquelas
fortalezas dentro das cidades fortificadas, mais altas que as próprias
muralhas: “Meu alto refúgio” (mishgavvî). O resultado dessa certeza se vê na
declaração final: “Eu não serei abalado” (lo’-’emmôt). Um modo paralelo e
enfático de dizer tudo isso é (v.7): “De Deus vem segurança e minha honra. A
minha rocha forte e o meu refúgio estão em Deus” (‘al-’elohîm yish‘î ûkevôdî
tsûr-‘uzzî mahsî be’lohîm).
Essa é uma esperança tão gloriosa que Davi não a guarda para si. Ele
compartilha com seus súditos, dizendo (v.8): “Confiem nele em todo tempo, ó
povo. Lancem diante dele seus corações. Deus é o nosso refúgio” (bithû bô
becol-‘et ‘am shifkû-lepanayw levavkem ’elohîm mahaseh-lanû). Não há como
deixar de perceber que a esperança de Davi no Deus a quem chama “meu
refúgio”, é, também, a esperança de todos os servos do Senhor, os quais
devem chamá-lo “nosso refúgio”.
Se antepondo à primeira instrução (“confiai nele”), Davi os informa sobre
as fontes nas quais não há segurança, fazendo-o na forma de outra instrução,
mas uma instrução sobre o que não fazer (v.10): “Não confiem na exploração,
nem na opressão. Não se iludam com a riqueza quando ela aumentar. Não
ponham nela o coração” (’al-tivtehû be‘osheq ûbegazel ’al-tehbalû hayil kî-
yanûv ’al-tashîtû lev). Visto que essa mensagem é dirigida a todos, tanto
plebeus como os de fina estirpe (cf. v.9), Davi mostra que nem a riqueza nem
o poder dos ricos podem assegurá-los como o Senhor. A lição é clara e
marcante: “Todos” devem confiar no Senhor e pôr “nele” o coração. E, ao
fazê-lo, manter o controle das ações, de modo calmo e pacífico, por causa da
verdadeira e viva esperança.

SALMO 63
O Anseio de Estar na Presença de Deus

Thomas Paine, um britânico que imigrou para a América, ficou famoso ao


escrever brilhantes panfletos sobre a liberdade. Estes acabaram inflando um
sentimento de nacionalismo que levou à guerra americana pela
independência. Paine, por sua vez, tornou-se um dentre os fundadores dos
Estados Unidos da América. Apesar do seu papel na história americana, seu
maior desejo era ser conhecido pelo que ele imaginava que seria sua “obra-
prima”, um livro intitulado A era da razão que zombou do cristianismo (The
age of reason which scoffed at christianity).
O intento de Paine era acabar com a fé nas Escrituras. Dizia ele: “Esse
livro irá destruir a Bíblia... Em menos de cem anos, as Bíblias só serão
encontradas em museus ou em sessões de velharias de lojas de segunda mão”.
Mas não foi isso que aconteceu. Seu livro foi publicado em 1794, mas, em
lugar de fama e honra, trouxe a ele miséria e solidão, a ponto de ele vir a
dizer: “Eu daria mundos, se eu os tivesse, para que a Era da razão nunca
tivesse sido escrito”. Ele morreu em 1809 totalmente sem amigos, esquecido
de todos, enquanto a Bíblia continua sendo um best-seller.
O desejo do escritor foi diametralmente oposto ao de Davi. Se Paine queria
se afastar o máximo que pudesse da ideia de Deus, Davi mostrou, no Salmo
63, qual era o tamanho do seu desejo de estar na presença do Senhor. Pelo
menos duas referências no texto nos indicam a ocasião em que o salmo foi
escrito. Em primeiro lugar, o título mostra que Davi estava no deserto de
Judá. Já que ele se refere a inimigos que queriam lhe tirar a vida (v.9),
entende-se que Davi estava em fuga. Em segundo, Davi se refere a si mesmo
como “rei” (v.11), eliminando seus dias de fuga de Saul como momento
histórico do salmo. O contexto, assim, recai sobre o golpe de estado de
Absalão, do qual Davi teve de fugir de Jerusalém, “seguindo o caminho do
deserto” (2Sm 15.23).
O desejo de Davi de estar com Deus é expresso logo no início do salmo
(v.1a): “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu busco a ti com afinco” (’elohîm ’elî
’attâ ’ashahareka). Essa é uma expressão de desejo de alguém que se vê
privado daquilo que anseia, visto que, no v.2, ele se refere ao tabernáculo do
Senhor que estava em Jerusalém, e que abrigava a arca, a qual, na fuga, Davi
teve de deixar para trás (2Sm 15.24,25). Apesar de Deus estar em toda parte,
Davi se refere à adoração do Senhor nos seguintes termos (v.2): “No
tabernáculo santo eu te contemplo para ver tua força e tua glória” (baqqodesh
hazîtîka lir’ôt ‘uzzeka ûkevôdeka). Isso porque o tabernáculo e a arca
simbolizavam a presença de Deus no meio de Israel como povo eleito. Para
Davi, se afastar da arca era, também, se afastar do lugar especial em que
Deus podia ser encontrado e adorado pelos israelitas. Esse afastamento foi
extremamente doloroso para o salmista e seu desejo mais profundo era
retornar à presença do Senhor.
O desejo de estar com Deus pode ser visto no fato de que a ausência do
tabernáculo e da arca, para o salmista, era pior do que outras carências óbvias
de quem está no meio de um deserto em fuga a fim de salvar sua vida. A
subvalorização de tais carências, em vista do desejo prioritário de estar com
Deus, mostra a importância que Davi dava à necessidade de viver na presença
do Senhor.
Assim, em primeiro lugar, Davi deseja o Senhor mais do que saciar a
sede no deserto (v.1b): “Minha alma tem sede de ti, meu corpo desfalece por
ti, em terra seca e árida, sem água” (tsom’â leka napshî kamah leka besarî
be’erets-tsîyâ we‘ayef belî-mayim). Na verdade, o corpo de Davi devia estar
desfalecido por falta de água, por ter de consumi-la de modo racionado. Esse
era um procedimento normal em uma travessia ou estadia em lugares
desérticos. Porém, Davi lança mão desse anseio por água para se referir ao
que realmente o preocupava: a distância da arca e da presença do Senhor. A
distância dessa presença afligia Davi mais que a sede no deserto.
Em segundo lugar, Davi deseja o Senhor mais do que conservar sua
vida. Sua fuga de Absalão e dos demais traidores se devia ao risco de ele cair
nas mãos dos inimigos e ser morto. Estava no meio do deserto porque queria
proteger sua vida. Mas nem a vida superava a importância de Deus para o
salmista, que diz (v.3): “Porque o teu amor é melhor que a vida” (kî-tôv
hasdeka mehayyiym). A palavra hesed (amor) é usada muitas vezes dentro do
conceito das alianças para se referir à “fidelidade” de Deus de fazer o que
prometeu para com o povo de Israel quando eles mereciam o oposto. No caso
da aliança que Deus fez com Davi (2Sm 7.11-16), o hesed de Deus é a causa
de ele garantir a descendência davídica no trono de Israel. Por isso, Davi o
valoriza mais que sua própria vida. Se o salmista não tem certeza de quanto
ainda vai viver, ele tem plena certeza de como vai viver até que a morte o
encontre (v.4): “Por isso, eu te bendirei enquanto eu viver” (ken ’avarekka
behayyay).
Em terceiro, Davi deseja o Senhor mais do que ter alimento (v.5). Em
um deserto, o racionamento obrigatório para manter o grupo vivo não era
apenas de água. A comida também era racionada. O profeta Ezequiel falou do
que aconteceria aos moradores de Jerusalém ao sofrerem um cerco pelo
exército babilônico assim: “Comerão o pão por peso e [...] beberão a água por
medida” (Ez 4.16). Com Davi e seus homens, não devia ser diferente. Eles
não se deleitavam mais das boas comidas a que estavam acostumados.
Entretanto, se fisicamente Davi não se fartava de alimentos, espiritualmente
ele se vê saciado, pelo que diz (v.5): “Minha alma se sacia como se comesse
carne gorda e nutritiva” (kemô helev wadeshen tisba‘ nafshî). A pergunta é:
saciado com o quê? A resposta vem na sequência: “Pois com lábios
exultantes, minha boca louva” (wesiftê renanôt yehallel-pî). Em lugar de
mastigar alimentos saborosos, a boca de Davi estava cheia de louvores ao
nome do Senhor.
Em quarto lugar, Davi deseja o Senhor mais do que o tempo de descanso
(v.6): “Quando de ti me recordo em meu leito, eu medito em ti de
madrugada” (’im-zekartîka ‘al-yetsû‘au be’ashmurôt ’ehgeh-bak). Davi não
está relatando um caso de insônia por causa de preocupações com o risco de
morrer. Ele, em outro salmo escrito na mesma ocasião de fuga diante do
golpe de estado de Absalão, diz que se deitava e descansava em paz: “Deito-
me e pego no sono” (Sl 3.5a). Entretanto, quando pensava em Deus, ele não
achava um fardo ficar meditando sobre o Senhor, ainda que seu corpo pedisse
por descanso após um dia em circunstâncias adversas. Davi trocava o tempo
de descanso a fim de se aproximar de Deus na meditação noturna.
Por fim, Davi deseja o Senhor mais do que a segurança pessoal. A
segurança de um rei vinha do seu exército e das fortes muralhas de sua
cidade. Quanto ao exército, Davi fugiu com um contingente reduzido que
permaneceu fiel a ele. Quanto às muralhas, Jerusalém ficou para trás e agora
estava sob o controle de Absalão, enquanto o salmista está desprotegido no
meio do deserto. Ainda assim, Davi adora o Senhor e diz a razão do seu
louvor (v.7): “Pois tu és a minha proteção” (kî-hayîta ‘ezratâ lî). Tal proteção
é também descrita na forma figurada de uma ave que protege seus filhotes:
“À sombra das tuas asas eu me regozijo” (betsel kenafeyka ’arannen). Se para
Davi Deus valia mais que a proteção de uma muralha, também valia mais que
a espada empunhada dos seus soldados, visto que diz (v.8): “A tua mão
direita me sustenta” (tamkâ yemîneka). Não é para menos que Davi deseja
tanto estar na presença de Deus. Ele vê o Senhor como fonte da alegria e
segurança, ao mesmo tempo que sabe que os inimigos não são capazes diante
do soberano (vv.9-11).
Mas note bem: nenhum desses valores que Davi subvalorizou é ruim. Ao
contrário, são tão bons que Deus abençoava Israel por meio deles (Dt 28.15-
67). Na verdade, o próprio rei os valorizava, mas nunca os colocava na frente
do seu relacionamento com o Senhor. Assim, é chocante e inspirador ver que
ele trocaria tudo o que lhe dava segurança e conforto para andar com Deus e
louvá-lo no lugar onde, representativamente, habitava no meio de Israel.
Porém, mais chocante ainda é observar que, em nossos dias, a busca por
esses bens é frequentemente a causa de pessoas abandonarem o Senhor ou
deixarem-no em segundo plano. Por causa de conforto, segurança, descanso e
lucros financeiros, já vi muitos crentes que serviam a Deus com afinco irem
se afastando aos poucos até que não sentissem mais qualquer necessidade de
comunhão com o Senhor ou com sua igreja; até que não tivessem a terrível
sensação de um vazio interior quando não louvavam seu Deus, nem
aprendiam sua Palavra; até que a única recordação que tinham de seu
salvador fosse a de que servi-lo cansava muito e gastava tempo demais.
Algumas vezes, nem sei direito o que dizer para tais pessoas, tamanha a
insensibilidade que acalentam em seus corações. Só sei dizer que suas vidas
estão tão secas e áridas quanto o deserto em que Davi esteve.
SALMO 64
Ação e Reação

A era cristã passou por um desenvolvimento substancial no tamanho dos


seus locais de culto. A igreja primitiva se reunia nas casas (Rm 16.3-5; 1Co
16.19; Cl 4.15; Fm 2), em grupos limitados de pessoas, de modo que, em
uma cidade, havia muitas igrejas, pelo que se pode ver no número de pastores
efésios que se encontraram com Paulo na cidade de Mileto (At 20.17-38).
Mas, depois que Constantino assumiu o império, passou a construir, com
verba pública, edificações que abrigassem os cristãos, em devolução ao que
lhes foi tirado durante os anos de perseguição. Tais edificações, em conjunto
com a teologia de uma época em que pagãos passaram a fingir a conversão a
Cristo com interesses seculares, passaram a ser consideradas templos, no
sentido de não serem apenas locais de reunião dos crentes, mas um lugar de
habitação do Deus que “não habita em templos feitos por mãos” (At 17.24 cf.
1Rs 8.27; 2Cr 2.5,6; 6.18; Is 66.1).
Não precisou mais que isso para que muito da adoração cristã passasse a
ser transferida para a construção e manutenção das edificações religiosas.
Com o tempo e com o desenvolvimento da arquitetura, elas foram se
tornando cada vez maiores e belas. O limite desse intento se deu no auge da
arquitetura gótica, quando as catedrais passaram a alcançar alturas enormes,
como que em uma busca, por meio de pedras, pelo próprio Deus altíssimo.
Essa época viu algumas tragédias devido à queda de construções que iam
além do que as leis da física permitiam suportar, como no caso da catedral de
Beauvais. O desejo de templos cada vez mais alto trouxe ruína e morte para
muitas pessoas. A “ação” de desafiar o equilíbrio e a resistência dos materiais
da época gerou uma “reação” adversa – várias, na verdade.
Davi não viveu na época das grandes construções dos templos cristãos,
nem tinha o conhecimento de arquitetura daqueles construtores, mas sabia
que algumas “ações” geravam inevitáveis “reações”. O Salmo 64 está
ambientado nas mesmas circunstâncias do salmo precedente: o golpe de
estado de Absalão e a fuga de Davi para salvar sua vida. Se o contexto
histórico é o mesmo, o enfoque do salmista não é. No Salmo 63, Davi olha
para seu relacionamento com Deus e no valor dele sobre todas as
necessidades da vida. Porém, o Salmo 64 é uma reflexão sobre a “ação”
maligna dos inimigos dos servos de Deus e a “reação” do Senhor ao proteger
seus filhos e se opor aos inimigos. Desse modo, podemos usufruir da teologia
oferecida pelo salmista ao notar as “ações” e “reações” contidas na canção
davídica.
Entre os feitos que deixaram o salmista “perplexo” (v.1), a primeira das
ações dos inimigos é reunir pessoas para o mal (v.2). Davi roga a Deus que
o proteja “do grupo de malfeitores” (missôd mere‘îm). Trata-se de uma
associação de pessoas que tinham um interesse comum: conspirar contra o
salmista para fazer-lhe mal. O perigo aumentava à medida que os
conspiradores, que lideravam tal movimento, arrebanhavam adeptos que se
amotinavam contra o rei, aprovando e apoiando o golpe de estado. Por isso, a
oração de Davi é, também, por proteção “do motim dos obreiros da maldade”
(merigshat po‘alê ’awen).
A segunda ação dos malfeitores era causar danos por meio das palavras
(v.3). Como soldados que se preparam para a guerra amolando o corte das
suas armas, os inimigos de Davi se preparavam para destruir se utilizando
daquilo que diziam contra o rei: “Eles afiam suas línguas como espadas”
(shannû kaherev leshônam). A palavra hebraica para língua (lashôn) pode ser
usada tanto no sentido literal como no sentido figurado, representando aquilo
que ela produz, ou seja, as palavras. O resultado final é o que Davi chama de
“palavra amargurada” (davar mar). O que diziam era a exata expressão da
amargura que sentiam contra Davi, fazendo jus ao ensino do Senhor de que
“a boca fala do que está cheio o coração” (Lc 6.45).
A terceira era tramar maus intentos em segredo (vv.4,5). O que esses
homens tinham em mente não era uma disputa aberta, honesta e honrada, mas
um golpe pelas costas que fosse indefensável. Para eles, honra nada
significava. O que eles queriam, a qualquer custo, era a vitória sobre o rei.
Por isso, Davi diz (v.4) que eles trabalhavam “para atingir o inocente às
escondidas” (lîrôt bammistarîm tam). A expressão “às escondidas” é
explicada na sequência quando Davi se refere a um ataque não anunciado que
pega seu alvo despreparado e desprotegido: “eles atacam de súbito” (pit’om
ioruhû). Essa exposição figurada, como se os ataques verbais e as tramas de
motim fossem uma guerra literal, recebe um complemento no verso seguinte
(v.5), quando Davi lhes expõe tanto a disposição como a preparação oculta:
“Eles se fortalecem uns aos outros [para praticar] maldade” (yehazzeqû-lamô
davar ra‘). “Eles discorrem a fim de esconder armadilhas” (yesafferû litmôn
môqeshîm).
Por fim, a última ação dos inimigos de Davi foi planejar o mal alheio
(v.6). Os danos que causavam não eram frutos de um momento de
descontrole. Em lugar disso, os danos vinham de planos prévios bem
estruturados, com alvos bem definidos: “Eles inventam injustiças”
(yahpesû-‘ôlot). Isso significa que tais homens buscavam novas maneiras de
atingir seu alvo. O planejamento perverso é nítido em tais palavras. Por fim,
Davi entendeu o risco que corria na mão desses homens, já que sua dedicação
em procurar novas formas de fazer o mal tornavam-nos imprevisíveis e
perigosos: “O íntimo de cada um [deles abriga] um coração insondável”
(weqerev ’îsh welev ‘amoq). Em outras palavras, uma busca pelos seus
intentos concluiria que, quando mais adentrado no interior dos tais, tanto
mais se descobriria quão insondáveis são seus corações.
Que ações terríveis! Quanta decisão e disciplina para fazer o mal. E o pior
é que tais homens não estavam preocupados com os resultados dos seus atos
(v.4): “Eles não temem” (lo’ yiyra’û). Mas deveriam temer. O fato é que suas
ações gerariam reações que eles não desejavam. E a reação que eles deveriam
temer, mas não temeram, era a reação de Deus (vv.7-9). Davi tinha
convicção de que o Senhor reagiria contra aquele mal: “Mas Deus lançará
[suas] flechas; de súbito, eles serão feridos” (wayyorem ’elohîm hets pit’ôt
hayû makkôtam). O resultado final seria dor e lamento a ponto de ocorrer o
que Davi previu: “Todos aqueles que os virem menearão a cabeça”
(yitnodadû kol-ro’eh bam). Para uma ação tão feroz contra o servo de Deus,
há uma reação punitiva severa da parte do soberano, simplesmente porque ele
é justo e fiel. Eis o motivo pelo qual, ainda que fugindo da fúria dos maus, o
salmista já se alegra e confia no Senhor (v.10). E quão verdadeiro tudo isso
foi na história do salmista, visto que o breve sucesso dos seus inimigos foi
seguido da ruína devastadora dos perseguidores (2Sm 18).
Basta olhar a reação de Deus para que, qualquer um que o conheça, se sinta
desencorajado e agir com dissimulação, malícia, difamação e premeditação
de ações que atinjam outrem. A justiça do Senhor, cedo ou tarde, é aplicada
contra a maldade. O arrependimento e a mudança de atitude, nesses casos,
são urgentes. Por outro lado, o servo de Deus sabe que tem um protetor capaz
de defendê-lo e trazer à luz o mal que estava oculto e prestes a ser atirado
contra o indefeso. Isso deve gerar uma grande confiança e consolo nos aflitos
servos do Senhor, além de genuíno louvor e gratidão. Afinal, como no caso
da catedral de Beauvais, a ação insensata de tentar superar os parâmetros
criados por Deus gera uma reação contrária que inverte o sentido da
destruição. A diferença é que, no caso do servo de Deus, enquanto seus
oponentes são derrubados por terra pela sua própria maldade, ele é elevado
acima das mais altas catedrais, envolvido nos braços carinhosos e protetores
do seu Pai.

SALMO 65
A Transbordante Gratidão da Restauração

Uma das grandes necessidades dos hospitais é um banco de sangue. Por


isso, diariamente, pessoas se dirigem aos hemocentros a fim de, em ato
altruísta, fornecer gratuitamente o que irá salvar a vida de outras pessoas.
Mas, dificilmente, a história de algum doador poderá se equiparar à de Rose
McMullin. Por ter um sangue raro, capaz de resistir ao staphylococcus aureus
– uma bactéria que tem desenvolvido resistência à penicilina e que é
responsável por diversas infecções que podem evoluir para uma septicemia –,
ela doou sangue para mais de quatrocentas transfusões em quarenta Estados
americanos. Às vezes, ela estava doando sangue em um extremo dos Estados
Unidos, quando era chamada às pressas para atravessar o país a fim de doar
na outra costa americana. Certa vez, na cidade de Portland, doou sangue para
duas transfusões simultâneas. Essa senhora é considerada um fenômeno no
universo médico.
Apesar de não compreendermos como seu sangue era capaz de resistir
àquela bactéria e como seu corpo podia doar tanto sangue sem que a doadora
corresse ela mesma algum risco, podemos compreender muito bem a gratidão
das centenas de pessoas que ela ajudou a salvar. A maioria delas devia
estampar um grande sorriso no rosto, talvez em meio a olhos marejados, e
dizer: “Graças à bondade daquela mulher, estou hoje vivo”. Que gratidão elas
deviam sentir!
O povo de Israel também deveria viver em gratidão a Deus. Refiro-me à
ação benevolente do Senhor dando o necessário sustento pela colheita
abundante dos agricultores israelitas. Como essa era uma previsão da aliança
mosaica – boa colheita em resposta à obediência à aliança (Dt 28.1-5) e fome
como resposta à desobediência (Dt 28.24 cf. v.15) –, houve vezes, como nos
dias dos profetas Elias (1Rs 17.1; 18.2) e Joel (Jl 1.10) em que não existiram
colheitas e a fome estava por toda parte. Nos dias de Davi, também teve fome
enviada por Deus (2Sm 21.1,14). O Salmo 65 foi escrito no final de uma
dessas ocasiões, quando o pecado do povo fez Deus lhes tirar o sustento.
Diante do perdão divino e da restauração do sustento, o salmo serviu de
instrumento de louvor a Deus pelo perdão e pela colheita, ambos vindos da
sua bondade e do seu poder. Sendo esse um salmo de louvor efusivo, sua
forma chama a atenção dos leitores para elementos do verdadeiro louvor.
O primeiro elemento do verdadeiro louvor é a dependência da graça
restauradora. O primeiro verso do salmo começa com um problema para os
tradutores que leva os exegetas a assumir posições diferentes quanto ao que
Davi teria escrito. Entretanto, o texto trazido pela Bíblia hebraica encontra
paralelos dentro do próprio saltério. Literalmente, Davi diz (v.1): “Para ti o
silêncio é um canto de louvor, ó Deus” (leka dumîyâ tehillâ ’elohîm). Houve
outras ocasiões em que, em meio ao sofrimento, Davi aguardou em silêncio a
salvação de Deus (Sl 62.1). Sofrer o dano em atitude correta, cuja
dependência do Senhor grite em meio ao silêncio, é um modo de glorificar a
Deus. E o sofrimento não era pequeno, pois o próprio salmista chegou a fazer
um voto ao Senhor, assumindo certos compromissos, para que Deus
abrandasse a punição. Agora que o sofrimento se foi, Davi diz: “Um voto a ti
será cumprido” (leka yeshullam-neder).
Entretanto, o verdadeiro louvor brota do perdão que Deus concede aos
pecadores. O pecado realmente estava presente, pelo que Davi confessa (v.3):
“Os atos de iniquidade foram mais fortes do que eu” (divrê ‘aônot gavrû
mennî). Essa era a razão de desventura pela qual os israelitas passaram. Vale
observar que, apesar de Davi confessar seu pecado, o contexto mostra que ele
não era o único envolvido nesse mal, visto que a seguir ele faz referência às
“nossas culpas”. Mesmo assim, a dependência da graça restauradora de Deus
não se mostrou inútil, pois, diz o salmista a Deus: “Tu perdoas nossas culpas”
(pesha‘ênû ’attâ tekafferem). Essa realidade é o motivo inicial da alegria
israelita (v.4): “Feliz é aquele a quem tu escolhes e aproximas a fim de
habitar nos teus átrios” (‘ashrê tivhar ûtqarev yishkon hatsereyka).
O segundo elemento é a devoção ante a soberania de Deus. A primeira
parte do salmo fala do perdão de Deus. Mas quem veria tal ação? Na verdade,
nesse caso, o perdão de Deus foi visto na reversão das forças da natureza que
estavam servindo de punição. Dar ordens à natureza e ela obedecer é algo que
demonstra uma soberania inigualável que somente Deus pode ter. Por parte
do homem, só resta a ele se admirar diante de tal poder e temer o Deus que
age assim (v.5) “Tu nos respondes com feitos temíveis” (nôra’ôt betsedeq
ta‘anenû). Tal temor deve levar, imediatamente, o servo de Deus ao louvor e
à devoção do Todo-poderoso. É exatamente o que acontece no caso do
salmista que se dirige ao Senhor nos seguintes termos: “Ó Deus da nossa
salvação, ó esperança de todos os confins da terra e dos mares distantes”
(’elohê yish‘enû mivtâ kol-qatswê-’erets weyam rehoqîm). Os vv.6-8 somente
completam essa ideia enaltecendo o poder e controle de Deus sobre a criação,
incluindo os grandes poderes da natureza como a firmeza das montanhas e a
força dos mares. A mera reflexão sobre a grandeza e a soberania divina
produz adoração no servo.
O terceiro é a declaração dos feitos divinos. Tão logo Davi tenha refletido
no poder ilimitado do Senhor sobre tudo que existe, ele fala claramente dos
feitos de Deus em resposta ao perdão que concedeu aos israelitas. Se um dos
castigos previstos na aliança mosaica era a seca que gerava fome, Deus
abençoa, agora, com a chuva (v.9): “Tu atentaste para a terra e a regaste”
(paqadta ha’arets watteshoqqeha). A chuva é o meio que leva a uma colheita
abundante. Assim, a sequência narrativa mostra que, se Deus, antes, cortou a
colheita dos agricultores e das suas famílias, agora ele a devolveu: “Tu
asseguraste o cereal deles” (takîn deganam). E ainda (v.10): “Favoreceste a
plantação” (tsimhah tebarek). Com a farta produção do cereal, Deus também
lhes concedeu a vida. Essa é uma bênção muito grande para ficar fora do
louvor. Na verdade, essa gratidão específica pelos feitos divinos em favor dos
homens é um dos obrigatórios elementos do louvor ao Todo-poderoso Pai da
misericórdia.
Finalmente, o quarto elemento do verdadeiro louvor é o deleite do culto
exultante. No final do salmo (vv.12,13), Davi lança mão de um recurso
literário chamado “personalização”, em que objetos inanimados são descritos
como agentes atuantes. Nesse caso, os personagens são os “montes”, os
“pastos” e os “vales”. Davi diz: “Os montes se vestem de júbilo” (gîl geva‘ôt
tahgornâ), “os pastos se cobriram [com] o rebanho” (lovshû karîm hatso’n),
“e os vales se revestiram de cereal” (wa‘amaqîm ya‘atfû-bar). Assim, Davi se
refere à fertilidade agropecuária produzida por Deus. Contudo, a
personificação não termina por aí, pois o salmista completa: “Eles bradam
alegremente, bem como também cantam” (yitrô‘a‘û ’af-yashîrû). Na verdade,
não eram os montes, pastos e vales que estavam alegres e cantavam, mas os
israelitas, a começar pelo próprio salmista – veja-se que, no título do salmo,
Davi o descreve com um “cântico”. Desse modo, percebe-se que o louvor e a
gratidão a Deus sempre se dão em meio à disposição alegre, exultante, e não
em tristeza, enfado e sentimento de fazê-lo obrigado. A adoração a Deus é
um momento de júbilo para os verdadeiros adoradores, os quais foram
abençoados e redimidos por seu Senhor.
Quem pode ser impassível diante da graça de Deus a nós? Quem pode
cultuá-lo fria e mecanicamente depois de ser salvo pelo Filho que foi dado
pelo Pai como sacrifício por nossos pecados? Quem seria ingrato a esse
ponto? A resposta natural a essas perguntas retóricas mostra que, quando os
crentes participam dos cultos ao Senhor Todo-poderoso com indiferença, é
porque se esqueceram do quanto dependem de Deus, do perdão gratuito que
lhes concedeu e por tudo que fez e faz pelos seus. Se o tédio, o egoísmo, a
atitude crítica e a indiferença são as marcas do louvor a Deus, a última coisa
que pode ser dita sobre isso é que se trata de um “verdadeiro louvor”. De
fato, isso se chama “ingratidão”.

SALMO 66
A Gratidão que não se Pode Conter

A Biblioteca do Congresso americano recebeu, certa vez, o pedido de um


registro de direitos autorais de um livro chamado A million thanks. A
publicação trazia escrita a palavra “obrigado” por nada menos que 1 milhão
de vezes. A biblioteca negou o pedido, dizendo: “Não, obrigado”. Também
explicou que a negativa se devia ao fato de que não se podia registrar uma
palavra apenas. A gratidão do “escritor” podia ser verdadeira. Contudo,
mesmo sendo um sentimento aprovado e louvável, o autor do livro parece ter
lançado mão de uma forma irregular de demonstrar sua gratidão.
O mesmo não aconteceu com o escritor do Salmo 66. O salmista passou
por uma grande crise, a qual ele chama de “minha aflição” (v.14), que o levou
a fazer votos (v.13) e clamar a Deus em oração (vv.19,20). Pelo modo como
se expressa no salmo, é provável que tenha sido uma crise nacional, afligindo
todo o povo. Entretanto, essa crise havia cessado por uma ação poderosa do
Senhor. Diante disso, ele procura lançar mão de quase todos os recursos que
dispõe, tanto para glorificar e anunciar a intervenção sobrenatural de Deus
como para demonstrar sua efusiva gratidão (v.3), dizendo: “Quão temíveis
são os teus feitos!” (mah-nôra’ ma‘aseyka). Ainda enaltece o poder de Deus
que se vê (v.5) em “ações temíveis sobre os filhos do homem” (nôra’ ‘alîlâ
‘al-benê ’adam).
Há quem defenda que a composição do salmo se deu após a libertação
poderosa dos israelitas diante do poderoso exército de Senaqueribe, quando
185 mil soldados assírios amanheceram mortos, forçando o inimigo a se
retirar (2Rs 19.35; Is 37.36). Entretanto, qualquer poderosa libertação
nacional – preferencialmente pré-exílica (devido à forma do título) – perfaz, a
princípio, um pano de fundo adequado para o salmo, como a destruição, nos
dias de Josafá, de três exércitos reunidos contra Judá (amonitas, moabitas e
edomitas) sem que os israelitas lutassem (2Cr 20.22-24). O certo é que a
libertação divina estava, de certo modo, ligada à oração do salmista. Segundo
este (v.18), se seu coração abrigasse pecado, Deus não teria libertado o país –
o que sugere que o salmista seja o próprio rei ou alguém de preeminência
nacional. O fato é que, independente da indefinição sobre autoria e data, o
contexto geral e a mensagem do salmo estão patentes.
A ocasião vislumbra uma ação divina que, a princípio, sobrecarregou os
israelitas (v.10): “Tu nos provaste, ó Deus” (behantanû ’elohîm). A intenção
de Deus parece ficar clara quando, em seguida, sua ação é comparada à
purificação de metais preciosos pelo fogo, apontando para uma purificação de
pecados em Israel: “Tu nos refinaste como o refinar da prata” (tseaftanû
kitsraf-kasef). Outra tradução seria: “Tu nos purificaste assim como se
purifica a prata”. O resultado final é pureza, mas não sem antes se aplicar o
calor intenso. Assim foi com os israelitas. Isso foi feito por meio de um
exército inimigo (v.12): “Tu fizeste homens cavalgarem sobre nossas
cabeças” (hirkavta ’enosh lero’shenû).
Porém, Deus não queria vê-los destruídos, mas purificados. Assim, lhes
deu a provação na medida correta, pelo modo como o salmista (v.9) o chama
de, literalmente, “aquele que coloca nossa alma na vida” (hassam nafshenû
bahayyiym). Como “preservador da vida” – sentido da expressão anterior –, o
salmista revela a ação de Deus na afirmação da sua superioridade em relação
aos inimigos (v.3): “Pela grandeza da tua força os teus inimigos falham diante
de ti” (berov ‘uzzeka yekahashû leka ’oyeveyka). Na verdade, Deus é o
controlador da história e das nações (v.7): “Teus olhos vigiam as nações”
(‘ênayw baggôyim titspeynâ).
Diante da grande libertação, toda a nação está tremendamente feliz e o
salmista se vê, não apenas devedor, mas desejoso de oferecer a Deus todo
louvor com toda sua força (v.1): “Deem gritos de alegria a Deus”, diz ele, ou
“levantem as vozes para louvar a Deus” (harî‘û le’lohîm). Esse convite ou
essa convocação é feita, de maneira hiperbólica, a “toda Terra” (kol-
ha’arets). Diante de todo o louvor que Deus merece e de toda a decisão de
louvá-lo, o salmista oferece, nos vv.13-20, três atitudes presentes nas pessoas
cuja gratidão a Deus não se pode conter.
A primeira atitude é a devoção cultual. Isso significa que o salmista não
cultuaria o Senhor mecanicamente. Ao contrário, ele o faria com inteireza de
coração em todos os enfoques do louvor devido ao Senhor. Para começar, diz
ele (v.13): “Entrarei em tua casa com holocaustos. Cumprirei meus votos para
contigo” (’avô’ bêteka be‘ôlôt ’ashallem leka nedaray). Com isso, o salmista
afirma sua fidelidade no relacionamento com Deus, fato evidenciado no culto
público e no cumprimento dos compromissos que ele assumiu com o Senhor.
Ele também diz (v.15): “Oferecerei a ti holocaustos de animais gordos junto
com aroma de carneiros [queimados]. Sacrificarei um novilho junto com
cabritos” (‘olôt mehîm ’a‘aleh-lak ‘im-qetoret ’êlîm ’e‘eseh baqar
‘im-‘attûdîm).
A princípio, essa lista de sacrifícios parece não dizer muito. Mas, ao
identificar os elementos presentes no texto, é possível notar, na primeira
parte, a menção de “holocaustos” (‘olôt) – ofertas totalmente queimadas. Na
segunda, a menção de um novilho oferecido com cabritos remete às “ofertas
pacíficas” – ofertas que, depois de oferecidas a Deus, eram comidas pelos
sacerdotes e pela família do ofertante – das tribos israelitas na consagração do
tabernáculo (Nm 7.17, 23, 29, 35, 41, 47, 53, 59, 65, 71, 77, 83, 88) pela
ocorrência das palavras hebraicas para “novilho” e “cabritos” associadas no
mesmo texto. A união desses dois tipos de culto sacrificial em Israel nos leva
ao desejo de Deus de ter celebrada a “memória do seu nome” (Ex 20.24) em
meio à fidelidade cultual (Nm 29.39). Em outras ocasiões de alegria e
devoção a Deus em Israel, vê-se que tais ofertas lhe foram apresentadas (Ex.:
2Sm 6.13,17-19; 1Cr 16.1-3). Assim, pela lista de sacrifícios propostos, o
salmista garante que adorará o Senhor no culto público com “coração grato,
alegre e dedicado”.
A segunda atitude é o testemunho público. O salmista faz um convite
aberto e amplo (v.16), dizendo: “Venham e ouçam, ó todos os que temem a
Deus, e eu anunciarei o que ele fez por mim” (lekû-shim‘û wa’asafferâ kol-
yir’ê ’elohîm ’asher ‘asâ lenafshî). O escritor quer anunciar as grandezas de
Deus vistas na suas ações. Por isso, já no começo do salmo, lembrou de feitos
grandiosos de Deus a fim de comparar a atuação do passado com a que ele
presenciou com seus olhos. Assim, ele diz (v.6) que Deus “converteu o mar
em terra seca; eles passaram no rio a pé” (hafak yam leyavvashâ bannahar
ya‘avrû beragel). Essa é uma clara menção do poder de Deus demonstrado
nos feitos miraculosos de abrir o mar Vermelho para salvar os israelitas do
exército egípcio (Ex 14.15-31) e de parar o curso de água do rio Jordão para
Israel iniciar a conquista de Canaã (Js 3.12-17). Tendo recordado os milagres
do passado, o salmista anuncia a resposta positiva do Senhor aos seus
clamores (v.19): “Deus ouviu minha oração; ele escutou a voz da minha
súplica” (’aken shama‘ ’elohîm hiqshîv beqôl tefillatî). Esse é um fato que não
pode ser escondido diante da gratidão que o escritor do salmo sente.
Finalmente, a terceira atitude é a oração dependente. O salmista volta a
falar da resposta divina aos seus clamores e louva seu nome por isso (v.20):
“Deus seja bendito, pois não rejeitou minha oração” (barûk ’elohîm ’asher
lo’-tefillatî). Apesar de a oração ser assunto dos versículos anteriores, o
encerramento do salmo faz transparecer a razão pela qual Deus atende a
súplica de homens pequenos e falhos: “Pois não rejeitou a minha oração, nem
afastou de mim o seu amor” (’asher lo’-tefillatî wehasdô me’ittî). Esse “amor”
(hesed) pode ser traduzido como “graça”, “bondade”, ou “misericórdia”. Mas
sua ênfase é sobre a ideia de um “amor fiel” que não abandona os seus. É o
amor que, movido por graça plena, busca o benefício alheio mesmo se – ou
principalmente se – esse benefício não pode ser retribuído à altura. Essa é a
razão da resposta positiva de Deus libertando a nação do salmista e o motivo
pelo qual este depende de Deus para ouvi-lo e para abençoá-lo. Esse é um dos
maiores motivos de gratidão que podem existir diante do Deus santo.
Que bom poder mostrar a Deus toda a nossa gratidão e louvor diante de
todos pelo bem que ele nos tem feito! Melhor ainda é fazê-lo de todo o
coração em todo o tempo e não apenas quando Deus tem de corrigir os erros,
refinando-nos assim como o fogo refina a prata. Que possamos, ó povo de
Deus, viver constantemente em estado de adoração e gratidão que não se
pode conter.

SALMO 67
A Ação que Beneficia o Mundo

Assim como eu, minha mãe também é dentista. Ela voltou a estudar depois
que os filhos já tinham certa idade e se formou com quarenta anos de idade.
Cursamos odontologia na mesma universidade em que iniciei meu curso no
ano seguinte ao da formatura da minha mãe. Desse modo, tivemos os
mesmos professores. Um deles tinha um modo de avaliação que envolvia um
exame oral. O problema é que a matéria em si já era complicadíssima.
Juntando a isso o fato de que o professor era um tanto amedrontador, o
resultado eram alunos em pânico antes do exame oral e vários deles
chorando, pois frequentemente se esqueciam do que haviam estudado devido
ao nervosismo do momento.
Depois de algumas dessas provas – ou “provações” –, minha mãe procurou
o professor e argumentou com ele sobre os efeitos que seu sistema de
avaliação produzia nos alunos e como, diante de tanto pânico, a avaliação não
refletia o real conhecimento do aluno. Por fim, o professor aboliu esse jeito
de avaliar os alunos. Eu não me beneficiei dessa mudança, pois no ano em
que cursei aquela matéria o professor voltou a aplicar as chamadas orais. De
qualquer modo, todos os alunos até a minha turma foram beneficiados pela
iniciativa da minha mãe.
O Salmo 67 também fala de uma atuação cujos benefícios se estendem a
outros. Mas não se trata de uma turma; trata-se do mundo. Assim como no
Salmo 65, a ocasião é a colheita farta vinda como suprimento de Deus ao seu
povo (v.6): “A terra deu sua safra” (’erets notnâ yevûlah). O motivo da alegria
é a colheita, mas a fonte da colheita e da alegria é o próprio Deus: “Deus, o
nosso Deus, nos abençoa” (yevarkenû ’elohîm ’elohênû). Sendo assim, essa
poesia é, conforme diz seu título, uma alegre “música” (mizmôr), um
“cântico” (shîr) de louvor a Deus pelo suprimento.
Esse assunto não é novidade a essa altura do livro de Salmos. Entretanto,
há um fator que torna singular esse capítulo: o modo como, por meio da
bênção de Deus ao povo de Israel, há benefício para outros, a saber, as nações
da Terra. Esse enfoque explica porque o salmista, por duas vezes,
vislumbrando a colheita dos agricultores israelitas, se refere aos homens de
todas as nações e os conclama a adorar o Deus soberano (vv.3,5): “Aclamem-
te os povos, ó Deus, aclamem-te todos os povos” (yôdûka ‘ammîm ‘elohîm
yôdûka ‘ammîm cullam). Apesar de não parecer em um primeiro momento, a
ação de Deus em benefício do suprimento de Israel é motivo de bênção para
pessoas do mundo todo. Assim, esse salmo evidencia três efeitos da bondade
de Deus em relação a Israel que abençoa o mundo, o qual, pela verdade e
pelo conhecimento, pode se tornar alvo das maiores benesses do Senhor.
O primeiro efeito produzido pela demonstração da bondade de Deus é
tornar sua salvação conhecida ao mundo. O salmista inicia o salmo
expressando seu desejo (v.1): “Que Deus mostre seu favor para conosco e nos
abençoe” (’elohîm yehannenû wîvorkenû). Esse é o pedido geral de bênçãos
vindas da graça de Deus. Porém, em um salmo alegre por causa da colheita, é
claro que o salmista tem em mente a bênção dada por Deus enchendo os
celeiros do povo a fim de garantir sua subsistência. Pensando nisso, o
salmista vê esse ato gracioso de Deus como uma oportunidade de tornar seu
caráter conhecido dos homens: “Que ele faça sua face resplandecer sobre
nós” (ya’er panayw ’ittanû). Outra maneira de dizer isso seria: “Que o Deus
invisível se mostre aos homens na sua atuação favorável a nós”.
O desejo do salmista é justificado. Ele deseja que o conhecimento de Deus
não fique restrito apenas aos israelitas de fala hebraica, mas a todos os povos.
Ele deseja de coração que as nações conheçam a salvação que vem de Deus
conhecendo o próprio Deus que salva (v.2): “A fim de que o teu caminho seja
conhecido na Terra e, em todos os povos, a tua salvação” (lada‘at ba’arets
darkeka bekol-gôyim yeshû‘ateka). Eis um dos propósitos divinos ligados à
eleição de Israel. Deus escolheu um povo por meio de quem sua Palavra, seu
caráter e o Evangelho da salvação fossem manifestos e anunciados pelo
mundo todo. Deus escolheu a nação israelita para se revelar aos homens e
para trazer salvação.
O segundo efeito é garantir uma direção justa para o mundo. Depois de
convocar os povos para a adoração ao Senhor (v.3), o salmista explica a razão
para o efusivo louvor (v.4): “Que os povos celebrem e deem brados de
louvor, pois tu julgas as nações com retidão e guias os povos na Terra”
(yismehû wîrannenû le’ummîm kî-tishpot ‘ammîm mîshôr ûle’ummîm ba’arets
tanhem). A segunda cláusula desse versículo traz um problema para os
exegetas, pois pode ser compreendida, como aqui traduzida, na forma de uma
ação presente e contínua – “tu julgas... guias”. Isso revela o controle
soberano de Deus sobre a História e o modo justo de tratar aqueles que o
temem e punir os que desprezam o bem, garantindo que o mal não cresça sem
limites. Porém, é possível e teologicamente aceitável traduzir tais ações no
tempo futuro – “tu julgarás... guiarás” –, aludindo à vinda do Messias para
reinar com justiça e poder, trazendo ao mundo paz e retidão (Is 2.1-4; Mq
4.1-4). Problema para os exegetas, mas não para as pessoas que, vendo o
poder de Deus no sustento de Israel, passam a ter convicção e esperança de
que Deus é poderoso para, agora, refrear o mal e, no futuro, debelá-lo
definitivamente no reinado anunciado e prometido do Deus Filho.
Por fim, o terceiro efeito é inspirar um sentimento de temor no mundo.
A observação atenta da atuação poderosa e graciosa de Deus, sustentando o
povo que ele chamou para si, não permite que se ignorem a grandeza de Deus
e a veracidade das suas promessas e caminhos. Eis a razão porque, muitas
vezes, as pessoas se curvam em devoção ao Senhor, Deus do universo. O
salmista não está alheio ao efeito que a atuação de Deus tem sobre o coração
dos homens (v.7): “Que Deus nos abençoe e, assim, temam a ti todas as
extremidades da Terra” (yeborkenû ’elohîm weyiyre’û ’otô kol-’afsê-’arets).
É nítida a conexão entre a ação misericordiosa e soberana de Deus para
com Israel e o temor que deve ser produzido no mundo pela observação do
ato. O que precisa ficar claro é como esse temor liga o homem perdido ao
Deus salvador. Em primeiro lugar, significa reconhecer a divindade,
singularidade e primazia do Senhor sobre tudo que existe. Em segundo, estar
convicto de que, pela justiça divina, há punição para quem não puder
comparecer plenamente inocente em seu tribunal. Por último, crer que só ele
pode conceder o perdão que homem pecador necessita para ser salvo do juízo
e ser recebido nos braços calorosos e amáveis do Pai eterno: “Se observares,
Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá? Contigo, porém, está o
perdão, para que te temam” (Sl 130.3,4).
Diante disso, quem duvidará da sabedoria de Deus em chamar um povo por
meio de quem ele se revelasse ao mundo como Deus eterno e poderoso e
como Pai amoroso, compassivo e salvador? Quem defenderá a ideia de que
Deus foi frustrado pelo modo como a história do Antigo Testamento se
desenhou? Quem ignorará que tudo que Deus fez no passado foi para
alcançar homens e mulheres perdidos ao redor do globo em todas as eras?
Quem poderá desprezar um amor tão grande e a oferta da gratuita salvação
que vem pela fé no sacrifício do Senhor Jesus no Calvário? Bem disse o
apóstolo Paulo: “Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi
escrito a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras,
tenhamos esperança [...] para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 15.4,6).

SALMO 68
Os Efeitos da Presença de Deus

Uma das coisas mais cansativas que conheço é mudança de residência.


Para que ela aconteça é necessário um bom tempo de preparação, esforço
físico imenso para carregar e descarregar o caminhão de mudanças e uma boa
dose de paciência e perseverança para arrumar tudo na nova casa. Essa
arrumação gasta muito tempo, envolve chatas e delicadas instalações de
armários de cozinha, prateleiras, quadros e vasos e, ainda, a disposição de
habitar precariamente até que tudo esteja em ordem. Por isso, as mudanças
são sempre marcadas pela alegria de iniciar uma nova fase da vida e pelo
desânimo de ter de passar por todo o processo de mudança.
O Salmo 68 foi composto durante uma mudança. Mas quem estava
mudando não era uma pessoa, mas a “arca do testemunho”. Deus ordenou
que ela fosse construída para ficar dentro do tabernáculo, no lugar chamado
“santo dos santos” (Ex 26.33). Mas, devido ao pecado dos filhos de Eli e da
negligência do pai, a arca foi tomada pelos filisteus (1Sm 4.11). Ao ser
devolvida, ela ficou na cidade de Quiriate-Jearim (1Sm 7.1) desde os dias da
adolescência de Samuel até o início do reinado de Davi em Jerusalém – cerca
de cem anos. A primeira tentativa de levar a arca a Jerusalém não teve
sucesso, pois Davi preparou um meio de transporte irregular de acordo com a
lei (2Sm 6.1-11). Mas, depois de três meses abençoando sua nova morada, a
arca foi transportada do modo prescrito por Deus e chegou a Jerusalém em
meio a uma explosão de alegria (2Sm 6.12-19; 1Cr 15.25-16.3).
Quando a arca já estava na tenda que Davi preparou para ela, ele ordenou
que se cantasse algo que se parece primeiro com o Salmo 105 (1Cr 16.8-22),
depois com o Salmo 96 (1Cr 16.23-33) e termina de um modo que lembra o
Salmo 106.47,48 (1Cr 16.35,36). Porém, ao que tudo indica, o Salmo 68 foi
composto durante a viagem da arca para Jerusalém. Percebe-se isso vendo
que o texto começa com a declaração feita por Moisés na primeira viagem da
arca (Sl 68.1 cf. Nm 10.35). Em segundo lugar, Davi ambienta o salmo em
uma comitiva que chamou de “o cortejo do meu Deus” (halîkôt ’elî).
Lembrando que a arca simbolizava a presença e a habitação de Deus entre o
povo da aliança, esse cortejo representava a habitação divina no lugar correto
e com a adoração adequada. Foi um dia realmente marcante, digno de uma
composição como o Salmo 68. Por isso, podem-se ver alguns efeitos da
presença de Deus entre seu povo.
O primeiro efeito é o estabelecimento da justiça (vv.1-6). O início da
marcha da arca (v.1) se dá ao som do brado “Deus se levanta” (yaqûm
’elohîm). Esse levantar, segundo o texto, promove a derrota dos inimigos
(v.2): “Como a cera se derrete diante do fogo, assim perecem os ímpios
diante de Deus” (kehimmes dônag miffenê-’esh yo’vedû resha‘îm miffenê
’elohîm). A razão para o injusto perecer diante de Deus é a atuação divina de
conter o mal durante a História e puni-lo definitivamente ao final dela. Por
sua vez, a presença de Deus não é temível, mas aprazível, para os que foram
por ele justificados (v.3): “Mas os justos se alegram, eles exultam na
presença de Deus” (wetsaddîqîm yismehû ya‘altsû lifnê ’elohîm). Por causa da
justiça promovida pelo Senhor, o salmista louva o Senhor (v.4), o qual
protege os desvalidos e oprimidos pelos injustos, pelo que Davi o chama (v.5)
de “pai de órfãos e juiz de viúvas” (’avî yetômîm wedayyan ’almanôt). Assim,
a justiça de Deus é bem distribuída (v.6): “Deus assenta os abandonados”
(’elohîm môshîv yehîdîm) – no sentido de dar uma moradia segura a quem não
tem –, “mas os rebeldes habitam em terra árida” (’ak sôrarîm shôknû tsehîhâ).
O segundo efeito da presença de Deus é a concessão da graça (vv.7-10).
Davi, lembrando da jornada israelita no deserto seco (v.7), recorda também
da concessão do que era vital (v.8): “Escorreram águas vindas da presença de
Deus” (shamayim notfû miffenê ’elohîm). Para expressar o cuidado bondoso
de Deus, Davi usa a figura de uma copiosa chuva vinda de Deus para matar a
sede de Israel, herança do Senhor (v.9): “Tu verteste, ó Deus, chuva
abundante em tua herança. Quando ela estava exaurida, tu a firmaste”
(geshem nedavôt tanîf ’elohîm nahalateka wenil’â ’attâ kônantah). Assim, o
impossível aconteceu: Israel conseguiu habitar no deserto por quatro décadas.
Suas frequentes murmurações desde que deixaram o Egito – dez vezes em
cerca de um ano (Nm 14.22) – certamente os desqualificavam como
merecedores do sustento diário. Mas foi exatamente aí que agiu a graça de
Deus vinda da sua presença no meio daquela nação (v.10): “Teu rebanho
habitou ali” (hayyatka yoshvû-bah). O fato de os israelitas terem morado no
deserto tanto tempo e sobrevivido pela ação graciosa de Deus revela, por si
só, o caráter do Senhor: “Tu abasteceste o necessitado pela tua bondade, ó
Deus” (takîn betôvatka le‘anî ’elohîm).
O terceiro é o anúncio da primazia divina (vv.11-16,21-23). Davi
recorda, ainda, da conquista de Canaã por ordem de Deus (v.11). O resultado
foi uma incrível vitória sobre os cananitas (v.12): “Reis de exércitos fogem e
continuam fugindo” (malkê tseva’ôt yiddodûn yiddodûn). O que vem a seguir
é de difícil interpretação (v.13), mas parece que o salmista se refere ao
enriquecimento dos israelitas à custa do despojo obtido nas vitórias
promovidas por Deus. Tudo isso acontece porque o poder de Deus é maior
que o dos adversários do seu povo (v.14), pelo que é chamado de “Todo-
poderoso” (shadday). Essa ideia combina com a citação subsequente do
“Zalmon” (tsalmôn) – um monte próximo a Siquém – e com a menção da
palavra “monte” (har) seis vezes nos vv.15,16. Os montes representavam
refúgios seguros para fortalezas impenetráveis e o local de habitação e
adoração dos deuses – alguns deles eram tão altos que tinham geleiras.
Assim, o que o salmista faz é mostrar a primazia de Deus quando se faz
presente entre seu povo que, sem dificuldades, derruba as fortalezas inimigas
e frustra as falsas esperanças dos deuses desses povos. Por isso, só o monte
em que o Senhor se faz presente – Sião – é vitorioso no final (v.16): “Ó
escarpados montes, por que invejais o monte que aprouve a Deus habitar?”
(lammâ teratsedûn harîm gavnunîm hahar hamad ’elohîm leshivtô).
O quarto é a salvação do seu povo (vv.17-23). A próxima memória de
Davi vem do período dos juízes no qual Israel sofreu opressão nas mãos de
seis povos vizinhos. Essa percepção se dá no v.18, em que o salmista parece
ter em mente a ordem de Débora a Baraque, em seu cântico (Jz 5.12):
“Captura os teus cativos” (shaveh shevyeka). Essa virada militar – vencer o
povo que antes vencia e capturar quem antes era o autor de capturas – é
atribuída a Deus (v.18): “Tu levaste cativo os cativos” (shavîta shevî). Assim,
os reinos opressores que cobravam impostos e obediência das tribos israelitas
foram agora despojados e tributados por Deus: “Tomaste dádivas dos
homens, até entre os rebeldes, para [ali] habitarem, ó Senhor Deus” (laqahta
mattanôt ba’adam we’af sôrerîm lishkon yah ’elohîm). O jugo dos inimigos
representou salvação para o povo da aliança (vv.19,20), pelo que diz o
salmista (v.20): “Nosso Deus é o Deus que salva e a Javé, o Senhor, pertence
a libertação da morte” (ha’el lanû ’el lemôsha‘ôt ûlêyhwh ’adonay lammawet
tôtsa’ôt). Essa salvação se deve à presença de Deus com seu povo (v.17): “O
Senhor está com eles” (’adonay bam).
O ultimo efeito da presença de Deus é a adoração digna da glória divina
(vv.24-35). Com as bênçãos do passado vívidas na mente, o salmista participa
do transporte da arca para o monte Sião, em Jerusalém (v.24): “As pessoas
veem o teu cortejo, ó Deus, o cortejo do meu Deus, meu rei, em santidade”
(ra’û halîkôteyka ’elohîm halîkôt ’elî malkî baqqodesh). Esse cortejo segue
em meio ao louvor alegre e reverente (v.25). Assim, as tribos de Israel
bendizem o Senhor e participam do transporte da arca que representa sua
presença no meio do povo (vv.26,27). Esse louvor ao Altíssimo é tão
merecido que pessoas de outros reinos prestam culto ao Senhor no local da
sua habitação (vv.28-31). Por isso, o salmista conclama (v.32): “Cantem a
Deus, ó reinos da Terra” (mamlekôt ha’arets shîrû le’lohîm). A razão da
ordem é que a soberania de Deus (v.33) se vê presente em Israel (v.34), pelo
que o salmista encerrou com a frase mais lógica diante da glória do Deus
presente entre os homens (v.35): “Bendito seja Deus” (barûk ’elohîm).
Que glorioso deve ter sido caminhar ao lado do cortejo de Deus rumo a
Jerusalém em meio à linda solenidade! Que sensação devem ter sentido os
israelitas ao ver a arca entrando na tenda preparada para ela em meio a tantas
aclamações! Porém, apesar de não termos hoje, como igreja de Cristo, uma
arca e um tabernáculo que marquem a presença de Deus no meio do seu
povo, temos a mesma certeza da presença do Todo-poderoso por onde quer
que formos (At 7.48,49; 17.24 cf. 1Rs 8.27; Sl 139.7-10); temos a promessa
de Cristo de que estaria conosco todos os dias até o fim (Mt 28.20); e somos
habitação do próprio Espírito Santo (1Co 6.19; Ef 1.13,14). Sendo assim, os
mesmo efeitos da presença de Deus devem se repetir em nossa vida, tanto de
modo individual como coletivo. Portanto, que haja realmente em nós
esperança de justiça divina e um proceder justo da nossa parte, confiança na
graça maravilhosa de Deus, defesa pública da supremacia de Deus, fé
salvadora unida ao evangelismo dedicado e, finalmente, uma adoração tão
sincera, piedosa e dedicada de maneira que o mundo sem Cristo fique
surpreso por ver a mudança de vida de homens pecadores e a glória de Deus
louvada por bocas pequenas demais para glorificá-lo o bastante. Afinal, ele
realmente está presente entre nós.

SALMO 69
Reações das Pessoas Maltratadas

Nessa semana, li um pequeno texto que me deixou pensativo. Ele contava


que, por volta das 3 horas da madrugada, um professor universitário atendeu
seu telefone e ouviu: “Aqui é o seu vizinho. Seu cachorro está latindo e não
me deixa dormir”. O professor agradeceu e desligou o telefone. No dia
seguinte, no mesmo horário da madrugada, o vizinho, sonolento, atendeu ao
telefone. “Aqui é o professor. Eu só queria dizer que eu não tenho cachorro”.
Além do óbvio humor irônico contido nessa pequena história, a reação do
professor me deixou pensativo. Que tipo de sentimento o motivou a “dar o
troco” ao vizinho? Raiva, indignação, vingança? Apesar de ser uma resposta
branda, a ironia raras vezes é ineficaz para atingir profundamente o coração
de alguém. Por outro lado, há pessoas que, diferente do professor, reagem
intensa e imediatamente. Por fim, cada um tem seu modo de reagir a um
ataque, perseguição ou maltrato.
Davi não era diferente. O Salmo 69 foi escrito em uma situação de uma
pressão insuportável. Não obstante partes do salmo serem aplicadas a Jesus
(v.3 cf. Jo 19.28; v. 4 cf. Jo 15.25; v.9 cf. Jo 2.17 e Rm 15.3; v.21 cf. Mt
27.34,48), o contexto não trata do Deus encarnado, mas do rei Davi quando já
reinava em Jerusalém – haja vista sua menção a Sião (v.35). Diferente de
Jesus, o salmista era um homem pecador, pelo que se vê nas expressões (v.5)
“minha culpa” (’iwwaltî) e “meus delitos” (’ashmôtay). Sua situação quando
escreveu o salmo era de sofrimento (vv.1-3,17,29) por causa de uma
perseguição atroz (vv.4,14,18) na qual ele foi alvo de acusações, fofocas e
chacotas (vv.4,7,11,12,19). É nítido o fato de que o salmo não descreve
exclusivamente a situação de Jesus, pois, diferente do Mestre que perdoa e
ora por seus inimigos (Lc 23.34 cf. Mt 5.44), Davi deseja punição e juízo para
seus perseguidores (vv.22-28). Além disso, um trecho do salmo também foi
aplicado, no Novo Testamento, a Judas Iscariotes (v.25 cf. At 1.20).
Portanto, apesar do amplo uso desse salmo no Novo Testamento, seu
enfoque primário envolve a própria situação de vida do rei Davi. Nesse
sentido, ao ser perseguido ferozmente pelos inimigos, ele reage de maneiras
comuns aos homens, nem todas aconselhadas por Cristo, mas certamente
conhecidas de todos nós. Assim, o salmo apresenta cinco reações comuns aos
homens que são maltratados.
A primeira reação do homem maltratado é supervalorizar o sofrimento.
Não há dúvidas de que Davi estava sofrendo injustamente (v.4) — por isso,
chama seus inimigos de “aqueles que me odeiam sem motivo” (son’ay
hinnam). Entretanto, essa situação não era nova para o rei que já fora o
general fugitivo do reino de Saul. Porém, poucas vezes vemos o profícuo
salmista analisar sua situação de maneira tão pessimista como nesse salmo
(v.2): “Estou imerso no lodo profundo, onde não há apoio para os pés. Acho-
me nas profundezas das águas e a correnteza me afoga” (tava‘tî bîwen
metsûlâ we’ên ma‘omad ba’tî bema‘amaqqê-mayim weshivvolet shetafotnî).
Até seu clamor é dramático, temperado com uma pitada de desesperança e de
impaciência (v.3): “Estou cansado de tanto clamar. Minha garganta está
ardendo. Meus olhos estão nublados de tanto esperar pelo meu Deus”
(yaga‘tî beqor’î nihar gerônî calû ‘ênay meyahel le’loay). Para reações como
essa, Jesus nos informa que o sofrimento faz parte da nossa vida e afirma que
eles não excluem obrigatoriamente a paz e o ânimo: “Estas coisas vos tenho
dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende
bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
A segunda reação é sentir-se ofendido pelos comentários. Mesmo o rei
servindo ao Senhor, o que era dito injustamente a seu respeito lhe causava
constrangimento diante das pessoas (v.7): “Por ti eu arco com insultos, a
vergonha cobre meu rosto” (‘aleyka nasa’tî herpâ kissetâ kelimmâ panay).
Normalmente, ataques como esse por causa da fidelidade a Deus são
recebidos como um elogio. Mas, depois de certo tempo sendo atacadas,
ofendidas e desprezadas, as pessoas começam a sentir mais profundamente as
feridas causadas pela língua destruidora (v.10): “Eu chorei e fiquei sem
comer e isso gerou mais escárnios contra mim” (wa’evkeh batsôm nafshî
wattehî laharafôt lî). Por isso, é fácil notar a amargura de Davi ao dizer
(v.12): “Os que se assentam à porta [da cidade] cochicham a meu respeito e
sou o tema das cantigas dos beberrões” (yasîhû bî yoshvê sha‘ar ûnegînôt
shôtê shekar). Esse é um sofrimento difícil de ser desconsiderado. E seria
impossível fazê-lo sem o encorajamento das palavras de Jesus: “Bem-
aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos
perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e
exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mt 5.11,12a).
A terceira reação é ser impaciente na oração. Davi ora a Deus – quanto a
isso não há dúvidas (v.16): “Responda-me, ó Senhor, pois teu amor é
bondoso. Atenda-me conforme a grandeza da tua compaixão” (‘anenî yehwâ
kî-tôv hasdeka kerov rahameyka peneh ’elay). Porém, o hábito de buscar a
Deus é sempre cultivado pelo salmista em meio à paciência e esperança,
como se vê em outros salmos: “Em ti, força minha, esperarei; pois Deus é
meu alto refúgio” (Sl 59.9). Contudo, no Salmo 69, a oração de Davi assume
um caráter pouco frequente em seus poemas e cânticos (v.17): “Responda-me
rápido” (maher ‘anenî). Essa urgência que a pessoa maltratada tem de ver
sua oração atendida pode fazê-la, em seguida, achar que a oração é inútil em
vez de simplesmente entender que Deus tem propósitos ao demorar para
atender as orações. O perigo é que a “urgência da oração” pode se
transformar em “ausência de oração”. Porém, a lição do Mestre foi em outro
sentido, ensinando a “orar sempre e nunca esmorecer” (Lc 18.1). O apóstolo
Paulo, homem maltratado por causa do Evangelho, escreveu: “Regozijai-vos
na esperança, sede pacientes na tribulação, na oração, perseverantes” (Rm
12.12).
A quarta é ressentir-se pelo silêncio dos amigos. Diferente de outras
ocasiões em que os inimigos do rei tramavam às ocultas (Ex.: Salmo 64), as
circunstâncias do Salmo 69 parecem envolver uma perseguição aberta (vv.10-
12). Nesse momento, quando Davi mais precisou de apoio, consolo e
encorajamento, ele viu sua esperança desvanecer, pois não achou quem se
postasse ao seu lado (v.20): “Eu esperei por compadecimento, mas não houve
nenhum. E por confortadores, mas não encontrei ninguém” (’aqawweh lanûd
wa’ayin welamnahamîm welo’ matsa’tî). É com coração pesado que ele
constata (v.8): “Tornei-me um estranho para os meus irmãos e um estrangeiro
para os filhos da minha mãe” (mûzar hayîtî le’ehay wenokrî livnê ’immî). Eis
a importância de o autor de Hebreus dizer-nos que Jesus se compadece das
nossas fraquezas (Hb 4.15) e de o próprio Jesus nos garantir: “Eis que estou
convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.20).
A última reação é nutrir o desejo de vingança. Apesar de Davi ter se
negado a fazer mal a Saul quando esse o perseguia (1Sm 24.6; 26.9), seus
salmos contêm frequentes pedidos para que Deus o livre dos perseguidores
julgando-os como homens injustos. Porém, nesse salmo, Davi é
tremendamente enfático e longo nessa solicitação (vv.22-28). Ele quer que o
castigo seja derramado por completo (v.24): “Derrama o teu furor sobre eles e
que a tua ardente ira os atinja” (shefak-‘alêhem za‘meka waharôn ’afka
yashîgem). Seu anseio é que não haja perdão nem graça de Deus para eles
(v.27): “Acrescenta culpa sobre as culpas deles e não se acerquem eles da tua
justificação” (tenâ-‘aôn ‘al-‘aônam we’al-yav’û betsidqateka). Por fim, seu
desejo de vingança se expressa de maneira chocante (v.28): “Que seus nomes
sejam apagados do livro dos vivos e que eles não sejam inscritos com os
justos” (yimmahû missefer hayyîm we‘im tsaddîqîm ’al-yikkatevû). Essas
colocações são tão sombrias que o final do salmo, de caráter dependente e
reverente do adorador ao seu Deus (vv.30-36), não consegue apagar o tom
iracundo que o salmo assumiu. Entretanto, nosso Senhor nos ensinou a
subjugar esse tipo de sentimento, mesmo quando somos maltratados, a fim de
dar lugar a um amor que só pode vir do próprio Deus: “Digo-vos, porém, a
vós outros que me ouvis: amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos
odeiam; bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos caluniam” (Lc
6.27,28).
Que contradição há entre as nossas reações naturais e as reações ensinadas
e esperadas do novo homem que “está sendo renovado pelo conhecimento à
imagem do seu Criador” (Cl 3.10 – NVI). Como são diferentes as maneiras
de ver a vida e o sofrimento entre os homens terrenos e aqueles cuja “pátria
está nos céus” (Fp 3.20). Porém, nessa luta interior somos encorajados a
olhar as dores dessa vida como instrumentos de Deus para nos edificar.
Assim, as pessoas que sofrem maus tratos devem pensar como o apóstolo
Paulo: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades,
nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou
fraco, então, é que sou forte” (2Co 12.10).

SALMO 70
O Valor da Memória
Eu tenho um amigo alemão com quem gosto muito de conversar. Não é
sempre que podemos gastar algum tempo conversando, mas, sempre que isso
acontece, aprendo algo novo e relevante para minha vida. Em nossa última
conversa, ele me disse ter vergonha a respeito dos rumos e dos resultados da
Segunda Guerra Mundial para o seu país. A princípio, não compreendi muito
bem o sentimento do meu amigo, principalmente em relação ao “holocausto”,
visto que tudo aquilo ocorreu em outra geração e por mãos de uma minoria
dominante. Porém, ele me explicou que isso é resultado de sua educação no
ensino fundamental, visto que as professoras ensinam essa parte da história
alemã como motivo de vergonha para o povo com a finalidade específica de
impedir que coisas assim voltem a acontecer. Nesse ponto, fiquei atônito.
Primeiro, com a nobreza do objetivo; depois, com o valor que a memória tem
na vida prática das pessoas. A lição que tirei disso foi: “Relembrar o passado
altera os rumos no presente”.
Acredito que Davi sabia muito bem essa lição e o Salmo 70 é uma prova
disso. Esse salmo é praticamente uma cópia do Salmo 40.13-17. Apesar de
nenhum versículo ser exatamente idêntico no texto hebraico, o sentido básico
é exatamente o mesmo. Na verdade, parece que Davi escreveu “de cabeça” o
Salmo 70 lembrando do trecho final do Salmo 40 – razão para as pequenas
diferenças – com a clara intenção de relembrá-lo. É possível também que,
pelo uso popular de um salmo tão belo, sua letra tenha sofrido certa alteração
na boca do povo, levando o salmista a reproduzi-la. De qualquer modo, a
intenção do Salmo 70 vem expressa no seu título. Literalmente, e ele diz:
“Para relembrar” (lehazkîr). A pergunta é: “Para relembrar o que?”.
Essa resposta não é fácil definir, pois duas situações podem estar por trás
do salmo. A expressão lehazkîr (infinitivo construto do verbo “lembrar”, no
grau Hifil, prefixado pela preposição “para”) pode ser traduzida de modo a
sugerir duas situações. Ela pode ser “para recordar” – como em Isaías 43.26
– em que a situação talvez relembrasse a crise que Davi passou quando
escreveu o Salmo 40. Nesse caso, a lembrança da esperança do rei no passado
serviria agora para reavivar a esperança e a confiança no Senhor, lembrando,
também, da libertação passada. Outra possibilidade de tradução é “para
celebrar” – como em Cantares 1.4 –, sugerindo o mesmo tipo de livramento
que o salmista teve nos dias do Salmo 40, conclamando o povo a agradecer e
comemorar aquilo que pediu a Deus e dele recebeu.
O fato de não ser possível definir o contexto do Salmo 70, não nos impede
de notar a intenção de Davi de relembrar os dias de tormento que atravessou
apoiado na oração confiante ao Senhor. Nesse sentido, o salmista quer
oferecer quatro recordações que ajudem os leitores do salmo a decidir pelo
modo correto de se comportar no presente diante das dificuldades e do
controle soberano e amoroso do Senhor.
A primeira recordação é a grande necessidade que temos de Deus (v.1).
“Ó Deus, [seja favorável] a me livrar” (’elohîm lehatsîlenî). Deve-se notar
que o salmista não dá nenhum tipo de ordem a Deus, nenhum tipo de
ultimato, nem sequer algum modo de orar ou alguma realidade a ser lembrada
que obrigue o Senhor a socorrê-lo. O que o salmista pede é o favor de Deus,
favor esse imerecido para qualquer homem – “favor imerecido” é uma das
definições teológicas para a graça de Deus. A razão dessa oração é o fato de
que o salmista não pode, por si só, resolver o que lhe aflige. Assim, mesmo
sabendo que nada merece, ele recorre ao único que pode sanar sua
necessidade. O v.1 ainda fornece mais uma característica da situação
atravessada pelo salmista, demonstrando que ele tinha uma necessidade
“urgente”: “Ó Senhor, apressa-te em me livrar” (yehwâ le‘ezratî hûshâ). Com
isso, o salmista não se deixa enganar pelo orgulho de dizer que pode
enfrentar qualquer coisa e que tem respostas corretas para tudo. Ele
reconhece que tem necessidades que ele mesmo não pode sanar e conhece o
único que pode.
A segunda recordação é o pequeno poder das adversidades (vv.2,3). Davi
lembra a situação arriscada que passou. Havia inimigos que queriam matá-lo,
cuja determinação fazia com que a vida de Davi estivesse “por um fio”.
Porém, sabedor de quem é o Senhor e qual o seu poder, Davi clama a fim de
que seus inimigos sejam desbaratados: “Sejam envergonhados e derrotados
aqueles que buscam [tirar] minha vida” (yevôshû weyahperû mevaqshê nafshî).
Essa oração só faz sentido porque o salmista sabe que mesmo as piores
adversidades nada são diante de Deus. Não era questão de Deus conseguir ou
não livrá-lo, mas de querer ou não. Por isso, sua oração confiante: “Que
fujam por causa da sua vergonha aqueles que dizem: Aha! Aha!” (yashûvû
‘al-‘eqev bashtam ha’omerîm he’â he’â). A confiança dos inimigos que riam
e zombavam de Davi é vista por ele – e por Deus – como uma bravata
inconsequente de quem não conhece o poder de Deus. O fato é que o salmista
quer trazer à memória que, independente do tamanho da provação e da
perseguição, nenhum problema é maior que o nosso Deus.
A terceira é a grande maravilha de servir a Deus (v.4). Se os inimigos
dos servos de Deus são reduzidos a nada diante do Senhor Todo-poderoso, os
agraciados de Deus crescem em seus braços: “Alegrem-se e exultem em ti os
que te buscam” (yasîsû weyismehû beka kol-mevaqsheyka). Davi mostra que
buscar a Deus leva o servo de Deus a encontrar mais que o Senhor a quem
busca. Leva-o a encontrar a alegria verdadeira, sinal de edificação pessoal e
uma paz centrada em Deus e não nas circunstâncias. E nesse crescimento
pessoal, crescem-lhes também a gratidão e o louvor, expressão da comunhão
maravilhosa que tem aquele que é encontrado por Deus: “E que aqueles que
amam a tua salvação digam continuamente: ‘Seja Deus engrandecido’”
(weyo’merû tamîd yigdal ’elohîm ’ohavê yeshû‘ateka). Esse é o júbilo e o
louvor de quem conhece algo maravilhoso desconhecido dos que andam
longe de Deus.
A quarta recordação é a pequena capacidade dos homens (v.5). Por ser
rei, o salmista deveria ser o homem mais poderoso, respeitado e temido do
país. Entretanto, Davi se mostra fraco diante dos inimigos, pelo que busca do
Senhor um socorro que ele mesmo não pode promover, ainda que tenha
recursos que outros não têm. Desse modo, o rico e nobre rei diz: “Eu sou
pobre e desamparado” (’anî ‘anî we’evyôn). O salmista tem um vislumbre da
sua incapacidade diante do mundo. Para o homem mundano, essa visão
costumeiramente produz um pessimismo que lhe tira por completo a paz e a
esperança. Para o servo de Deus, essa visão produz dependência: “Tu és o
meu socorro e a minha preservação” (‘ezrî ûmefaltî ’attâ).
Davi tinha razão: há coisas que temos de recordar para saber como agir nas
mais diversas situações. E isso aumenta em importância na medida em que
essas situações vão se tornando mais difíceis e delicadas. Se isso foi
importante nos dias de Davi, continua sendo nos dias de Jesus, pelo que,
falando da obra do Espírito Santo, diz que ele utilizaria a memória como
ferramenta de edificação e de direcionamento na vida dos crentes: “Mas o
Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos
ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo
14.26). Nos momentos difíceis Jesus afirmou que seria necessário relembrar
do seu ensino: “Ora, estas coisas vos tenho dito para que, quando a hora
chegar, vos recordeis de que eu vo-las disse” (Jo 16.4). Que incentivo maior
que esse nós precisamos para nos aplicar ao estudo da Bíblia e para nos
submeter confiantes ao Senhor de quem recordamos as grandezas?

SALMO 71
As Inseguranças da Idade Avançada

Pesquisei, recentemente, planos de saúde para alguém da família. Fiquei


espantado como o valor é alto para pessoas com mais idade. Os valores para
pacientes da terceira idade, então, são exorbitantes. É claro que, à medida que
a juventude fica para trás, mais uso dos cuidados médico-hospitalares a
pessoa fará. Entretanto, acredito que os altos valores também sejam reflexos
do medo que as pessoas têm de adoecerem na velhice e não terem como
pagar os tratamentos. Assim, mesmo que o preço dos planos de saúde para
essa faixa etária sejam muito altos – alguns abusivos –, nunca faltarão
clientes para as operadoras dos planos.
O salmista, autor do Salmo 71, nunca conheceu hospitais ou planos
médicos, mas ele também nutriu medos a respeito da sua velhice. Dá para
perceber que esses dias já tinham chegado para ele pelo modo de tratar os
dias da mocidade como um tempo distante (vv.5,6,17). Sua oração pelos dias
da velhice (vv.9,18) se confunde com os pedidos imediatos, demonstrando
que o salmista já sentia o peso da idade acompanhada de seus temores. Ele
sabia que as pessoas o olhariam diferente, que suas capacidades pessoais
diminuiriam e que ele teria de passar por níveis de dependência que lhe eram
desconhecidos – e indesejados – até então. Assim, no Salmo 71 é possível
notar três preocupações principais do salmista ligadas ao seu futuro.
A primeira preocupação é ser motivo de desprezo alheio. No versículo 7,
o salmista utiliza uma palavra cujo sentido necessita algumas explicações:
“Eu sou, para muitos, como um portento” (kemôfet hayîtî leravvîm). A palavra
“portento” quer dizer um “sinal”. A julgar pela segunda parte do versículo –
“Mas tu és o meu abrigo forte” (we’attâ mahasî-‘oz) – que se contrapõe à
primeira, percebe-se que o salmista tem algo em mente relacionado aos
ataques dos seus inimigos, ataques dos quais Deus era seu “refúgio seguro”.
Segundo parece, seus inimigos diriam que ele é um sinal, ou do juízo de
Deus, ou da degradação que a idade traz até aos mais renomados seres
humanos. É um tipo de chacota proverbial que soa assim: “Vejam o que o
tempo fez até com aquela pessoa!”. Esse desprezo por parte das pessoas era
algo que o salmista temia na sua velhice e é algo que muitos idosos temem:
serem tratados como pessoas incapazes e risíveis.
A segunda preocupação é sofrer com as limitações do corpo. O salmista
prevê que sua força do passado será apenas uma recordação e não uma
realidade presente, visto que se refere à velhice (v.9) como dias “quando se
esgotarem as minhas forças” (kiklôt kohî). O salmista não vê esse problema
como uma contingência irrelevante, mas como um causador de sofrimento,
motivo pelo qual ele pede a Deus: “Não me abandone” (’al-ta‘azvenî). É
muito comum a busca por Deus surgir diante do vislumbre da limitação
humana. É claro que, para isso, é necessária a comunhão com Deus. Talvez,
por isso mesmo, o salmista se preocupa em ter Deus ao seu lado,
principalmente em sua idade avançada: “Não me lances fora no tempo da
velhice” (’al-tashlîkenî le‘et ziqnâ). Perder Deus como apoio seria o fim do
idoso que escreveu o salmo.
A terceira preocupação é ser incapaz de cuidar de si. Esse temor do
salmista é expresso nos dizeres dos seus inimigos. Eles, que tramavam para
destruí-lo (v.10), julgavam que o Senhor não mais o protegia (v.11): “Deus o
abandonou” (’elohîm ‘azavô). Certamente, essa opinião não se baseava no
conhecimento vindo de Deus da sua ação sobre o salmista. Os inimigos
devem ter chegado a essa conclusão simplesmente olhando para o escritor do
salmo com as limitações da sua idade. Afinal, ele não era mais o mesmo
homem forte e temível que fora no passado, nem tampouco aquele cuja
capacidade e destreza eram indiscutíveis. Agora, tratava-se de um homem
limitado – como se vê no ponto anterior (v.9) – que não tinha mais condições
de se defender como antes. Tal incapacidade amedronta o escritor idoso a
ponto de ele temer ser capturado segundo o plano dos inimigos, que era:
“Persigam-no e capturem-no, pois não há quem o salve” (ridfû wetifsûhû
kî-’ên matsîl).
Para não sucumbir diante dessas três inseguranças, o salmista toma três
atitudes que mudam seu modo de encarar os dias e os problemas da velhice.
A primeira atitude é recorrer a Deus em oração. O Salmo 71 é
enfaticamente uma oração. Isso fica claro desde o início, já que o v.2 contém
quatro clamores seguidos e paralelos: “Defenda-me pela tua justiça e me
livra. Inclina a mim os teus ouvidos e me salva” (betsidqateka tatsîlenî
ûtefalletenî hatteh-’elay ’ozneka wehôshî‘enî). A oração é um reflexo da
confiança que o salmista tem tanto no poder de Deus para salvá-lo como na
sua bondade e, por isso, chama o Senhor (v.3) de “minha rocha e minha
fortaleza” (sal‘î ûmetsûdatî). Tendo em vista sua situação peculiar, o final do
salmo também é marcado pelo clamor do salmista (v.18): “E não me
abandone nem quando chegar a velhice e os cabelos grisalhos, ó Deus”
(wegam ‘ad-ziqnâ wesêvâ ’elohîm ’al-ta‘azvenî). Para os que seguem a Deus,
os temores andam de mãos dadas com as orações confiantes por proteção.
A segunda atitude é recordar o cuidado de Deus no passado. A confiança
do servo no Senhor não é sem razão. Ela se baseia nas promessas e no caráter
de Deus expressos nas Escrituras, mas também se apoia na experiência
pessoal. Normalmente, quem recorre a Deus já o fez antes e foi socorrido de
maneiras maravilhosas por seu Senhor. Assim, ele tem na mente um conjunto
de recordações do cuidado de Deus que o encorajam a esperar por atuações
semelhantes no futuro. As inseguranças do futuro fazem esse salmista
recordar que Deus é sua esperança, sua confiança (v.5) e seu professor (v.17)
“desde a minha juventude” (minne‘ûray). Deus lhe tem sido um apoio (v.6)
“desde o ventre, desde a barriga da minha mãe” (mivveten mimme‘ê ’ammî).
Por isso, sua atitude é recordar e anunciar, em primeiro lugar, quem é Deus
(v.16): “Eu contarei da tua justiça, a tua somente” (’azkîr tsidqateka
levaddeka). Finalmente, ele recorda o conforto que recebeu no passado
esperando que isso se repita (v.21): “Consola-me novamente” (tissov
tenahamenî). Esquecer-se do socorro de Deus no passado é um caminho certo
para o desespero quanto ao futuro.
Finalmente, a terceira atitude é regozijar-se na glória de Deus. Na
contramão das preocupações e incertezas quanto ao futuro, o salmista parece
estar seguro do seu papel como adorador. Assim, ele não foge do dever de
adorar a Deus, mas o cultua do mesmo modo como o faria se nada o afligisse
(v.22): “Eu também celebrarei com harpa a tua fidelidade, ó meu Deus.
Cantarei louvores a ti com cítara, ó Santo de Israel” (gam-’anî ’ôdeka biklî-
nevel ’amitteka ’elohay ’azammerâ leka bekinnôr qedôsh yisra’el). Ao celebrar
o nome do Senhor, o salmista não o faz mecanicamente, nem como uma
forma de barganhar a solução dos problemas. Antes, ele empenha todo seu
ser para glorificar o Senhor (v.23): “Meus lábios exultarão” (terannennâ
sefatay); e completa: “Também a minha alma” (wenafshî). Esse louvor, por
mais que pareça improvável em meio a uma crise, não sofre interrupções,
mas prossegue sempre (v.24): “Minha língua também recitará a tua justiça o
dia todo” (gam-leshônî kol-hayyôm tehgeh tsidqateka). Pelo jeito, o salmista
percebeu que Deus não merece louvor apenas quando estamos tranquilos,
mas em todo tempo, visto que continuamente é Deus eterno, perfeito,
soberano e glorioso.
O salmo é antigo, mas a lição é bem atual. Ainda hoje os idosos passam por
problemas difíceis e por temores bem reais – e ninguém deve minimizar ou
simplificar tais conflitos. Mas a Palavra de Deus fornece as chaves para a
esperança, o consolo e a confiança em Deus a fim de encarar tais lutas. Por
isso, as incertezas e temores da idade avançada não devem produzir, entre os
crentes, velhos “reclamões” e “rabujentos”. Ao contrário, devem dar origem a
senhores e senhoras experientes, dependentes de Deus, sábios, comedidos,
esperançosos, gentis e cooperadores da igreja. Afinal, todos devemos chegar
ao final dessa vida podendo dizer com honra e alegria: “Combati o bom
combate, completei a carreira, guardei a fé” (2Tm 4.7).

SALMO 72
Os Santos Desejos para a Vida

Toda criança sonha em crescer e se tornar como seus pais – ironicamente,


quando crescem, sentem saudades da infância. Trabalhar, dirigir e ter uma
família são desejos que os pequenos têm por ver essas realidades presentes na
vida dos pais. Por isso, o término da faculdade é um momento ímpar na vida
de muitas pessoas. Significa que terminou a preparação formal para aquilo
que elas serão na vida. Significa também que o momento que tanto
aguardaram finalmente chegou e suas vidas sofrerão uma transformação
muito grande. Os sonhos se tornam possibilidades. Por outro lado, as
incertezas futuras se tornam medos presentes. Mesmo assim, nada é capaz de
nublar a expectativa do que a vida trará.
O rei Salomão também passou por isso. Ele assumiu o trono de Israel na
velhice do seu pai, que faleceu após dar-lhe importantes conselhos (1Rs 1.32-
42; 1Cr 29.22-30). Davi havia sido um grande e poderoso rei. Agora, o
jovem Salomão assumiria seu lugar tendo a obrigação de sair da sombra do
poderoso rei e cumprir o que lhe cabia como chefe de Estado. É certo que ele
estava animado com o mundo que se abria diante dele, mas também estava
assustado e ansioso. Por isso, foi até o tabernáculo do Senhor que estava na
cidade de Gibeão e recorreu a Deus para ajudá-lo na grande tarefa que estava
por vir. Ele pediu a Deus sabedoria para reinar e Deus lhe prometeu muitas
bênçãos (1Rs 3.3-15; 2Cr 1.1-13). O Salmo 72, escrito por Salomão,
chamado logo no princípio do salmo de “rei” (melek) e de “filho do rei” (ben-
melek) – já que era o herdeiro do famoso e recém-falecido rei Davi – faz coro
ao início do reinado de Salomão e aos anseios demonstrados no seu pedido a
Deus. Sendo assim, esse salmo, provavelmente escrito por ele nessa época,
apresenta os anseios do novo rei.
Assim, seu primeiro desejo é promover a justiça entre os homens.
Falando de si na terceira pessoa, Salomão roga a Deus (v.2): “Que ele [o rei]
julgue o teu povo com justiça e os teus aflitos com justas medidas” (yadîn
‘ammeka betsedek wa‘anîyeyka bemishpat) – vale lembrar que, quando
questionado por Deus sobre seus desejos, esse foi o anseio apresentado por
Salomão (1Rs 3.7-9). Esse desejo por justiça significa ter a capacidade de
decidir e governar com retidão impedindo que os fracos sejam oprimidos
pelos fortes. Assim, prosseguindo sua oração no salmo por meio de uma
sequência volitiva iniciada no v.1, ele clama (v.4): “Exerça ele justo juízo
sobre os aflitos do povo, defenda os filhos dos necessitados e reduza a pó os
opressores” (yishpot ‘anîyê-‘am yôshîa‘ livnê ’evyôn wîdakke’ ‘ôsheq). Um
fator importantíssimo da justiça almejada pelo rei é que ela se baseava no
caráter de Deus e não nos conceitos corrompidos do homem. Por isso, ao
exercer a justiça, Salomão prevê um processo de santificação no meio de
Israel (v.5): “Temam-te enquanto brilhar o Sol e também diante da Lua, de
geração em geração” (yiyra’ûka ‘im-shamesh welifnê yareah dôr dôrîm). Pelo
jeito, ele esperava e desejava que sua correta atuação trouxesse prosperidade
e paz em justa medida a todos (vv.3,6,7), além de socorro aos carentes (vv.12-
14).
O segundo desejo é exercer uma influência abrangente. Parte da oração
de Salomão é feita de modo tão hiperbólico que alguns intérpretes
consideram o Salmo 72 um salmo messiânico. Contudo, o Novo Testamento
não o aplica a Jesus em nenhum lugar. Ao que tudo indica, Salomão deseja
ser bem sucedido em seu encargo real de modo a exercer influência sobre o
mundo, começando por um triângulo cujos possíveis ângulos são o mar
Mediterrâneo a oeste, o mar Vermelho ao sul e o rio Eufrates ao norte,
terminando nos confins do mundo (v.8): “Que ele governe de mar a mar e
desde o rio até as extremidades da Terra” (weyerd mîyam ‘ad-yam ûminnahar
‘ad-’afsê-’arets). Salomão desejava ter algum mando (v.9) sobre os reinos do
“deserto” e sobre as “ilhas” (talvez tivesse em mente locais como Tiro e
Chipre), queria receber riquezas (v.10) de Társis (possível região na
Espanha), de Sabá (reino no Extremo Sul da Arábia, atual Iêmen) e de Sebá
(região portuária nas margens do mar Vermelho) – todos esses locais eram
marcados por suas riquezas. Como rei, ele quer chegar ao topo da influência
real sendo um tipo de rei dos reis, que nada mais é que um imperador a quem
outros rei e reinos servem (v.11) – nos dias de Salomão, Israel teve
prerrogativas imperiais.
O terceiro desejo do rei é ser alvo e veículo de bênçãos. Como alvo de
bênçãos, ele deseja receber um reconhecimento positivo por parte das pessoas
(v.15): “Que ele viva e lhe seja dado do ouro de Sabá. Que intercedam por ele
continuamente. Que o bendigam todos os dias” (wîhî weyitten-lô mizzehav
sheva’ weyitpallel ba‘adô tamîd kol-hayyôm yevarakenenû). Ele também quer
ser abençoado com uma fartura que somente Deus pode dar, visto que almeja
colher até nos cumes dos montes, sabendo que tais locais são menos férteis
para a agricultura (v.16): “Que haja abundância de grãos na Terra. Que [as
messes] ondulem no alto dos montes” (yehî pissat-bar ba’arets bero’sh harîm
yir‘ash). Como veículo de bênçãos, Salomão deseja que sua prosperidade
pessoal seja compartilhada com seus súditos, criando, assim, uma condição
tão positiva que faça crescer o número de habitantes das cidades (v.16b). O
ponto alto dessa parte do salmo é quando Salomão abertamente deseja ser
abençoado como Abraão (comparar com Gn 12.2,3) e, assim como o
patriarca, ser também veículo de bênçãos para outros (v.17): “Que seu nome
permaneça para sempre. Que brote sob o Sol o seu nome. E que todos os
povos sejam abençoados nele e lhe chamem bendito” (yehî shemô le‘ôlam
lifnê-shemesh yanîn shemô weyitbarkû bô kol-gôyim ye’asherûrû).
Seu quarto desejo é glorificar ao Deus Todo-poderoso. Nesse ponto da
oração, Salomão para de pedir por si e se dedica a declarar seu
reconhecimento do poder e da bondade do Senhor, fonte única de todas as
bênçãos almejadas pelo novo rei de Israel (v.18): “Bendito é o Senhor Deus,
Deus de Israel, aquele que faz, por si só, prodígios maravilhosos” (barûk
yhwh ’elohîm ’elohê yisra’el ‘oseh nifla’ôt levaddô). A ênfase na identidade
de Deus como “Senhor” e “Deus” de Israel serve para enfatizar a adoração e
reverência prestada pelo rei de Israel ao Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Se Salomão deseja que seu próprio nome e seu domínio se espalhem pela
Terra, seu desejo é ainda maior quando se refere ao nome e ao domínio do
Senhor (v.19): “E bendito é o seu glorioso nome para sempre. Que toda a
Terra se encha da sua glória!” (ûbarûk shem kevôdô le‘ôlam weyimmale’
kevôdô ’et-kol ha’arets). A ênfase nesse anseio se mostra na dupla ocorrência
da palavra “amém” (’amen), cujo significado é “verdade”, e que, em uma
oração, serve como ratificação e apoio ao que fora dito.
Finalmente, Salomão desejou assumir o lugar da geração anterior. O
último versículo do Salmo 72, literalmente, diz (v.20): “Completaram-se as
orações de Davi, filho de Jessé” (kallû tefillôt dawid ben-yishay). Dois
sentidos podem surgir do verbo dessa frase. O primeiro é o de “terminar”. Por
isso, entende-se que é possível que o Salmo 72 fosse o último salmo de uma
coletânea antiga dos salmos davídicos, livro ao qual Salomão teria encerrado
com um salmo de sua autoria. O segundo sentido do verbo seria o de
“cumprir-se” (conforme o uso do verbo “kalâ” em 2Cr 36.22). Nesse caso, o
que Salomão teria em mente é que os anseios do seu pai expressos em suas
orações sobre o reino, sobre os preparativos para a construção do Templo
(que começou a ser erguido no início do reinado de Salomão) e sobre o
próprio filho que se assentava agora sobre o trono, haviam se cumprido pela
graça de Deus, motivo pelo qual o salmista adorou o Senhor nos vv.18,19.
Em ambas as possibilidades, o quadro geral é o mesmo: Salomão assumindo
a responsabilidade de reinar no lugar do grande rei Davi, seu antepassado, e
continuar louvando ao Senhor por meio de orações e instruções ditas,
cantadas e registradas (visto que temos salmos, provérbios, escritos
sapienciais e poesias de autoria salomônica). Salomão tinha consciência do
ocaso da geração anterior e da responsabilidade que tinha de ocupar o posto
vago.
De modo marcante, os desejos de Salomão, não por mera coincidência,
acabam por igualar-se aos desejos da igreja de Deus. Ela também tem o
desejo de promover a justiça entre os homens e, por isso, Paulo orienta os
crentes a “aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis
para o Dia de Cristo, cheios do fruto de justiça” (Fp 1.10,11). Ela também
deve exercer uma influência abrangente, pelo modo como Jesus ordenou:
“Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as
vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.16). Ser
alvo e veículo de bênçãos deve ser o desejo da igreja, motivo pelo qual ela
deve se dedicar a “toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e
para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos” (Ef
6.18). A igreja verdadeira também deve, com toda seriedade e compromisso,
glorificar ao Deus Todo-poderoso, visto que Deus mesmo “nos predestinou
para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o
beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça” (Ef 1.5,6).
Finalmente, a igreja de Cristo deve, com honra, assumir o lugar da geração
anterior, conforme Paulo ensinou a Timóteo pouco tempo antes de morrer:
“E o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo
transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros” (2Tm 2.2).
Que desejos seriam melhores que esses para o povo que foi salvo das trevas
do pecado por Cristo e aguarda o tempo de habitar para sempre com o
supremo Rei dos reis e eterno Senhor do senhores?

SALMO 73
Inveja da Condição dos Ímpios

Certo rapaz gostava muito de dirigir seu carro. Cuidava dele como se fosse
um filho. Lavava, encerava e mantinha tudo em bom estado de conservação.
Seu carro só não lhe trazia mais alegria porque o rapaz detestava o modo
como outros motoristas se portavam no trânsito. Em lugar de aproveitar os
passeios de carro, o jovem ficava muito nervoso quando era ultrapassado pelo
lado direito, quando via carros mal-estacionados e, principalmente, quando
outros carros atravessavam o sinal vermelho. Ele se sentia lesado por ter de
esperar a vez para seguir em frente enquanto um “espertinho” cruzava
indevidamente o semáforo. Essa indignação e essa sensação de perda foram
crescendo até que, um dia, invejando a condição daqueles motoristas que
sempre chegavam antes que os outros, ele resolveu passar o cruzamento com
o sinal vermelho. Foi quando um caminhão, em alta velocidade, se chocou
com seu carro e lhe tirou a vida.
Asafe, autor de doze salmos (50, 73-83), não tinha um automóvel, mas
conhecia o sentimento que acabou levando aquele rapaz à morte. Sobre o
autor, muitos o associam ao chefe do louvor na “Casa de Deus” (1Cr 16.3 cf.
25.1,6). Contudo, tendo em vista que todos seus salmos têm como pano de
fundo a rebeldia do povo e o juízo de Deus (anunciado ou aplicado) –
contexto mais parecido com os dias de Jeremias e Habacuque que de Davi e
Salomão (exceto do Salmo 83, claramente escrito antes da destruição da
Assíria em 722 a.C.) –, é bem possível que se trate de outro Asafe, o qual
teria exercido uma função sacerdotal nos dias que precederam a queda de
Jerusalém (587 a.C.) e que, sobrevivendo a ela, escreveu posteriormente
sobre a aplicação do juízo de Deus – não podemos descartar a possibilidade
de os massoretas que introduziram os pontos vocálicos no texto hebraico do
Antigo Testamento terem interpretado o título como “de Asafe” (le’asaf),
quando talvez o correto fosse “do colecionador” (le’osef) ou, ainda, “para se
guardar” (le’asof).
Seja quem for o autor, o Salmo 73 é um relado do conflito pelo qual ele
passou, atravessando uma crise que quase o inutilizou na obra do Senhor.
Essa crise – e seu aprendizado posterior – foi descrita no Salmo 73. Ele
começa com a afirmação (v.1) de que “Deus é bom para Israel, para os puros
de coração” (tôv leyisra’el ’elohîm levarê levav). Entretanto, parecendo
contradizer essa verdade, Asafe completa (v.2): “Meus pés quase se
desviaram” (kim‘at natayû raglay). Ele não quis dizer que tropeçou em algo,
mas que quase se afastou do Deus bondoso. A razão disso é clara na pena do
salmista (v.3): “Pois eu senti inveja dos arrogantes ao ver a prosperidade dos
ímpios” (kî-qinne’tî bahôlelîm shelôm resha‘îm ’er’eh).
Assim como o jovem que se cansou de ver os motoristas “espertinhos”
cruzarem o sinal vermelho, Asafe se cansou de ver os maus vivendo
tranquilamente enquanto os justos sofriam. Em algum momento, essa
indignação se tornou inveja e desejo de viver como aqueles homens que não
temiam a Deus, mas que não sofriam privações. Assim, dá para entender
porque ele disse “meus pés quase se desviaram”. Esse estado – impróprio
para o servo de Deus – não surgiu do nada. Sua causa foram conceitos e
sentimentos errados.
Dentre as causas da inveja de Asafe, a primeira delas é a visão unilateral
da situação. Usando um dito popular, Asafe viu apenas um “lado da moeda”:
a vida tranquila dos homens maus. A unilateralidade da visão de Asafe é
facilmente notada na análise irreal que faz desses homens (v.4): “Pois não há
tormentos para eles e seus corpos são bem alimentados” (kî ’ên hartsuvvôt
lemô tam ûbarî’ ’ûlam). Essa visão cresce e Asafe acaba por fazer uma
descrição quase sobre-humana dos injustos, como se experimentassem uma
existência distinta do resto da humanidade (v.5): “Para eles as fadigas
humanas não existem e eles não sofrem como os homens” (ba‘amal ’enôsh
’ênemô we‘im-’adam lo’ yenugga‘û). A visão do salmista, que vê apenas um
lado da realidade, ignora que todos os homens são sujeitos às condições da
vida e, com uma observação unilateral da situação dos ímpios, conclui
equivocadamente (v.12) que eles vivem “sempre tranquilos” (shalwê ‘ôlam).
Não é de surpreender que Asafe os invejasse.
A segunda causa é a frustração diante da impunidade. Asafe vê que os
homens maus, em lugar de esconderem seu orgulho vergonhoso e seu
procedimento violento, os exibiam como se fossem peças do vestuário (v.6).
Quem age assim, normalmente o faz pela certeza da impunidade. Por isso,
suas palavras nem eram dissimuladas ou hipócritas. Sua maldade era exposta
abertamente entre as pessoas por meio de palavras de uma arrogância sem
limites (v.8): “Eles afrontam e falam com maldade. Eles falam da opressão
abertamente” (yamîqû wîdavverû bera‘ ‘osheq mimmarôm yedavverû). A
palavra traduzida aqui como “abertamente” quer dizer literalmente “de um
lugar alto”. Isso pode significar falar com “orgulho” ou fazê-lo “de um lugar
em que todos vejam”. Quer dizer que a certeza de impunidade leva o homem
assim como que a subir em palanques para anunciar arrogantemente seus atos
de injustiça e de exploração – o v.10 favorece a questão do orgulho dizendo
que eles “colocam nos céus as suas bocas” (shattû bashamayim pîhem), como
se fossem “deuses” falando. A impunidade que Asafe observa fica patente na
pergunta desafiadora dos ímpios que questionava a própria capacidade ou
existência de Deus (v.11): “Eles dizem: ‘De que maneira sabe Deus o que
acontece? Há no Altíssimo conhecimento?’” (we’omrû êkâ yada‘-’el weyesh
de‘â be‘elyôn). Ninguém age assim se sabe que terá de encarar o Senhor. Essa
certeza de impunidade associada à prosperidade desses arrogantes foi uma
das causas da inveja do salmista.
A terceira é o equívoco quanto ao propósito da vida. Parece que Asafe
nutriu, por algum tempo, a falsa noção de que o homem existe para “ser
feliz” e para “desfrutar de paz e de riquezas”. Isso porque, mesmo vendo que
o procedimento dos ímpios é deplorável, ele reprova a validade dos seus
próprios procedimentos justos (v.13): “Assim sendo, em vão eu mantive a
minha consciência pura e banhei minhas mãos na inocência” (’ak-rîq zikkîtî
levavî wa’erhats beniqqayôn kaffay). Se Asafe se lembrasse que o objetivo da
sua existência é “glorificar a Deus” em lugar de “ser feliz e próspero”, ainda
que os injustos prosperassem, ele estaria satisfeito e convicto de estar no
lugar correto. Mas ele conclui que seu procedimento santo tem sido inútil
diante dos resultados que estava colhendo (v.14): “Pois eu sofro o dia todo e
sou punido a cada manhã” (wa’ehî nagûa‘ kol-hayyôm wetôkahtî lavveqarîm).
Essa punição a que ele se refere parece ser o fato de ter de lutar com as
dificuldades da vida enquanto os maus prosperavam. Não são necessários
mais que esses três erros de observação e pensamento para se ter inveja das
pessoas mais desonestas e vis do planeta.
Contudo, o salmo não termina assim. Os vv.15-17 formam uma transição
para uma postura totalmente diferente. Enquanto os vv.15,16 evidenciam que
Asafe não deixou sua vida ser guiada por aquela visão pessimista e invejosa –
e o quanto seria danoso se tal ocorresse –, o v.17 é como uma vertente do
salmo. Nele se inicia uma guinada no pensamento do salmista, sobre a
prosperidade dos ímpios e o sofrimento dos justos, que o faz assumir seu
lugar correto sob a direção soberana e santa do Senhor. O ponto que converte
o rumo do texto é a preposição temporal “até que” (‘ad). Ela demonstra que
aquilo que aconteceu no passado havia terminado naquele momento (v.17):
“Até que eu entrei no santuário de Deus” (‘ad-’avô’ ’el-miqdeshê-’el). Não é
possível determinar se Asafe se refere a uma entrada literal no tabernáculo ou
se é uma figura de linguagem para se referir a uma aproximação de Deus – ou
ambos concomitantemente. No entanto, é possível ver claramente o resultado:
“Eu compreendi o futuro deles” (’avînâ le’aharîtam). Refletir sobre o fim dos
injustos sanou a inveja que sentia deles e evitou seu desvio completo. Isso
não ocorreu sem que três fatores o guiassem.
O primeiro fator foi lembrar a verdade completa. O outro “lado da
moeda” era que a alegria presente dos ímpios se tornaria punição nas mãos de
Deus (v.18): “Tu seguramente os colocarás em lugares escorregadios. Tu os
farás cair em ruínas” (’ak bahalaqôt tashît lamô hiffaltam lemashû’ôt). Se a
figura anterior era a de arrogantemente anunciarem sua maldade de lugares
altos, essa nova figura os coloca como caídos dessas alturas onde subiram,
destruídos pela queda (ver vv.19,20).
O segundo foi reconhecer a graça de Deus. O salmista narra seu estado
inicial de conflito dizendo (vv.21,22): “Quando meu coração se tornou azedo
e senti minhas entranhas perfuradas, eu fui um tolo e ignorante. Como fazem
os animais, assim agi eu contigo” (kî yithammets levavî wekilyôtay ’eshtônan:
wa’anî-ba‘ar welo’ ’eda‘ behemôt hayîtî ‘immak). Entretanto, quando se
aproximou de Deus (v.17) ele percebeu a presença do Senhor consigo (v.23):
“Mas estou continuamente contigo” (wa’anî tamîd ‘immak). Apesar de o
salmista ter vivido momentos de revolta, de inveja e de ingratidão, o Senhor
nem o abandonou, nem o desamparou nas dificuldades: “Tu seguraste a
minha mão direita” (’ahazta beyad-yemînî). Finalmente, Asafe reconhece o
que nunca deveria deixar de perceber: que a graça de Deus o acompanhava
sempre.
O último fator foi nutrir a esperança da vida futura. Se no presente o
Senhor era o guia de Asafe – assim como de todos os que lhe pertencem –,
ele seria, no futuro, aquele que garantiria o bem-estar do salmista para que
vivesse na sua maravilhosa presença (v.24): “No teu conselho tu me guias e,
depois disso, levar-me-ás à glória” (ba‘atsatka tanhenî we’ahar kavôd
tiqqahenî). A jornada com Deus que começa na Terra só termina nos céus.
Assim, olhando para o futuro glorioso, Asafe vive com a esperança presente e
com o consolo que vem dessa esperança (v.25): “Estando contigo, eu não
tenho alegria na Terra” (we‘immeka lo’-hafatstî ba’arets). A ideia não é que
andar com Deus gera tristeza. Pelo contrário, o que Asafe afirma é que
nenhuma alegria terrena pode superar a alegria que ele tem no Senhor. Esse é
o sentimento que surge no salmista que vive problemas no presente, mas que
sabe que viverá no futuro na glória de Deus. Assim, a esperança da vida
futura cria, na vida presente, contentamento, consolo, confiança e coragem
(v.26,28).
É certo que o mundo tem muitas coisas que nos chamam a atenção. Com
toda certeza seremos tomados de inveja ao ver os homens que não temem o
Senhor desfrutar de paz, de alegria e de prosperidade enquanto nós lutamos
para cumprir honradamente nossas responsabilidades. E é totalmente seguro
que o diabo sempre fará sugestões a fim de acharmos desvantajoso seguir
nosso Deus. Entretanto, ao saber previamente o que acontece quando se é
atingido por um caminhão veloz, você ainda inveja os motoristas que cruzam
o sinal vermelho? Não! Você simplesmente aguarda com paciência o
semáforo ficar verde, pois sabe que sua alegria não vem de atravessar
primeiro o cruzamento, mas de chegar são e salvo ao seu destino.
SALMO 74
Ignorando os Avisos de Deus

Certa vez, aconselhei um paciente a apressar certo tratamento odontológico


sob o risco de uma fratura da coroa dental devido a uma cárie nada modesta.
Apesar dos avisos, o paciente dizia que eu estava exagerando, visto não haver
dor alguma. Tentei alertá-lo da inexatidão da sua análise lembrando-o de que
ele não conseguia ver o tamanho real dos danos e que não tinha habilitação
profissional para avaliar os dados. Mas nada o fez procurar o tratamento, até
que a fratura que eu previ finalmente ocorreu. Então, ele me procurou com
“urgência” para um “conserto” – como me disse. Contudo, a fratura atingiu a
raiz, condenando definitivamente o dente. Quando o paciente ouviu que teria
de extrair o dente, ficou desesperado. Então, lhe perguntei: “Quantas vezes eu
o adverti sobre esse risco?”. Ele respondeu: “É que eu não imaginei que o
dano seria tão grande”.
Como esse rapaz, o povo de Israel ignorou e brincou com os alertas de
Deus. E também enfrentou consequências maiores do que esperava. O Salmo
74 está ambientado em dias nos quais o templo de Jerusalém fora invadido,
profanado e destruído por um povo estrangeiro. As semelhanças entre o
Salmo 74 e certas realidades expostas nas Lamentações de Jeremias fazem
parecer que o salmista viu com seus próprios olhos a invasão e destruição de
Jerusalém por mão dos babilônicos em 587 a.C. Apesar de profetas como
Isaías, Habacuque e Jeremias terem alertado quanto ao iminente juízo de
Deus, o povo de Jerusalém continuava a viver em pecado, achando que a
presença do templo na cidade faria Deus, por interesse próprio, impedir
qualquer invasão estrangeira. Essa falsa esperança foi denunciada em vão
pelo profeta Jeremias: “Não confieis em palavras falsas, dizendo: Templo do
Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor é este” (Jr 7.4). Depois de
tantos alertas, a punição veio tomando formas que os israelitas nunca
imaginaram ou desejaram.
A primeira parte do salmo evidencia três consequências indesejáveis para
os israelitas no tocante ao culto e ao templo. A primeira consequência foi a
rejeição de Deus (vv.1-3). A pergunta de efeito que inicia o salmo é (v.1): “Ó
Deus, por que [nos] rejeitaste definitivamente e se acendeu a tua ira contra o
rebanho do teu pasto?” (lamâ ’elohîm zanahta lanetsah ye‘shan ’affeka
betso’n mar‘îteka). A ideia de um castigo definitivo ou permanente não revela
falta de esperança na restauração – já que o salmista tem em mente a aliança
de Deus com Abraão (v.20) –, mas sim a intensidade do juízo. Aquilo que
Deus vinha há muito avisando e que o povo ignorou, simplesmente chegou
como uma torrente avassaladora e a visão dos observadores é de uma
completa rejeição. Apesar de no futuro isso ser revertido, para o momento a
realidade é essa. Mesmo tendo Israel já passado por muitos sofrimentos, a
sensação de uma rejeição sem volta vem de algo inédito em Israel, a saber, o
templo ser entregue aos invasores, de modo que o povo pôde ver (v.3) “toda a
calamidade feita pelo inimigo no santuário” (kol-hera‘ ’ôyev baqqodesh).
A segunda consequência foi a corrupção do culto (vv.4-8). O sacrifício
com porcos ordenados por Antíoco IV (167 a.C.) e os estandartes romanos
introduzidos no templo por Pilatos (26 A.D.) não foram as primeiras
profanações que o templo de Jerusalém conheceu. Os primeiros inimigos a
invadi-lo quebraram rispidamente a rotina de louvor nos locais santos (v.4):
“Os teus inimigos rugiram no interior do teu local de solenidades. Lá
puseram suas insígnias e estandartes” (sha’agû tsorerey beqerev mô‘adeka
samû ’ôtotam ’otôt). O local do santo culto a Deus virou local de festa, de
zombaria e de afronta da horda invasora. Depois de comemorar a vitória
contra o Deus de Israel – pelo menos assim parecia ao inimigo – eles
profanaram e destruíram o templo, impedindo que o culto verdadeiro a Deus
lhe fosse prestado (v.7): “Atearam fogo no teu santuário. Profanaram e
derribaram ao chão o local onde habita o teu nome” (shilhû ba’esh
miqdasheka la’arets hillelû mishkan-shemeka).
A terceira consequência indesejada foi o silêncio do Senhor (vv.9-11).
Diante de tanta afronta, o mínimo que se podia esperar era que o Senhor se
levantasse para vingar seu nome e seu povo. Entretanto, era Deus quem trazia
essa punição, de modo que, não apenas nada fez para impedir a desgraça que
caiu sobre Jerusalém, como também deixou de falar com o povo por
intermédio dos profetas (v.9): “Não há mais profeta” (’ên-‘ôd nabî’). Por esse
motivo, o povo pecador foi entregue à incerteza e ao medo, sem saber quando
cessaria o sofrimento: “E não há ninguém conosco que saiba até quando”
(welo’-’ittanû yodeah ‘ad-mâ).
Atualmente, parece-me que a igreja tem sofrido as mesmas consequências
que os israelitas do sexto século. Certos setores da igreja têm,
inadvertidamente, ignorado a Palavra de Deus, rebelado-se contra as ordens
divinas, “moldado” Deus conforme seu gosto pessoal e se aproximado do
estilo de vida mundano para crescer e para entreter seus frequentadores,
colocando o mundo perdido, não redimido, para dentro das suas portas. O
amuleto que tem justificado tal podridão não é a existência de um templo,
mas o “amor de Deus”, como se, por amor, ele ignorasse tudo que sua justiça
ordena e que sua santidade abomina e como se ele salvasse mesmo aqueles
que rejeitaram a fé no Senhor Jesus Cristo. Por essa causa, também
experimentam a corrupção do culto e o silêncio e a rejeição de Deus. Para
corrigir isso, deveriam fazer o que também fez o salmista diante do quadro da
profanação do templo na forma de três atitudes.
A primeira atitude é reconhecer Deus como supremo Senhor (vv.12-17).
Se a independência e a rebeldia do povo contra Deus foram a causa do juízo,
o salmista diz algo no sentido completamente oposto ao pecado de Israel
(v.12): “Mas Deus é o meu rei desde os tempos antigos. Ele é quem promove
libertações dentro da [nossa] terra” (we’lohîm malkî miqqedem po‘el yeshû‘ôt
beqerev ha’arets). Esse é um reconhecimento de quem Deus é – rei soberano
(ver vv.13-17) que deve ser obedecido e temido – e o que Deus faz – ele
liberta seu povo submisso em graça e amor. Reconhecê-lo é o primeiro passo
para voltar a se submeter a ele e ser restaurado.
A segunda atitude é desejar a purificação do culto (v.18,22,23). O
salmista diz: “Lembra-te disto: O teu inimigo tem afrontado o Senhor e um
povo tolo tem desprezado o teu nome” (zekar-to’t ’ôyev heref yhwh we‘am
naval ni’atsû shemka). Ao dizer “lembra-te”, o salmista não imagina que o
Senhor se esqueça de algo ou que deixe de ver certos acontecimentos. Ele
pede que Deus leve em conta a profanação do culto santo e a afronta ao seu
nome e atue revertendo esse processo por meio do castigo aos inimigos. Ao
dizer (v.22) “Levanta-te, ó Deus, defenda a tua causa” (qûmâ ’elohîm rîvâ
rîveka), o salmista roga que aquilo que o inimigo fez seja vingado e
restaurado a fim de mostrar, por meio da restauração do culto desejado pelo
Senhor, quão falsas eram as bravatas dos inimigos contra o Deus de Israel.
A última atitude é recorrer às verdadeiras promessas de Deus (vv.19-
21). No meio da destruição da cidade, do exílio do povo e da incerteza sobre
os acontecimentos futuros, o pedido do salmista a Deus é (v.19): “Não te
esqueças definitivamente dos teus aflitos” (‘anîyeyka ’al-tishkah lanetsah).
Apesar das circunstâncias, essa não é uma oração sem esperança, pois o
conceito da aliança (v.20) está presente na mente do salmista. Quando o
salmista se lembra das promessas que Deus fez a Abraão, registradas nas
Escrituras, prometendo-lhe uma terra que seria da sua descendência “para
sempre” (Gn 13.15), ele olha para o futuro e vislumbra paz e bênçãos na terra
prometida para os filhos e filhas do patriarca.
Olhando para os nossos dias, vejo inimigos de Deus entrando com seus
estandartes na igreja e zombando do santo nome do Senhor. Aonde eles
chegam, tomando o espaço que de direito pertence aos verdadeiros crentes
em Cristo, a igreja para de crer na soberania de Deus, deixa de depender da
graça para se entregar a métodos de marketing e diminui ou elimina a
importância das Escrituras nos cultos e reuniões, fazendo do entretenimento
e da diversão seu carro-chefe para encher seus salões – e suas contas
correntes. Onde os inimigos do evangelho dominam, a igreja também ignora
a disciplina bíblica com a desculpa de que ela tem de ser amorosa – como se
fosse falta de amor corrigir um filho desobediente – e, em lugar de atrair
incrédulos a Cristo pela fé salvadora, passam a atrair incrédulos endurecidos
e ensoberbecidos para dentro da igreja, a qual deveria ser santa habitação do
Senhor e não covil de salteadores.
Olhando para isso, eu também me pergunto: “Quem saberá até quando?”.
Que bom seria se os verdadeiros crentes se apercebessem do que tem
acontecido e, dependentes do Senhor, se curvassem diante do Pai rogando
que se lembre das afrontas contra o seu nome e da destruição que tem sido
promovida na igreja. Graças ao bom Deus, suas verdadeiras promessas
também nos consolam e nos encorajam a seguir em frente, a lutar pela pureza
do culto e a promover a verdadeira glorificação do nome de Deus, já que
Jesus, falando de sua igreja, garantiu: “As portas do inferno não prevalecerão
contra ela” (Mt 16.18).

SALMO 75
A Esperança do Justo Juízo de Deus

Em certa aula da faculdade, um professor quis se vangloriar, diante da


classe, de certo trabalho que havia feito. Como isso foi dito em um claro tom
de arrogância e até de desrespeito pela classe, o professor foi vaiado por
vários alunos. Não participei, nem aprovei a vaia, mas não posso dizer que
ele não a tenha merecido. O problema é que ele resolveu se vingar da sala
toda impedindo que assinássemos a lista de chamada, além de prometer um
decréscimo nas notas. Nesse caso, ainda que uma atitude assim não tivesse
amparo no regimento da universidade, que podia eu, que de nada participei,
fazer para evitar a injustiça? A confusão foi aumentando até que, não sei bem
como, estávamos todos na diretoria. O diretor ouviu as partes e chamou o
professor até sua sala. Momentos depois, o professor estava na secretaria com
a lista para os alunos assinarem presença. Nenhuma palavra nos foi dita, mas
percebemos que o diretor, bem mais poderoso que o professor, evitou a
injustiça.
O salmista Asafe também se viu diante de injustiças sem podê-las resolver
por si mesmo. O Salmo 75, além de conter a esperança de ver um dia o justo
julgamento sendo efetivado, seu título diz que ele foi escrito para ser cantado
com a melodia “Não destruas”. Ela também é utilizada nos salmos 57, 58 e
59, compostos por Davi e escritos em momentos de sofrimento do salmista
por causa da perseguição injusta que sofria, pelo que clamou a Deus por
libertação para si e por justa condenação para os ímpios. Parece que nesse
mesmo sentido Asafe se vale da melodia para consolar-se com a esperança de
um dia certamente ver o acerto de contas promovido pelo supremo juiz de
toda a Terra. Assim, mesmo vendo a injustiça presente, o salmo inicia com
louvor (v.1): “Rendemos grato louvor a ti, ó Deus. Rendemos grato louvor,
pois tu estás perto. Proclamamos os teus feitos maravilhosos” (hôdînû leka
’elohîm hôdînû weqarôv shemeka sifferû nifle’ôteyka). A partir daí,
vislumbrando o futuro, Asafe expõe três traços do juízo de Deus sobre o
mundo.
O primeiro desses traços é: o julgamento de Deus tem seu tempo
determinado. Esse é um ponto fundamental da teologia do salmista, visto
que ele louva a Deus antes de ver seu juízo ser efetivado. Isso não acontece
porque o salmista é um otimista inconsequente, mas um servo que crê e que
tem convicção daquilo que aguarda. E aquilo que ele espera com plena
certeza é o momento definido por Deus para julgar o mundo, já que narra os
dizeres divinos (v.2): “Quando eu lançar mão da ocasião determinada, eu
julgarei com justiça” (kî ’eqqah mô‘ed ’anî mêsharîm ’eshpot). Quando
chegar esse momento, o julgamento de Deus se revelará sob dois aspectos
diferentes: justiça para o perseguido, injustiçado e oprimido e, também,
punição para os ímpios opressores.
O primeiro aspecto é enfatizado no v.3: “Mesmo que a Terra seja abalada
com todos os seus habitantes, eu firmarei as suas colunas” (nemogîm ’erets
wekol-yoshbeyha ’anokî tikkantî ‘ammûdeyha). Essa é uma imagem de
estruturas prestes a desabar diante de um terrível terremoto. Elas não chegam
a desmoronar porque alguém coloca escoras suficientes para que mesmo o
pior dos tremores seja inútil para destruir as construções. Como o salmista
não está falando sobre abalos sísmicos, essa é a mensagem de esperança para
os servos de Deus que sabem que não serão abandonados pelo Senhor e que
não sucumbirão no final de tudo. O segundo aspecto do julgamento de Deus
vem implícito na forma de uma ordem ameaçadora (v.4): “Eu digo aos
orgulhosos: ‘Não se orgulhem’, e aos maus: ‘Não ergam seus chifres’”
(’amartî lahôlelîm ’al-tahollû welarsha‘îm ’al-tarîmû qaren). Visto que
chifres são usados no Antigo Testamento para se referir a força e poder, a
ordem de não se levantar contra o povo de Deus e de não se vangloriar da sua
força contra ele (v.5) é um aviso de que, caso assim fizerem, serão alvos de
dura punição. Se isso é motivo de temor para os ímpios, é também motivo de
esperança e louvor para os justos, ainda que sofram no tempo presente.
O segundo traço é: o julgamento de Deus é feito com poder irresistível.
Visto que uma das acusações divinas no salmo são o orgulho e a altivez
daqueles que não o temem, segue um claro aviso de que suas forças não
podem resistir diante de Deus e não há em nenhuma parte do mundo quem os
socorra quando o Senhor os trouxer a juízo (v.6): “Pois não é do oriente, nem
do ocidente, nem é do deserto que virá alguém que os levante” (kî lo’
mimmôtsar ûmimma‘arav welo’ mimmidbar harîm). Se, diante dessa
afirmação, fica a dúvida de “por que alguém precisaria ser levantado?”, o
versículo seguinte explica (v.7): “Pois Deus é o juiz; ele derrubará este e
levantará aquele” (kî-’elohîm shofet zeh yashpîl wezeh yarîm). Somente Deus
pode levantar do chão e exaltar o que caiu. Porém, àquele que Deus fizer cair,
condenando seu pecado, ninguém o pode levantar ou livrar da mão do
poderoso juiz. Seu julgamento é irresistível e final.
O poder de Deus como juiz não fica patente apenas no fato de não haver
quem o impeça, mas também no modo como aplica a pena. A condenação do
perdido e a ira de Deus contra os pecadores são várias vezes expostas na
Bíblia por meio da figura de uma taça. Aqui não é diferente (v.8): “Pois na
mão do Senhor está uma taça de vinho espumante, cheio de mistura, que ele
derramará. Certamente, todos os ímpios da Terra sorverão e beberão sua
borra até o fim” (kî kôs beyad-yehwâ weyayin hamar male’ mesek wayyagger
mizzeh ’ak-shemareyha yimtsû yishtû kol rish‘ê-’arets). A ideia que o salmista
promove com essa figura é que, além do sabor terrível que tem a pena
impetrada pelo supremo juiz, ela é irreversível e inevitável. Ninguém pode
fugir dela, abrandá-la, atrasá-la ou mesmo cancelá-la. Essa é uma taça de fel
que será sorvida até a última gota pelos que agora se ensoberbecem diante de
Deus. Apesar de ser algo que ocorrerá plenamente no futuro, essa certeza já
traz segurança para os que agora são abatidos e aguardam pela justiça do
Senhor.
O terceiro traço é: o julgamento de Deus promove louvor no seu povo. O
salmista, que inicia o salmo olhando para o julgamento futuro de Deus,
certamente por ver no presente a injustiça se espalhando, desde já glorifica o
Deus soberano (v.9): “Mas eu anunciarei [os teus feitos] continuamente. Farei
canções ao Deus de Jacó” (wa’anî ’agîd le‘olam ’azammerâ le’lohê ya‘aqov).
Normalmente, os servos de Deus louvam seu Senhor por dois motivos: por
quem Deus é e pelo que Deus faz – ou fez. Entretanto, Asafe mostra que há
mais um motivo de louvor ao juiz de toda a Terra: aquilo que ele fará. Nesse
caso, o Salmo 75 fala daquilo que Deus fará em relação à justiça e ao juízo
(v.10): “Pois eu arrancarei todos os chifres dos ímpios e exaltarei os chifres
dos justos” (wekol-qarnê resha‘îm ’agaddea‘ terômamnâ qarnôt tsaddîq).
Lembrando o significado da figura do chifre (cf. v.4), o salmista louva a Deus
por ele inverter a situação presente no futuro, a saber, dar força ao abatido e
tirar a força dos maus. É impressionante como a certeza do futuro consegue
dar novas cores ao presente e tirar louvor até mesmo dentre os gemidos!
Pessoalmente, encontro grande consolo nesse salmo. Quando vejo os
desmandos no mundo na forma de corrupção de políticos que nunca são
punidos, de criminosos que afrontam e zombam das autoridades e da
sociedade como um todo e de grupos que trabalham ativamente para impor
ao mundo seu estilo de vida perverso, eu sinto grande desânimo. Mas, ao
lembrar que há um momento determinado no qual Deus reverterá isso tudo e
trará justiça e juízo por completo, não apenas me sobrevém o ânimo, como
também um desejo muito grande de, desde já, agradecer pelo que ele fará.
Outro efeito positivo que essa esperança tem sobre minha vida é que ela
contém a minha revolta. Um pessoa revoltada age de maneira destrutiva e
vingativa que, ainda que apontando contra o mal, nunca leva a um final feliz,
nem à edificação de vida ou ao bom testemunho. Porém, com a plena certeza
de que Deus em pessoa tratará todo o mal punindo quem o promove, agora
tenho a possibilidade de ser paciente e de dar bom testemunho, mesmo
quando isso parece loucura e perda de tempo. Afinal, loucura mesmo é viver
achando que Deus não trará juízo ao mundo (Sl 14.1) ou que essa vida é tudo
que existe para nós (1Co 15.19).

SALMO 76
A Admiração Diante da Vitória

Um dos heróis que tive na minha adolescência foi Ayrton Senna, piloto de
Fórmula 1. É certo que há um ou outro piloto, na história do automobilismo,
que obteve melhores marcas e até mais vitórias que Senna. Entretanto, o que
o torna um piloto singular não é ser vitorioso nas melhores condições de
carro e de equipe, mas vencer nas mais adversas situações como era o caso de
Senna. Isso aconteceu muitas vezes quando ele dividia equipe com Alain
Prost e era ocasionalmente tratado como segundo piloto. Isso também
ocorreu quando, com pneus gastos e disputando a vitória contra Nigel
Mansell em seu carro mais potente, Senna segurou o favorito até o final,
depois de perder e retomar à primeira colocação, vencendo a corrida por meio
carro de vantagem (Grande Prêmio da Espanha – 1986). Algumas de suas
vitórias são históricas e serão contadas por muito tempo por pessoas que,
diante de feitos inigualáveis, passaram a admirar um dos melhores pilotos da
história do automobilismo.
Asafe, que nunca assistiu a uma corrida de Formula 1 e cujos únicos carros
que conhecia eram os de guerra, também tinha um herói, a quem passou a
admirar ainda mais depois de uma vitória marcante. O Salmo 76 é o registro
do louvor de quem viu o Senhor agir em favor de um povo e uma cidade que
não tinham em si capacidade de deter ou vencer o inimigo. Não é para
menos. Asafe demonstra o poderio militar dos inimigos que atacaram Judá
com termos fortes e sugestivos como (vv.3,5 e 6, respectivamente)
“relâmpagos do arco” (rishfê-qashet), “valentes” (’avvîrê lev – lit. “poderosos
de coração”) e “carro [de guerra] e cavalo” (rekev wasûs). Quanto maior é o
poder do inimigo, maior é a admiração do salmista ao ver a libertação divina,
admiração essa que o leva imediatamente ao louvor (v.11). Essa admiração de
Deus e de seus feitos é o resultado de quatro percepções que o salmista tem a
partir da libertação.
A primeira percepção é que Deus é imanente. Ser imanente significa que
Deus se faz presente na história humana, especialmente junto aos seus servos,
interferindo nos acontecimentos e aceitando se relacionar com as pessoas. Por
isso, ainda que sejam verdadeiras a transcendência divina (1Rs 8.27) e a
incapacidade do homem de entender completamente o Senhor (Jó 5.9; 11.7-
9; Is 55.9), o salmista diz (v.1): “Deus se manifestou em Judá” (nôda‘ bîhûdâ
’elohîm). Se a essência de Deus não pode ser vislumbrada pelo homem, Deus
se dá a conhecer por meio dos seus atos. Ao mostrar-se, o Senhor demonstrou
sua grandeza: “Seu nome é grande em Israel” (beyisra’el gadôl shemô).
A revelação pessoal de Deus não é um acidente de percurso, mas uma
iniciativa pessoal do Senhor, já que, não apenas chamou Israel para ser seu
povo pactual, como se introduziu no meio do povo e da sua vida por meio da
construção e do significado do tabernáculo (v.2): “Pois está em Salém a sua
tenda e em Sião a sua habitação” (wayhî beshalem sukkô ûme‘ônatô betsîyôn).
Salém e Sião são duas designações da cidade de Jerusalém, onde um
tabernáculo foi erigido por Davi para receber a arca até o tempo em que
Salomão construiu o templo.
A segunda percepção é que Deus é poderoso. A não ser quando Israel se
tornava alvo da disciplina do Senhor, sua imanência entre os israelitas trazia a
eles proteção. Essa é a razão desse salmo. O autor diz que em Jerusalém (cf.
v.2) o Senhor protegeu seu povo vencendo um inimigo poderoso, bem
armado e letal (v.3): “Ali ele despedaçou os relâmpagos do arco, o escudo, a
espada e a batalha” (shammâ shivvar rishfê-qashet magen weherev
ûmilhamâ). A libertação, segundo o salmista, foi tão magnífica que sua visão
de Deus foi enaltecida pelo conceito da glória (v.4): “Tu és resplandecente e
magnífico” (na’ôr ’attâ ’adîr).
A descrição do local do livramento e o poderio desbaratado do inimigo
fazem alguns estudiosos crerem que o salmo trata da libertação de Jerusalém
do ataque anunciado por Senaqueribe (2Rs 18.19-37), frustrado pela ação de
Deus de, em uma noite, fazer perecer 185 mil soldados assírios (2Rs 19.35-
37), encerrando sua campanha militar. Essa é uma sugestão que deve ser
considerada, já que o salmista fala do grande poderio que foi vencido
(vv.5,6): “Os valentes foram despojados. Eles dormiram seu sono e nenhum
dos homens fortes pôde contar com seus punhos. Por causa da tua repreensão
adormeceram tanto o carro como cavalo, ó Deus de Jacó” (’eshtôlelû ’avvîrê
lev namû shenatam welo’-mats’û kol-’anshê-hayil yedêhem migga‘arateka
’elohê ya‘aqov nirdam werekev wasûs). Leve-se em conta que esse sono e a
ação de dormir são eufemismos para a morte dos soldados, dos charreteiros
(os carros aqui citados são uma figura para se referir aos seus condutores) e
das suas montarias. Não é sem razão a admiração do salmista, visto o
expresso e revelado poder divino na vitória.
A terceira é que Deus é temível. Asafe declara exatamente isso (v.7): “Tu
és temível” (’attâ nôra’). Esse fato está assentado sobre outra qualidade do
Senhor que é a sua justiça. Assim, a razão para ser temido pelos homens é sua
ação de castigar o mal (v.8a): “Dos céus anunciastes tua sentença”
(mishammayim hishma‘ta dîn). O resultado prático de tal juízo torna Deus
temível diante dos homens, pois seu julgamento não é apenas uma
declaração, mas a concretização de ações poderosas. Sua sentença vem com
força e efeito a fim de promover juízo. Desse modo, Deus é tanto o juiz que
dá o veredito contra o mal como o oficial de justiça que faz cumprir a sua
decisão.
Nesse sentido, a atuação de Deus é dupla, pois ele, em primeiro lugar, traz o
direito que alivia os oprimidos (vv.8b,9): “A Terra se aterrorizou e se
acalmou ao se levantar Deus para executar o juízo e para libertar todos os
aflitos da Terra” (’erets yor’â weshaqatâ beqûm-lammishpat ’elohîm lehôshîa‘
kol-‘anwê-’erets). Em segundo lugar, ele destrona os perversos da sua
posição de arrogância e maldade (v.12): “Ele suprime o fôlego dos príncipes”
(yivtsor rûah negîdîm). A ideia formada por essa frase é que o Senhor os
impede de encher o peito orgulhosamente, abatendo-os e humilhando-os. A
conclusão é a mesma do início do v.7, acrescida da indicação de que ninguém
há que possa escapar dessa realidade: “Temível és aos reis da Terra” (nôra’
lemalkê-’arets).
A última percepção é a de que Deus é louvável. A admiração do salmista,
por fim, repousa sobre a dignidade do Deus de toda a Terra, a qual é
merecedora do louvor de seus servos. O curiosos é que ele não é louvável
apenas por trazer libertação e paz aos seus, mas por trazer também juízo aos
ímpios (v.10): “Pois a ira do homem te exalta” (kî-hamat ’adam tôdeka). À
primeira vista, essa frase é confusa. Entretanto, esse é um modo de exaltar
uma ação por meio do seu efeito. Nesse contexto, no qual Deus se levanta
contra os inimigos de Judá, o que produziu a ira desses homens foi a atuação
punitiva do Senhor sobre eles. Assim, seu nome é exaltado quando ele julga o
mal e pune os pecadores. Parece ser a mesma ideia de Paulo de que Deus é
revelado e glorificado tanto nos “vasos de misericórdia” como nos “vasos de
ira” (Rm 9.22-22). Por isso, o salmista completa: “Tu te cercas dos
sobreviventes da ira” (she’erît hemot tahgor), possivelmente transmitindo o
conceito de que Deus é glorificado até nas lembranças e nos relatos contados
pelos que viram seu poderio ruir diante do poder do soberano Senhor.
A ira dos inimigos punidos também aponta para o louvor do povo que
busca a Deus pela demonstração da fidelidade divina (v.11): “Façam votos ao
Senhor, vosso Deus, e cumpram” (nidarû weshallemû layhwâ ’elohêkem). Em
situações de calamidade e de iminente destruição, era comum os homens
fazerem votos a Deus pedindo libertação. O que o salmista ordena é que tais
votos sejam pagos em atitude de fidelidade. Assim, o temor a Deus mostra
seu lado reverente na adoração dos servos que admiram seu Senhor e o
louvam com atitudes práticas: “Tragam ofertas para aquele que é temível,
todos [vocês] que estão à sua volta” (kol-sevîvayw yôvîlû shay lannôra’).
Deus é, sim, admirável e digno de todo louvor, temor, respeito e submissão.
Por que será, então, que as pessoas têm mais disposição de admirar e exaltar
os feitos dos homens que exaltar aquele que lhes deu tais habilidades e cujo
poder e glória são incomparáveis? Talvez seja porque, até mesmo naqueles
que já foram perdoados e transformados pela graça de Deus, haja uma
pontinha – maior ou menor – da mesma soberba que é alvo do juízo divino.
Tal soberba tende a valorizar o homem em detrimento de Deus para que o
próprio homem receba um pouquinho da glória que pertence apenas ao
Criador soberano. Por isso mesmo, o povo de Deus deve notar essa raiz da
antiga erva daninha e erradicá-la totalmente. Sendo assim, que nossa maior
admiração seja constantemente direcionada àquele que faz o que ninguém
pode igualar e que é tudo sobre todos, cumprindo a ordem dada por meio do
profeta: “Mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu
sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas
me agrado, diz o Senhor” (Jr 9.24).

SALMO 77
A Questão do ‘Ponto de Vista’

Um dia desses, ouvi no rádio do carro um homem dito “religioso” pedindo


altas quantias de dinheiro às pessoas. Fiquei prestando atenção a fim de saber
como ele manipularia a Palavra de Deus em seu favor, mas fiquei muito
surpreso ao ver que ele nem sequer a citou. Em lugar disso, usou como
incentivo um suposto relato de uma mulher que lhe ofertou 3 mil reais e que,
depois, consultando a conta corrente, percebeu que havia 10 mil reais a mais
do que deveria. Quando contei isso a um amigo, achei interessante sua
observação. Ele disse: “E a mulher sacou o dinheiro que não era dela, né?”.
Depois de rir movido por essa observação, percebi como era fácil ver a
mesma situação sob ópticas diferentes. Para algumas pessoas, o relato do erro
bancário que gerou o acréscimo indevido na conta da mulher se tratava de
uma suposta “bênção” pela contribuição que ela fez ao pastor pedinte.
Contudo, outro ponto de vista era o de que tal relato revelaria a desonestidade
da mulher ao se apossar de um dinheiro que não lhe pertencia, afastando
qualquer possibilidade de isso ser considerado bênção de Deus. O fato é que
quase todos os assuntos são vistos sob pontos de vista diferentes – uns certos,
outros errados.
O Salmo 77 também apresenta dois pontos de vista sobre uma situação. A
diferença é que ambos veem da mesma pessoa, o salmista Asafe. Trata-se de
uma ocasião difícil para o escritor. Ele atravessa um momento que o faz
clamar (v.1): “Dirijo minha voz a Deus e clamo. Dirijo minha voz a Deus a
fim de que atente para mim” (qôlî ’el-’elohîm we’ets‘aqâ qôlî ’el-’elohîm
weha’azîn ’elay). Apesar de, até então, parecer uma atividade normal aos
servos de Deus, sua angústia o leva a uma oração incessante na qual ele não
encontra nem a solução para o problema e nem o consolo para sua alma (v.2):
“Eu busco o Senhor no dia da minha aflição. Minhas mãos ficam estendidas
incansavelmente durante a noite. Eu me recuso a ser consolado” (beyôm
tsaratî ’adonay darashtî yadî laylâ niggerâ welo’ tafûr me’anâ hinnahem
nafshî). Estender suas mãos em oração e negar o consolo apontam para uma
aflição severa que ainda não encontrou seu fim. Seguramente, o salmo foi
escrito em um momento de dor.
Assim, o salmista clama ao Senhor pela resolução de um problema grave –
que não é citado no texto – e para o qual, até então, não havia tido a desejada
resposta. Diante isso, o salmista passa por uma crise de fé. Ele se torna, em
dado momento, pessimista e desesperançado. Entretanto, parece vivenciar
uma virada marcante – não dos acontecimentos em si, mas do seu modo de
ver a situação. É como ocorreu no Salmo 73 em que, apesar de a injustiça e a
prosperidade dos ímpios continuarem, o salmista, que estava quase
abandonando a fé e a atitude correta diante de Deus, passa por uma virada ao
meditar em Deus (Sl 73.17) e volta à sua condição original de servo
esperançoso. Por isso, o salmista já tratado pelo Senhor e de volta à postura
correta, escreve o Salmo 77 para relatar seus dois pontos de vista sobre a dor
que atravessa e enaltecer a sua confiança em Deus e sua esperança final.
O primeiro ponto de vista é o de quem focaliza o sofrimento em si. Nesse
caso, o salmista via o bem-estar pessoal como seu bem mais precioso. Ao
faltarem-lhe a paz e o conforto, o resultado foi ver seu mundo desabar. Ao
olhar para sua vida sob essa lente pessimista, a primeira consequência foi não
encontrar conforto em Deus (v.3): “Eu me lembro de Deus e gemo. Eu
medito e meu espírito desfalece” (’ezkerâ ’elohîm we’ehemayâ ’asîhâ
wetit‘attef rûhî). O fato de Deus lhe parecer motivo de sofrimento e não de
consolo se deve à sua interpretação da situação, na qual Deus lhe estava
sendo contrário (v.7): “É para sempre que o Senhor rejeita? E não volta ele a
se agradar outra vez?” (hal‘ôlamîm yiznah ’adonay welo’-yosîf lirtsôt ‘ôd).
Parece que, sob a óptica do sofrimento, o escritor pensa que Deus só deveria
favorecer os seus e nunca lhes permitir sofrerem. Eis a razão pela qual Deus
não lhe serve de conforto e esperança, mas de desgosto e desânimo.
O salmista também busca uma explicação para o que lhe sobreveio.
Pensamentos como “o Senhor está trabalhando em minha vida de uma
maneira misteriosa para o meu bem” nem sequer passaram pela sua mente.
Em lugar disso, ele empreende uma busca acurada por respostas para o
sofrimento que atravessa (v.6b): “Com meu coração eu medito e meu espírito
avalia” (‘im-levabî ’asîhâ wayhaffes rûhî). Como nem sempre é fácil entender
os planos e a atuação de Deus, algumas respostas às quais o salmista chega
são erradas.
Ele cogita que Deus deixou de ser fiel (v.8): “Cessou definitivamente a sua
lealdade? Chegou ao fim a promessa [feita para durar] de geração em
geração?” (he’afez lanetsah hasdô gamar ’omer ledor wador). Ele também
concluiu que Deus não é bondoso como todos pensam (v.9): “Deus se
esqueceu de conceder graça? Ou será que ele, ao se irar, fechou a sua
compaixão?” (hashkah hannôt ’el ’im-qafats be’af rahamayw). “Fechar sua
compaixão”, aqui, traz a ideia de obstruir a passagem em que transita a
misericórdia divina. Buscando ele mesmo responder a essas perguntas, o
salmista chega a pensar que Deus é o culpado por sua dor, sendo repreensível
por se tornar inativo diante do sofrimento (v.10): “Eu concluí que meu
sofrimento é este: a mudança da destra do Altíssimo” (wa’omar hallôtî hî’
shenôt yemîn ‘eleyôn). Todas essas suposições estão erradas e são fruto de
uma mente que acredita que ser feliz e viver bem são os objetivos máximos
do homem nesse mundo, de modo que Deus teria obrigação de promovê-los.
Não é preciso dizer que tal mentalidade é a porta para a apostasia.
Apesar do pessimismo do primeiro enfoque, o segundo ponto de vista é o
de quem focaliza o próprio Deus. Sem explicar bem o porquê, o salmista
passa a olhar para Deus com confiança gerada a partir das lembranças do
glorioso passado de Israel como beneficiário da mão poderosa e protetora do
Senhor (v.11): “Lembro-me dos feitos do Senhor, pois me lembro dos teus
prodígios do passado” (’azkîr ma‘allê-yah kî-’ezkerâ miqqedem pil’eka). Não
significa que ele recordou algo esquecido, mas de que tais verdades, vistas
agora sob a óptica correta, são a razão de outra postura de sua parte. Ele
simplesmente apontou seus olhos para a história do seu povo e meditou sobre
o caráter de Deus expresso nas suas ações (v.12): “Pois eu refleti em todos os
teus feitos e meditei em todas as suas ações” (wehagîtî bekol-pa‘oleka
ûba‘alîlôteyka ’ashîhâ). Interessante notar que a mesma ação de “meditar”
pode levar alguém para longe ou para perto de Deus dependendo do ponto de
vista (comparar vv.3,6 com v.11).
A consequência imediata dessa nova disposição mental, ajustada com a
realidade dos servos de Deus, é a convicção do tipo de atuação que vem do
Senhor (v.13): “Ó Deus, na santidade está o teu caminho” (’elohîm
baqqodesh darkeka). Desse modo, nenhum parâmetro humano pode julgar as
ações de Deus. A separação de Deus do mundo e sua distinção de toda a
criação fazem com que nosso modo egoísta de pensar, nosso procedimento
muitas vezes infiel e nossa falta de misericórdia estejam ausentes no Deus
santo. Por isso, nem o quadro imaginado pelos homens com respeito aos
falsos deuses encontra paralelos no Senhor: “Que deus é grande como [nosso]
Deus?” (mî-’el gadôl ke’lohîm).
Muitos são os feitos de Deus, na história israelita, em que se pode refletir
sobre seu poder e caráter. Entretanto, o salmista parece retroceder seu
pensamento aos tempos de Israel no Egito, ao narrar a libertação do povo
com a citação não apenas de Jacó, mas também de José (v.15). Essa
percepção se confirma quando, nos versículos seguintes, o salmista cita a
travessia do povo pelo mar mediante o grande poder de Deus (vv.16-19). Ele
encerra o salmo com o resultado final de uma aflição para qual, sob o olhar
meramente humano, não havia solução (v.20): “Tu guiaste o teu povo como
rebanho pelas mãos de Moisés e de Arão” (nahîta katso’n ‘ammeka beyad-
mosheh we’aharon). É muito significativo ele olhar para uma solução
inesperada que veio no tempo certo sob as mãos do Onipotente, quando é
justamente isso que ele precisa no momento dificílimo que atravessa. O
significado dessa menção é que, sob a óptica de quem conhece o caráter, a
sabedoria, o poder e o amor de Deus, ele mantém sua esperança no Senhor e
a correta condição de servo adorador.
Que necessária mensagem para as pessoas de hoje! O crescimento do
egoísmo e do utilitarismo dentro das igrejas tem tornado a busca de Deus
uma busca meramente de prosperidade, conforto e felicidade. Quando alguém
não encontra tais coisas, muda de igreja a fim de encontrar o local, o pastor
ou o ritual que possam lhe conceder as ditas “bênçãos”. Se nada resolve, o
que surge são o sentimento de revolta contra Deus e o subsequente
afastamento de tudo que está relacionado ao verdadeiro cristianismo. No final
das contas, vivemos dias de superstições pseudoevangélicas que servem
apenas para dar vazão à cobiça humana, conforme preveniu o apóstolo: “Pois
haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-
ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira
nos ouvidos” (2Tm 4.3). Que a verdadeira igreja do Senhor abandone o ponto
de vista do egoísmo e se apegue com todas as forças à visão da glória do
Deus verdadeiro!

SALMO 78
As Lições do Passado que Educam no Presente

Não sou de guardar na memória muitos provérbios populares, mas de um


deles, ainda que o tempo passe, nunca me esqueço: “O homem inteligente
aprende com seus erros; o homem sábio aprende com os erros dos outros”.
Não sei quem é o autor desses dizeres, mas acho-os geniais. Ensinam que a
observação do presente e principalmente do passado, como seus erros e
acertos, pode impedir que alguém sofra consequências de más decisões
simplesmente porque viu o que aconteceu com outros quando assim agiram.
Por isso, História da Igreja é tão importante para a igreja moderna.
Do mesmo modo, as Escrituras também fornecem muitas lições preciosas
que podem guiar os servos de Deus no presente, livrando-os das armadilhas
que lhes estão preparadas, tanto pelos inimigos do Senhor como pelo próprio
pecado pessoal. O Salmo 78 é um exemplo do uso dessas lições a fim de
educar as novas gerações para que evitem os erros do passado e prossigam
rumo ao futuro munidos do desejo e da sabedoria que levam à comunhão de
Deus e ao seu serviço. Assim, Asafe declara, logo de início, seu propósito
(vv.3,4): “O que nós ouvimos e aprendemos e o que nossos pais nos contaram
não esconderemos dos seus filhos. Anunciaremos à próxima geração os
louvores do Senhor, o seu poder e os seus feitos maravilhosos” (’asher
shama‘nû wanneda‘em wa’avôtênû sifferû-lanû lo’ nekahed mivvenêhem ledôr
’aharôn mesafferîm tehillôt yehwâ we‘ezûzô wenifle’ôtayw ’asher ‘asâ).
Seguindo esse propósito, o salmista aponta seis fontes de aprendizado para
que o povo de Deus aja com sabedoria e honre ao seu Senhor.
A primeira fonte de aprendizado são as instruções de Deus. O salmista,
falando das ações divinas entre o povo de Israel, diz (v.5): “Ele estabeleceu
uma norma em Jacó e promulgou uma lei em Israel” (wayyaqem ‘edût
beya‘aqov wetôrâ wam beyisra’el). A “lei” (tôrâ), cuja palavra hebraica pode
ser também traduzida como “instrução”, além de revelar o caráter de Deus,
servia para tornar Israel – por meio da obediência – o povo reto que serviria
seu Senhor. Por isso, Deus disse a Abraão: “Porque eu o escolhi para que
ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o
caminho do Senhor e pratiquem a justiça e o juízo” (Gn 18.19). Nesse
mesmo sentido, o salmista continua sua colocação reafirmando a necessidade,
conforme a própria instrução divina (Dt 6.7; 11.19), de se transmitir às
gerações posteriores as palavras e a revelação de Deus sobre ele mesmo e
sobre seus desejos: “Ele ordenou aos nossos pais que ensinassem aos seus
filhos” (tsiwwâ ’et-’avôtênû lehôdî‘am livnêhem). O objetivo é produzir uma
geração que conheça o temor e a comunhão do Senhor (v.7): “A fim de que
coloquem em Deus a sua confiança e não se esqueçam dos feitos de Deus,
mas guardem seus mandamentos” (weyasîmû be’lôhîm kislam welo’ yishkehû
ma‘allê-’el ûmitsôtayw yintsorû).
A segunda fonte de aprendizado são os erros dos antepassados. A
instrução divina deveria produzir obediência, mas não foi o que aconteceu.
Em lugar disso, o salmista cita os tristes fatos da história da geração que
deixou o Egito em meio aos grandes feitos de Deus (v.10): “Eles não
guardaram a aliança de Deus e se recusaram a andar em sua lei” (lo’ shomrû
berît ’elohîm ûbetôratô me’anû laleket). A razão disso, apesar de parecer
absurdo diante de tudo que viram, foi que (v.11) “eles se esqueceram dos seus
feitos e dos seus prodígios os quais [Deus] lhes mostrou” (wayyishkehû
‘alîlôtayw wenifle’ôtayw ’asher her’am). Esse ato de “esquecer” não se refere
a um tipo de amnésia, mas sim, desvalorizar o que aconteceu – que não foi
pouco (vv.12-16) – quando tais lembranças deveriam mudar seu modo de
viver e de se relacionar com Deus. Em outras palavras, eles escolheram ser
rebeldes diante do Senhor. Por isso, ainda que Deus tenha feito coisas
incomparáveis em favor dos israelitas (v.17), “eles continuaram pecando
contra ele, desafiando o Altíssimo no deserto.” (wayyôsîfû ‘ôd lahato’-lô
lamrôt ‘elyôn batsîyâ). Essa rebelião é descrita pelo salmista por meio de
colocações irreverentes e perguntas desafiadoras dos israelitas (vv.18-20). O
erro deles foi tão gritante, sem falar da consequência na forma da ira divina
(v.21), que qualquer um que olhasse para esse momento triste da história
poderia aprender como não agir e, também, ser incentivado a confiar em
Deus, fazendo o oposto do que fez aquela geração perversa (v.22).
A terceira fonte é a provisão divina. Apesar da ira contra o pecado, o
Senhor não abandonou o povo à sua própria sorte no deserto infértil. Sua
resposta ao desafio desrespeitoso da parte dos israelitas (v.20), ao contrário
do que se poderia esperar, foi supri-los com o alimento de que tanto
necessitavam (vv.23,24): “Ele deu ordem às mais altas nuvens e abriu as
portas dos céus. Assim, fez chover sobre eles o maná para que comessem e
lhes deu um cereal celestial” (waytsan shehaquîm mimma‘al wedaltê
shamayim patah wayyamter ‘alêhem man le’ekol ûdegan-shamayim natan
lamô). Os cereais são produzidos na terra, mas o que Deus lhes deu no meio
do deserto veio dos céus, miraculosamente colhido das nuvens.
Incrivelmente, nem isso fez com que Israel voltasse seu coração para quem
lhes supria de pão, de carne e de toda provisão, proteção e amor que jamais
pudessem imaginar (vv.25-31). Apesar do mau exemplo desses israelitas, essa
lição ainda testifica da prontidão divina em suprir seus servos.
A quarta é a disciplina do Senhor. Apesar de tudo que Deus fez, os
israelitas (v.32) “pecaram novamente e não creram nos seus prodígios”
(hate’û-‘ôd welo’-he’emînû benifle’ôtayw). Por causa do caráter de Deus, o
pecado gerou punição (v.33). Contudo, essa punição não vinha sobre eles
para extingui-los e extirpá-los da face da Terra. Vinha em tal medida e forma
que é possível perceber o intuito divino de disciplinar o povo para que se
voltasse a ele. O intento era alcançado e Israel, ao sofrer o castigo,
demonstrava arrependimento (v.34): “Quando [o Senhor] os abateu, eles o
buscaram, arrependeram-se e procuraram prontamente a Deus” (’im-haragam
ûderashûhû weshavû weshiharû-’el). Se antes eles “se esqueceram” dos feitos
benéficos do Senhor, depois da disciplina (v.35), “eles se lembraram que
Deus é a sua rocha e que o Deus altíssimo é o seu resgatador” (wayyizkerû
kî-’elohîm tsûram we’el ‘elyôn go’alam). Infelizmente, o salmista – e também
a história de Israel no Antigo Testamento – mostra que esse arrependimento,
quando surgia, era superficial e imperfeito (vv.36,37). Não obstante, o Senhor
não os destruiu por ser um Deus misericordioso (v.38) “Ele é compassivo,
perdoa a iniquidade e não destrói” (wehû’ rahûm yekaffer ‘aôn welo’-yashhît).
Assim, é possível aprender a temer e a amar o Senhor ao olhar para sua
disciplina e para o modo como ele dosa a justiça e a misericórdia no trato
com os seus (vv.40-53).
A quinta fonte de aprendizado é a soberania de Deus. A dura jornada no
deserto terminou quando Israel se viu às margens do Jordão (v.54) com a
missão de invadir a terra da promessa e conquistá-la. Porém, as nações que
deveriam ser desalojadas eram mais poderosas que Israel e possuíam cidades
com fortes muralhas (Dt 9.1,2). Mesmo assim, o Senhor prometeu que lhes
daria aquela terra pelo seu próprio poder (Dt 9.3). O salmista confirma o
sucesso da ação divina de vencer os inimigos e dar a terra a Israel (v.55): “Ele
expulsou os povos de diante deles, sorteou as porções da herança e fez as
tribos de Israel habitarem nas suas casas” (waygaresh miffenêhem gôyim
wayyaffîlem behevel nahalâ wayyashken be’aholêhem shivtê yisra’el). O
mesmo poder se fez ver, já na terra, de diversas maneiras, seja trazendo
inimigos contra os pecadores como punição (vv.60-64 cf. vv.56-59), seja
livrando-os da completa ruína (vv.65,66). O fato é que se pode aprender que o
Senhor Deus guia toda a história, todas as nações, todas as guerras e todos os
poderes com sua palavra irresistível.
Por fim, a sexta fonte de aprendizado são os decretos divinos. O salmista
ressalta que o Senhor tem planos que não se submetem às circunstâncias. Por
isso, apesar de José ter sido destacado entre seus irmãos pela sua fidelidade e
procedimento na terra do Egito, seus descendentes – entre eles, a tribo de
Efraim – não foram escolhidos para abrigarem nem o local do templo do
Senhor (vv.67-69 – Sião, ou Jerusalém, fica no território benjamita, anexado a
Judá na divisão dos reinos em 931 a.C.), nem a casa real de Israel (vv.70-72).
Em seu lugar, Deus decretou que Judá fosse a tribo detentora de tais
privilégios, decreto este que fora feito muito tempo antes, quando Jacó
abençoou seus filhos antes de morrer: “O cetro não se arredará de Judá, nem
o bastão de entre seus pés” (Gn 49.10a). Nada pode mudar os projetos de
Deus, nem impedi-lo de cumprir o que prometeu, nem mesmo a
improbabilidade de um simples pastor de ovelhas como Davi vir a ser rei de
uma nação. Essa é, de fato, uma grande lição vinda do estudo bíblico, não só
sobre os planos e decretos do Senhor soberano, mas também sobre sua
capacidade de realizá-los e sua fidelidade em cumpri-los.
Ao que tudo indica, o escritor escreveu esse salmo para produzir no povo
arrependimento, temor, obediência e fidelidade a Deus. Talvez, a condição
espiritual dos leitores dos seus dias não fosse a melhor e, por isso, mais do
que nunca, era preciso voltar os olhos para as Escrituras e aprender lições
que o passado conservou com a finalidade de produzir correção e sabedoria –
valores fundamentais para os servos de Deus. Arrisco-me a dizer que a
necessidade dos “nossos dias” não é diferente. Nós também precisamos olhar
para a Palavra de Deus e aprender com seus tesouros. Afinal, “toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a
correção, para a educação na justiça” (1Tm 3.16).

SALMO 79
Providências Necessárias Depois do Choro

Há alguns anos ouvi a gravação de uma fita cassete que me fez retornar ao
passado. Ela foi gravada na casa do meu avô paterno enquanto eu e meu
primo brincávamos com um jogo que possuía um tabuleiro com pequenas
bolas. Além das conversas entre as pessoas que estavam na sala, a gravação
registrou o choro crescente da minha irmã, que ainda era uma pequena
criança, dizendo: “Eu quero a bolinha na mão!”. O que ela queria era pegar
uma das bolinhas do jogo. Em certo ponto da gravação, vozes começaram a
alertá-la sobre a iminente disciplina, caso continuasse com o choro mantido
por motivos errados. Infelizmente, os alertas não resolveram. A certa altura,
ouve-se uma mudança na intensidade do choro, demonstrando que ela foi
mesmo disciplinada. Nesse momento, minha mãe disse à minha irmã – com
um sotaque interiorano muito engraçado: “Agora você chora, porque agora
você merece!”. O que ela quis dizer foi que as reclamações indevidas e a
desobediência irredutível encontraram a devida e anunciada punição, de
modo que o choro passou a ser razoável. Não sei se minha irmã se lembra dos
fatos daquele dia, mas, até hoje, ela – e a família – se diverte com aquela
gravação.
Uma disciplina que, quando recordada, não produz diversão e risos foi a
punição de Judá pelo exército babilônico de Nabucodonosor (587 a.C.). Se o
Salmo 78 foi uma tentativa de, por meio das lições do passado, levar o povo
ao arrependimento e à verdadeira devoção ao Senhor “antes” que fosse
disciplinado, o Salmo 79 foi escrito “depois” que a dura punição se abateu
sobre Jerusalém e sobre o povo que se portou de modo irreverente e iníquo
diante de Deus. Porém, além do lamento natural em um momento como esse
– nessa ocasião, Jeremias escreveu o livro de Lamentações –, agora era hora
de aprender, ainda que tardiamente, a lição que Deus queria ensinar e
trabalhar pela restauração. Só que esse “trabalhar” não era algo a ser feito
pelos “braços” dos israelitas, mas pelos seus “joelhos” – modo figurado de
dizer que eles deveriam se humilhar diante de Deus e buscá-lo com os
corações arrependidos e desejosos de cumprir sua santa vontade. Nesse
sentido é que o salmista indica três providências que Israel deveria tomar
para ser restaurado pelo Senhor, tanto espiritual como politicamente.
A primeira providência é saber interpretar as consequências do pecado
(vv.1-4). É muito comum, diante de circunstâncias difíceis, ver as pessoas
assumindo atitudes diferentes. Em alguns casos, vemos gente que sofre agir
como se nada estivesse acontecendo. Não me refiro à atitude de não se abater
diante das dificuldades por confiar no Senhor, mas de, em um tipo infantil de
otimismo, praticamente irresponsável, negar o sofrimento em termos mais ou
menos assim: “Eu não aceito essa situação e, a partir de agora, já sou
vencedor”. Em outros casos, não importa o tamanho do problema, para
algumas pessoas a vida simplesmente acabou e, por ela, a morte pode levá-la.
Ambas as posições ignoram a verdade falhando em analisar os fatos que, no
caso do Salmo 79 – e de muita gente –, tratava-se de consequências do
pecado contra o qual Deus se irou (v.5).
Assim, o salmista descreve sua verdadeira situação (v.1): “Ó Deus, as
nações entraram na tua herança, profanaram o teu santo templo e
transformaram Jerusalém em ruínas” (’elohîm ba’û gôyim benahalateka
timme’û ’et-hêkal qodsheka samû ’et-yerûshalaim le‘îyîm). Além da invasão
militar, houve crueldade de tal maneira que só era comum em casos de
vingança contra um povo que foi rebelde ou que agiu como um inimigo
odioso. Tal crueldade se manifestou na desonra dos corpos dos israelitas
mortos – algo que, na visão da época, constituía um dos maiores temores dos
guerreiros (v.2): “Eles deram os cadáveres dos teus servos como comida às
aves do céu e a carne dos teus fiéis aos animais da terra” (notnû ’et-nivlat
‘avadeyka ma’akal le‘ôf hashamayim besar hasîdeyka lehaytô-’arets). Em
outras palavras, eles não receberam sepultura (v.3) e tiveram seus corpos
desonrados ao apodrecer no tempo e ao ser devorado por bichos, tornando-os
motivo de escárnio para quem o ouvisse (v.4). A realidade era dura de
encarar, mas somente por meio da verdade dos fatos e da correta relação com
sua causa (v.5) é que viria a restauração futura para a desventura presente.
A segunda providência é buscar a Deus para o perdão e a restauração
(vv.5-12). O reconhecimento da ira de Deus na forma da severa punição (v.5)
leva o salmista a pedir perdão pelos pecados da nação (v.8): “Não evoque
contra nós as iniquidades dos antepassados” (’al-tizkar-lanû ‘aônot
ri’shonîm). O salmista não está culpando as gerações anteriores e isentando a
geração presente. Ele provavelmente recorda a aliança do Senhor com Israel
no Sinai – que previa esse tipo de punição pela quebra do pacto – e dos
prolongados avisos do Senhor por meio dos profetas, aos quais tanto as
gerações passadas como a presente haviam ignorado. Em lugar disso, o
salmista busca a misericórdia de Deus: “Que nos alcance logo a tua
compaixão, pois estamos muito abatidos” (maher yeqaddemûnû rahameyka kî
dallônû me’od). Se até aqui não houve clareza quanto à contrição de coração,
o salmista pede claramente (v.9): “Perdoa os nossos pecados por amor ao teu
nome” (kaffer ‘al-hatto’tênû lema‘an shemeka).
Junto com o arrependimento que levou a um pedido de perdão, o salmista
pede outras coisas (v.9): “Socorra-nos” (‘ozrenû) e “livra-nos” (hatsîlenû).
Ao que tudo indica, o salmista vê bem a relação entre o arrependimento e
perdão de pecados com a restauração do pecador e seu retorno à condição de
servo abençoado pelo Senhor. Por isso, o salmista clama confiantemente pela
punição dos inimigos que destruíram Jerusalém e desonraram o povo do
Senhor (vv.6,7,11,12) e, também, pela vindicação do próprio nome de Deus,
cujo povo servia de testemunho do seu amor e poder (v.10).
A última providência é voltar à constância da submissão e da adoração
(v.13). Nenhum arrependimento é verdadeiro se não vislumbra o retorno à
fidelidade. Nenhuma restauração é completa se não há restauração no âmbito
espiritual. Por isso, o escritor do Salmo 79, antes de encerrar o texto, se refere
ao povo de Israel (v.13) como “teu povo e rebanho do teu pasto” (‘ammeka
wetso’n mar‘îteka). Ao dizer “teu povo”, a figura divina que é produzida na
mente dos leitores é a de que Deus é o rei da nação, sendo assim seu Senhor e
normatizador do modo de vida e de culto. Ao dizer “teu rebanho”, firma-se a
ideia da dependência que os israelitas tinham diante do seu protetor e
provedor. Não há espaço nesse quadro para a manutenção e continuidade da
rebeldia que lhes trouxe punição. Isso quer dizer que, depois do
arrependimento e da restauração, o salmista vislumbra o povo de Israel de
volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído: sob o comando pleno do
Altíssimo.
Como consequência de tal retorno, ele também propõe a efetivação da
função de Israel que, entre outras coisas, deveria adorar a Deus e ser razão,
até entre outros povos, de revelação do caráter divino e da produção de temor
ante o soberano: “Exaltaremos a ti para sempre, proclamaremos teu louvor de
geração em geração” (nodeh leka le‘ôlam ledor wador nesaffer tehillateka).
Adoração e proclamação são as duas atividades que o salmista atribui a Israel
– em circunstâncias ideais, obviamente – a serem realizadas “para sempre”.
Sendo assim, tal observação não age exatamente como profecia, mas como
um chamado aos israelitas para que, arrependidos, adorem a Deus
continuamente com devoção e temor.
A nação israelita, de fato, aprendeu com as lições do passado – pelo menos
nunca mais adorou outros deuses – e buscou a misericórdia de Deus. Foi
restaurada à sua terra no ano 538 a.C., um ano depois de a Babilônia cair
diante do poderio medo-persa e do controle de Ciro. Porém, Israel voltou a
abandonar Deus e deixou de obedecê-lo ao negligenciar, nos dias de Ageu e
Zacarias, a reconstrução do templo do Senhor, ao se unir, nos dias de Esdras,
às mulheres moabitas, ao promover, nos dias de Neemias, mais injustiça
social e descaso com a lei da aliança e, nos dias de Malaquias, promover um
culto odioso a Deus pelo desprezo que tinha para com as ofertas, com a
pureza de coração e com a devoção verdadeira.
Isso significa que as providências tomadas pelo salmista, no Salmo 79,
devem ser constantes. Afinal, o pecado ainda acomete todos os servos de
Deus, os quais aguardam o tempo em que terão seus corpos glorificados e
não mais conviverão com as consequências da queda. Até lá, saber
reconhecer os fatores que apontam os erros, buscar a reconciliação e
comunhão com o Senhor por meio do perdão que há na obra de Jesus Cristo e
entrar em um sério processo de santificação, com a finalidade de ser
constantes na adoração, pureza e testemunho cristão, são as obrigações
diárias de todos os que foram redimidos pela graça divina. No final de tudo,
na presença do nosso Senhor e mestre, minha mãe, com um grande sorriso no
rosto, poderá dizer – talvez até com aquele sotaque engraçado: “Agora você
ri, porque agora você não mais padece!”.

SALMO 80
Quando Deus Faz o que Disse que Faria

Assim que me formei, mudei-me para uma cidade no sertão mineiro com a
intenção de lá pregar o evangelho. Nos dez anos em que lá morei, passei a
conhecer as agruras da seca, já que se trata de uma terra onde as chuvas
costumam surgir somente no verão – houve um ano em que não choveu
durante onze meses. Eu brincava dizendo que lá o Sol queimava até na
sombra. Depois de deixar a região e voltar à minha terra de origem, até hoje
me pego admirando a chuva como se fosse demorar muito tempo para ver
outra.
Contudo, houve um ano – antes de eu me mudar para lá – em que choveu
quarenta dias seguidos, fazendo com que as estradas, que eram todas de terra,
se tornassem uma poça conjunta de lama. As estradas ficaram simplesmente
intransitáveis e a cidade começou a ficar ilhada. Caminhões com
mantimentos não conseguiam chegar até lá, de modo que houve certo pânico
entre os habitantes diante da possibilidade de os mercados ficarem vazios e
não haver o que comer. Ainda que fosse uma região que normalmente era
seca e que a chuva fosse ansiosamente aguardada, tudo que moradores da
região queriam nesse ano era ver a chuva passar e o Sol voltar a brilhar.
Esse mesmo desejo está no contexto do Salmo 80. Ele foi escrito em um
momento histórico que não é fácil de definir. Há quem considere a queda de
Samaria, capital do reino do Norte, Israel (722 a.C.), como esse momento.
Entretanto, a aflição causada por aquele reino a Judá torna improvável que o
salmista sentisse a tristeza contida nesse salmo diante da queda do inimigo.
Na verdade, a queda de Israel seria vista como libertação de Deus para Judá –
assim como foi profetizado em Isaías 7.1-9. Além disso, parece que todo o
território herdado pelos descendentes de Jacó fora abatido, haja vista (v.2) as
menções a Efraim (uma das tribos de Israel, onde estava a capital do reino,
Samaria), a Benjamim (uma das tribos de Judá, onde ficava a capital,
Jerusalém) e a Manassés (metade da tribo de Manassés representava a maior
unidade israelita na Transjordânia) – apesar de a referência a José (v.1) ser
uma clara inferência ao reino do Norte, cujas maiores tribos eram Efraim e
Manassés, os dois filhos de José. Assim, é bem possível que o contexto desse
salmo seja o mesmo do salmo precedente: a queda de Judá perante a
Babilônia, quando o único dos dois reinos até então intocado fora atingido
pelas consequências da sua maldade.
A semelhança entre esse salmo e a história que contei no início é que, em
ambos, as pessoas queriam ver o Sol brilhar. Isso, que na ilustração inicial era
um desejo literal, no salmo é uma figuração para a presença abençoadora e
libertadora do Senhor. O salmista trata essa ação de Deus como se fosse o
“brilho do Sol”, dizendo repetidas vezes (vv.3,7,19): “Faz brilhar o teu rosto
para que sejamos salvos” (weha’er paneyka weniwwashe‘â). Aliás, o salmo
começa com um clamor nesse sentido, de modo a conter dois pedidos (v.1):
“Dá ouvidos [ao clamor]” (ha’azînâ) e “faz brilhar” ou “resplandeça”
(hôfî‘â). O significado desse pedido é claro dentro do contexto (v.2):
“Desperta a tua força e vem para [trazer]-nos salvação” (‘ôrerâ ’et-gevûrateka
ûlekâ lîshu‘atâ lanû).
O desejo do salmista por ver tal brilho cumpre um papel dentro de uma
figura agrária: Israel é uma videira (v.8) que necessita do brilho do Sol e está
morrendo por falta dele. Na verdade, essa figura proposta pelo salmista não é
original e é muito provável que ele tivesse em mente o cumprimento do que
Deus avisou que faria no “cântico da vinha”, do profeta Isaías (Is 5.1-7) –
profecia de juízo contra Israel e contra Judá pelos seus pecados (cf. Is 5.7 –
Ezequiel e Oseias fizeram o mesmo [Ez 17.6-10; Os 10.1]). Assim, Isaías
comparou Israel a uma vinha pertencente a Deus (Is 5.1), pelo que o salmista,
tendo em mente tais predições, diz: “Tu tiraste do Egito uma videira” (gefen
mimmitsrayim tassîa‘) – clara menção ao êxodo. Essa videira foi tirada do
Egito e levada para uma terra que Deus, como agricultor, limpou e deixou
pronta para o cultivo (v.9): “Limpaste [a terra] diante dela [a videira]”
(pinnîta lepaneyha), ao que Isaías se refere nos seguintes termos: “O meu
amado teve uma vinha num outeiro fertilíssimo. Sachou-a, limpou-a das
pedras e a plantou de vides escolhidas” (Is 5.1b,2a).
O resultado desse cuidado, escolhendo a vide, tirando-a do Egito, limpando
a terra do que não era bom (v.8b) e tornando o solo propício para o plantio, é
que a vinha se estabeleceu muito bem e se espalhou por todo o terreno, a
saber, toda a terra de Canaã (vv.9-11). Contudo, algo surpreendente acontece,
sobre o que o salmista indaga do Senhor (v.12): “Por que derrubaste a cerca
dela?” (lammâ paratsta gedereyha). Derrubar a cerca que rodeava a vinha,
nesse caso, significa que Deus retirou e proteção dos israelitas e permitiu que
outras nações o invadissem e destruíssem (v.13), algo que Isaías previu muito
tempo antes de acontecer: “Agora, pois, vos farei saber o que pretendo fazer à
minha vinha: tirarei a sua sebe, para que a vinha sirva de pasto; derribarei o
seu muro, para que seja pisada” (Is 5.5).
Por essa causa, a condição da nação israelita quando o Salmo 80 foi escrito
era a seguinte (v.16): “Queimada a fogo e arrancada” (serufâ ba’esh kesûhâ).
Essa descrição combina com o anúncio do estado caótico advindo do juízo
divino presente nos dizeres de Isaías: “Torná-la-ei em deserto. Não será
podada, nem sachada, mas crescerão nela espinheiros e abrolhos; às nuvens
darei ordem que não derramem chuva sobre ela” (Is 5.6). É um quadro de
destruição e de infertilidade.
A questão que permanece diante desse quadro de uma mudança abrupta no
tratamento da vinha pelo seu agricultor divino é: “Por que Deus faria uma
coisa dessas – abandonar Israel e entregá-lo ao inimigo – com seu povo que
tirou do Egito e que estabeleceu em Canaã com todo cuidado?”. A resposta é
conhecida do salmista. Na verdade, ele nem sequer pergunta a Deus “por
quê”, mas “até quando”, mostrando saber que Israel estava sendo punido
pelos pecados que cometeu e pela rebeldia que manteve diante do Senhor
(v.4): “Ó Senhor, Deus dos Exércitos, até quando estarás irado contra a
oração do teu povo?” (yehwâ ’elohîm tseva’ôt ‘ad-matay ‘ashanta bitfillat
‘ammeka). Estar irado, ou “fumegar” (tradução literal) é a reação de Deus à
rebeldia e à desobediência do povo, pelo que não mais lhe atende as orações.
A razão para tanto é exposta por Isaías pelo uso de trocadilhos (Is 5.7). Ele
afirma que o Senhor se irou contra Israel porque lhe pediu um “julgamento
justo” (mishpat), mas viu o povo produzir “crime” ou “assassinato” (mispâ),
descrição do tratamento injusto que os poderosos rendiam aos mais fracos por
pura ganância e cobiça, tomando-lhes os bens e as terras e vendendo
sentenças a pessoas de muitas posses (um exemplo disso pode ser visto em
1Rs 21.1-16). Deus também lhes ordenou “justiça” (tsedaqâ), mas só se viu
entre eles “choro” ou “clamor” (tse‘aqâ), reação dos que eram abatidos
injustamente. Em resumo, o Salmo 80 vislumbra a anunciada punição do
Senhor ao povo pecador, injusto e obstinado. O Senhor realmente fez aquilo
que disse que faria. O salmista entende a lição e recorre a Deus,
reconhecendo o pecado de Israel (v.4), e se propõe, ensinando o povo a fazer
o mesmo, a retornar ao estado original de fidelidade para com Deus (v.18):
“E não nos afastaremos de ti. Vivifica-nos e proclamaremos o teu nome”
(welo’-nasôg mimmeka tehayyenû ûveshimka niqra’).
Assim, a conclusão que tiramos é que quando recai sobre alguém a
disciplina de Deus prevista para os momentos em que seus servos agem
obstinadamente (Hb 12.5-7), não adianta tentar racionalizar a situação
encontrando justificativas para o pecado, nem mudar de igreja procurando
algum lugar em que a iniquidade seja aceita, nem tampouco lançar mão de
técnicas “mágicas” para tentar comandar a situação e obrigar Deus a agir
beneficamente. Só há uma solução: o arrependimento de pecados, o retorno à
santidade e a renovação da submissão ao Senhor. Afinal, como diz o próprio
Isaías, “a mão do Senhor não está encolhida, para que não possa salvar; nem
surdo o seu ouvido, para não poder ouvir. Mas as vossas iniquidades fazem
separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu
rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.1,2).

SALMO 81
A Falsa Gratidão a Deus

Todas as guerras têm em si a capacidade de mostrar as melhores qualidades


dos homens e também as piores. A Segunda Guerra Mundial não foi
diferente. No intuito de fazer o que fosse necessário para vencer a guerra do
Pacífico, os Estados Unidos e o Japão lançaram mão de artifícios pelos quais,
no futuro, vieram a pedir perdão mútuo. Entre essas táticas – “não muito
honradas” –, o Japão tentou estabelecer sua hegemonia no Pacífico
destruindo a frota americana ancorada em Pearl Harbour, o que aconteceu em
7 de dezembro de 1941. A fim de garantir a surpresa do ataque, o embaixador
japonês nos Estados Unidos, o almirante Kichisaburo Nomura, negociou a
paz até pouco tempo antes do ataque, tranquilizando os americanos quanto à
possibilidade de uma guerra iminente. A falsidade dessa demonstração fez
com que o ataque não provocado à frota americana no Havaí, sem que
houvesse uma declaração formal de guerra, fosse considerado um ato
traiçoeiro tremendamente repreensível – vale lembrar que o final dessa guerra
não foi mais nobre que seu início. Como resposta ao ataque a Pearl Harbour,
uma ação militar retaliatória foi ordenada pelo presidente Roosevelt. Nas
horas que a antecederam, o tenente-coronel James Harold Doolittle amarrou a
cinco bombas as “medalhas de amizade” oferecidas dissimuladamente pelo
Japão aos Estados Unidos. Elas foram lançadas sobre instalações japonesas
na famosa operação conhecida como Ataque Doolittle (Doolittle Raid).
O Salmo 81 guarda certa semelhança com essa história, no sentido de que a
amizade demonstrada pelos israelitas a Deus era tão falsa quanto a da trama
que serviu de prelúdio à guerra no Pacífico. O contexto do salmo parece ser
uma das festas da Lua Nova – realizadas pelos israelitas no início de cada
mês (Nm 10.10; 28.11). Contudo, o chamado ao toque de trombeta nessa Lua
Nova em questão (v.3) parece associar o salmo à Festa das Trombetas – ano
novo judaico –,celebração prevista na lei mosaica (cf. vv.4,5), registrada pela
primeira vez em Levítico: “Fala aos filhos de Israel, dizendo: No mês sétimo,
ao primeiro do mês, tereis descanso solene, memorial, com sonidos de
trombetas, santa convocação. Nenhuma obra servil fareis, mas trareis oferta
queimada ao Senhor” (Lv 23.24,25). Nesse sentido, os vv.1-5 estão
ambientados em um ritual de gratidão a Deus. Trata-se de uma ocasião de
culto e louvor a Deus.
Muitos estudiosos do Antigo Testamento fazem sugestões acerca da ocasião
específica do Salmo 81. Entre as propostas estão a Festa dos Tabernáculos em
dias anteriores ao reinado de Davi, o traslado da arca de Quiriate-Jearim até
Jerusalém (2Sm 6) e a dedicação do segundo templo no período pós-exílico
(Ed 6.16-18). Contudo, apesar do chamado solene ao festejo – comum a todas
essas ocasiões –, a tônica do salmo não é a festa em si (vv.1-5), mas uma
repreensão divina pelo pecado do povo (vv.6-16). Uma repreensão dessas em
um dia solene de adoração contém uma mensagem clara, da parte do Senhor,
da rejeição do culto por ele. A causa era a falsidade do coração dos
adoradores e sua “falta de gratidão”. A julgar pelo contexto de todos os
salmos de Asafe, os quais dão indicações de que o autor viveu em Judá nos
dias próximos à queda de Jerusalém, a reprovação divina toma um colorido
especial à luz da arrogância de um povo rebelde que cultua a Deus somente
de aparência. Na verdade, esse mesmo pecado precedeu a queda do reino
vizinho, ao Norte, em 722 a.C. (Os 5.7; Am 8.5).
Desse modo, o Senhor denuncia, por meio desse salmo, três pecados
resultantes da falta de gratidão do povo a Deus e da rebeldia que nunca
deveria encontrar morada entre aqueles que nutrem algum relacionamento
com o Senhor. O primeiro desses pecados foi a desconsideração das
bênçãos passadas (vv.6,7). A primeira acusação do Senhor aos israelitas – o
que obriga o leitor a reinterpretar o chamado inicial do salmo (vv.1-5), agora
com um tom irônico que denuncia a falsidade do culto – vem na forma de
uma recordação (v.6): “Eu tirei a carga dos seus ombros e suas mãos
deixaram o cesto” (hasîrôttî missevel shikmô kaffayw middûr ta‘avorenâ).
Essa é uma referência clara ao trabalho escravo que os israelitas sofreram no
Egito, do qual Deus os livrou. Algo a ser notado é que o Senhor não deixou
passar despercebido que sua atuação libertadora não foi fruto de uma
intromissão indesejada, mas resposta aos anseios do povo sofredor (v.7): “Na
aflição tu clamaste e eu te livrei” (batsarâ qara’ta wa’ahalletseka). Por isso, a
ingratidão que eles demonstravam no conforto da terra que o Senhor lhes deu
era algo tão terrível e repreensível.
O segundo pecado foi a infidelidade na adoração (vv.8-10). Diante da
reprovação pela ingratidão acerca dos feitos passados, o Senhor se dirige aos
israelitas em um tom sério de orientação e de incentivo à obediência e à
prática do bem (v.8): “Ouve, ó meu povo, pois eu os advertirei” (shema‘
‘ammî we’a‘îdâ bak). Apesar do chamado solene – e carinhoso, notado na
expressão “meu povo” –, o Senhor parece dizer tais palavras com a intenção
de promover um contexto de reprovação, pois ele não vislumbra no povo a
disposição de obedecê-lo – a julgar pela pergunta praticamente retórica: “Ó
Israel, acaso tu me ouvirás?” (yisra’el ’im-tishma‘-lî). Feita essa introdução,
Deus dá uma ordem objetiva, não passível de interpretações diferentes do seu
sentido simples e claro (v.9): “Não haja contigo deus estranho, nem te
prostres diante de um deus estrangeiro” (lo’-yihyeh beka ’el zar welo’
tishtahaweh le’el nekar). A pergunta quase obrigatória é: “Por que alguém
iria querer se prostrar diante de outro deus, tendo diante de si o Deus
verdadeiro?”. A resposta é que, além do fascínio muitas vezes demonstrado
da parte de Israel pelas nações ao redor, havia o desejo de garantir o sustento
por meio dos deuses cananitas da chuva e da fertilidade. Contudo, Deus
garante (v.10): “Alarga a tua boca e eu a saciarei” (harhev-pîka
wa’amal’ehû). Que bom seria se essa ordem fosse obedecida! A realidade era
justamente o contrário disso – razão pela qual esse salmo foi escrito. O fato é
que a maior parte da estadia de Israel em Canaã no período pré-exílico foi
marcado pela adoração infiel, ou seja, uma adoração não exclusiva a Deus,
mas dividida com todo tipo de “divindade abominável” dos povos vizinhos.
O terceiro pecado repreendido por Deus foi a desobediência obstinada
(vv.11,12). Na sequência da ordem solene de adorar verdadeira e
exclusivamente ao Deus verdadeiro e único, o Senhor observa (v.11): “Mas o
meu povo não dá ouvidos à minha voz e Israel não se submete a mim” (welo’-
shama‘ ‘ammî leqôlî weyisra’el lo’-’avâ lî). Mais uma vez surge uma questão
fundamental: “Por que o povo escolhido por Deus para lhe pertencer
exclusivamente, para ser um reino de sacerdotes e para viver como uma
nação santa (Ex 19.5,6) iria rejeitar a Deus e ignorar conscientemente as suas
ordens?”. A resposta, por mais chocante – e reveladora – que seja, residia,
conforme disse o Senhor (v.12), “na obstinação dos seus corações” (bishrîrût
livvam). Para aqueles homens não havia razão, obediência ou devoção. As
únicas coisas que lhes importavam eram a manutenção do seu orgulho, a
obtenção dos seus desejos e a rejeição de qualquer coisa que os submetesse,
os fizesse humildes e os corrigisse.
A parte triste e dolorida dessa história é que tais pecados trouxeram
consequências declaradas no próprio salmo: o Senhor os entregaria nas mãos
dos inimigos em vez de protegê-los (vv.13,14), eles deixariam de ter a paz
permanente prevista na aliança mosaica pela obediência (v.15 cf. Lv 26.6-9;
Sl 18.44) e passariam uma carestia que os levaria, certamente, a lamentar seus
atos (v.16). Veja-se que os verbos usados no modo subjuntivo evidenciam
que a realidade era diametralmente oposta ao que ocorreria em caso de
obediência (vv.13-16). Assim, o modo correto de se entender a conclusão
divina é algo mais ou menos assim: “Já que o meu povo não me escuta e
Israel não anda nos meus caminhos, não abaterei seu inimigo, nem deitarei a
mão contra os seus adversários. Na verdade, os povos que aborrecem ao
Senhor prevalecerão durante algum tempo e eu não sustentarei Israel com o
trigo mais fino, nem o saciarei com o mel que escorre da rocha”. Tudo isso
realmente aconteceu e os israelitas viram, em 587 a.C., a queda da cidade que
lhes servia, ao mesmo tempo, de capital política e religiosa – Jerusalém –,
sendo posteriormente trasladados para a Babilônia.
Desse modo, nada mais propício que um salmo como esse em uma ocasião
de festividade religiosa, quando a religião, o culto e a gratidão do povo não
passavam de falsidade. Infelizmente, hoje em dia tais problemas podem se
replicar na igreja. “Adoradores de Deus” dos nossos dias também podem se
esquecer de tudo que Deus fez no passado e, em lugar de gratidão, assumir
uma postura exigente diante dele ou uma atitude de irremediável
murmuração. Eles também podem ser infiéis na adoração, dividindo sua
admiração e louvor com outras “personalidades” como pastores, cantores ou
líderes carismáticos, ou até mesmo desejando para si um pouco do louvor
merecido somente por Deus. Infelizmente, esses mesmos “adoradores”
podem, ainda, demonstrar um caráter terrivelmente obstinado, teimoso diante
de qualquer orientação e revoltado com qualquer tipo de correção e
exortação. Quando isso acontece, a reprovação divina é a mesma e, ainda que
as consequências tomem contornos diferentes das que Israel experimentou, o
resultado é dor, choro e tristeza. Por isso, a fim de exercitar a reflexão dos
leitores, proponho uma nova pergunta que também não quer calar: “E por que
qualquer crente em Cristo iria querer valorizar mais o seu orgulho e os seus
desejos pessoais que a dignidade e as orientações do Deus altíssimo?”.

SALMO 82
A Indignação do Justo Contra o Mal

Há um bom tempo eu não me sento diante da televisão para assistir a


noticiários. Além da falta de tempo, uma das razões do meu desinteresse vem
do fato de que eu ficava muito chateado com certas notícias. Algumas delas
me chocavam ao exibir o lado perverso e violento das pessoas. Outras
deixavam-me perplexo diante da desventura de muita gente. Mas ainda havia
aquelas notícias que me deixavam nervoso ao ver que a injustiça e a
impunidade têm um lugar cativo no nosso país. Uma das notícias que me
marcaram nesse sentido contava que um juiz da mais alta instância vendia
sentenças a favor das máfias do “bingo” e do “jogo do bicho”. Ficou
milionário liberando artefatos criminosos que a polícia capturou em uma
operação extremamente difícil e demorada – isso, por si só, já é de tirar
qualquer cidadão brasileiro do sério. Entretanto, a notícia não parava por aí.
Informava também que, ao ser investigado e reconhecido como corrupto, a
“punição” do juiz foi ser aposentado com o mesmo salário que recebia
quando estava ativo em suas funções – na época, mais de 25 mil reais
mensais. O juiz corrupto, na verdade, foi premiado e não punido. Vi essa
notícia em agosto de 2010. De lá para cá, quase não assisti mais aos
noticiários.
Se não é possível encontrar consolo nos jornais, a Bíblia fornece consolo e
orientação para quando estamos diante da injustiça. O Salmo 82 foi escrito
em um tempo em que os responsáveis pela justiça não agiam muito diferente
desse juiz brasileiro. A falta de temor a Deus e o desenvolvimento de um
egoísmo terrível, desprovido de qualquer consciência e amor pelas pessoas,
haviam produzido certa corrupção em Israel que nos pareceria familiar se
pudéssemos voltar no tempo. De fato, houve várias fases nas quais existiu
corrupção, mas, mediante repreensão da parte do Senhor e compromisso de
homens tementes a Deus, os abusos eram contidos – como no caso de Josafá,
que trabalhou pela purificação do sistema judiciário da época (2Cr 19.4-7) e
que criou uma espécie de “corte de apelação” (2Cr 19.8-11). Contudo, nos
dias do salmista, a justiça estava corrompida e a única coisa garantida por ela
eram os interesses dos ímpios. A injustiça era tal que indignou o escritor do
salmo. Entretanto, ele não recorreu à violência para sanar sua perplexidade e
revolta. Em lugar disso, o salmo apresenta três atitudes para o homem justo
que se depara com a injustiça – atitudes muito parecidas com as do profeta
Habacuque, possivelmente contemporâneo do autor do salmo.
A primeira atitude do servo de Deus diante da injustiça é reconhecer a
supremacia de Deus como juiz (v.1): “Deus se levanta na assembleia divina
e julga no meio dos deuses” (’elohîm nitsav ba‘adat-’el beqerev ’elohîm
yishpot). O salmo começa com uma afirmação enigmática. As Escrituras
afirmam a existência de um Deus único e singular (Dt 4.35; 6.4; Is 44.6,8;
45.5,6). Contudo, o salmista pinta uma figura de uma assembleia de deuses,
de modo a ser necessário entender seu propósito para que não se pense tratar-
se de um ensino politeísta. O fato é que os falsos deuses são, certas vezes,
tratados como se existissem com a finalidade, por parte de Deus e dos seus
profetas, de repreenderem a idolatria dos israelitas por meio da comparação
entre o soberano Deus vivo e a nulidade dos deuses das nações ao redor (Ex
15.11; Nm 33.4; Sl 86.8). Esse recurso servia para ressaltar a supremacia de
Deus, evidenciar a insensatez do povo ao se apegar a divindades falsas e
exigir deles fidelidade ao Senhor (Js 24.15,23,24; 1Sm 7.3; 1Rs 18.21). É
nesse sentido que o salmista propõe a figura de uma reunião de deuses.
Sendo assim, ele se dirige aos idólatras perversos dos seus dias e oferece a
ideia da supremacia Senhor por meio da imagem de Deus se levantando nessa
assembleia como quem se levantava nas reuniões populares realizadas às
portas da cidade. Essa ação de se levantar na assembleia tem uma conotação
jurídica. Assim, como juiz, Deus se levanta para decidir e pronunciar uma
sentença. O que o salmista quer enfatizar, na verdade, não é o poder de Deus
para julgar entre os deuses que não existem, mas o poder para julgar o juízes
maus e injustos de Israel. Essa intenção é percebida quando o salmista, na
sequência, se dirige aos juízes israelitas que, sob a jurisdição de Deus,
promoviam injustiças (v.2): “Até quando vós julgareis injustamente e
favorecereis os ímpios?” (‘ad-matay tishpetû-‘awel ûpenê resha‘îm tis’û).
Esse é um modo muito efetivo de transmitir uma repreensão que podia
também ser dita assim: “Cuidado, juízes injustos! Se o Senhor julga até os
outros deuses, quanto mais vós! Façam o bem ou sofram as consequências!”.
Nesse sentido, o profeta Habacuque se une ao salmista para afirmar que a
iminente destruição de Judá e da sua capital, Jerusalém, pela Babilônia (Hc
1.5-11) era nada menos que o veredito de Deus contra a impiedade: “Ó
Senhor, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste
para servir de disciplina” (Hc 1.12b).
A segunda atitude é agir de modo a promover a justiça. O salmista não
olha para o quadro de corrupção judiciária em Israel e sua consequente
injustiça social como quem está do lado de fora do problema. Ele se comove
com o sofrimento dos aflitos (Hc 1.2-4 mostra que o profeta compartilha
desse sentimento) e interfere na situação dirigindo-se aos juízes corruptos nos
seguintes termos (v.3): “Decidi vós com justiça a causa dos pobres e
desamparados, fazei justiça aos aflitos e necessitados. Livrai os pobres e
desvalidos das mãos dos ímpios” (shiftû-dal weyatôm ‘anî warash hatsdîqû
palletû-dal we’evyôn mîyad resha‘îm hatsîlû).
É nítida a tentativa do salmista de reverter o quadro dramático dos seus
dias, ainda que sejam limitados os seus recursos para isso. Contudo, se a
capacidade do salmista diante dos príncipes e juízes de Israel era pequena –
razão pela qual ele lhes lança um clamor em vez de exercer contra eles
alguma atitude de ordem prática –, a capacidade dos injustiçados era ainda
menor. O salmista mostra, de modo hiperbólico, que as limitações que eles
tinham em termos de força, de influência e até de cultura os tornava presas
fáceis para os ímpios e para os corruptos (v.5): “Eles não conhecem, nem
entendem. Perambulam na escuridão” (lo’ yad‘û welo’ yavînû bahashekâ
yithallakû yimmôtû). O escritor do salmo não consegue olhar para isso sem se
sentir obrigado a agir. Ele não ultrapassa os limites das suas possibilidades ou
dos modos reverentes e santos de um servo de Deus, mas também não se
isenta da responsabilidade de abrir sua boca contra a maldade.
A terceira atitude do servo de Deus diante da injustiça é clamar a Deus por
promoção da justiça. A justiça é algo a ser buscado da parte daqueles que
têm poder para executar não apenas a decisão justa, mas a efetivação prática
da justiça. Nesse sentido, os juízes de Israel deveriam ser tais promotores. Por
isso, o salmista se dirige a eles e os chama metaforicamente de “deuses”
(v.6): “Eu disse: vós sois deuses e todos vós sois filhos do Altíssimo”
(’anî-’amartî ’elohîm ’attem ûbenê ‘elyôn kullekem). A ideia não é descrever
uma natureza divina em tais homens, mas falar da sua função de agir como
representantes de Deus na decisão justa das causas e na proteção dos
desamparados. Como eles agiram exatamente do modo contrário ao que era
seu dever, o escritor recorre a um tribunal superior, ou seja, ao próprio Deus
eterno, a fim de que faça o que os juízes se negaram a fazer por pura cobiça e
interesse pessoal (v.8): “Ó Deus, levanta-te e julga a Terra, pois tu possuis
todas as nações” (qûmâ ’elohîm shaftâ ha’arets kî-’attâ tinhal bekol-
haggôyim).
O resultado da atuação divina em resposta a esse clamor não seria agradável
aos juízes relapsos e corruptos. Na verdade, essa seria a sua derrocada (v.7):
“Certamente morrereis como os [demais] homens e caireis do mesmo modo
que os príncipes” (’aken ke’adam temûtûn ûke’ahad hassarîm tiffolû).
Habacuque, ao orar ao Senhor sobre a condição de impiedade dos seus dias,
clama a Deus que intervenha: “Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me
escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás? Por que me mostras a
iniquidade e me fazes ver a opressão?” (Hc 1.2,3a). Apesar de ele dizer tais
coisas na forma interrogativa – com questões que exalam sua indignação –, o
significado dessas palavras recai sobre um pedido urgente para que Deus
acabe com a injustiça e com o sofrimento dos fracos.
Estamos longe dos dias em que Judá ainda aguardava a punição divina por
seus pecados, mas conhecemos a versão contemporânea da corrupção e dos
desmandos no nosso país e ao redor do mundo. Vemos a maldade crescendo
e tomando o espaço do respeito, do amor e da generosidade, fazendo jus à
previsão de Jesus: “E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de
quase todos” (Mt 24.12). Revolta contra isso tudo é o que não falta. Mas é
nesse contexto que os cristãos são chamados a tomar posição pelo que é justo
e bom, fazendo o que está a seu alcance para a efetivação da justiça. É nessa
situação difícil que eles são responsáveis por depender de Deus
incondicionalmente, confiando em sua bondade presente e em seu julgamento
futuro. O reconhecimento da supremacia do Senhor como santo juiz, além de
acalmar nossos corações indignados contra o mal, impede de desejarmos
tomar a justiça em nossas mãos, como um tipo de justiceiros, e acabar dando
maltestemunho em lugar de reparar erros. Afinal, a dependência do Senhor
que produz um procedimento justo e amoroso é uma das marcas distintivas
daqueles que foram salvos das trevas pelo bom Deus: “A religião pura e sem
mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas
suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo” (Tg
1.27).

SALMO 83
Quando o Sucesso Parece Improvável

Alguns livros conseguem prender seus leitores e fazê-los rir, suspirar,


tremer de medo e até sentir como se fizessem parte do enredo. Li vários
livros que produziram em mim todo tipo de emoção. Um deles foi Ó
Jerusalém, de Dominique Lapierre e Larry Collins, escrito em 1971. O livro
narra a instituição do Estado de Israel, em 1948, e a guerra que envolveu esse
processo. O que me chamou atenção é que os fatos ligados à história da
fundação de Israel são marcantes, pois cada vitória foi obtida quase sempre
“por um triz”. O mesmo aconteceu com os objetivos que os judeus não
alcançaram, como o insucesso na conquista plena de Jerusalém.
Sem a intenção de tratar das causas e dos direitos israelenses e palestinos,
algo que me chamou atenção no livro foi a improbabilidade de Israel, que
ainda nem era um país formado, vencer uma coligação de cinco países
maiores e mais fortes: Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque, com o apoio da
Arábia Saudita e do Iêmen. Esses países árabes tinham o propósito de,
atacando por todos os lados, fazer os judeus recuarem até Tel-Aviv, junto ao
mar, e de lá terem de partir, deixando a Palestina. O moto dessa coligação
era: “Lançar os judeus ao mar”, ou “ao mar com os judeus!”. Contra todas as
expectativas, os judeus venceram a maior parte da guerra e estabeleceram
seus domínios, sendo reconhecidos como um Estado soberano em 11 de maio
de 1949 pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Essa não foi a única vez em que Israel se viu diante de uma coligação
militar temível que fazia qualquer sucesso parecer improvável. O Salmo 83
foi escrito diante de uma liga de nações que se levantou contra os israelitas
para dar fim a eles. Os povos alistados no salmo faz crer que se trata de uma
organização orquestrada de maneira que algumas dessas nações atacaram
Israel enquanto outras apoiavam – o Antigo Testamento não descreve nenhum
ataque feito concomitantemente por todas essas nações. Nesse caso, alguns
supõem que se trata do episódio da tentativa de invasão surpresa por parte
dos amonitas, moabitas – os “filhos de Ló” (v.8 cf. vv.6,7) – e edomitas (v.6),
nos dias de Josafá (2Cr 20.1-30). Porém, o arrolamento dos ismaelitas e
hagarenos (v.4) – ambos moradores nas cercanias de Gileade, na
Transjordânia (Gn 37.25; 1Cr 5.10) –, e de Gebal, Amaleque, Filístia e Tiro
(v.7) – que ocupavam quase toda a faixa litorânea do Mediterrâneo, do
Líbano até a faixa de Gaza e península do Sinai –, tendo ainda o apoio do
império assírio (v.8), faz outros cogitarem que o salmo é uma lembrança de
todos os tipos de opressão que Israel sofreu em um determinado período de
tempo.
De qualquer modo, independente de qual seja exatamente a ocasião da
composição do salmo, todas as coligações multinacionais feitas contra Israel
tiveram um potencial notável de riscar o país do mapa da Palestina. Diante de
um quadro tão preocupante em que a vitória israelita era realmente
improvável, o salmista não se lança ao desespero, mas demonstra possuir três
fundamentos para manter a esperança de livramento e de sobrevivência do
povo.
O primeiro fundamento da esperança do salmista é o fato de que Deus não
se isenta de agir pelos seus. O quadro era bastante perigoso. Os ânimos
contra Israel estavam exaltados (v.2): “Pois eis que os teus inimigos se agitam
e aqueles que te odeiam levantam a cabeça” (kî-hinneh ’ôyeveyka yehemayûn
ûmesan’eyka nas’û ro’sh). Os acordos militares foram travados em segredo a
fim de pegar Israel despreparado para se defender (v.3): “Eles maquinam
planos em segredo contra o teu povo e tramam contra os teus protegidos”
(‘al-‘ammeka ya‘arîmû sod weyitya‘atsû ‘al-tsefûneyka).
Não é sempre que nações se entendem, mas quando elas se unem, seu
potencial destrutivo é considerável e era exatamente isso que estava
acontecendo (v.5): “Pois tramam juntos e fazem aliança contra ti” (kî nô‘atsû
lev yahdaw ‘aleyka berît yikrotû). O objetivo deles era destruir Israel
completamente (v.4): “Eles dizem: Vamos! Eliminemo-los de entre as nações
de modo que não haja mais lembrança do nome de Israel” (’omrû lekû
wenakhîdem miggôy welo’-yizzaker shem-yisra’el ‘ôd). É diante dessa visão
aterrorizante que o salmista clama (v.1): “Ó Deus, não te cales. Não fiques
em silêncio, nem paralisado, ó Deus” (’elohîm ’al-domî-lah ’al-teherash
we’al-tishqot ’el). O salmista não está repreendendo o Senhor, mas clamando
algo assim: “Aja, ó Senhor! Não nos deixe perecer”. O que ele busca não é
uma esperança imaginária, mas uma atuação real do Deus que intervém na
história em favor dos seus para livrá-los das mãos dos inimigos e executar
seus planos eternos.
O segundo fundamento é que Deus tem um histórico de atuações
libertadoras. Se o futuro de Israel parecia incerto, o passado da nação era um
testemunho marcante do poder de Deus para protegê-los. Por isso, o salmista
confia em Deus sabendo que sua capacidade não mudou desde os dias
passados e, assim, roga pela repetição de duas grandes vitórias nos dias dos
juízes. A primeira foi a memorável vitória de Gideão sobre o povo de Midiã
(v.9 cf. Jz 7–8), o qual, liderado pelos príncipes Orebe e Zeebe e pelos reis
Zeba e Zalmuna (v.11 cf. Jz 7.24,25; 8.5), teve baixas na ordem de 120 mil
soldados (Jz 8.10). Tudo isso fez Deus utilizando apenas trezentos israelitas
sob o comando de Gideão, na proporção de um israelita para quatrocentos
inimigos.
A segunda grande vitória se deu por meio do comando de Débora e
Baraque contra Jabim, rei de Canaã baseado em Hazor (Jz 4.23 cf. v.17), e
contra seu general Sísera (Jz 4–5). Apesar de o livro de Juízes citar a derrota
de Jabim e a morte de Sísera nas mãos de Jael, o local da derrota do exército
cananita só é informado no próprio Salmo 83 – a cidade de Endor (v.10). Não
obstante as duas nações (v.12) terem dito “tomemos posse dos apriscos de
Deus” (nîrashâ lanû ’et ne’ôt ’elohîm), ambas foram derrotadas pelo Senhor
(v.10) e “tornaram-se esterco para a terra” (hayû domen la’adamâ).
Provavelmente, o salmista manteve viva sua esperança ao pensar algo como
“se o Senhor venceu tais nações no passado com tamanho poder, por que,
agora, seria ele impotente ou inoperante?”.
Finalmente, o terceiro fundamento da esperança é que Deus é soberano
sobre todas as nações. No último trecho do salmo, o escritor pensa em Deus
(v.18) como o “Altíssimo sobre toda a Terra” (‘elyôn ‘al-kol-ha’arets). O
termo “Altíssimo” (‘elyôn) surge no Antigo Testamento para transmitir a
noção de que Deus é Todo-poderoso e governa as nações e as forças do
universo (Nm 24.16; Dt 32.8; Sl 18.13). Aqui não é diferente. O salmista
clama por uma intervenção que só faz sentido à luz do conhecimento da
soberania divina (v.13): “Ó meu Deus, trata-os como o pó das sementes,
como palha diante do vento” (’elohay shîtemô caggalgal keqash lifnê-rûah).
O que ele pede é bem claro: que todo o poderio militar dos inimigos fosse
tratado como “nada” diante de Deus, assim como resíduo de sementes mortas
e palha seca são levados pelo vento sem oferecer qualquer resistência. Não se
trata de o salmista achar que o poder dos inimigos fosse pequeno e que seus
exércitos fossem incompetentes, mas que o poder de Deus, comparado ao dos
inimigos, é infinitamente maior.
Com poder soberano que ninguém pode conter, o salmista vislumbra a
justiça de Deus recaindo sobre os povos ímpios de maneira tão avassaladora
que ele lança mão de duas metáforas para representar o que aconteceria – um
incêndio e uma tempestade (vv.14,15): “Como o fogo queima a floresta e as
chamas consomem os montes, persiga-os com a tua tempestade e aterroriza-
os com o teu vendaval” (ke’esh tiv‘ar-ya‘ar ûkelehavâ telahet harîm ken
tirdefem besa‘areka ûbesûfateka tevahalem). O resultado da intervenção
soberana de Deus teria duplo impacto: a destruição irreversível (v.17) e o
reconhecimento amplo de que Deus é Todo-poderoso diante de tudo que
criou (v.18 cf. v.16).
Confesso que, para mim, essa é uma visão muito confortante por dois
motivos. O primeiro é que, diante dos problemas que crescem e se somam,
percebo que em nenhuma circunstância Deus fica limitado, mas, ao contrário,
domina permanentemente sobre tudo. Com isso, posso ver a mão do Senhor
não apenas me protegendo dos males, mas enviando-os, também, na medida
correta para produzir em mim o que preciso para crescer e me fortalecer à
semelhança do meu Senhor Jesus (Rm 8.28; 2Co 12.7-10). O segundo é que,
entendendo estar em uma batalha de dois lados – o bem e o mal –, percebo
que fui integrado ao lado vencedor. Tal vitória não fica patente apenas no
caráter aprovado do meu Senhor e general, mas pelo desfecho futuro no qual
inevitavelmente ele vencerá as hostes do mal e dará vida eterna aos seus.
Esses “vitoriosos” pelo poder de Deus são aqueles que, pela fé em Cristo,
receberam gratuitamente as dádivas do seu amor na forma do perdão e da
regeneração. Se antes, ao olhar para a somatória dos problemas, eu achava
que o sucesso era improvável, meditando na revelação divina contemplo o
oposto: a inevitabilidade da vitória final por causa do poder do meu Deus e
do amor imerecido que ele tem por mim.

SALMO 84
O Anseio pela Felicidade

Um dos grandes desgostos conhecidos dos homens é o exílio. Apesar das


belezas da geografia e da cultura ao redor do globo, motivo pelo qual é um
privilégio poder viajar pelo mundo, há uma conexão ímpar das pessoas com
seu próprio povo e com sua pátria. Pessoas que têm de deixar seu país e partir
para terras além sofrem com o afastamento. Pablo Neruda foi uma delas.
Poeta e senador contestador, ele teve de partir do Chile para o exílio para não
ser preso pelo governo. Ficou alojado em vários lugares no México, na Itália
e na França por cerca de três anos (1949-1952). Até mesmo o fato de o povo
de cada uma das nações por onde passou lhe ter sido bons anfitriões, isso não
fez com que seu anseio de retornar à pátria esfriasse. Em sua poesia chamada
Exílio ele escreve: “El destierro es redondo: Un circulo, un anillo: Le dan
vuelta tus pies, cruzas la tierra, no es tu tierra” (O exílio é redondo: um
círculo, um anel: Seus pés dão voltas, atravessa a terra, não é a sua terra).
O Salmo 84 apresenta paralelos com esse sentimento nostálgico, não
somente pela pátria, mas pelo Templo do Senhor em Jerusalém. O salmo é de
autoria dos filhos de Corá e o assunto e contextos são os mesmos dos salmos
42 e 43. Neles, o escritor se encontra exilado no Extremo Norte do território
israelita e anseia por retornar a Jerusalém a fim de voltar a servir nos cultos a
Deus. Para ele, o local da habitação divina entre os israelitas era algo de valor
pessoal (v.1): “Quão desejável é a tua morada, ó Senhor dos exércitos!”
(mah-yedîdôt mishkenôteyka yehwâ tseva’ôt). Apesar de a palavra “morada”
aparecer no texto hebraico na forma plural, trata-se de uma referência ao
Templo, talvez em uma menção aos seus vários cômodos – conforme diz na
sequência (v.2): “Pelos átrios do Senhor” (lehatsrôt yehwâ). Diante de tal
anseio, o autor considera o privilégio das aves que fizeram ninho nos
recônditos do Templo, protegidos ali por Deus e repousados na sua presença
(v.3): “Até mesmo as aves encontraram casa e a andorinha ninho para si, no
qual põe seus filhotes junto aos teus altares, ó Senhor dos exércitos, meu rei e
meu Deus” (gam-tsiffôr mots’â bayit ûderôr qen lah ’asher-shatâ ’efroheyha
’et-mizbehôteyka yhwh tseva’ôt malkî we’lohay).
O desejo de ter o privilégio como o das aves que fizeram suas casas no
Templo combina com seu anseio expresso no Salmo 42, em que compara seu
desejo da presença de Deus à sede das corças por água (Sl 42.1). Desse modo,
o salmista expressa sua vontade de voltar à sua terra e à sua função no serviço
do Senhor. A diferença desse salmo para o 42 e o 43 não se dá nas
circunstâncias, mas no ânimo do salmista. Enquanto ele se apresenta
lamurioso nos salmos precedentes, mostrando sua desventura, nesse ele
minimiza seu sofrimento em função de meditar na “felicidade” de quem serve
a Deus, já que repete três vezes (vv.4,5,12) a palavra “felizes” ou “bem-
aventurados” (’ashrê). Desse modo, ele propõe três razões da felicidade
plena e permanente, à qual ele almeja para si.
A primeira razão da felicidade para o salmista é andar continuamente
com Deus. De um modo muito especial, o salmista sabe o valor desse bem.
Afastado da sua terra e das suas funções religiosas, ele vê como são bem-
aventurados os que têm a oportunidade que ele não desfruta no momento
(v.4): “Felizes são os que habitam na tua casa” (’ashrê yôshevê bêteka). A
questão nem é o local, apesar de um ponto geográfico ser muito bem
definido: o Templo localizado em Jerusalém (cf. Sl 43.3 – “teu monte santo”,
ou seja, o monte Sião).
O que o salmista vê como algo de valor incomparável é a atividade feita
naquele local. O Templo não era apenas o local da representativa habitação
de Deus em Israel, mas era também onde se realizavam seus cultos e para
onde os israelitas traziam suas ofertas. Estar em Jerusalém significava poder
louvar a Deus pela sua grandeza e glória, atividade almejada por todos os que
o servem: “Eles te louvam continuamente” (‘ôd yehallûka). Lá, não havia
somente a possibilidade de adorar o Altíssimo, mas de fazê-lo sempre, sem
nenhum impedimento, de modo a transformar a vida do adorador e colocá-la
no rumo que o Senhor ordenou, sendo essa a maior felicidade que o salmista
almeja.
A segunda razão é ser fortalecido pelo Senhor. O maior problema do
escritor do salmo não é desejar estar no Templo, mas não ter condições de
cumprir seu desejo. Ao que tudo indica, ele estava detido contra sua vontade
e desejar retornar não era suficiente para consegui-lo. Sua incapacidade
diante de forças poderosas era a razão da sua desventura. Em lugar de ficar
deprimido, o salmista olha para a força do próprio Deus como motivação da
felicidade dos seus servos e razão de uma inalienável esperança (v.5):
“Felizes são aqueles cuja força está em ti” (’ashrê ’adam ‘ôz-lô bak).
Esse é um sentimento que, apesar de parecer contraditório, encontra um
paralelo na experiência neotestamentária do apóstolo Paulo que, oprimido por
algo que ele designou como “espinho na carne” (2Co 12.7) e tendo ouvido
que em sua fraqueza se aperfeiçoaria do poder que vinha de Deus (2Co 12.9),
disse: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades,
nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou
fraco, então, é que sou forte” (2Co 12.10). O salmista, munido de tal
sentimento, vê a força do Senhor como agente de transformação do caminho
árido em terra fértil (v.6), permitindo assim uma viagem que seria impossível
sem sua intervenção. O próprio Senhor fortalece dia a dia os viajantes que
“andam de força em força” (yelekû mehayil ’el-hayil). Seu destino final é
inexoravelmente alcançado: “Cada um deles comparece perante Deus em
Sião” (yera’eh ’el-’elohîm betsîyôn).
A última razão da felicidade é confiar plenamente em Deus. Apesar dos
revezes, o salmista demonstra tal confiança (v.12): “Ó Senhor dos exércitos,
felizes são aqueles que confiam em ti” (yehwâ tseva’ôt ’ashrê ’adam boteah
bak). Essa confiança não é uma declaração vazia escrita em um pergaminho
antigo, mas algo que é vivo e visível na vida do próprio escritor na forma de
um confiante clamor àquele em quem põe sua total confiança (v.8): “Ó
Senhor, Deus dos exércitos, ouve a minha oração, dá ouvidos, ó Deus de
Jacó” (yehwâ ’elohîm tseva’ôt).
Se a primeira parte da oração envolve metaforicamente o ouvido, a segunda
usa a figura do olho (v.9): “Vê o nosso escudo, ó Deus, e olha a face do teu
ungido” (maginnenû re’eh ’elohîm wehavvet penê meshîheka). As expressões
“nosso escudo” e “teu ungido” apontam para o rei, o qual necessita do auxílio
divino, evidenciando que a crise pessoal do salmista coincide com a crise
nacional israelita. Para entender a natureza dessa crise, é bom notar como o
salmista compara (v.10) a alegria de estar nos átrios e na porta do Templo de
Deus com a tragédia de “habitar nas tendas do ímpio” (dûr be’oholê-resha‘).
Entretanto, apesar do bem que é andar e viver com Deus, sua confiança se
baseia no caráter divino e no seu modo de proceder para com os seus (v.11):
“O Senhor concede graça e honra. Não nega o bem aos que andam com
integridade” (hen wekavôd yitten yehwâ lo’ yimna‘-tôv laholekîm betamîm).
Dessa certeza provém uma felicidade que não é abalada nem mesmo em
momentos difíceis como o que atravessou o escritor do salmo.
O Salmo 84 parece responder a uma pergunta muito atual levantada no seio
da igreja do século 21: “É mesmo possível ser feliz em meio às crises e ao
sofrimento?”. O salmista pode responder com propriedade essa questão, pois
não foi alguém imune ao sofrimento – vejam-se os salmos 42 e 43 – e não
pode ser acusado de tratar um assunto que não conhece. Por outro lado, o fato
de não ter desmoronado diante da crise, nem ter sucumbido por falta de
esperança, é uma lição preciosa de que os servos de Deus têm, em meio às
lutas, dois tipos de felicidade. Uma delas vem de saber quem é Deus, como
ele age com os que lhe pertencem e o valor imensurável de poder louvar
aquele que é tudo sobre todos. A outra vem de saber que, independente de
quantas voltas dê o mundo, o destino final dos que creram no Senhor e lhe
entregaram suas vidas pela fé em Jesus Cristo é exatamente aquele descrito
no salmo: “Cada um deles comparece perante Deus”. Essa é uma felicidade
que nenhuma circunstância adversa pode nos roubar. Você tem essa
felicidade?

SALMO 85
Os Benefícios do Perdão de Deus

Ouvi alguém dizer muito tempo atrás: “Eu não faço declaração de Imposto
de Renda, pois ganho meu dinheiro com muito suor e não quero dá-lo ao
governo. A corrupção de muitos políticos é tão grande que meu dinheiro sai
da minha conta e vai quase direto para as contas deles”. Apesar de parte dessa
afirmação refletir certa realidade do nosso país, tentei alertá-lo quanto aos
riscos que ele corria e quanto às sanções que sofreria, mas nada o demoveu
da sua posição. Até que ele quis fazer um financiamento para abrir um
negócio e adquirir um veículo. Um dos primeiros documentos requeridos
para esses financiamentos era a Declaração de Renda, a qual, obviamente,
ele não tinha. Foi preciso buscar a Receita Federal, entrar em acordo em
relação à dívida e buscar um modo de ser perdoado das multas geradas pelas
infrações fiscais. Somente quando tudo isso foi resolvido, os benefícios da
condição regularizada puderam ser usufruídos.
Esse não é o único benefício da regularização de uma condição corrompida.
O Salmo 85, escrito pelos filhos de Corá, foi composto em meio a uma
possível opressão nacional por povos inimigos, mas certamente em meio a
uma terrível seca. Os males, quaisquer que sejam, que recaíram sobre o povo
de Israel são interpretados pelo salmista como consequência de pecados do
próprio povo, de modo que deveriam buscar o perdão de Deus. Nesse sentido,
o salmista dá o exemplo a fim de que seus irmãos façam o mesmo (v.4).
Olhando para a situação de Israel nesse salmo, é possível notar que perdão de
Deus é uma bênção fantástica pela qual seus servos devem sempre agradecer.
Entretanto, o perdão em si não é o único benefício do arrependimento de
pecados. Quando o servo de Deus é perdoado pelo misericordioso Senhor
Todo-poderoso, outros benefícios são promovidos e aparecem nesse salmo.
Assim, o texto é tanto uma lição sobre a remissão divina como um
inigualável encorajamento para o arrependimento verdadeiro e um coração
contrito.
O primeiro dos benefícios do perdão de Deus é a percepção da
misericórdia no passado (vv.1-3). O salmista se lança ao rogo pelo perdão
presente depois de recordar o perdão passado. Nada como uma situação
desfavorável para se lembrar de como é bom andar com Deus e ser
beneficiário da sua obra redentora. Por isso, com a visão aclarada pelas
consequências do pecado, o salmista diz (v.2): “Tu perdoaste a culpa do teu
povo, encobriste todos os seus pecados” (nasa’ta ‘aôn ‘ammeka kissîta kol-
hatta’tam). Ele diz isso em referência a uma restauração passada de Israel
que envolveu o retorno de israelitas capturados pelo inimigo (v.1):
“Favoreceste a tua terra, ó Senhor, restauraste os cativos de Jacó” (ratsîta
yhwh ’artseka shavta shevût ya‘aqov). Há aqui uma demonstração de
conhecimento teológico, pois o escritor associa corretamente a disciplina de
Israel com a ira de Deus contra o pecado e, por isso, em meio ao seu clamor
está presente a nítida lembrança de que a restauração passada somente se deu
pela apaziguação do Deus santo (v.3): “Fizeste cessar toda a tua indignação,
reprimiste o furor da tua ira” (’asafta kol-‘evrateka heshîvôta meharôn
’affeka). Nesse caso, a percepção da misericórdia de Deus na história de
Israel foi uma bênção indizível para o povo arrependido, trazendo-lhe a
correta direção por meio da contrição e, também, a esperança de ser perdoado
e restaurado.
O segundo benefício é a validação do verdadeiro arrependimento (vv.4-
7). É fato que um arrependimento apenas social – aquele a que nos referimos
como “da boca para fora” – não tem validade alguma diante do Deus
onisciente que sonda os corações dos homens. Entretanto, o verdadeiro
arrependimento encontra no Senhor uma disposição graciosa de perdoar. Por
isso, o salmista, pedindo perdão, associa esse ato à restauração que vem de
Deus (v.4): “Restaura-nos, ó Deus da nossa salvação, e cancela a tua irritação
conosco” (shûvenû ’elohê yish‘enû wehafer ka‘aska ‘immanû). A pergunta do
v.5 é retórica, visto que Deus se prontificou, na aliança mosaica, a retribuir a
confissão de pecados com o desvio da sua ira e com a renovação das bênçãos
(Lv 26.40-45). Por isso, seguindo esse recurso literário, ele completa (v.6):
“Tu não voltarás a vivificar-nos para que o teu povo se alegre em ti?”
(halo’-’attah tashûv tehayyenû we‘ammeka yismehû-bak). Tendo colocado
desse modo, o salmista deixa o estilo rebuscado e faz um pedido claro que
condiz com sua mais pura intenção, sabendo que será atendido pela
misericórdia e fidelidade de Deus (v.7): “Manifesta a nós o teu amor e
conceda-nos a tua salvação” (har’enû yehwâ hasdeka weyesh‘aka titen-lanû).
O terceiro é a comunhão plena com o Senhor (vv.8-10). Nesse três
versículos, há um grande acúmulo de substantivos que expressam atuações de
Deus entre seu povo quando há uma boa manutenção do relacionamento, ou
seja, quando há comunhão entre Deus e seus servos. O primeiro desses
benefícios é a “paz” (v.8): “Eu ouvirei o que falar Deus, o Senhor, pois falará
de paz ao seu povo” (’shme‘â mah-yedavver ha’el yhwh kî yedavver shalôm
’el-‘ammô). Em seguida, o salmista alista a “salvação” e a “glória” de Deus
no meio do povo, seja atuando gloriosamente, seja sendo glorificado pelos
seus (v.9): “Certamente, a salvação está próxima dos que o temem para
habitar a glória em nossa terra” (’ak qarôv lîre’ayw yish‘ô lîshkon kavôd
be’artsenû). Por fim, surge a menção ao “amor” de onde provêm a lealdade, a
“fidelidade”, a “justiça” e novamente a “paz”, todos eles benefícios da
restauração da comunhão com Deus (v.10): “Amor leal e fidelidade se
encontraram, justiça e paz se beijaram” (hesed-we’emet nifgashû tsedeq
weshalôm nashaqû). A figura das qualidades positivas do caráter de Deus e da
obediência do homem “se encontrando” e “se beijando” aponta para uma
restauração plena tanto da submissão humana como da comunhão divina,
obviamente, por meio do perdão.
O último benefício é o desfrute de bênçãos vindas de Deus (vv.11-13). A
transição da ideia anterior com o final do salmo é muito interessante. O
salmista, lançando mão das qualidades advindas da comunhão, mescla-as ao
efeito físico que terão na agricultura de Israel (v.11): “A fidelidade brotará da
terra e a justiça dirigirá o olhar desde os céus” (’emet me’erets titsmâ wetedeq
mishamayim nishqaf). Na verdade, o que brota literalmente da terra é o fruto
do plantio que alimenta o povo e o que baixa do céu é a chuva que rega a
plantação – “dirigir o olhar” é um modo de o salmista se referir ao retorno da
chuva, como se antes ela tivesse “desviado seu olhar” da terra dos pecadores.
Entretanto, o salmista associa o desfrute dessas bênçãos ao retorno da
comunhão pelo perdão dos pecados. Feita essa conexão de ideias, o escritor
diz às claras qual será o resultado agrário, mostrando, por meio da palavra
“também” (gam), a íntima ligação que há entre o perdão e o retorno da
provisão divina (v.12): “Também o Senhor dará o que é bom, de modo que a
nossa terra dará sua colheita” (gam-yhwh yitten hattôv we’artsenû titten
yevûlah). Esse não seria o único benefício a ser desfrutado pelos
arrependidos. O Senhor restabeleceria sua caminhada junto com o povo como
um desbravador que abre um caminho seguro, do mesmo modo que fez no
deserto ao guiar a multidão até Canaã (v.13): “A justiça irá à sua frente e suas
pegadas abrirão caminho” (tsedeq lefanayw yehallek weyasem lederek
pe‘amayw). Essa afirmação pode, também, significar que Deus traria de volta
os israelitas cativos – e daria um sentido mais amplo ao v.1. O fato é que o
perdão de pecados, mediante o verdadeiro arrependimento, traria aos
contritos o desfrute das bênçãos que eles tanto ansiavam.
A vida presente, em quase todos os sentidos, é bem diferente da dos dias
desse salmista e da aflição aqui refletida. Entretanto, o Senhor é o mesmo e o
pecado produz a mesma repugnância no Deus santo. Eis a razão pela qual a
igreja, muitas vezes, deixa de desfrutar plenamente de bênçãos como paz,
alegria, esperança, segurança, consolo, direcionamento e coragem. O
desinteresse pela Palavra de Deus, o desenvolvimento de uma religião de
egoísmo e entretenimento, o afrouxamento dos padrões morais e o namoro
com o mundo perdido têm tirado muitos crentes do caminho seguro aberto
por Deus e os lançado nos perigosos pântanos do pecado. Deus, obviamente,
não permanece inerte diante do desvio, mas “corrige a quem ama e açoita a
todo filho a quem recebe” (Hb 12.6). Em lugar disso, os crentes deveriam
experimentar em todas as suas dimensões o que significa “eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10.10). Já decidiu o que é
melhor?

SALMO 86
As Identidades de Deus e dos seus Servos

Dizem que quando o famoso político e orador americano Daniel Webster se


deparava com alguém de quem não se lembrava totalmente, mas queria dar a
impressão que o conhecia perfeitamente, ele costumava perguntar: “Bem,
como está aquela velha queixa?”. Em nove de dez vezes isso funcionava. A
pessoa começava a falar do descontentamento que relatou a Webster em outra
ocasião e eram quase inevitavelmente identificada por ele. Nada como as
lutas e as dificuldades para mostrar quem somos realmente!
O Salmo 86 apresenta certa semelhança com essa ideia. Trata-se de um
salmo de Davi escrito em tempos de dificuldades e perseguições. O salmista
clama a Deus por alívio e livramento, sabendo quem exatamente é o Senhor a
quem se dirige. Ainda que Davi rogue a Deus por socorro, o salmo termina
sem um sinal claro de que sua oração já foi respondida, permanecendo o
fardo pesado da angústia. É diante desse quadro que o salmo define bem as
identidades de duas pessoas: o servo de Deus e o próprio Senhor. Por isso
mesmo, trata-se de um texto útil para que, em meio a uma crise, sirva como
um mapa para fazer o servo do Senhor manter sua identidade, conhecendo
firmemente quem é o seu Deus.
Desse modo, Davi apresenta a identidade do servo na forma de três
características. A primeira delas é que o servo de Deus é alguém dependente
do Senhor. O salmo inicia com a declaração de que (v.1) seu escritor é
“pobre e desamparado” (‘anî we’evyôn). A julgar pelo clamor presente no
texto, Davi não está se queixando da sua condição social, mas da sua
incapacidade de resolver seus próprios conflitos e se livrar da perseguição de
seus opressores (v.14). Desistindo de tentar com insucesso tomar em suas
mãos as rédeas da sua sorte, ele se lança a uma oração que expressa sua
dependência do soberano (v.3): “Tem misericórdia de mim, ó Senhor, pois
clamo a ti todos os dias” (hannenî ’adonay kî ’eleyka ’eqra’ kol-hayyôm). A
continuidade da oração de Davi evidencia sua total necessidade da provisão e
da libertação que vem de Deus de modo permanente.
O servo de Deus também é alguém consagrado ao Senhor. O pedido do
salmista o aponta como alguém obediente à aliança de Deus com Israel
(v.2a): “Preserva a minha alma pois sou fiel” (shomrâ nafshî kî-hasîd ’anî). A
fidelidade à aliança é descrita pelo uso de uma palavra cuja raiz – “amor leal”
(hesed) –, dentro do contexto da aliança, expressa tanto a lealdade de Deus
em cumprir suas promessas (Is 55.3) como o tipo de lealdade, constância e
apego que ele espera do seu povo (Os 6.6). Isso não quer dizer que Davi fosse
perfeito ou que não tivesse pecado, mas que seu coração estava
continuamente ligado a Deus para servi-lo, glorificá-lo e amá-lo, disposição
essa que transpira de uma declaração forte e cheia de significado e
implicações (v.4): “A ti, ó Senhor, elevo a minha alma” (’eleyka ’adonay
nafshî ’essa’).
Finalmente, o servo de Deus é alguém confiante no Senhor. A despeito da
conclusão natural de se observar a desvantagem do impotente Davi diante dos
seus ferozes perseguidores, ele ora com a certeza de que Deus não apenas
ouviria sua oração, mas responderia com todo poder, bondade e amor pelo
servo (v.2b): “Salva o teu servo, ó meu Deus, pois ele confia em ti” (hôsha‘
‘avdeka ’attâ ’elohay havvôteah ’eleyka). Essa disposição de confiar em Deus
e levar a ele os problemas (vv.6,7,16) é a razão pela qual, mesmo em meio a
uma crise severa, Davi não se encontra em desespero e tem interesses de um
verdadeiro servo de Deus como o desejo de aprender para melhor servir
(v.11), a disposição de louvar o Senhor (v.12) e o anseio por ver o nome de
Deus glorificado entre as nações (vv.9,17).
Tendo descrito o servo de Deus, Davi ora a alguém que ele parece conhecer
bem, de modo que o próprio Senhor é descrito na oração davídica na forma
de três qualidades. A primeira delas é sua bondade para com os seus. Deus
não trata aqueles que lhe pertencem com nenhum tipo de frieza,
insensibilidade ou impessoalidade, como se fosse um patrão que não conhece
ou não se importa com os empregados. Ao contrário, há um tratamento
bondoso bem próprio de um pai para com seus filhos (v.5). “Pois tu és, ó
Senhor, bom e clemente, rico em misericórdia para com todos o que clamam
a ti” (kî-’attâ ’adonay tov wesallâ werav-hesed lekol-qor’eyka). Deve-se notar
que a bondade de Deus é colocada em perspectiva pela adição da sua
clemência ou sua prontidão em perdoar – por isso, a palavra hesed, nesse
versículo, não deve ser traduzida como “amor leal”, mas como “misericórdia”
ou “graça”. Assim, tal qualidade se mostra na disposição de beneficiar o
servo mesmo que ele não mereça e não tenha dignidade suficiente para se
achegar a Deus por si mesmo. O próprio amor e perdão de Deus é que torna
tais servos beneficiários da sua bondade. O salmo não termina sem que o
salmista volte a afirmar essa maravilhosa qualidade divina (v.15): “Mas tu és,
ó Senhor, compassivo e gracioso, paciente e rico em misericórdia e
fidelidade” (we’attâ ’adonay ’el-rahûm wehannûn ’erek ’affayim werav-hesed
we’emet).
A segunda qualidade de Deus é sua soberania entre os seus. A diferença
entre onipotência e soberania é que onipotência é a capacidade de Deus fazer,
com grande poder, tudo que desejar, enquanto soberania é o fato de ele não
apenas ter tal poder, mas de efetivamente usá-lo para guiar os rumos da
história. Podemos dizer que soberania é o “poder de Deus em ação” na
história humana. É exatamente esse conceito que Davi aborda no salmo (v.8)
ao dizer “não há entre os deuses quem seja como tu, ó Senhor, nem há obras
como as tuas” (’ên-kamôka ba’elohîm ’adonay we’ên kema‘aseyka). A
soberania do Senhor o torna singular em meio a tudo que existe. O fato de as
nações estarem no rumo de se dobrarem diante dele (v.9) se deve aos seus
maravilhosos e incomparáveis feitos (v.10): “Pois grande és tu e seus feitos
são extraordinários. Tu és o único Deus” (kî-gadôl ’attâ we‘oseh nifla’ôt ’attâ
’elohîm levaddeka). Assim, ao clamar ao Senhor, Davi não age como quem
tenta saltar uma montanha – algo utópico e impossível a ele –, mas busca um
benefício perfeitamente tangível segundo a plena capacidade de Deus de
interferir na história e socorrer efetivamente o seu povo.
A terceira qualidade de Deus apresentada pelo salmo é sua presença junto
aos seus. Davi clama por uma atuação de Deus que seja vista entre os
homens, algo que marque o tipo de relacionamento favorável para com
aqueles que servem o Senhor e põem nele sua confiança (v.17): “Envia a mim
um sinal favorável de modo que os que me odeiam sejam envergonhados”
(‘aseh-‘immî ’ôt letôvâ weyir’û sone’ay weyevoshû). Essa não foi a primeira
vez que Davi pediu por uma demonstração visível que expressasse o fato de
Deus se importar com ele. No Salmo 41, Davi interpreta o insucesso dos
inimigos como uma prova da presença de Deus atuando em sua vida: “Com
isto conheço que tu te agradas de mim: em não triunfar contra mim o meu
inimigo” (Sl 41.11). Esse tipo de certeza vem do conhecimento de que Deus
não está longe dos seus. Antes, participa das suas vidas e se importa com o
que lhes acontece a ponto de interferir no rumo dos acontecimentos. Deus
não é omisso para com seus servos. O resultado experimentado pelo salmista
era inevitável e perceptível: “Pois tu, ó Senhor, tens me socorrido e
consolado” (kî-’attâ yhwh ‘azartanî wenihamtanî).
Junto com o “conhecimento do que são as Escrituras” – a Palavra de Deus
inspirada, inerrante e infalível –, dois outros conhecimentos formam o tripé
que sustenta a ortodoxia: o “conhecimento de quem Deus é” e o
“conhecimento de quem nós somos”. Conhecer tais verdades não apenas nos
coloca no caminho da verdade e do acerto, mas mantém nossa escala de
valores e prioridades no lugar correto, fazendo-nos respeitar Deus como o
supremo, santo e soberano Senhor do universo e assumir o lugar de servos
dependentes, reverentes e operosos desse mesmo Deus. Munido desses
“óculos teológicos”, todo crente pode ser capacitado a cumprir sua função de
verdadeiro adorador (Jo 4.23) e arauto da verdade e do evangelho (1Pe 2.9).
No final das contas, é em meio às lutas e dificuldades que o crente é moldado
à imagem do seu Senhor e deve glorificá-lo como um servo que sabe seu
lugar e que conhece a dignidade de Deus: “Meus irmãos, tende por motivo de
toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da
vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora, a perseverança deve
ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes”
(Tg 1.2-4).

SALMO 87
A Grande Metrópole de Deus
Gosto muito de história. Assim, em uma pesquisa sobre a Segunda Guerra
Mundial há alguns anos, deparei-me com um personagem marcante. Trata-se
de William Guarnere, sargento do 2º Batalhão do Regimento de
Paraquedistas 506 da 101ª Divisão Aerotransportada do Exército americano.
Ele fez parte da famosa Easy Company, conhecida de muitos por meio de
livros, filmes e seriados de televisão, que esteve à frente de muitas das mais
importantes batalhas da guerra na Europa, incluindo o “Dia D”. Chamado por
seus companheiros de armas como “Wild Bill” Guarnere, um dos grandes
motivos de orgulho para esse soldado, além de ter servido e lutado na
Companhia E, é o fato de ter nascido no Sul da Filadélfia, capital da
Pensilvânia, onde também conheceu sua esposa, Frannie, e criou seus dois
filhos, Gene e Bill. Assim como ele, muita gente tem uma ligação muito forte
com a cidade em que nasceu e procura qualquer ocasião na qual possa fazer
alguma referência à sua amada cidade natal.
O autor do Salmo 87 também olha para uma cidade natal com respeito e
alegria. Entretanto, não é uma cidade qualquer. Sua singularidade vem do
fato de que mesmo pessoas que não nasceram nela serão chamadas de filhas
daquela cidade. Isso se percebe pela repetição da frase (vv.4,6) “este foi ali
gerado” (zeh yullad-sham), além de uma variação que diz (v.5) “cada um
[desses] foi ali gerado” (’îsh we’îsh yullad-sham). A cidade-mãe, geradora de
tantos filhos, é Jerusalém. Sua peculiaridade, nesse caso, é que seus filhos são
do mundo todo, não apenas aqueles nascidos dentro dos seus limites. Como
pode uma coisa assim ser verdade? Simples: seus “nascidos” parecem sê-lo
de modo espiritual, envolve a conversão e a submissão a Deus, enquanto a
relação de parentesco não se dá pela geografia, mas pelo que a cidade
representa. Nem tudo que o salmo exalta está contido nele de modo explícito,
mas quando levamos em conta a revelação e os pilares teológicos bem
estabelecidos e firmados na época da sua composição, podemos vislumbrar
um dos mais belos e significativos capítulos do saltério. Desse modo, o
Salmo 87 apresenta verdades ligadas a Jerusalém em três épocas distintas.
No passado, Jerusalém foi fundada e amada por Deus (vv.1-3).
Jerusalém não é um acidente geográfico, histórico ou demográfico. Sua
função como sede do trono israelita, sobre o qual reinaram Davi e sua
dinastia monárquica, e local do templo que marcava a habitação do Senhor no
meio de Israel é resultado da indicação do próprio Deus que, primeiro, guiou
Abraão ao monte Moriá para sacrificar seu filho (Gn 22.2) e, depois,
designou tal monte como local escolhido para ser adorado: “Começou
Salomão a edificar a Casa do Senhor em Jerusalém, no monte Moriá, onde o
Senhor aparecera a Davi, seu pai, lugar que Davi tinha designado na eira de
Ornã, o jebuseu” (2Cr 3.1) – Flávio Josefo associa essas duas citações
bíblicas ao mesmo local (Antiguidades Judaicas: I, XIII, 2).
Sendo assim, o salmista inicia o texto se referindo a Jerusalém nos
seguintes termos (v.1): “Fundada por ele sobre os montes santos” (yesûdatô
beharrê-qadesh). O verso seguinte aclara que “ele”, nesse texto, é o próprio
Senhor. O local da cidade fundada por Deus foi determinado com base na
“santidade” – não que o local seja em si santo, mas que Deus decidiu
santificá-lo, ou seja, separá-lo para seus propósitos. Ele certamente amou o
povo que escolheu (Dt 7.7-9; Jr 31.31), mas fez diferença entre suas cidades
(v.2): “O Senhor ama as portas de Sião mais que todas as moradas de Jacó”
(’ohev yhwh sha‘arê tsîyôn mikkol mishkenôt ya‘aqov). Se até aqui o salmista
não especifica a razão para tal amor, ele lembra o leitor que muito já havia
sido dito sobre a cidade (v.3): “Dizem-se coisas gloriosas de ti, ó cidade de
Deus” (nikbadôt meduvvar bak ‘îr ha’elohîm).
No futuro, Jerusalém será o centro de convergência das nações (vv.4-6).
Acabando com o suspense criado pelos versos iniciais, o salmista apresenta a
razão da singularidade de Jerusalém atrelando esse fato a eventos futuros de
ordem mundial (v.4): “Mencionarei Rahav e a Babilônia àqueles que me
conhecem. Eis a Filístia e Tiro junto com a Etiópia. Este foi ali gerado”
(’azkîr rahav ûbabel leyot‘ay hinneh peleshet wetsôr ‘im-kûsh zeh yullad-
sham). Rahav é um “monstro marinho mitológico” ou “alguém soberbo e
arrogante” e não deve ser confundido com o nome de Raabe, prostituta de
Jericó – apesar de a pronúncia ser semelhante, a grafia das duas palavras é
diferente, assim como “sessão” e “seção”. Nesse caso, a palavra rahav é
utilizada para descrever o Egito (Is 30.7; 51.9 cf. v.10), provavelmente se
utilizando da figura de um monstro aquático para se referir ao país poderoso
– e soberbo – cujas águas são uma importante marca. Deve-se observar que
as nações mencionadas são tratadas no singular pelo pronome “este” (zeh),
indicando a unidade das nações diante do que representará Jerusalém no
futuro – a mesma ideia é expressa pela conglomeração das nações por meio
da preposição hebraica aqui traduzida como “junto com” (‘im).
Essa união mundial, representada pelas duas potências militares da época –
Egito e Babilônia –, e por nações próximas e distantes, quer amigos, quer
inimigos – Filístia, Tiro e Etiópia –, recebe uma filiação surpreendente ligada
a Jerusalém (v.5): “E se dirá a respeito de Sião: cada um [desses] foi ali
gerado. E ele, o Altíssimo, a firmará” (ûlatsîyôn ye’amar ’îsh we’îsh yullad-
sham wehû’ yekôneneha ‘elyôn). Isso deve ter sido realmente enigmático para
os judeus da época, visto que foram instruídos a não se ligar às nações
estrangeiras. Contudo, o Senhor afirma que fará um tipo de adoção oficial de
outros povos e que os colocará na qualidade de afiliados daquela cidade (v.6):
“O Senhor averbará no registro das nações: este foi ali gerado” (yhwh yispor
biktôv ‘ammîm zeh yullad-sham). Trata-se de um ato oficial como o de
registrar um imóvel ou de certificar o local de um nascimento.
A grande interrogação levantada nesse ponto é desfeita pela lembrança das
“coisas gloriosas” que foram ditas da cidade de Deus (cf. v.3). Em primeiro
lugar, Jerusalém figurava como local da presença do Santo de Israel quando,
no futuro, a pátria fosse restaurada (Is 12.6 cf. vv.1-5). Esse Santo terá a
função de redentor a atuará na conversão do povo (Is 59.20,21). O redentor
de Israel também será seu rei, o rei da casa de Davi, rei este que também é
Deus (Jr 3.17 cf. 2Sm 7.16; Mq 5.2). O reinado desse soberano não será
restrito a Israel, mas a todas as nações do mundo, às quais trará paz e justiça
(Mq 4.1-3 cf. Is 2.4; Zc 9.10). Desse modo, a glória de Jerusalém não está nas
suas pedras, muralhas ou edificações, mas naquele que irá reinar sobre ela e
sobre o mundo: “E o Senhor reinará sobre eles no monte Sião, desde agora e
para sempre” (Mq 4.7). O Novo Testamento identifica o Senhor Jesus como
tal rei e aclara o tamanho da glória que aqui é tratada: “O sétimo anjo tocou a
trombeta, e houve no céu grandes vozes, dizendo: O reino do mundo se
tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos
séculos” (Ap 11.15).
Por essa razão, no presente, Jerusalém é motivo de adoração ao Senhor
(v.7): “[Atentai vós], tanto cantores como adoradores: Todas as minhas fontes
estão em ti” (wesharîm keholelîm kol-ma‘yanay bak). A ordem de “atentar” ou
“dar atenção” não está presente no texto hebraico, mas está subentendida,
parecendo haver um chamado àqueles que louvam a Deus que se vale de uma
construção poética – caso contrário, a compreensão do texto perde a fluência
e o próprio sentido. “As fontes de Deus” – a razão do chamado – são a figura
das suas bênçãos, produtoras de salvação (Is 12.3-6), enchendo a cidade e
transbordando para as nações. O resultado almejado por essa frase final
justifica o próprio salmo. O salmista apresenta as verdades ligadas à
instituição de Jerusalém como local escolhido por Deus para sua morada e
como cidade cujo reinado futuro fará convergir para ela todas as nações a fim
de que, no presente, independente das circunstâncias possivelmente adversas
– levando em conta o contexto turbulento presente em vários salmos dos
filhos de Corá –, mantenha-se a esperança e se levante o devido louvor a
Deus.
A glória dos propósitos de Deus expressos na escolha e fundação de
Jerusalém como a capital do reinado israelita e habitação de Deus, unido ao
futuro glorioso da cidade quando nela Jesus for tanto o rei israelita como o
Deus que habita entre os homens, deve produzir agora, em nós, todos os
verdadeiros servos de Deus, um louvor que não se pode conter. É certo que
nós ainda aguardamos o dia em que o rei do universo adentrará novamente
Jerusalém para julgar o mundo e lhe trazer ordem e paz. Mas desde já
bradamos, pela fé, os gritos dos que o receberão como rei e Senhor na grande
metrópole escolhida para assentar o trono do nosso soberano e, segundo “o
seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na
dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as
da terra” (Ef 1.9,10).

SALMO 88
O Último Desejo Antes da Morte

Um dos episódios mais tristes da história da igreja protestante foi o


massacre do Dia de São Bartolomeu, em 23 e 24 de agosto de 1572, em Paris,
espalhando posteriormente seu terror por várias cidades francesas como
Toulouse, Bordéus, Lyon, Bourges e Orléans. No massacre morreram quase
100 mil protestantes franceses, chamados huguenotes. As últimas palavras do
rei Carlos IX, que ordenou o massacre, foram: “Quanto sangue! Quantos
assassinatos! Eu não sei onde estou. Como vai terminar tudo isso? O que
devo fazer? Estou perdido para sempre. Eu sei disso”. Tais dizeres
certamente refletem o arrependimento do rei e, possivelmente, seu desejo de
nunca ter sucumbido à pressão de dar tal ordem. Entretanto, esse foi um
desejo tardio demais para que se cumprisse. Ele morreu com esse fardo.
O Salmo 88, assim como a história de Carlos IX, parece conter o último
desejo de um moribundo. Por tratar-se de uma oração a Deus, a ideia de um
“último desejo” pode soar meio deslocada, já que quem clama ao Todo-
poderoso espera ser atendido – exemplos assim não faltam no saltério.
Contudo, o Salmo 88 é peculiar no que tange à resposta de Deus, já que ela
parece ausente. Não quer dizer necessariamente que Deus não fosse atender o
pedido de Hemã, mas, diferente de outros salmos, o texto não indica
nenhuma resposta de Deus até o momento, nem revela uma disposição
esperançosa do seu escritor, sendo certamente um dos salmos mais tristes que
existem.
A condição precária do escritor é revelada ainda no início do texto (vv.3-5).
A iminência da morte, percebida pela insistência no tema, é uma realidade
vívida para o salmista e não deve ser considerada mera figura de linguagem
de natureza hiperbólica (v.3): “Pois minha alma está cheia de males e minha
vida está à beira da sepultura” (kî-sov‘â bera‘ôt nafshî wehayyay lish’ôl
higgî‘û). Não satisfeito com essa descrição da sua condição, o salmista frisa
seu estado como moribundo e sua inaptidão para mudar a situação que
enfrenta dando a entender que se trata de um caminho sem volta que qualquer
um podia notar (vv.4,5): “Sou contado com aqueles que descem à cova. Sou
como um homem inválido largado entre os mortos, como os cadáveres que
jazem no sepulcro, dos quais não mais te lembras, aqueles que foram
afastados da tua mão” (nehshavtî ‘im-yôredê bôr hayîtî kegever ’ên-’eyal
bammetîm hofshî kemô halalîm shokevê qever ’asher lo’ zekartam ‘ôd
wehemmâ mîyadka nigzarû).
Apesar do tom de pessimismo do salmo e da aparente falta de esperança do
salmista, há alguns fatores a serem levados em consideração a fim de
notarmos que não se trata de um texto seco e infértil para quem quer servir a
Deus em meio às lutas – tais fatores são o fato de o salmista efetivamente
orar a Deus e escrever um salmo para ser cantado que contém em si alguma
intenção compatível com o louvor típico da obra dos filhos de Corá. Assim, é
da tristeza do salmista sofredor que surge o encorajamento em meio a uma
situação que parece perdida. Ele também apresenta um procedimento
compatível com a realidade do homem incapaz que vive sob os efeitos da
queda, mas que tem no Senhor sua força além das circunstâncias e de todo
entendimento. Dentro desse quadro, o salmo apresenta quatro visões obtidas
pelo salmista diante do sofrimento.
Em primeiro lugar, ele descobre o valor da oração persistente (vv.1,2,9).
As primeiras palavras do salmo indicam que ele não é apenas um lamento
inócuo ou uma oração meramente ritual, mas uma oração de clamor a Deus
no seu sentido mais profundo, tendo em vista a declaração do caráter do
Senhor a quem o salmista se dirige (v.1): “Ó Senhor, Deus da minha
salvação” (yehwâ ’elohê yeshû‘atî). Outro fator que indica uma oração
verdadeira é a constância com que o salmista busca a Deus: “De dia eu clamo
e de noite [eu me coloco] diante de ti” (yôm-tsa‘aqtî ballaylâ negdeka). Tal
ideia é expandida adiante na afirmação de que ele diariamente agia como uma
criança que, carente e chorosa, estica seus braços na direção dos pais, ou
como alguém que, de dentro de um buraco, estica sua mão para ser tomada
pelo resgatador (v.9): “Durante todo o dia eu estendo a ti as minhas mãos”
(bekol-yôm shittahtî ’eleika kaffay). A perseverança na oração parece ser um
traço adquirido pelo escritor por causa do sofrimento que enfrenta. Ainda que
o tom geral seja pessimista, está presente nesse ato a esperança da atuação
benéfica de Deus, motivo pelo qual não parece que o salmista esteja
desperdiçando palavras. Seu ânimo é diametralmente oposto a uma ausência
de expectativas de ver a resposta divina (v.2): “Que a minha oração chegue à
tua presença! Inclina os teus ouvidos ao meu clamor!” (tavô’ lefaneyka
tefillatî hatteh-’ozneka lerinnatî). Em resumo, o suplicante nada pode fazer em
benefício próprio, mas recorre com persistência ao único que pode salvar sua
vida.
Em segundo lugar, ele reconhece o controle divino da situação (vv.6-8).
Diferente de vários salmos cujo clamor é motivado pela perseguição voraz de
inimigos, aqui o sofrimento não é infligido por terceiros – pelo menos o
salmista não acusa a ninguém, nem clama por proteção para si por causa de
outrem. Em lugar disso, ele responsabiliza o próprio Deus, não por maldade
ou por injustiça, de colocar o fardo sobre o autor do salmo e de ser o agente
direto da situação (v.6): “Tu me colocaste nos lugares mais fundos de uma
cova, nas trevas, nas profundezas” (shattanî bevôr tahtîyôt bemahashakkîm
bimtsolôt). A causa de tal ação é descrita na sequência (v.7): “A tua ira
repousa sobre mim” (‘alay somkâ hamateka). Não sabemos o que o salmista
fez para suscitar a ira de Deus, mas o resultado era muito claro e amplo a
ponto de ninguém poder ou querer socorrê-lo (v.8): “Tu afastaste os meus
companheiros de mim. Tornaste-me repugnante para eles. Estou preso, sem
poder sair” (hirhaqta meyudda‘ay mimmennî shattanî tô‘evôt lamô kalu’ welo’
’etse’). Há nisso uma declaração implícita de que Hemã crê firmemente na
soberania de Deus sobre tudo que ocorre e no poder divino que não se pode
conter e que atua em consonância com sua santidade e justiça.
Em terceiro, ele compreende a função dos servos do Senhor (vv.10-12).
Esses versículos são frequentemente malcompreendidos como se
pretendessem tratar realidades da vida após a morte. Na verdade, não é disso
que o salmista fala aqui. O que ele faz é argumentar com Deus – logicamente,
a seu favor –, afirmando que um morto não pode cumprir as tarefas religiosas
dos homens vivos. Assim, como funções dos viventes que conhecem a Deus,
ele alista: ser veículo da demonstração do poder de Deus, promover seu
louvor (v.10) e ser uma prova viva da bondade, da fidelidade (v.11), dos
feitos maravilhosos e da justiça do Senhor (v.12). Segundo o escritor, ao
morrer ele seria tolhido de exercer cada uma dessas atividades entre os
homens. A razão dessa argumentação não é informar tais fatos a Deus, mas
clamar que o Senhor o deixe viver de modo que ele possa manifestar todas
essas atitudes, funções naturais dos servos do Senhor, perante Deus e os
homens. Se durante algum tempo ele se esqueceu ou deliberadamente
ignorou tais responsabilidades, elas certamente estão agora em sua mente e
em seus propósitos.
Em último lugar, ele distingue as consequências do pecado (vv.13-18). Se
antes foi dito que o salmista não culpou terceiros pelo seu estado de
sofrimento, agora ele vê a si mesmo como responsável por suscitar a ira de
Deus. Após clamar por socorro e não ver a mão de Deus atuando em seu
favor (v.13), ele reconhece a punição devida ao seu pecado revelada no
afastamento do Senhor (v.14): “Ó Senhor, por que me rejeitas e escondes de
mim o teu rosto?” (lamâ yhwh tiznah nafshî tastîr paneyka mimmennî). Essa
pergunta, de efeito retórico, não busca razões desconhecidas para a reação de
Deus aos atos do salmista, mas clama por um abrandamento dessa postura. A
verdadeira razão disso tudo é conhecida do escritor (v.16): “O furor da tua ira
passou por sobre mim” (‘alay ‘ovrû harôneyka). As consequências do
pecado, no caso desse pecador, foram aflição e confusão (v.15) de caráter
contínuo (v.17), trazendo-lhe solidão e a sensação real de estar desamparado
na luta contra circunstâncias muito além das suas forças (v.18).
Independente do modo como Deus tratou esse servo, o ensino contido no
salmo é para nós extremamente atual e relevante. As lições sobre a oração
perseverante, sobre a soberania do Senhor, sobre nossa função na igreja de
Cristo e sobre as consequências dos pecados impenitentes têm lugar cativo na
nossa edificação como servos de Deus. Entretanto, a maior lição de uma
mensagem como essa é não demorar a aprender tais verdades, nem deixar que
o afastamento e a desobediência coloquem sobre nós o mesmo fardo do
salmista. Que essas lições façam parte do nosso desejo diário e nunca venham
a ser apenas o último desejo de um moribundo.

SALMO 89
A Promessa do Reino Perpétuo

Os dias de hoje são marcados por um extremo antagonismo à Bíblia. Os


homens querem desacreditá-la, diminuir sua influência na sociedade e até
proibir o seu ensino e a obediência às suas diretrizes. Contudo, há nela certas
coisas que fascinam as pessoas, de modo que tal fascínio se faz ver até nos
filmes de Hollywood. Alguns exemplos disso são as previsões de um juízo
apocalíptico nos filmes 2012 e O dia em que a Terra parou, a luta e oposição
do diabo contra Deus em Constantine e Fim dos dias, a admiração por
artefatos do mundo bíblico em dois dos filmes de Indiana Jones – Caçadores
da arca perdida e A última cruzada – e a esperança na vinda do Messias
libertador em Matrix e na saga Guerra nas estrelas. Nesse sentido, a trilogia
O senhor dos anéis não foge à regra. Enquanto a Terra Média é dominada
pelas crescentes trevas, há um rei que vive à margem da monarquia, mas
sobre quem há promessas de restauração da sua casa real. O personagem
Aragorn, descendente de uma linhagem gloriosa de reis, aguarda até o final
da história para ser entronizado e cumprir as previsões de restabelecimento da
sua dinastia no trono de Gondor.
Basta conhecer um pouco do Antigo Testamento para que se identifique
essa parte da história de J. R. R. Tolkien com a aliança estabelecida por Deus
para com seu servo Davi, conhecida como “aliança davídica” (2Sm 7.11-16
cf. Sl 89.3). Ela previa um reinado perpétuo da dinastia de Davi sem,
contudo, ignorar o pecado dos seus descendentes. Entretanto, a certeza da
perpetuidade do trono davídico superava qualquer incerteza baseada na
disciplina temporal dos reis de Judá e até no hiato temporal que envolveu a
queda desse trono. O Salmo 89 foi escrito em tempos da disciplina de um rei
de Judá, descendente de Davi. O trono israelita sofreu um golpe (v.38) e os
palácios e fortalezas reais foram derrubados (v.40). Tudo ao redor promove
sofrimento e desesperança no que tange ao futuro da monarquia israelita. Mas
é justamente nessa situação que os efeitos da promessa de Deus se fazem
sentir no meio do seu povo. Assim, o salmista Etã olha para a aliança e vê
nela alguns atributos de Deus ligados ao cumprimento daquilo que Deus
garantiu realizar.
O primeiro atributo é a fidelidade no cumprimento da promessa (vv.1-4).
Certamente, a palavra “fidelidade” (’emûnâ) recebe um destaque especial no
salmo, sendo utilizada nada menos que sete vezes (vv.1,2,5,8,24,33,49). Se
essa verdade é afirmada ao longo de todo o salmo, os primeiros versículos do
texto a enfatizam sem parcimônia, não apenas pelo uso da palavra
“fidelidade”, mas pela afirmação das consequências naturais de Deus ser fiel.
Uma das consequências da fidelidade do Senhor é o tempo de duração do
cumprimento da promessa – “para sempre” (v.2): “A lealdade é estabelecida
para sempre” (‘ôlam hesed yivvaneh). A ênfase pretendida não deixa que o
salmista fale disso apenas uma vez nesse trecho inicial (v.4): “Firmarei para
sempre a tua descendência” (‘ad-‘ôlam ’akîm zar‘eka) – adiante daqui, a
palavra traduzida como “para sempre” (‘ôlam) reaparece nos vv.28,36,37,52.
Outro modo, ainda no v.4, de afirmar a perpetuidade do cumprimento da
promessa é dizer que o trono seria estabelecido “de geração em geração”
(ledôr-wadôr). Por essa causa, também o louvor a Deus duraria para sempre e
por todas as gerações (v.1).
O segundo atributo divino é seu poder para garantir o prometido (vv.5-18).
Assim como em outros lugares do Antigo Testamento – como, por exemplo,
no Salmo 82 –, o escritor lança mão da figura de uma assembleia de deuses.
Sua intenção não é ensinar a existência de outros deuses, mas afirmar a
supremacia do Deus verdadeiro e único, ao qual nada, nem ninguém pode se
igualar (v.5). Ele é superior aos anjos, pelo que eles o temem e louvam
(vv.6,7). Seu poder controla tudo que existe (vv.8,9) e a grandeza da criação
revela a ausência de limitações no Criador (vv.11,12). Esse poder se revela
soberano também sobre a história das nações e dos exércitos (vv.10,13-18).
Olhando sob esse prisma, o salmista vai interpretar as tragédias dos seus dias
como “propósitos de Deus” e não como efeito de “incapacidade divina de
dominar a história”. É baseado nessa mesma visão que o salmista – e todos
nós – pode confiar na promessa de Deus a na fidelidade do seu cumprimento.
O terceiro atributo é a generosidade concedida aos eleitos (vv.19-29). Se o
assunto é a aliança de Deus com Davi, o texto lembra que nem sempre Davi
foi grande. Assim como Abraão foi escolhido dentre os que adoravam outros
deuses (Js 24.2), Davi foi escolhido por Deus do meio do povo e elevado ao
múnus real (v.19): “Exaltei aquele que foi escolhido dentre o povo” (harîmôtî
bahûr me‘am). Ao dizer “dentre o povo”, a ideia é que Davi não era diferente
dos demais, a não ser no fato de Deus o ter separado para realizar nele seus
planos benéficos. Por isso, o que sobressai aqui não são as qualidades do rei,
mas a bondade de Deus rendida a ele. A generosidade divina para com o
menino que se tornou rei se revelou na nomeação real pelo Senhor (v.20), na
capacitação para o cargo (v.21), no sucesso militar (vv.22,23), no crescimento
como servo de Deus e como rei distinto na história (vv.24-27) e na aliança
perpétua que Deus fez com ele (vv.28,29).
O quarto é a graça de caráter incondicional (vv.30-37). Antes que alguém
queira admirar Davi e sua posteridade por haver neles algo que os tenha feito
merecer essas inauditas bênçãos de Deus, o salmista vai assegurar que
merecimento não é a causa das bênçãos, mas sim a promessa divina – Paulo
usa esse mesmo conceito no tocante à promessa de justificação pela fé em
Cristo somente independente de obras (Rm 4.1-14). Notamos isso quando o
salmista relata a previsão da infidelidade dos descendentes de Davi que se
assentariam em seu trono (vv.30,31). Quando isso ocorresse, haveria punição
(v.32). Contudo, a promessa do trono perpétuo nunca perderia seu valor e
Deus nunca desistiria de cumpri-la (v.33 cf. 2Sm 7.15): “Mas eu não retirarei
dele a minha lealdade” (wehasdî lo’-’asîr me‘immô). Assim, o cumprimento
da promessa de Deus não estava atrelado ao merecimento da descendência de
Davi, mas ao caráter fiel do próprio Senhor (vv.34-37), demonstrando
coerência entre o conceito da “graça”, favor imerecido de Deus, e a
“incondicionalidade”, ou seja, ausência de condições favoráveis no homem
que levem Deus a beneficiá-lo.
O quinto é a santidade no tratamento dos agraciados (vv.38-51). Nesse
ponto, o salmo parece oferecer uma contradição. O salmista, que enfatizou o
conceito da fidelidade de Deus, também baseou sua esperança de um reino
perpétuo na ideia da “aliança” (berît) que o Senhor firmou com Davi
(vv.3,28,34). Contudo, avaliando sua realidade presente, ele diz (v.39): “Tu
repudiaste a aliança com teu servo. Profanaste sua coroa [derrubando-a] por
terra” (ne’artâ berît ‘avdeka hillalta la’arets nizrô). Mas isso não quer dizer
que Deus se tenha tornado infiel ou tenha desconsiderado a aliança que fez.
Pelo contrário, continua sendo fiel ao que prometeu, já que previu punição
aos pecados. Essa cláusula condicional dentro da promessa incondicional se
deve à santidade do Senhor que não pode aceitar o pecado como se fosse algo
normal, nem pode conviver com a iniquidade. Portanto, apesar da certeza do
cumprimento da promessa de um trono davídico permanente, os dias do
salmista foram marcados pela disciplina aos pecados do rei de Judá. Isso foi
sentido na ira de Deus contra o rei dos dias do salmista (v.38), na queda e
destruição das fortalezas reais (v.40), no seu escarnecimento pelos inimigos
vitoriosos (vv.41-44) e no seu sofrimento e perda de alegria figurados por um
envelhecimento precoce (v.45). Eis a razão do clamor do escritor pela
mudança da sorte de Israel baseado na esperança de uma restauração futura
(vv.46-51).
Por fim, o último atributo presente no cumprimento das alianças é a glória
do Deus eterno (v.52): “Bendito é o Senhor para sempre! Amém e amém!”
(barûk yehwâ le‘ôlam ’amen we’amen). A expressão “bendito é o Senhor” é
utilizada para louvar a Deus diante da revelação do seu caráter e da aplicação
do seu poder e graça, como se vê na exclamação adoradora de Jetro, sogro de
Moisés: “E disse: Bendito seja o Senhor, que vos livrou da mão dos egípcios
e da mão de Faraó; agora, sei que o Senhor é maior que todos os deuses,
porque livrou este povo de debaixo da mão dos egípcios, quando agiram
arrogantemente contra o povo (Ex 18.10,11). Não se trata de mera
constatação histórica, mas da percepção da glória majestosa de Deus, a qual
leva o homem a se curvar em louvor diante dele. Essa consciência no
salmista é tão grande quanto seu impulso de adorar o Senhor, pelo que
encerra o versículo bradando “amém e amém”, atestando a exatidão de toda a
“verdade” a respeito da fidelidade gloriosa do soberano.
Nós, servos de Deus, não somos descendentes da linhagem real de Davi,
mas não poderia haver maior relevância desse salmo para nossas vidas. Isso
porque o cumprimento da promessa da perpetuidade da descendência real de
Davi se cumpre na volta de Cristo, filho de Davi segundo a carne (Rm 1.3),
para estabelecer o reino prometido (Lc 1.32), trazer julgamento sobre a
impiedade e promover justiça e paz no mundo (Is 42.1-4; Mt 25.31,32; At
17.31; Ap 19.11). Além de trazer ao mundo a justiça que ansiamos e
aguardamos, por sua graça tomaremos parte nessa tarefa real e na herança de
Cristo (Rm 8.17; 1Co 6.3; 2Tm 2.12; Ap 5.10). Por isso, ainda que vivamos
em dias nos quais a promessa, apesar da sua confiabilidade, ainda não se vê
em pleno cumprimento, não desanimamos de esperar, nem de viver como
quem aguarda a vida gloriosa. Antes, nos encorajamos mutuamente e
renovamos, a cada dia, nossa fidelidade para com o Deus fiel. E, como quem
vai reinar, seguimos o mesmo caminho do nosso rei, que seguiu primeiro
para a cruz para, posteriormente, subir ao trono.

SALMO 90
O Homem Fraco Diante do Deus Forte

Certa ocasião, Dwight Lyman Moody (1837-1899), um dos maiores


evangelistas americanos – apesar do seu pouco estudo –, pregou em Londres
a uma audiência de homens e mulheres bastante refinados. A plateia era
formada pela nobreza britânica, incluindo membros da família real. O texto
bíblico a ser compartilhado era Lucas 4.27: “Havia também muitos leprosos
em Israel nos dias do profeta Eliseu [...]”. Ao lê-lo, Moody teve dificuldade
de pronunciar o nome de Eliseu, tropeçando nas sílabas. Tentou lê-lo por
mais duas vezes com um embaraçoso insucesso. Ele, então, fechou a Bíblia e,
tomado de emoção, orou: “Ó Deus, use esta língua gaguejante para pregar o
Cristo crucificado a essas pessoas”. Feita essa oração, ele pregou o
Evangelho. Ouvintes disseram que Moody falou com uma eloquência que
nunca teve antes e que toda a audiência foi quebrantada pelo poder de Deus.
Essa história é um ótimo exemplo da coexistência de duas verdades
afirmadas nas Escrituras: o homem é fraco e limitado, ao passo que Deus é
supremo e soberano.
O Salmo 90, escrito por Moisés, concorda com tal ideia. Se houve um povo
que conheceu o contraste entre o poder de Deus e todo tipo de limitação dos
homens, foi o Israel dos dias de Moisés. Libertados do Egito por meio de
prodígios que ecoam através dos séculos e sustentados no deserto por meio
de provisão milagrosa e contínua, a incredulidade e a rebeldia daqueles
israelitas são proverbiais. A dureza de coração daqueles homens – motivo
pelo qual foram chamados insistentemente de “povo de dura cerviz” (Ex
32.9; 33.3,5; 34.9) – fez com que Moisés carregasse um fardo pesadíssimo,
tendo de liderar um povo que resistia à liderança e tendo de promover
santidade e devoção em quem era rebelde tanto por natureza como por
decisão. Ainda que Moisés muitas vezes preferisse não ter de passar por isso,
ele era o líder que Deus colocou sobre o povo e, como tal, zelava por sua
santidade. Uma das suas tarefas certamente era ensinar arrependimento aos
endurecidos. Para tanto, ele evidencia como a diferença entre Deus e os
homens é marcante e enfática. Pelo menos três contrastes são expostos no
salmo e servem de base para incentivar o povo a se arrepender diante de
Deus.
O primeiro contraste tem relação com as naturezas divina e humana: Deus é
eterno enquanto o homem tem uma vida passageira (vv.1-6). Moisés
inicia o salmo falando da proteção divina (v.1): “Ó Senhor, tu tens sido um
refúgio para nós” (’adonay ma‘ôn ’attâ hayîta lanû). Contudo, ao que parece,
a intenção do escritor é enfatizar não apenas o efeito da ação de Deus, mas
sua durabilidade “de geração em geração” (bedor wador). Assim, ele afirma
que o poder criativo do Senhor aponta para sua existência atemporal (v.2):
“Antes que as montanhas fossem geradas e que fosse criada a Terra, isto é, o
mundo [todo], de eternidade a eternidade tu és Deus” (beterem harîm yulladû
wattehôlel ’erets wetevel ûme‘ôlam ‘ad-‘ôlam ’attâ ’el). Vale notar que a
expressão “de eternidade a eternidade” tende a enfatizar não apenas que Deus
não teve começo, mas que também não tem fim, sendo alguém cuja
existência não é dependente de nada, nem pode ser tolhida ou abalada.
O homem, por sua vez, subsiste em uma situação tremendamente oposta
(v.3): “Tu fazes o homem voltar ao pó e dizes: Retornai, filhos de Adão!”
(tashev ’enôsh ‘ad-dakka’ watto’mer shûvû benê-’adam). Essa é uma clara
menção a algo escrito também por Moisés no livro de Gênesis: “No suor do
rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado;
porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3.19). Moisés faz aqui um trocadilho
usando uma palavra hebraica para “pó” (heb. dakka’) diferente da que usou
em Gênesis (heb. ‘afar). A intenção parece ter sido introduzir o conceito do
arrependimento usando uma palavra que, além de significar “pó”, é também
utilizada para produzir a ideia de quebrantamento (cf. Sl 34.18). Assim, o
arrependimento deveria vir da constatação de que, enquanto Deus é eterno, a
vida do homem é passageira. Para Deus, o tempo é nada (v.4): “Pois mil anos
aos teus olhos são como dia de ontem que se passou e como a vigília da
noite” (kî ’elef shanîm be‘êneyka keyôm ’etmôl kî ya‘avol we’ashmûrâ
ballaylâ). Para o homem, o tempo é um carrasco (vv.5,6): “Tu derrama-os em
um sono. Eles são como a erva que se brota ao amanhecer” (zeramtam shenâ
yihyû bavvoqer kehatsîr yahalof). “Derramar em um sono” é um eufemismo
para o fato de Deus fazer os homens morrerem dando lugar a outros, do
mesmo modo que a relva que morre é reposta pela natureza. Assim, entende-
se que, além de o homem ter uma vida passageira (v.6), ele é facilmente
substituído por Deus quando se vai. É um modo sugestivo e enfático de dizer
às pessoas que elas nada são diante de Deus e que, por isso, devem se dobrar
diante dele!
O segundo contraste tem relação com o caráter tanto do Senhor como do ser
humano: Deus é santo enquanto o homem é pecador passível de juízo
(vv.7-12). Na primeira parte do salmo, Moisés não estava “filosofando” sobre
conceitos alheios à vida cotidiana dos seus liderados, mas explicando a razão
de eles estarem sofrendo a condenação da sua rebeldia, pelo que conclui
(v.7): “Pois somos consumidos pela tua ira e aterrorizados pelo teu furor” (kî-
kalînû be’affeka ûbahamateka nivhalenû). Está implícita a afirmação de que
Deus não suporta o pecado e a maldade. Ele é tão contrário à iniquidade que
não pode relevá-la. Antes, sua santidade se apresenta na forma de uma ira
ardente diante da maldade e o resultado é a justa punição do pecador. A ira de
Deus contra o pecado (v.8) associada à transitoriedade da vida humana
produzia exatamente o que aquela geração estava sofrendo, fadada a morrer
no deserto e a ser substituída por outra geração que iria herdar a terra da
promessa (v.9): “Pois se passam todos os nossos dias ante a tua fúria e se
acabam os nossos anos como um suspiro” (kî kol-yamênû panû be‘evrateka
killînû shanênû kemû-hegeh).
Por sua vez, a contemplação da transitoriedade da vida humana (v.10)
associada à imperfeição e corrupção passíveis da justa ira de Deus (v.11)
constitui um motivo muito sério para a avaliação pessoal e a busca da solução
sábia – o arrependimento de pecados – para a ruptura entre o homem e seu
criador (v.12): “Ensina-nos a contar nossos dias corretamente para
adquirirmos um coração sábio” (limnôt yamênû ken hôda‘ wenavi’ levav
hokmâ). Nesse caso, o foco não é a capacidade de raciocinar com sabedoria,
mas ter um coração quebrantado que, com sabedoria, se submete a Deus e
cumpre sua vontade.
O terceiro contraste tem relação com o modo de Deus e dos homens se
relacionarem um com o outro: Deus se relaciona por meio da graça
enquanto o homem o faz por meio da contrição (vv.13-17). Esse contraste,
além de concordar com a teologia bíblica, tem um caráter extremamente
prático dentro do esforço do escritor de produzir contrição e busca verdadeira
ao Deus santo por parte dos homens. Ele dá o exemplo de um servo que
clama pela misericórdia de Deus (v.13): “Volta-te, Senhor! Até quando?”
(shûvâ yhwh ‘ad-matay). Essa pergunta retórica tem o mesmo sentido que o
pedido inicial: o de clamar que Deus voltasse a ser favorável ao povo. O meio
para isso é bem definido na mente do salmista como sendo o perdão
misericordioso de Deus: “Compadece-te dos teus servos” (wehinnahem
‘al-‘avadeyka).
Se, por um lado, o pedido clama por perdão a fim de que Deus não desse a
devida paga que o pecado do povo merecia, Moisés também clama por
benefícios imerecidos, algo que, na linguagem teológica, chamamos de
“graça”. O salmista roga que Deus aja com Israel assim como se lhe estivesse
servindo um banquete que lhe saciasse a fome (v.14): “Satisfaça nossa fome
pela manhã com a tua lealdade” (savve‘enû bavvoqer hasdeka). Nesse
sentido, a fidelidade de Deus às próprias promessas ao povo que escolheu e
chamou encorajam o salmista a vislumbrar uma virada diametral na sorte do
povo (v.15), além da esperança de ver a demonstração do poder glorioso do
soberano Deus do universo (v.16). Assim, o salmo que mostrou o contraste
entre a eternidade do Deus santo e a transitoriedade do homem pecador,
solicita ao Senhor que atue “graciosamente” abençoando seus servos
“arrependidos” e de corações compungidos (v.17): “Seja o favor do Senhor,
nosso Deus, sobre nós” (wîhî no‘am ’adonay ’elohênû ‘alênû). Apesar de
haver um contraste entre as disposições dos homens e de Deus,
“arrependimento de pecados” e “graça bondosa”, respectivamente, o encontro
dessas duas disposições faz com que haja comunhão entre o Senhor e seus
servos com a produção da glória devida a Deus e com benefícios indizíveis
aos que amam seu Senhor.
Algo que pode parecer contraditório é haver comunhão entre Deus e os
homens por meio da existência de pontos de diferença em lugar de pontos de
igualdade. Em nossa experiência cotidiana, temos amizade e proximidade
com pessoas que são parecidas conosco e que nutrem os mesmos gostos.
Contudo, no relacionamento entre Deus e os homens, as diferenças são
essenciais. Nosso apego ao Senhor não se dá porque ele é como os homens,
mas porque não é, sendo-lhes superior e alvo de busca e devoção. Nessa
jornada, quanto mais notarmos as diferenças entre nossas falhas e a perfeição
de Deus, mais nos acomodaremos em nossa devida posição de servos
dependentes, reverentes e obedientes para recebermos das mãos de Deus
aquilo que surge da sua graça. É da diferença que há entre o Senhor gracioso
e seus servos arrependidos que surgem as bases do relacionamento que
perdurará pelas eras sem fim.

SALMO 91
A Segurança que só Deus Pode Dar

Alguns dos homens mais bem treinados do mundo são os agentes do


serviço secreto norte-americano. Entre outras atribuições, sua
responsabilidade mais importante é dar proteção ao presidente dos Estados
Unidos. Assassinatos de presidentes americanos no passado, como os de
Abraham Lincoln (1865), James Abram Garfield (1881) e William McKinley
(1901) fizeram com que o serviço secreto investisse todas as suas forças e
recursos para proteger aquele que é considerado um dos homens mais
poderosos do mundo. Mesmo assim, não foi possível impedir o assassinato de
John F. Kennedy (1963) e o atentado contra a vida de Ronald W. Reagan
(1981). Isso significa que até o homem mais bem protegido do mundo pode
ser atingido. Também quer dizer que nem o poderoso serviço secreto
americano pode promover uma segurança inabalável.
O Salmo 91, porém, fala de alguém que pode dar a proteção que mais
ninguém pode. A figura de Deus como supremo protetor dos seus é tão forte
nesse texto, que é comum encontrarmos em algumas casas e estabelecimentos
comerciais Bíblias abertas justamente no Salmo 91 com a finalidade
supersticiosa de proteger o local. Também já vi pessoas que, apesar de
rejeitarem a mensagem da salvação em Cristo pela fé somente, leem esse
salmo antes de fazer algo perigoso como se, ao lê-lo em voz alta, estivessem
se “benzendo” ou lançando mão de alguma “simpatia”. Mal sabem elas o
quanto estão longe da verdade exposta por esse salmista anônimo. A
segurança relatada no texto não vem das palavras em si, nem de rituais, mas
do Deus Todo-poderoso que ama os seus e cuida deles como sua propriedade
pessoal. Apesar de não ser possível a identificação nem do autor, nem do
momento histórico da composição do salmo, fica clara a ideia de que o
salmista estava correndo grande perigo. Mas, ainda que corresse risco, ele
demonstra firme confiança em Deus evidenciando cinco resultados da
proteção de Deus ao seu povo.
O primeiro resultado da proteção de Deus aos seus servos é a segurança
ampla (vv.1-4). O salmista, mesmo correndo perigo, estava convencido de
que Deus não tinha qualquer dificuldade ou impedimento para defendê-lo.
Em primeiro lugar, Deus é descrito como quem fornece uma habitação segura
para seus servos aflitos e cansados (v.1): “Aquele que habita no esconderijo
do Altíssimo mora à sombra do Todo-poderoso” (yoshev beseter ‘elyôn betsel
shadday yitlônan). A aparente redundância dessa afirmação se constitui em
uma ênfase na segurança daquele que busca a proximidade de Deus – por
isso, a presença de dois nomes divinos que exaltam seu poder e supremacia:
“Altíssimo” (‘elyôn) e “Todo-poderoso” (shadday).
A mesma verdade é declarada, a seguir, em termos pessoais em que a
repetição do pronome pessoal “meu” dá um tom de intimidade entre o
protegido e seu protetor divino (v.2): “Eu digo ao Senhor: ‘O meu Deus é
meu refúgio e minha fortaleza’. Eu confio nele” (’omar layhwh mahsî
ûmetsûdatî ’elohay ’evtah-bô). Essa intimidade é, a seguir, refletida nos
leitores a fim de que também sintam em Deus segurança, mesmo sabendo que
são frágeis como pequenos pássaros e como pessoas passíveis de serem
atingidas por doenças devastadoras (v.3): “Pois ele te livrará da arapuca do
caçador e da peste fatal” (kî hû’ yatsîleka miffah yaqûsh middever hawwôt).
Por fim, ele compara Deus a uma ave que protege seus filhotes indefesos
(v.4): “Ele te cobrirá com suas penas e tu te abrigarás sob suas asas”
(be’evratô yasek lak wetahat-kenafayw tehseh). Se desde a primeira frase do
salmo fica claro que não falta a Deus poder para proteger, o salmista afirma
que a fidelidade do Senhor é a razão da proteção: “A sua fidelidade é escudo
e armadura” (tsinnâ wesoherâ ’amittô).
O segundo resultado é a segurança constante (vv.5,6). Para aqueles que
conhecem Deus, não há dúvidas sobre sua capacidade de defender e livrar os
seus. Contudo, nos momentos de perigo surge a questão: “Será que Deus está
me protegendo agora? Será que ele desistiu de cuidar de mim?”. Diante dessa
reação natural de quem sofre, o salmista afirma que Deus permanece no
controle das circunstâncias “noite e dia”. Na verdade, o escritor não está
preocupado com o horário da atuação de Deus, mas com sua continuidade,
razão pela qual ele cita a noite e o dia, provavelmente fazendo menção a
incursões dos inimigos na calada da noite e à guerra aberta à luz do dia (v.5):
“Tu não terás medo do terror da noite, nem da flecha que voa de dia” (lo’-
tîra’ miffahad laylâ mehets ya‘ûf yômam). Ele completa oferecendo uma
afirmação paralela na qual chama a noite de “escuridão” e o dia de “meio-
dia” (v.6): “Nem da peste que se espalha na escuridão, nem da destruição que
devasta ao meio-dia” (middever ba’ofel yahalok miqqetev yashûd
tsahorayim).
O terceiro é a segurança pessoal (vv.7-10). Segundo o que o salmista
expõe, a proteção de Deus não é aplicada “no atacado”, mas de modo pessoal
ao servo do Senhor, ainda que ele seja um entre milhares (v.7): “Mil cairão ao
teu lado e milhares à tua direita, [ao passo que isso] não se aproximará de ti”
(yiffol mistiddeka ’elef ûrevavâ mîmîneka ’eleyka lo’ yiggash). Não há como
ouvir isso sem se lembrar de Raabe que, dentre todos os habitantes de Jericó,
foi deliberadamente poupada com sua família quando toda a muralha caiu,
menos o pedaço onde estava sua casa (Js 6.17,22-25). Por sua vez, aqueles
que são inimigos do Senhor não serão poupados, mostrando que não é a sorte
que define o destino dos homens, mas o juízo de Deus (v.8): “Apenas com os
teus olhos tu observarás e verás a paga dos ímpios” (raq be‘êneyka tavvît
weshillumat resha‘îm tir’et). A presença da palavra “apenas” (raq), de difícil
interpretação nesse texto, parece indicar que o servo de Deus permanece
incólume quando Deus julga os ímpios, de modo que ele não compartilha do
juízo, mas nota-o com os olhos apenas (vv.9,10).
O quarto resultado é a segurança cuidadosa (vv.11-13). A menção no
salmo à atividade dos anjos entre os homens não é algo frequente de se ver.
Ainda assim, o salmista revela as ordens de Deus aos seres angelicais em
benefício daqueles que lhe pertencem (v.11): “Pois ele dará ordem aos seus
anjos a fim de que te guardem em todos os teus caminhos” (kî mal’akayw
yetsawweh-lak lishmareka bekol-derakeyka). Pode, nesse ponto, surgir a
dúvida quanto à necessidade de Deus dar proteção por meio dos seus anjos:
“Será que ele sozinho não é capaz de proteger os seus?”. Essa não parece ser
a opinião do salmista, já que se refere a Deus de maneiras que expressam sua
onipotência (v.1). Desse modo, é perceptível a intenção divina de transmitir
aos seus a sensação de segurança em todo tempo. Do mesmo modo que um
rei coloca seus guardas para proteger a cidade, Deus coloca seus anjos para
cuidar dos justos, protegendo-os cuidadosamente do mal como se fossem
babás que levam bebês no colo para que não se machuquem (v.12): “Eles te
carregarão nas mãos para que teu pé não tropece na pedra” (‘al-kaffayim
yissa’ûneka pen-tinnof ba’even ragleka). O resultado desse cuidado amoroso
é o livramento até mesmo diante dos maiores perigos (v.13).
O último resultado da proteção de Deus é a segurança amorosa (vv.14-16).
O salmista afirma que a proteção que ele almeja é resultado de um
relacionamento que se baseia no amor e não em ritos vazios. Escrevendo de
um modo como se Deus estivesse falando, diz (v.14): “Eu o salvarei porque
ele se apegou a mim com amor. Eu o protegerei porque ele conhece o meu
nome” (kî bî hashaq wa’afalletehû ’asaggevehû kî-yada‘ shemî). A
reciprocidade é clara e mostra que Deus age com amor para com aqueles que
o amam. Isso gera um relacionamento entre Deus e seus servos que dá a estes
acesso para que clamem ao seu Senhor e sejam atendidos por quem realmente
se importa com eles (v.15): “Ele clamará a mim e eu lhe responderei. Eu
estarei com ele quando estiver em perigo. Eu o livrarei e o honrarei ”
(yiqra’enî we’e‘enehû ‘immô-’anokî betsarâ ’ahalletsehû wa’akavvedehû).
Nesse ponto, o salmista revela um traço típico de um relacionamento
amoroso que é ir além de simplesmente dar aquilo que falta, mas também
abençoar além do esperado (v.16): “Eu o satisfarei com uma vida longa e
mostrarei a ele a minha salvação” (’orek yamîm ’asbî‘ehû we’ar’ehû
bîshû‘atî).
O salmista tinha razão de confiar em Deus ainda que atravessasse sérias
dificuldades. Além da firme esperança de ser salvo, ele tinha uma resposta
satisfatória enquanto não via a libertação. Conhecendo o poder de Deus, sabia
que as dificuldades não eram maiores que o poder divino de vencê-las.
Conhecendo a fidelidade do Senhor, sabia que ele não havia desistido do
servo. Atentando para o modo singular com que Deus se relacionava com ele,
sabia que não estava sendo tratado com “vistas grossas” ou como mera
estatística no meio da multidão. Sabendo do cuidado com que era protegido,
sabia que Deus não estava ocupado demais para socorrê-lo. Conhecendo o
amor de Deus, esperava ser tratado como um filho. Ainda que as dificuldades
persistissem, ele sabia que elas condiziam com o plano soberano de Deus,
com o cuidado amoroso do Pai e com a certeza da salvação que fora
prometida pelo Senhor do universo. Diante de tais realidades, estão certas as
pessoas que reconhecem nesse salmo a segurança que há em Deus. Contudo,
em lugar de abrirem Bíblias que não leem com a intenção de proteger o
ambiente, devem abrir seu coração pela fé naquele que, na Bíblia, se revelou
a nós por meio do seu filho Jesus Cristo, o Senhor e protetor dos que nele
creem.

SALMO 92
A Maravilha do Tempo de Adoração a Deus

Certo viajante, passando pelo lago Léman, na fronteira entre a França e a


Suíça, se viu absorto na admiração do belo panorama que tinha diante de si.
A beleza do Sol se pondo e das luzes a se desfazer nos céus do ocidente era
fantástica. Entretanto, o surpreendente ocorreu quinze minutos depois de o
Sol se pôr. O companheiro desse viajante, apontando o lado oposto,
exclamou: “Olhe para o Leste! O que é aquela luz estranha?”. Eles olharam
para a luz que brilhava e, maravilhados, perceberam se tratar do Mont Blanc.
Ele é tão alto que o Sol, mesmo já posto do ponto de vista dos viajantes,
ainda iluminava seu topo branco em que a neve refletia os raios solares em
um espetáculo sem igual. O impressionante é que, apesar da majestade
daquela cadeia montanhosa e daqueles cumes que se erguiam como que
buscando os céus, ele só foi visto depois do pôr do Sol. O momento certo
promoveu uma das visões mais belas e impressionantes que aqueles homens
já tiveram.
O Salmo 92 também trata de um tempo especial em que se podem
vislumbrar certas realidades que, por vezes, passam despercebidas diante dos
afazeres do dia a dia. Seu título, dado pelo próprio salmista, contém o
propósito da sua composição: “Cântico para o dia de sábado” (shîr leyôm
hashavvat). Como, no antigo Israel, o sábado não era apenas tempo de
“descanso solene”, mas também de “santa convocação” (Sl 23.3), entende-se
que o salmo foi escrito com a finalidade de ser utilizado no culto a Deus.
Segundo esse propósito, o salmista produziu um texto realmente útil, pois
destaca certos pontos que podem passar despercebidos diante das muitas
preocupações diárias, mas que não podem ser menosprezados quando se está
a cultuar o Senhor. Assim, o salmista apresenta quatro promoções do tempo
de culto a Deus.
Em primeiro lugar, o culto ao Senhor deve promover louvor e anúncio
das grandezas de Deus (vv.1-5). Apesar de isso parecer óbvio, muitas vezes
o verdadeiro sentido do louvor perde espaço para as atividades religiosas em
si – em Israel, isso aconteceu com frequência, a exemplo do que expõe o
livro de Malaquias. Em vez disso, o salmista parece realmente satisfeito com
a oportunidade de se envolver pessoalmente no louvor a Deus (v.1): “Bons
são os atos de exaltar o Senhor e de cantar louvores ao teu nome, ó
Altíssimo” (tôv lehodôt layhwâ ûlezammer leshimka ‘elyôn). Contudo, esse
louvor não é oferecido a um Deus impessoal com quem o salmista não se
identifica. Pelo contrário, há um relacionamento baseado na bondade de Deus
para com os seus, pelo que o escritor apresenta louvores anunciando os feitos
divinos (v.2), dizendo também ser bom o ato de “anunciar de manhã a tua
lealdade e de noite a tua fidelidade” (lehaggîd bavvoqer hasdeka
we’emûnateka ballêlôt), fazendo-o com dedicação e esmero (v.3). O ânimo
com que a adoração deve ser oferecida deve ser compatível com o ânimo
resultante da bondade de Deus sobre os adoradores, de modo que, tendo isso
em mente, dificilmente haverá frieza e desinteresse no culto ao Senhor (v.4):
“Visto que me alegraste com teus feitos, ó Senhor, eu aclamarei as obras das
tuas mãos” (kî simmahtanî yhwh befa‘oleka bem‘asê yadeyka ’arannen).
Nesse sentido, o louvor a Deus é oferecido não apenas pelo que ele faz, mas
pela sabedoria dos seus propósitos, ainda que misteriosos para os homens
(v.5): “Os seus desígnios são muito profundos!” (me’od ‘omqû
mahshevoteyka). A mesma palavra traduzida aqui como “desígnios” –
literalmente, “pensamentos” – aparece em Isaías 55.8,9 completando a ideia.
Em segundo lugar, o culto ao Senhor deve promover repúdio pelo modo
de vida dos incrédulos (vv.6-9). Se o salmista contempla a grandiosidade
dos propósitos e da soberania divina, tais maravilhas passam despercebidas
aos olhos dos incrédulos (v.6): “O ignorante não entende e o tolo não
compreende isso” (’îsh-ba‘ar lo’ yeda‘ ûkesîl lo’-yavîn ’et-zo’t). Ao dizer
“isso”, não fica claro se ele se refere ao que está exposto no versículo anterior
ou posterior. Entretanto, a compreensão do texto aponta para as duas
realidades, pois o tolo, em lugar de se curvar perante o Senhor do universo,
cujos propósitos são maravilhosos, arrogantemente ignora o fato de que sua
força é frágil diante do Deus forte e que sua existência é breve diante do Deus
eterno (v.7): “Quando os ímpios brotam como uma relva e florescem todos
aqueles que fazem o mal, [isso ocorre] para que sejam exterminados
definitivamente” (bifroah resa‘îm kemô ‘esev wayyatsîtsû kol-po‘alê ’awen
lehishomdam ‘adê-‘ad) – o prévio desígnio de Deus de punir os ímpios está
presente nesse quadro. Com isso, o escritor demonstra não ter qualquer inveja
da condição dos rebeldes, cujo ocaso ele antepõe à eternidade do Deus a
quem adora (vv.8,9). Diante disso, o salmista parece não ter melhores
palavras para se referir ao pecador incrédulo do que “ignorante” (’îsh-ba‘ar)
e “tolo” (kesîl).
Em terceiro lugar, o culto ao Senhor deve promover reflexão sobre a
condição benéfica dos salvos (vv.10,11). Nesse ponto, o salmista anônimo
começa a se parecer com um rei. Ele diz (v.10): “Eu me banhei com óleo
fresco” (ballotî beshemen ra‘anan). Apesar de as pessoas da época se
ungirem para se embelezar (Rt 3.3; Sl 104.15), essa não parece ser a ênfase
aqui. É provável que ele se refira ao ato ritual de ungir que servia para
empossar reis, sacerdotes e profetas (Ex 28.41; 1Sm 16.1,12-13; 1Rs 19.16).
Mesmo com o uso relativamente amplo da unção, a primeira parte do
versículo favorece a figura de um rei, visto se referir à ação de Deus sobre o
escritor no sentido de lhe fazer subir “o chifre” – figura de linguagem
comumente utilizada para fazer menção ao poderio militar: “Mas tu levantas
o meu chifre como um touro selvagem” (wattarem kir’êm qarnî). O salmista
parece trazer à luz a ação de Deus de conceder-lhe sucesso militar sobre o
inimigo desferindo um duro golpe, assim como um touro que, ao levantar seu
chifre, golpeia e atinge sua vítima com violência. Desse modo, o cuidado e a
ação benéfica do Senhor dos exércitos fazem com que o escritor do salmo
tenha plena confiança, mesmo diante dos homens que se levantam contra ele,
pelo que os olha e os ouve de frente, sem fugir nem desviar (v.11): “Meu olho
se fixa em meus inimigos quando se levantam contra mim. Meus ouvidos
ouvem os malfeitores” (wattavvet ‘ênî beshûreray baqqamîm ‘alay mere‘îm
tishma‘nâ ’oznay). Para ele, esse é, sem dúvida, um dos motivos da adoração
no culto a Deus.
Por fim, o culto ao Senhor deve promover esperança para o que ainda
está por vir (vv.12-15). Um elemento importante no culto a Deus prestado
pelo salmista é a convicção do futuro que aguarda aqueles a quem o Senhor
ama e protege. Se, por um lado, o ímpio será “exterminado” (v.7), o justo será
fortalecido de tal modo que é comparado a árvores belas, produtivas,
frondosas e valiosas (v.12): “O justo florescerá como a tamareira e crescerá
como o cedro o Líbano” (tsaddîq kattamat yifrâ ke’erez ballevanôn yisgeh). A
figura arbórea continua no versículo seguinte e associa o crescimento do justo
à ligação íntima e fundamental com o Senhor (v.13): “Plantados na casa do
Senhor, eles florescerão nos átrios do nosso Deus” (shetûlîm bevêt yhwh
behatsrôt ’elohênû yafrîhû). É claro que a ideia de estar na casa do Senhor
não indica apenas benefício para o servo, como também seu compromisso de
aprender e se santificar a fim de glorificar o Deus santo. Mediante essa
sintonia entre o adorador e o adorado, a lealdade e a fidelidade de Deus,
qualidades frequentemente exaltadas nos salmos, fariam com que os
benefícios dessa ligação estreita perdurassem (v.14): “Eles ainda darão fruto
na velhice. Serão frondosos e vigorosos” (‘ôd yenûvûn besêvâ deshenîm
wera‘anannîm yihyû). Isso faz com que o justo, além de louvar a Deus no
presente, pela esperança firme que tem, venha a glorificá-lo no futuro em
lugar de, ingratamente, viver se queixando que o tempo passou e que os dias
não são os mesmos (v.15): “Para anunciar que reto é o Senhor, minha rocha, e
[que] nele não há injustiça” (lehaggîd kî-yashar yhwh tsûrî welo’-‘olatâ bô).
Ao mesmo tempo que é maravilhoso ver tudo que envolve o verdadeiro
louvor a Deus, nota-se com muita ênfase a importância do tempo separado
para o culto do Senhor. É certo que nos nossos dias esses valores têm sido
negligenciados sob desculpas de que a igreja é cheia de falhas, de que os
tempos mudaram e de que ler a Bíblia em casa basta. Isso não é verdade! É
sempre preciso separar tempo em que se reflita sobre as grandezas de Deus,
que se aprenda da sua Palavra e que se apresente o devido louvor anunciando
a graça e o amor de Deus sobre seu povo. Por outro lado, vemos muitos
cultos que se parecem com tudo, menos com um culto, em que a irreverência,
a desordem, a autoafirmação, a usurpação da soberania divina e a introdução
de heresias destruidoras tomam o lugar dos valores encarecidos por esse
salmista. Isso não é correto! O tempo de adoração a Deus deve ser dirigido
pela orientação do Senhor e devem concordar com seu caráter santo. Somente
quando os crentes entendem seu lugar na relação com Pai e compreendem o
que, em Deus, é digno de admiração, louvor e glória é que podem de fato
cumprir sua função como adoradores, têm o privilégio de proclamar a maior
mensagem da história e sentem a mesma alegria que o escritor do Salmo 92
sentia ao exaltar o Senhor. Eles, então, conhecem o significado profundo de
bradar a Deus: “Bons são os atos de exaltar o Senhor e de cantar louvores ao
teu nome, ó Altíssimo”.
SALMO 93
A Majestade do Grande Rei

Há uma história que pregadores e escritores ao redor do mundo não se


cansam de repetir. É a respeito da visita de certo cavalheiro, Sir Leonard
Wood, ao rei da França. Segundo contam, o monarca ficou tão feliz com a
amável visita que convidou Sir Leonard para jantar com ele no dia seguinte.
Quando o convidado chegou ao compromisso no outro dia, o rei, surpreso por
vê-lo ali, disse-lhe: “Sir Leonard, eu não esperava vê-lo. Como aconteceu de
você vir?”. Atônito, o convidado respondeu: “Vossa majestade não me
convidou para jantar convosco?”. “Sim, convidei”, disse o rei, “mas você não
confirmou que aceitou o convite”. Nesse momento, Sir Leonard Wood disse
algo de muito efeito: “Um convite de um rei nunca é para ser confirmado,
mas para ser obedecido”. Por essa frase é possível perceber que o cavalheiro
tinha perfeita consciência do significado da majestade e das prerrogativas
ligadas a um rei.
O Salmo 93 foi escrito por alguém que tinha essa mesma consciência,
porém, em uma escala muito maior. Ele, um escritor anônimo, viveu na
época em que reinavam muitos monarcas sobre as muitas nações. Contudo,
ele olha para um rei em especial e vê nele as máximas qualidades que os
soberanos deveriam ter, por meio das quais inspiraria em seus súditos a
obediência e lhes faria imitar seu senhor no que tange à honra, à verdade e ao
amor. Infelizmente, poucos reis na história marcaram seus súditos de um
modo assim tão positivo. Mas o monarca que o salmista tem em mente porta
qualidades inigualáveis que o tornam um soberano singular, digno de ser
servido e honrado, querido e amado, benquisto e adorado. Esse soberano,
cuja majestade é única, é o Senhor Deus. A ele o salmo é dirigido, o qual
evidencia, no decorrer do texto, quatro qualidades do Rei do reis.
A primeira qualidade descrita no salmo é a majestade de Deus (v.1). Logo
de início fica patente o seu múnus real: “O Senhor reina” (yehwâ malak). O
texto não se preocupa em dizer sobre quem ele reina – parece que o salmista
considera essa uma questão óbvia. Essa breve afirmação traz implícito que
Deus é o monarca de tudo que existe, sobre tudo que criou. E mais que isso:
se preocupa em colocá-lo, ao descrevê-lo como rei, no topo de uma
hierarquia de comando, de poder e de respeito. Essa figura – o rei – deve ser
adicionada a várias outras presentes no livro de Salmos usadas para descrever
Deus, tais como “pastor” (Sl 23.1), “pai” (Sl 89.26) “alto refúgio” (Sl 59.9),
“abrigo forte” (Sl 71.7), “socorro” (Sl 70.5) e “proteção” (Sl 63.7). Usar tais
figuras sem enfatizar a majestade de Deus pode produzir a impressão de que
ele é servo dos homens – essa é uma visão muito comum que se tem de Deus
na atualidade. Mas, ao dizer que ele reina, é exposta a verdade de que ele é
quem deve ser servido por nós, enquanto graciosa e voluntariamente nos
abençoa como seus súditos.
O salmista explora um pouco mais a figura real trazendo à mente dos
leitores as vestes de um rei. O mundo antigo conhecia a prática de os reis
trajarem “vestes reais” que, além de serem feitas com os melhores e mais
caros tecidos e ornamentos, transmitiam a ideia da realeza (Et 6.8; Jn 3.6).
Nesse caso, a roupa do Senhor, com a qual se reveste, é sua própria
majestade: “Ele vestiu a majestade” (ge’ût lavesh). Ser majestoso, além de
inspirar respeito, reverência e obediência, significa ter capacidade de exercer
domínio: “O Senhor vestiu a força, [com ela] se cingiu” (lavesh yehwâ ‘oz
hit’azzar). A palavra “cingir”, que descreve uma das preparações para uma
batalha, também pode ser traduzida como “se armar”. Desse modo, o rei é
alguém com poder e capacidade de guerrear e, por isso, é temido e governa
sobre outros. Os resultados práticos desse traço da majestade de Deus são o
perfeito controle da sua criação e o comando de tudo que acontece na
história: “O mundo certamente está firmado, ele não se abala” (’af-tikkôn
tevel bal-timmôt). Deus é um rei de direito e de fato.
A segunda qualidade alistada é a eternidade de Deus (v.2). O rei do
universo não é majestoso só porque ele quer ser ou porque disse ser. Ele
possui qualidades intrínsecas que o separam de todo o restante, tornando-o
singular. Aliás, não apenas o separa da criação como o coloca muito acima
dela. Uma dessas qualidades singulares está ligada à sua existência. Dando
sequência ao assunto relativo ao caráter real de Deus, diz o escritor: “O teu
trono está estabelecido desde a Antiguidade” (nakôn kis’aka me’az). A
conclusão é clara: desde os tempos mais remotos da história, ou seja, desde a
criação de tudo que existe, Deus é o rei majestoso da humanidade, do mundo
e de todo universo. Entretanto, o salmista não para por aí. Parece que ele não
quer deixar espaço para uma visão de que Deus tem a mesma idade do
universo, como se tivesse sido criado com ele. O salmista alonga a existência
de Deus para antes da criação sem permitir que a ele seja atribuído um dia de
nascimento. Para o salmista, Deus existe desde sempre, sem começo e sem
origem: “Tu és desde a eternidade” (me‘ôlam ’attâ). Essa realidade
certamente multiplica a contemplação da majestade divina de modo
incalculável.
A terceira é o poder de Deus (vv.3,4). Se o ponto anterior lida com
conceitos que vão além da compreensão e da observação humana –
eternidade e autoexistência –, algo palpável ao homem é reconhecer a
majestade de um rei por meio do seu poder. No campo político, quanto
maiores eram os exércitos de um rei, suas muralhas e seu domínio, maior era
a majestade do seu reinado. No campo teológico não é diferente. O poder de
Deus confere a ele o reconhecimento nítido, por parte do homem, da sua
posição de rei soberano. Pensando nisso, o salmista introduz o assunto
citando uma das maiores forças da natureza (v.3): “Os rios levantam, ó
Senhor, os rios levantam a sua voz, os rios levantam o seu estrondo” (nas’û
neharôt yhwh nas’û neharôt qôlam nas’û neharôt dokyam). O ato de “o rio
levantar sua voz” é uma figura de linguagem – personificação – que pretende
apontar para o barulho das fortes corredeiras de água. Apesar disso, o escritor
não está meditando sobre a natureza. Ele está fazendo referência a uma das
suas forças mais poderosas para servir de base de comparação com o poder
de Deus.
Sua intenção, ao fazer isso, fica clara quando ele antepõe a força das águas
ao poder de Deus (v.4): “Mais poderoso que o barulho das águas caudalosas,
mais poderoso que as ondas do mar é o Senhor nas alturas” (miqqolôt mayim
ravvîm ’addîrîm mishberê-yam ’addîr bammarôm yhwh). Se lembrarmos que
nessa época não havia a infraestrutura que temos hoje, como pontes, diques e
muros de contenção fluvial, perceberemos que as forças das águas eram um
problema sério para quem precisava atravessar um rio, de modo que era algo
arriscado e que nem sempre era possível realizar (1Sm 30.9,10). Se
recordarmos, também, que as embarcações da época não passavam de
“barquinhos” de madeira muitíssimo inferiores aos navios atuais – mesmo
esses sofrem com as forças das águas do oceano e por vezes afundam –,
podemos imaginar que tipo de ameaça representavam as ondas do mar nos
dias do salmista. Sabendo que era assim que os homens encaravam as
correntes de águas, muito mais poder eles deviam reconhecer em Deus e, por
isso, temê-lo como grande rei.
A última qualidade do Rei dos reis, conforme exposto no salmo, é o
caráter de Deus (v.5). Como a ideia da majestade não abrange apenas a
grandeza de um rei, mas traços que o tornam “admirável” à vista dos
observadores, seu caráter colabora para a figura do rei majestoso. Duas
qualidades que todo rei deveria ter e que Deus as tem em escala máxima são
a “fidelidade” e a “santidade”: “Os teus preceitos são fidelíssimos. A
santidade é própria à tua casa para sempre, ó Senhor” (‘edoteyka ne’emnû
me’od levêteka na’awâ-qodesh yhwh le’orek yamîm). A palavra de um rei
deveria ser tão respeitável e verdadeira quanto a realeza do monarca. No caso
de Deus isso é mais que verdade. Assim, como alguém fiel, seus testemunhos
e orientações são confiáveis tanto no sentido de promover verdadeira
sabedoria e bem-estar naqueles que os seguem como no sentido de conferir
firme esperança de que Deus cumprirá todas as promessas que fez. Já, como
alguém santo, todo erro, engano e maldade estão distante dele. É extremante
benéfico ser súdito de um rei santo, pois o governo desse soberano será
marcado pela qualidade que anda de mãos dadas com a santidade: a justiça.
Esse governo santo também terá como característica incentivar seus vassalos,
pela imitação, a viver em santidade. Por fim, a santidade desse rei eterno não
apenas nos leva a servi-lo, como nos impulsiona à verdadeira adoração.
Que visão magnífica da majestade do nosso Deus. A monarquia é em si
notável, haja vista o fato de que reis, rainhas, príncipes e princesas sempre
chamam a atenção do mundo, mesmo daqueles que nem são seus súditos.
Isso é assim porque a realeza tem algo de admirável. Porém, quando o
monarca é um Deus majestoso em todos os sentidos, eterno, onipotente, fiel e
santo, nossa admiração se transforma em louvor e adoração. Que estão
fazendo os homens, então, que não se curvam diariamente diante do seu trono
de glória, nem lhe rendem sua obediência, sua reverência e seu amor?

SALMO 94
O Injusto Diante dos Homens e Diante de Deus

Quando eu era criança, me disseram que “é melhor ser a cabeça do rato que
o rabo do leão”. A ideia pretendida pelo provérbio popular é que é mais
vantajoso ser o melhor de um grupo inferior que, em um grupo de elite, ser o
pior, o último deles. Eu nunca vi sentido nisso até que, quando adolescente,
vivi algo que me fez pensar a respeito. Eu jogava voleibol em certa categoria
em que eu me destacava. Isso me fez crer que eu merecia ser elevado à
categoria superior, na qual, na minha mente, eu também me destacaria. Mas,
quando aconteceu o que eu desejava, deixei de ser destaque para ser inferior a
todos, motivo de piadas e alvo de broncas e mais broncas. Ainda que isso
tenha sido bom para mim, fazendo-me crescer mais do que seria possível na
categoria inferior, eu entendi o que aquele provérbio queria dizer.
O Salmo 94 não deixa de conter, sob certo aspecto, a mesma lição. O texto
não nos informa nem a identidade do escritor, nem o contexto histórico em
que foi composto. Contudo, ele guarda semelhanças profundas com o Salmo
10, outro salmo anônimo, em que os ímpios fazem o mal abertamente,
ignorando o pleno conhecimento de Deus da situação e sua inevitável ação de
julgar. Do modo como aqui é exposto, a dupla realidade do ímpio é posta sob
aspectos diferentes. Por um lado, ele é descrito em sua ação diante dos outros
homens, sobre os quais ele se eleva e age como se ninguém pudesse detê-lo
ou julgá-lo – a “cabeça do rato”. Porém, por outro lado, ele é pintado, diante
do juiz eterno e Deus soberano, como alguém desfavorecido e fraco, incapaz
de evitar sua punição final – o “rabo do leão”. Quem escreve o salmo é um
homem sofrendo na mão de ímpios, motivo pelo qual o salmo é uma oração
por libertação e por punição dos maus. Assim, quatro verdades sobre o ímpio
são retratadas no texto.
A primeira verdade é que, diante dos homens, os ímpios se vangloriam
da maldade (vv.1-4). O pecado dos ímpios transparece desde o clamor inicial
do salmista (v.1): “Ó Senhor, Deus das vinganças. Manifesta-te, Deus das
vinganças” (’el-neqamôt yhwh ’el-neqamôt hôfîa‘). Fica claro que essa
maldade estava apontada na direção do próprio salmista. Ao se referir a Deus
como “Deus das vinganças”, é mais ou menos como chamá-lo de “Deus da
justiça”, ou seja, alguém que pune o mal e retribui a perversidade com juízo
(v.2): “Levanta-te, ó juiz da Terra. Traga a merecida punição aos soberbos”
(hinnase’ shofet ha’arets hashev gemûl ‘al-ge’îm). O que, a princípio, parece
um sentimento vingativo e rancoroso do salmista, explica-se na descrição da
maldade dos ímpios. Em lugar de agir perversamente de modo oculto e
dissimulado, esses homens faziam o mal abertamente. Em primeiro lugar, sua
maldade não era motivo de vergonha para eles, mas de engrandecimento
(v.3): “Até quando os ímpios, ó Senhor? Até quando os ímpios exultarão?”
(‘ad-matay resha‘îm yhwh ‘ad-matay resha‘îm ya‘alozû). Em segundo, ao
agir com violência, eles se vangloriavam do seu mal, demonstrando um
sentimento de aprovação total do seu sistema corrompido de vida e completo
desprezo pelos outros homens (v.4): “Eles vomitam palavras arrogantes.
Vangloriam-se todos aqueles que praticam a iniquidade” (yavvî‘û yedavverû
‘ataq yit’ammerû kol-po‘alê ’awen).
A segunda verdade é que, diante dos homens, os ímpios têm certeza da
impunidade (vv.5-11). O salmista especifica, agora com ênfase, que tipo de
maldade praticam os maus até mesmo contra as pessoas mais indefesas
(vv.5,6): “Eles oprimem o teu povo, ó Senhor, e afligem a tua herança.
Matam a viúva e o estrangeiro e assassinam os órfãos” (‘ammeka yhwh
yedakke’û wenahalateka ye‘annû ’almanâ weger yaharogû wîtômîm yeratsehû).
Apesar de, com isso, tornarem-se merecedores do juízo de Deus, eles
parecem não achar que Deus se manifeste nesse sentido. Talvez nem
acreditassem na existência de Deus, pois, em lugar de terem temor,
zombavam da ideia da punição divina (v.7): “Mas eles dizem: O Senhor não
vê [nada disso] e o Deus de Jacó não toma conhecimento” (wayyo’merû lo’
yir’eh-yyah welo’-yavîn ’elohê ya‘aqov). Essa é a mesma irreverência tola
exposta em outro salmo: “Alardeiam de boca; em seus lábios há espadas. Pois
dizem eles: Quem há que nos escute?” (Sl 59.7). Desse modo, eles
demonstram ter plena certeza da impunidade dos seus atos. É claro que a base
dessa falsa esperança não encontra bases na realidade, fazendo com que
sejam considerados plenamente tolos aqueles que acham que ficarão
impunes. Por isso, o salmista faz questão de afirmar que Deus, como criador
poderoso, ouve todas as coisas (v.9), que ele conhece sim e se importa com o
que é feito, punindo a maldade (v.10) e que é tão onisciente que conhece até
mesmo os pensamentos e os propósitos mais íntimos do homem (v.11).
A terceira é que, diante de Deus, os ímpios são frágeis e desamparados
(vv.12-19). Se os injustos se exaltam diante dos homens, diante de Deus a
realidade é outra. Não importa o que eles pensam a respeito de si, mas, sim, o
que Deus pensa a respeito deles. Por isso, o salmista muda a figura –
lembrando muito o Salmo 1 – mostrando que o homem que aprende a
Palavra de Deus e é corrigido a fim de se tornar cada vez mais obediente e
santo é aquele que realmente é feliz (v.12): “Feliz é o homem a quem tu
advertes, ó Senhor, e ensinas a tua lei” (’asrê haggever ’asher-teyasserennû
yyah ûmittôrateka telammedennû). Tal felicidade transparece na forma de
consolo nos tempos de dificuldade (v.13) e de segurança na manutenção da
união com Deus (v.14). Esse tratamento benéfico não é concedido aos
ímpios. Enquanto os servos de Deus são amparados, instruídos e corrigidos,
os maus aguardam o dia de serem abatidos de modo a se parecerem com
cadáveres que são enterrados (v.13): “Até que seja aberta uma cova para o
ímpio” (‘ad yikkareh larasha‘ shahat). Desse modo, há uma antítese entre o
tratamento divino aos seus servos e aos injustos. Se os servos de Deus têm a
quem recorrer quando são perseguidos (v.16), têm proteção nos momentos
mais perigosos e desanimadores (v.17) e têm em Deus um sustentador (v.18)
e um consolador (v.19), os ímpios não têm nada disso, ficando à mercê do
desamparo, fracos diante da ira do Senhor.
A última verdade é que, diante de Deus, os ímpios serão condenados no
futuro (vv.20-23). Se os ímpios são agora desamparados por Deus, é também
certo que eles perceberão que suas ilusões de poder e de impunidade não
passam de falsidades que não os protegerão de perecer no dia do juízo. Isso é
verdade porque há um abismo entre o Deus santo e o homem perdido, pelo
que o salmista propõe uma pergunta retórica cuja resposta é um sonoro “não”
(v.20): “Acaso, se associa contigo o trono da injustiça, aquele que forja a
maldade em nome da lei?” (hayhovreka kisse’ hawwôt yotser ‘amal ‘alê-hoq).
Fazer o mal por meio de decretos oficiais é uma atividade típica de líderes
corruptos, de modo que o salmista dá a entender que está sendo perseguido
por pessoas de cargo público em Israel – talvez príncipes, juízes e,
possivelmente, até o rei –, motivo, talvez, de o salmista ter associado seus
perseguidores à figura de um trono, o “trono da injustiça”. Esse homens, em
lugar de proteger os inocentes, os acusavam e condenavam (v.21). Entretanto,
mesmo diante de um quadro tão perturbador, o escritor tem confiança em
Deus como juiz justo, libertador e protetor diante do perigo promovido pelos
maus (v.22). A consequência desses fatos é que Deus protegeria seus servos e
não seria indiferente à perversidade dos injustos, trazendo sobre eles, no
momento certo, a devida e merecida condenação (v.23): “Mas ele os punirá
por sua perversidade” (wayyashev ‘alêhem ’et-’ônam) – literalmente: “Mas
fará voltar sobre eles a sua perversidade”, apontando para a paga do mal, a
vingança requerida no início do salmo. A ideia se completa com dizeres que
apontam para uma destruição completa: “E ele os destruirá por sua maldade.
O Senhor, nosso Deus, os destruirá” (ûbera‘atam yatsmîtem yatsmîtem yhwh
’elohênû).
Que lições atuais esse salmo contém! Por um lado, há o ensino de que,
ainda que o mundo hoje ignore os avisos de Deus, haverá punição para o
pecador impenitente. Todos comparecerão diante dele e terão seus pecados
avaliados e condenados caso não tenham Cristo como salvador. Mesmo
aquelas pessoas que imaginam que, ao ignorar a existência e santidade de
Deus – como criancinhas que querem se esconder pondo as mãos sobre o
rosto –, a verdade é que Deus vê todos e, também, os seus pecados. Ele não
ignorará nada que foi feito. Por outro lado, há um encorajamento sem
tamanho para aqueles que já se tornaram, pela fé em Cristo, alvos da graça
redentora do Senhor. Mesmo que sejam injustiçados agora, verão a justiça no
futuro. Mesmo que sejam perseguidos, terão paz. Ainda que mintam sobre
eles, o Deus da verdade os vindicará. Mesmo que sofram no presente,
conhecerão o pleno alívio na vida futura. Apesar das tristezas que os cercam,
são felizes por serem instruídos por Deus e o serão ainda mais vivendo na
presença do santo criador. E ainda, diante dos homens maus que promovem a
injustiça, podem prosseguir esperando o sustento divino no presente até
chegar o dia em que todos verão que o menor no reino dos céus é maior e
mais feliz que os cabeças do mundo terreno.

SALMO 95
Quem não É por nós É contra nós

Em uma gincana em que várias equipes competiam, certo grupo tinha


grande esperança de acabar entre os primeiros colocados, pois contava com
pessoas de talentos variados que fariam a equipe se destacar em quase todas
as modalidades da competição. Tudo corria bem até que seu membro mais
forte acabou se ferindo em uma prova que envolvia corrida. O problema não
foi aquela prova, mas uma das mais esperadas do dia: o cabo de guerra. O
membro da equipe que se feriu era quem sempre fazia a balança pender para
o lado da sua equipe. Entretanto, ele não poderia, nesse ano, colaborar como
nos anos anteriores. Mesmo assim, decidiu integrar o grupo que iria puxar o
cabo, simplesmente supondo que, mesmo fraco, ele seria mais útil que os
outros. Mas bastou o árbitro apitar, dando início à disputa, para aquele rapaz
perceber que não tinha a menor condição de fazer qualquer esforço. E, pior:
além de não ajudar, estava atrapalhando, pois tirou a oportunidade de outra
pessoa colaborar com a equipe. A derrota fez com que ele e seu time
aprendessem que, em várias ocasiões, não há meio-termo. Ou se está a favor,
ou se está contra.
O Salmo 95 vislumbra essa mesma possibilidade. Entretanto, o que estava
em questão não era um evento esportivo, mas o relacionamento entre Israel e
seu Senhor. O contexto da composição do salmo não é declarado. Apesar de
alguns estudiosos proporem que o chamado ao louvor logo de início indica
que o texto seria um convite oficial para a celebração de uma das festas de
Israel – talvez a festa dos Tabernáculos –, ou parte de um ritual festivo que
era cantado pelos sacerdotes e respondido pela congregação, a evidência
interna parece apontar para um chamado do povo para louvar e agradecer a
Deus por uma libertação militar. Isso explicaria a descrição de Deus como
“rocha da nossa salvação” (v.1) e como um pastor que cuida do rebanho que
lhe pertence (v.7). Uma peculiaridade desse salmo, a exemplo do Salmo 81, é
que Deus, por meio do salmista, interage com Israel exortando-o a
permanecer fiel. Assim, com os dizeres do salmista e do próprio Senhor, o
Salmo 95, em meio ao chamado e à santa instrução, divide as pessoas em dois
grupos segundo o modo como se comportam diante de Deus e da sua
dignidade louvável.
O primeiro grupo é formado por aqueles que adoram ao Senhor. A
primeira parte do salmo contém dois convites à adoração. O primeiro diz
(vv.1,2): “Vamos! Celebremos ao Senhor. Aclamemos à rocha da nossa
salvação. Entremos na sua presença com ações de graça. Aclamemos a ele
com salmos” (lekû nerannenâ layhwh narî‘â letsûr yish‘enû neqaddemâ
panayw betôdâ bizmirôt narîa‘ lô). Alguns aspectos da adoração são descritos
nesse chamado como um louvor cantado que não é fruto de uma ação
mecânica entediante, mas vindo de um coração alegre, da iniciativa de se
aproximar de Deus com gratidão verdadeira, reconhecendo sua ação benéfica
e graciosa e do desejo de oferecer um louvor mais que o “politicamente
correto”. Na verdade, esse louvor deveria ser recheado de exultação e
aclamação digna do Rei dos reis. O segundo convite completa a ideia,
clamando (v.6): “Venham! Prostremo-nos e encurvemo-nos. Ajoelhemo-nos
perante o Senhor, nosso criador” (bo’û nishtahaweh wenikra‘â nivrekâ lifnê-
yhwh ‘osenû). Pinta-se o quadro do governante real perante quem se
ajoelham os súditos em humildade, reverência, honra, admiração e amor –
deve-se observar o uso de três verbos sequenciais que indicam o ato de se
encurvar.
Sabendo que a convocação exigia comprometimento total dos adoradores e
reconhecimento pleno das prerrogativas divinas, o salmista motiva seus
leitores com duas razões para atenderem o chamado – ainda que o Senhor,
para ser adorado, não precisasse de apresentações, referências ou explicações.
A primeira razão é a supremacia de Deus sobre sua criação (v.3): “Pois o
Senhor é um Deus grandioso e um rei grandioso acima de todos os deuses”
(kî ’el gadôl yehwâ ûmelek gadôl ‘al-kol-’elohîm). Apesar de as Escrituras
revelarem a inexistência de outros deuses, a intenção do salmista parece ser a
de apontar para a proteção de Israel diante das nações vizinhas que confiavam
em seus deuses (Ex.: 2Rs 18.28-35 cf. 19.35-37). Desse modo, o poder de
Deus para vencer as nações poderosas é lembrado pela maior demonstração
do seu poder, a saber, a criação do universo e seu domínio sobre tudo que
existe (vv.4,5): “As profundezas da Terra estão em suas mãos e os picos das
montanhas são dele. O mar é dele, pois ele o criou e as suas mãos formaram a
terra firme” (’asher beyadû mehqerê-’arets wetô‘afôt harîm lô ’asher-lô
hayyam wehû’ ‘asahû weyavveshet yadayw yatsarû). Para não deixar que essa
visão se tornasse impessoal ou distante dos ouvintes, o salmista arremata
(v.6) chamando o Senhor de “nosso criador” (‘osenû). A outra razão é o
cuidado divino para com os seus na figura de um pastor de ovelhas, fazendo,
talvez, menção a uma demonstração recente desse cuidado (v.7a): “Pois ele é
o nosso Deus e nós somos povo do seu pasto e ovelhas da sua possessão” (kî
hû’ ’elohênû wa’anahnû ‘am mar‘îtô wetso’n yadô).
O segundo grupo é formado por aqueles que resistem ao Senhor. Nesse
ponto, o Senhor passa a falar exortando o povo a não apenas atender o
convite, mas a atendê-lo corretamente, com o coração quebrantado e não com
rebeldia (vv.7b,8a): “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos
corações” (hayyôm ’im-beqolô tishma‘û ’al-taqshû levavkem) – a mudança de
interlocutor no meio do v.7 pode, a princípio, não parecer natural, mas ela
concorda com os pronomes pessoais do v.8 e é comprovada pelo uso do
salmo no Novo Testamento (Hb 3.7,8,13,15; 4.7). Como é comum que
exortações como essa sejam respondidas, pelos homens, com uma
autoconfiança que não faz jus à nossa fraqueza, Deus oferece exemplos de
pessoas que tinham todas as motivações para servir a Deus adequadamente e
que, não obstante, se endureceram e se rebelaram (v.8): “Não endureçais os
vossos corações como em Meribá, como no dia de Massá, no deserto” (’al-
taqshû levavkem kimrîvâ keyôm massâ bammidbar). “Meribá” e “Massá” –
literalmente, “reclamação” e “tentação” – foram os nomes dados ao lugar em
que Israel, mesmo depois de ser beneficiado pela poderosa libertação divina
da servidão no Egito, murmurou ofensivamente contra Deus quando se viu
sem água em Refidim, próximo do monte Sinai (Ex 17.1-7). Sobre esse
episódio, Deus completa (v.9): “Onde vossos pais me puseram à prova e me
tentaram, embora tenham visto os meus feitos” (’asher nissûnî ’avôtêkem
behanûnî gam-ra’û pa‘olî).
É claro que essa não é uma informação sem propósito como velhas histórias
contadas nostalgicamente pelos antigos. Deus está alertando o povo para uma
condição atual que podia ser comparada à rebeldia do passado. Desse modo,
a reprovação da geração do êxodo é um alerta para a geração presente de que,
caso insistissem em seguir seus caminhos à parte de Deus e em
desobediência, o mesmo veredito lhes seria dado (v.10): “Senti repugnância
[daquela] geração por quarenta anos e disse: um povo de coração extraviado
é o que eles são. Eles não reconhecem os meus caminhos” (’arba‘îm shanâ
’aqût bedôr wa’omar ‘am to‘ê levav hem wehem lo’-yod‘û derakay). O
desfecho do desagrado de Deus pela geração rebelde, incrédula e ingrata foi
que eles não usufruíram da promessa de entrar e herdar a terra prometida
(v.11): “Assim, na minha ira eu jurei: eles não entrarão no meu lugar de
descanso” (’asher-nishba‘tî be’affî ’im-yevo’ûn ’el-menûhatî). Na verdade,
aquela geração morreu no deserto e, quarenta anos depois do êxodo, a
segunda geração entrou em Canaã, desapossou os povos locais e herdou a
terra da promessa. Nesse caso, os israelitas dos dias do salmista – e das
gerações posteriores – deveriam decidir se queriam ter esse “lugar de
descanso” concedido por Deus – ou seja, paz, prosperidade e permanência na
terra de Canaã –, ou se queriam ser alvo do juízo de Deus pelas mãos das
nações estrangeiras e pelos revezes naturais que lhes recairiam caso se
endurecessem diante do Senhor (cf. Dt 28.15-68).
Apesar de ser um salmo composto em Israel e dirigido a israelitas, o uso
que o Novo Testamento faz dele o torna diretamente aplicável à igreja e
extremamente relevante – guardadas as formas específicas com as quais o
Senhor escolheu tratar com Israel, dentro da aliança mosaica, e com a igreja.
O fato é que, mais do que nunca, deve ficar em relevo, na mente dos crentes,
o chamado que eles possuem de louvar a Deus (Ef 5.19,20; Cl 3.16) e de
anunciar suas grandezas (1Pe 2.9), sem, de modo algum, se endurecerem
contra Deus naquilo que ele requer e naquilo que ele revela pela sua Palavra.
Deus também demonstrou poder e amor pelos pecadores que ele buscou por
meio da fé, cujos pecados ele perdoou, transformando-os em novas criaturas,
filhos de Deus, alvos da sua misericórdia: “Vós, sim, que, antes, não éreis
povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia,
mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe 2.10). Desprezar tal graça, rejeitar
as orientações reveladas nas Escrituras e cultivar um caráter ofensivo à
santidade de Deus é fazer o mesmo que houve em Meribá e Massá. Fazer isso
é negligenciar o chamado que torna os servos de Deus “naqueles que adoram
ao Senhor”. É, também, com coração duro, integrar o grupo “daqueles que
resistem ao Senhor”. Você tem certeza de que deseja permanecer em rebeldia
e pertencer a esse grupo?

SALMO 96
O Louvor a Deus pela Possibilidade de Louvá-lo

O sacerdote e historiador israelita Flávio Josefo escreveu a respeito da


conquista de Jerusalém por Antíoco IV, chamado Epifânio, em 167 a.C.:
“Mandou construir um altar no Templo e ordenou que lá se sacrificassem
porcos, o que é uma das coisas mais contrárias à nossa religião. Obrigou
então os judeus a renunciar ao culto do verdadeiro Deus e a adorar os seus
ídolos [...]. Proibiu também aos judeus, sob graves penas, circuncidar os
filhos e nomeou fiscais para saber se eles estavam observando as suas
determinações e as leis que ele impunha e obrigá-los a isso, caso recusassem
obedecer” (História dos Hebreus, São Paulo: CPAD, 2004. p. 562).
O texto acima mostra que nem sempre o povo de Deus pode adorá-lo e
prestar-lhe culto livremente – o Antigo Testamento apresenta outras ocasiões
semelhantes. Mas, também, nem sempre foram impedidos de fazê-lo. Uma
das restaurações do culto israelita se deu quando Davi trouxe a Jerusalém a
arca da aliança que foi tomada, em 1104 a.C., pelos filisteus na ocasião da
morte de Eli e de seus filhos (1Sm 4) e que, depois de devolvida, ficou
alojada por várias décadas em Quiriate-Jearim, região sul de Judá, na casa de
Abinadabe (1Sm 7.1), a quem Josefo qualificou como um “piedoso levita”
(Op. cit., p. 281). Depois de sete anos reinando em Hebrom, Davi estabeleceu
a sede do reinado israelita em Jerusalém (1004 a.C.), onde também fixou sua
morada, construindo para si um tipo de palácio. Para trazer a arca a
Jerusalém, Davi mandou fazer outro tabernáculo, já que o feito por Moisés
estava em Gibeão e permaneceu lá até que Salomão construiu o Templo – no
início do seu reinado, Salomão foi a Gibeão adorar a Deus e pedir sabedoria
(1Rs 3.3-9).
A chegada da arca em Jerusalém foi marcada pela alegria coletiva e Davi
ordenou que se cantassem salmos de louvor: “Naquele dia, foi que Davi
encarregou, pela primeira vez, a Asafe e a seus irmãos de celebrarem com
hinos o Senhor” (1Cr 16.22). O interessante é que a sequência desse texto
(1Co 16.23-36) contém o do Salmo 96 com algumas pequenas diferenças. Por
esse motivo, sabemos a ocasião da composição do salmo e podemos imaginar
que tenha sido escrito por Asafe ou pelo próprio rei Davi – a Septuaginta traz
o seguinte título para o salmo: “Quando o tabernáculo foi construído depois
do cativeiro [da arca], um cântico de Davi”. Como tema, o salmo convida o
povo a prestar as devidas homenagens a Deus, agradecendo pela
possibilidade de cultuá-lo e de ter novamente a arca no devido local de
sacrifícios e cultos. Nesse sentido, o salmista apresenta quatro elementos da
adoração grata ao Deus que permite seu povo lhe tributar louvores.
O primeiro elemento da adoração grata é o cântico de louvor a Deus
(vv.1,2). O salmo inicia conclamando todos à adoração de Deus por meio de
um veículo típico dos cultos, o louvor cantado (v.1): “Cantai ao Senhor um
cântico novo, cantai ao Senhor toda a Terra” (shîrû layhwh shîr hadash shîrû
layhwh kol-ha’arets). Dois fatores notáveis se encontram nessa frase. Em
primeiro, a proposta de cantar a Deus um “cântico novo”. Com isso, o
salmista pede ao povo a revigoração da sua vida religiosa e sua comunhão
com Deus, o que seria proclamado em uma nova composição musical. Isso
representa o retorno à dedicação e compromisso para com o Senhor. Em
segundo lugar, o chamado é universal, dirigido a “toda a Terra”, mostrando
que o Senhor não era Deus e criador apenas de Israel, mas de todos os povos,
pelo que todos lhe deviam submissão e adoração. O texto prossegue e cria
alguns parâmetros para a atividade cultual (v.2): “Cantai ao Senhor. Bendizei
o seu nome. Proclamai diariamente a sua salvação” (shîrû layhwh barakû
shemô basserû mîyôm-leyôm yeshû‘atô). O salmista introduz a ideia de que os
adoradores deveriam sempre anunciar os feitos do Senhor em benefício deles,
o que deveria ser feito até mesmo por meio de músicas cantadas por todos –
essa é uma ótima maneira de se transmitir e de memorizar os feitos divinos.
O segundo elemento é o anúncio da glória divina (vv.3-6). O culto a Deus
tem, definitivamente, um caráter proclamatório (v.3): “Proclamai entre as
nações a sua glória e entre todos os povos os seus feitos maravilhosos”
(safferû baggôyim kevôdô bekol-ha‘ammîm nifle’ôtayw). Deve-se notar que a
proclamação da glória de Deus começa no seu culto, mas visa a atingir todos
os povos ao redor do mundo. Isso acontece porque o Senhor não é apenas o
Deus dos judeus ou o Deus dos cristãos, mas o Deus criador de tudo que
existe e que está acima de todas as pessoas. Por isso, parte do anúncio
envolve testemunhar a supremacia do Deus verdadeiro (v.4): “Pois o Senhor
é grande e muito louvável. Ele é temível, acima de todos os deuses” (kî gadôl
ûmehullal me’od nôra’ hû’ ‘al-kol-’elohîm). Esse é um recado para as nações
vizinhas dizendo que a confiança que tinham em seus falsos deuses era vã,
pois o Deus grandioso devia ser temido por eles, por ser capaz de destruí-los
e submetê-los. Esse anúncio é frisado de modo mais claro e incisivo no
versículo seguinte (v.5): “Pois todos os deuses dos povos são ídolos inúteis,
enquanto o Senhor criou os céus” (kî kol-’elohê ha‘ammîm ’elîlîm wayhwh
shamayim ‘asâ). Demonstrada a falsidade e inexistência dos ídolos, o
salmista retorna ao anúncio da glória divina, agora não mesclada com a ideia
errada da glória de falsos deuses (v.6): “Esplendor e majestade estão diante
dele, poder e glória no seu santuário” (hôd-wehadar lefanayw ‘oz wetif’eret
bemiqdashô). Há implícito nessa afirmação a glória de Deus demonstrada na
incapacidade dos filisteus e dos seus falsos deuses de reterem a arca cativa
em suas cidades, a qual, pelo poder de Deus, retornou ao lugar de origem.
Para os israelitas, a glória de Israel, o Deus Altíssimo, estava de volta ao
santuário, no lugar que determinou habitar.
O terceiro elemento da adoração grata é a entrega do que é devido ao
Senhor (vv.7-9). O louvor do criador e mantenedor de tudo que existe
envolve desprendimento para lhe entregar o que lhe é de direito. Por isso, o
salmista inicia a próxima seção com uma palavra que significa “dar” ou
“pagar”. Em primeiro lugar, o que é devido a Deus é o reconhecimento do
seu caráter (v.7): “Dai ao Senhor, ó famílias dos povos, dai ao Senhor glória e
poder” (havû layhwâ mishpehôt ‘ammîm havû layhwâ kavôd wa‘oz). Além de
darem atenção e o devido crédito à glória divina, cabe-lhes também ofertar-
lhe presentes dentre seus bens, os quais, segundo o ensino da lei mosaica,
deviam ser levados ao tabernáculo e serviriam para honrar o Senhor e dar
suporte ao trabalho contínuo diante de Deus, servindo de paga e sustento aos
oficiantes do culto (v.8): “Dai ao Senhor a glória do seu nome. Trazei ofertas
e entrai nos seus átrios” (havû layhwâ kavôd shemô se’û-minhâ ûbo’û
lehatsrôtayw). Por fim, o povo ainda lhe devia submissão e temor dignos de
um Deus incomparável, pelo que não podiam faltar com nenhum dos seus
deveres (v.9): “Prostrai-vos diante do Senhor no átrio do santuário. Tremei
diante dele toda a Terra” (hishtahawû layhwh behadrat-qodesh hîlû
miffanayw kol-ha’arets). Isso indica que a entrada da arca no tabernáculo foi
vista como a entrada de um rei magnífico e poderoso no seu palácio para se
assentar de forma esplêndida em seu trono de glória.
O quarto elemento é a grata esperança no juiz eterno (vv.10-13). Os
últimos séculos da história israelita tinham sido marcados por pecados,
rebeldia e injustiça, tanto no período dos juízes como no reinado de Saul. A
paz e prosperidade, além da libertação de opressores conhecidos, que o povo
começava a vislumbrar no reinado de Davi, eram um modesto modelo do que
eles esperavam de Deus (v.10): “Dizei entre as nações: o Senhor reina. O
mundo certamente está firmado, ele não se abala. Ele julga os povos com
retidão” (’imrû baggôyim yehwâ malak ’af-tikkôn tevel bal-timmôt yadîn
‘ammîm bemêsharîm). A esperança do salmista não é modesta. Ele tem em
mente uma ação de Deus tão ampla na promoção da justiça que resolve expô-
la por meio da personificação de toda a natureza, como se ela fosse gente
como nós e pudesse se alegrar e exultar na mesma esperança (vv.11,12). É
claro que esse é um convite a homens para que exultem — homens de toda a
Terra. O salmo termina com a santa esperança escatológica de ver, no futuro,
tudo plenamente submetido a Deus e alvo da sua justiça (v.13): “Pois ele vem
para julgar a Terra. Julgará o mundo com justiça e os povos com a sua
retidão” (kî ba’ lishpot ha’arets yishpot-tevel betsedeq we‘ammîm
be’emûnatô).
Apesar de a arca ter sido colocada naquele tabernáculo e o povo convocado
à adoração tanto tempo atrás, o chamado permanece ainda hoje. Certamente,
o local e o modo da adoração são outros, mas a honra, a glória, a dignidade, a
majestade e o poder de Deus são os mesmos. Se Israel se alegrou tanto assim
por ver finda a privação de ter a arca em seu meio e poder louvar a Deus do
modo prescrito, quanto mais nós, hoje em dia, que temos a possibilidade de
adorá-lo sem impedimentos! É certo que ainda há lugares no mundo em que
os adoradores do Deus verdadeiro são proibidos de lhe prestar culto e são
perseguidos quando o fazem. Isso faz com que nós, que não temos
impedimentos para o culto do Senhor, sejamos ainda mais gratos e
responsáveis com essa adoração. Infelizmente, é possível notar que onde
maiores privilégios se têm nesse sentido, mais preguiçosos e desinteressados
são os adoradores. Mas isso não está certo! Que tenhamos plena consciência
do nosso dever e do privilégio que temos e rendamos ao Senhor tudo que ele
merece, sem reservas, sem descaso, sem ingratidão!

SALMO 97
A Temível Chegada de Deus

Nunca fui um aluno de causar problemas nas escolas em que estudei.


Sempre defendi com garra e amor tais instituições e fui querido dos
professores e diretores – com alguns, ainda mantenho um relacionamento
muito gostoso que foi semeado naquela época. Mas, para não dizer que
atravessei incólume meus anos escolares, tenho o registro de uma única
advertência – curiosamente, anotada na minha caderneta com a data “8/8/88”.
Sua causa foi eu ter ficado fora de uma aula, escondido no pátio. Eu e um
“comparsa” – o autor intelectual do delito – estávamos escondidos atrás de
um prédio enquanto um pequeno garoto, que nos via, dava falsos alarmes
quanto à chegada de um inspetor. Como as ameaças não se cumpriam,
tornamo-nos descuidados até que, de fato, o inspetor nos flagrou “matando”
aula e nos encaminhou à diretoria. Além do arrependimento de ter ficado
desnecessariamente fora da aula, ficou em mim aquela amarga sensação de
“por que eu não ouvi os avisos do garoto?” e “por que eu não temi ser
pego?”.
Em certo sentido, o Salmo 97 guarda semelhanças com minha experiência.
Isso porque o salmo contém avisos sobre a vinda do Senhor para trazer
julgamento sobre os infratores das suas determinações e os ofensores da sua
santidade. Infelizmente, esses também vivem descuidados quanto à ameaça
de juízo. Confiam nos seus meios e na sua sabedoria, acreditando que o
anúncio da vinda do Senhor não passa de uma mensagem falsa e irreal – quão
enganados eles estão! O salmo precedente também fala sobre a vinda do
Senhor, porém, em um tom positivo, da perspectiva daqueles que aguardam
sua vinda e serão beneficiados por ela. Contudo, o Salmo 97 dá uma visão
mais ampla que também revela as bênçãos sobre o povo de Deus, mas que,
acima de tudo, enfatiza o juízo de Deus sobre os que se rebelam contra ele.
Para esses, a vinda do Senhor é descrita em metáforas de juízo como
“escuridão”, “fogo” e “relâmpagos”. Nessa tela, o salmista pinta quatro
verdades ligadas ao anúncio da vinda temível de Deus.
A primeira verdade sobre a vinda do Senhor para julgar é a ampla
jurisdição do juiz que virá (vv.1,6). É certo que há muita gente que pensa
que o que a Bíblia revela são mitos usados pelos homens para produzir uma
esperança de que alguém acima deles os protege. Outros acreditam que Deus
realmente existe, mas que só pode fazer aquilo que os homens lhe permitem –
mal sabem eles o quanto estão enganados! Ainda que os homens se
ensoberbeçam diante de Deus, o salmista apresenta uma realidade universal e
incondicional (v.1): “O Senhor reina” (yehwâ malak). Assim como a lei vale
até para aqueles que não concordam com ela, o Senhor comanda e tem direito
sobre tudo que existe. A implicação pessoal dessa realidade para cada povo e
até para cada pessoa do mundo é apresentada a seguir: “Que a Terra festeje!
Que as numerosas ilhas se alegrem!” (tagel ha’arets yismehû ’îyîm ravvîm).
Isso mostra que a vinda do Senhor não terá efeito somente sobre Israel, a
nação do salmista, mas sobre toda a Terra – a expressão “numerosas ilhas”
enfatiza que o alcance do reinado de Deus vai além da possibilidade que eles
conheciam de navegar até os confins da Terra. Assim, a abrangência
universal da sua vinda futura encerra o primeiro parágrafo desse salmo (v.6):
“Os céus proclamam a sua justiça e todos os povos veem a sua glória”
(higgîdô hashamayim tsidqô wera’û kol-ha‘ammîm kevôdô). O salmo enfatiza
que aquilo que é anunciado desde já pela criação – a ira de Deus contra a
impiedade (Rm 1.18-20) – será ampliado no futuro com a intervenção santa e
justa do Senhor.
A segunda verdade é a dureza do julgamento sobre os rebeldes (vv.2-5).
Esses quatro versículos são realmente duros. As metáforas de juízo afloram e
dão um caráter terrível à vinda do Senhor para aqueles que endurecem o
coração diante dele. Se, no salmo anterior, a majestade de Deus está
associada à sua graça, nesse, ela está associada ao julgamento que efetuará, o
qual é exposto na figura da formação de uma enorme tempestade (v.2):
“Nuvens espessas e escuridão estão ao seu redor. Justiça e juízo são a base do
seu trono” (‘anan wa‘arafel sevîvayw tsedeq ûmishpat mekôn kis’ô). A
intenção do texto é produzir temor nos injustos – adiante, haverá também um
convite a andar em justiça, mostrando, com isso, a aplicabilidade do temor. O
quadro da tempestade, então, assume a figura de um incêndio devastador – a
figura do fogo é frequentemente usada nas Escrituras para se referir ao juízo
(v.3): “Um fogo segue diante dele e consome seus inimigos à volta” (’esh
lefanayw telek ûtelahet savîv tsarayw). A figuração dá outra virada, como se
quisesse mesclar as imagens da tempestade e do fogo, e compara o furor
ligado à chegada de Deus com o poder de “relâmpagos” (v.4): “Os seus
relâmpagos iluminam o mundo. A Terra vê e estremece” (he’îrû beraqayw
tevel ra’atâ wattahel ha’arets) – apesar de o verbo “iluminar” ter
frequentemente conotação positiva, nesse texto ele mostra que o juízo
destruidor de Deus, como de um raio reluzente e destruidor, se fará ver e
sentir por toda a Terra. O resultado não poderia ser outro além de os ímpios
sucumbindo diante do Senhor, o que o salmista expõe por meio da figura de
fortes montanhas ruindo facilmente (v.5): “Os montes se derretem como cera
na presença do Senhor, na presença do Senhor de toda a Terra” (harîm
kaddônag namassû millifnê yhwh millifnê ’adôn kol-ha’arets). Diante de
tantas figuras de devastação, a pergunta que deve gritar na mente dos
rebeldes é: “Como poderei suportar tanta fúria contra meu pecado?”. E a
resposta a que devem chegar é: “Não poderei!”.
A terceira é a vacuidade da esperança dos incrédulos (vv.7-9). O v.7
contém três referências aos falsos deuses, enquanto o v.9 contém uma. Essas
quatro menções têm por propósito afirmar que, caso os povos mantivessem
esperança nas suas supostas divindades para livrá-los e para lhes dar vitória
final, eles podiam desistir. Essa esperança era tão falsa quanto seus deuses
(v.7): “Serão envergonhados todos aqueles que servem a imagens, os que se
gloriam nos ídolos inúteis. Prostrem-se diante dele todos os deuses” (yevoshû
kol-‘ovedê pesel hammithallîm ba’elîlîm hishtahawû-lô kol-’elohîm). Por se
tratar de uma época na qual o politeísmo é extremamente difundido, é comum
vermos a singularidade de Deus ser afirmada não por meio da declaração de
que não há outros deuses, mas, como se eles existissem, a afirmação de que
nenhum deles seria páreo para o Senhor. Ao contrário, em Israel, cuja
esperança em Deus é verdadeira, há júbilo (v.8): “Sião ouve e exulta e as
filhas de Judá festejam por causa dos teus juízos, ó Senhor” (shom‘â
wattismah tsîyôn wattagelnâ benôt yehûdâ lema‘an mishpateyka yhwh). A
razão é inequívoca: os deuses em quem os povos confiam não poderão ajudá-
los quando o Senhor vier para julgar. A esperança das nações é natimorta e
não poderá sustentá-los diante do reto juiz (v.9): “Pois tu, ó Senhor, é
Altíssimo sobre toda a Terra, elevadíssimo sobre todos os deuses” (kî-’attâ
yhwh ‘elyôn ‘al-kol-ha’arets me’od na‘alêta ‘al-kol-’elohîm).
A última verdade é a responsabilidade dada aos crentes (vv.10-12). A
desesperança dos incrédulos é também a esperança dos crentes e o triste fim
dos ímpios virá junto com a glorificação dos que são justificados por Deus.
Logo, o privilégio dos servos do Senhor deve ser notado e valorizado e
produzir neles uma vida que reflita tanto a gratidão como a condição
privilegiada que possuem pela graça de Deus. Por isso, o salmista faz um
chamado (v.10): “Abominai o mal, ó vós que amam a Deus” (’ohavê yhwh
sin’û ra‘). Não é possível amar a Deus e ao pecado ao mesmo tempo. Amar a
Deus implica odiar e se afastar daquilo que Deus odeia e daquilo que ele é
separado por ser santo. Imediatamente, o salmista apresenta a razão para os
servos de Deus atenderem esse chamado tão importante: “Ele protege a alma
dos seus fiéis, livra-os da mão dos ímpios” (shomer nafshôt hasîdayw mîyad
resha‘îm yatsîlem) – vale notar que, ao falar da “alma”, o salmista não
pretende tratar de uma realidade espiritual como a doutrina da “perseverança
dos santos”, mas, simplesmente, apontar para os próprios servos como alvos
da proteção divina, conforme a segunda parte do versículo. Além de
proteção, sua condição final será extremamente positiva e privilegiada (v.11):
“A luz surge para o justo e a alegria para os retos de coração” (’ôr zaruah
latsaddîq ûleyishrê-lev simhâ). Eis o motivo pelo qual, no presente, a
responsabilidade dos crentes é manter uma vida que seja agradável a Deus e
que glorifique seu nome (v.12): “Alegrai-vos no Senhor, ó justos, e aclamai o
seu nome santo” (simhû tsaddîqîm bayhwh wehôdû lezeker qodshô).
Interessante como a mesma ocasião – a vinda futura e iminente do Senhor –
será a razão da glorificação dos que creem em Jesus e a derrocada definitiva
dos que se mantêm endurecidos diante dele e da sua mensagem de perdão por
meio da fé no salvador – alegria para uns e terror para outros. Quaisquer
suposições humanas, como “todos os caminhos levam a Deus”, “todas as
religiões e filosofias contêm a verdade” ou “todos serão evoluídos até a
perfeição”, são falsas no presente e serão inúteis no futuro, diante da chegada
do Senhor. Por isso mesmo, há, na mensagem bíblica, um alerta urgente:
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hb 4.7).
Portanto, dê ouvidos agora a esses alertas sobre a vinda do Senhor e sobre o
juízo que recairá sobre os que não creem em Jesus. Acredito que ninguém
gostará de manter pela eternidade aquela sensação fúnebre de pensar “por que
eu não ouvi os avisos?” e “por que eu não temi?”.

SALMO 98
O Reconhecimento da Atuação Divina

Um dos frequentes impulsos do ser humano que podem ser testemunhados


por todos é a busca por reconhecimento e por admiração. Sempre que
acontece alguma coisa boa, que um projeto termina com êxito ou que uma
vitória seja obtida não faltam aqueles que irão clamar para si a
responsabilidade pelo sucesso. Nesse sentido, assisti, certa vez, a um
documentário sobre um jogador de futebol famoso no qual muita gente que
fez parte da sua história foi entrevistada e deu depoimentos emocionados. Foi
muito interessante, ao longo do programa, conhecer a origem simples do
jogador, sua luta com todo tipo de dificuldade e privação e o vislumbre, ao
final, do êxito de uma vida sofrida e dedicada. Mas o que me chamou mesmo
a atenção foi o esforço de cada entrevistado de transmitir a ideia de ter sido
fundamental no crescimento do atleta. Cada um dizia como o aconselhou,
treinou, conduziu e amparou. Na maioria desses relatos ficava patente a
intenção dessas pessoas de atrair a admiração do público para si. Eles
queriam ser responsabilizados e reconhecidos como responsáveis pelo êxito,
de modo que o País lhes devia gratidão. Em alguns casos, essa atitude chegou
a nublar um pouco o talento e a garra do jogador, como se eles fossem meras
consequências das ações de terceiros.
O Salmo 98 é um exemplo diametralmente oposto a essa atitude de busca
por glória pessoal por conta do sucesso de um empreendimento. O salmista
anônimo, em uma reação exultante, trabalha para levar o povo a louvar a
Deus por seus feitos. Ao fazê-lo, ele centraliza o próprio Deus, colocando a si
mesmo e aos seus leitores como espectadores da gloriosa atuação divina e
como admiradores do soberano Senhor. Na verdade, esse salmo trata somente
do louvor ao Deus digno de toda a adoração, como se dissesse sem palavras
que, diante do louvor ao Rei eterno, todos os outros assuntos e preocupações
perdem o valor e devem ser deixados em segundo plano. Assim, o salmista
acaba por apresentar três abordagens teocêntricas advindas da observação do
êxito das ações de Deus.
A primeira abordagem teocêntrica exemplificada pelo salmista é o
reconhecimento da ação soberana de Deus (vv.1-3). O salmo inicia com
um chamado geral ao louvor (v.1): “Cantai ao Senhor um cântico novo”
(shîrû layhwâ shîr hadash). Ele quer que o povo renove sua adoração a Deus,
demonstrando, com isso, ser essa uma ocasião especial. Tal iniciativa de
oferecer a Deus algo novo, nada parecido com uma religiosidade repisada e
pálida, tem um motivo bem específico declarado pelo texto: “Pois ele fez
maravilhas. A sua destra e o seu santo braço conseguiram salvar” (kî-nifla’ôt
‘asâ hôshî‘â-lô yemînô ûzrôa‘ qodshô). Assim como no Salmo 96, o salmista
deseja oferecer a Deus um cântico novo pela “salvação” que ele promoveu.
Parece se tratar de uma libertação militar diante de uma nação estrangeira
com seus exércitos. É possível até que os dois salmos – 96 e 98 – tenham o
mesmo autor e o mesmo pano de fundo histórico.
Sendo assim, é notória a disposição do salmista de render a Deus a
responsabilidade dos feitos maravilhosos de libertação em lugar de ficar se
congratulando pela capacidade humana do exército israelita ou comemorando
vitórias pessoais. Nesse caso, a vitória e libertação de Israel não abrem
caminho para um tempo de homenagens a líderes e soldados, mas para o
reconhecimento e o louvor do Senhor dos exércitos que, além de salvar seu
povo, puniu com justiça o inimigo (v.2): “O Senhor deu a conhecer a sua
salvação. Ele manifestou a sua justiça diante dos olhos das nações” (hôdîa‘
yhwh yeshû‘atô le‘ênê haggôyim gillâ tsidqatô). O escritor rende esse
resultado à fidelidade de Deus às promessas que fez e ao amor leal que tem
por seus servos, de modo que sua atuação se fez conhecer por toda parte
(v.3): “Ele se lembrou da sua lealdade e da sua fidelidade para com a casa de
Israel. Todos os confins da Terra viram a salvação do nosso Deus” (zakar
hasdô we’emûnatô levêt yisra’el ra’û kol-’afsê-’arets ’et yeshû‘at ’elohênû).
A segunda abordagem é a dedicação ao louvor do Rei (vv.4-6). Sendo o
Senhor o responsável pela vitória israelita e por sua preservação, o salmista
se aplica a conduzir o povo a uma adoração totalmente focalizada em Deus
com dedicação e comprometimento máximo por parte dos adoradores. O
chamado é feito a toda a Terra (v.4): “Aclamai ao Senhor toda a Terra.
Jubilai, exultai e cantai louvores” (harî‘û layhwh kol-ha’arets pitshû
werannenû wezammerû). A repetição final desse texto com três ordens
sinonímicas enfatiza a dedicação e a pureza com que o louvor deve ser
oferecido, além da atitude alegre e vibrante condizente com a gratidão que
deviam a ele por sua bondade.
Por essa razão, o louvor não previa limites. Todas as formas, interiores e
exteriores seriam empregadas, tanto júbilo no íntimo do coração como um
culto público exultante marcado pelo uso de todos os recursos que possuíam
(v.5,6a): “Cantai louvores ao Senhor com harpa, com harpa e ao som de
música, com cornetas e toque de trombeta” (zammerû layhwh bekinnôr
bekinnôr weqôl zimrâ bahatsotserôt weqôl shôfar). Nenhum esforço ou
recursos deveria ser poupado, nenhum músico ficaria desocupado, assim
como nenhum israelita deveria ficar de fora dessa manifestação pública de
louvor. Afinal, eles não ofereceriam essa festa a uma pessoa qualquer, mas a
um rei – o Rei (v.6b): “Aclamai diante do rei, o Senhor” (harî‘û lifnê
hammelek yhwh). Para um povo que tinha um rei humano e sabia o que era
reverência diante do seu monarca, essa ordem final sela o comprometimento,
a excelência e a exclusividade do louvor devido a Deus.
A terceira abordagem é o anúncio do julgamento futuro (vv.7-9). O
salmista não eleva seus olhos a Deus em louvor somente pelo que ele fez,
mas também pelo que irá fazer. Com isso, ele torna o anúncio da glória que
será manifesta no futuro um modo de produzir agora louvor a Deus. Assim,
ele associa a vitória e a libertação dos seus dias, quando o Senhor também
executou juízo sobre os inimigos, como um pequeno exemplo de algo maior
que fará no futuro. A salvação dos seus e a punição dos ímpios nos dias do
salmista foram um “tipo” do que Deus fará no futuro de modo pleno. Assim,
o escritor prevê a atuação poderosa de Deus em uma escala mundial (v.7): “O
mar e tudo que nele há farão um barulho estrondoso, [também] o mundo e os
que nele habitam” (yir‘am hayyam ûmelo’ô tevel weyoshevê bah). Se o louvor
presente devia ser marcante, dedicado e exultante, no futuro não seria
diferente.
O salmista prossegue personificando elementos da natureza, como se
fossem pessoas em adoração, e anuncia, com isso, um reconhecimento
mundial da glória de Deus e um louvor efusivo quando ele vier executar seu
juízo (vv.8,9a): “Os rios aplaudirão a uma. Os montes exultarão diante do
Senhor, pois ele vem para julgar a Terra” (neharôt yimha’û-kaf yahad harîm
yerannenû lifnê-yhwh kî ba’ lishpot ha’arets). “Rios” e “montes” no plural,
sem designação de possíveis localidades que o escritor pudesse ter em mente,
produzem a ideia de submissão mundial a Deus. Ou seja, essa adoração não
virá somente dos israelitas, os quais habitam próximos ao rio Jordão e ao
monte Sião, mas de pessoas de toda parte, habitantes próximos a todos os rios
e montes da Terra. O salmo termina afirmando não apenas o caráter mundial
da atuação de Deus, mas o caráter justo e reto de tal intervenção. O Senhor
trará justiça para seu povo e para os demais, em toda parte, fazendo com que
seu caráter santo seja o modelo a ser impresso até os confins da Terra (v.9b):
“Julgará o mundo com justiça e os povos com retidão” (yishpot-tevel betsedeq
we‘ammîm bemêsharîm). Um Deus que tem por propósito executar isso no
mundo, onde há pessoas rebeldes por toda parte, deve certamente receber de
nós uma adoração grata, exclusiva, dedicada e amorosa. Só ele merece
louvor, ninguém mais.
Arrisco-me a dizer que poucas épocas precisaram ouvir tanto essa
mensagem como a nossa. A arrogância e a soberba humana são presenciadas
em todos os lugares e integram a formação das pessoas desde o berço. Se isso
é verdade no contexto do mundo perdido, infelizmente também o é no que
tange à igreja. Apóstolos, astros, curandeiros e profetas de um cristianismo
falso clamam para si o reconhecimento que cabe só a Deus. Mas, além dessas
“aberrações eclesiásticas”, há, mesmo no seio da igreja verdadeira, aqueles
que, com técnicas administrativas “infalíveis”, personalidades carismáticas,
posturas dinâmicas e “receitas mágicas”, querem ser reconhecidos como
crentes especiais, melhores que os demais, responsáveis pelo crescimento e
desenvolvimento da igreja e pessoas de quem Deus depende para realizar sua
obra. Para esses – e para os demais – deve ficar a lição do salmo escrito por
mãos humildes e dependentes da graça de Deus que praticam de verdade o
que foi exemplificado por João Batista: “Convém que ele cresça e que eu
diminua” (Jo 3.30).
SALMO 99
A Santidade do Grande Rei

Um dos livros de que gostei muito de ler foi o Ilíada, de Homero. Contudo,
meu gosto pelo livro não se compara ao de Alexandre, o Grande. Contam
que, sendo Ilíada sua obra favorita, ele disse dele: “É a mais perfeita
produção humana e o melhor remédio de um guerreiro”. Os historiadores dão
conta de que a grandeza e heroísmo das batalhas contadas por Homero
inspiraram Alexandre e, entre outros fatores, fizeram dele o conquistador que
foi. Por sua vez, Julio César foi inspirado pelo espírito conquistador de
Alexandre e, querendo imitá-lo, iniciou uma história de imperadores
romanos. Outros líderes, como Carlos XII, da Suécia, e o imperador Selymus,
da Turquia, foram marcados pela história e pelos feitos de Alexandre e Julio
César, tornando-se, eles mesmos, imitadores dos seus impulsos e guerreiros
com o sonho de conquistar o máximo que pudessem. Estranho como a
história tão bem escrita por Homero acabou por influenciar pessoas a agirem
com dureza e com violência.
O Salmo 99 também fala de alguém cujos atributos influenciam e dão novos
rumos à história da humanidade. Muito distante das fraquezas de Aquiles,
Heitor, Ulisses e Agamenon, o Senhor Deus é apresentado no salmo como o
ser perfeito e ilimitado que influencia todas as eras. Apesar de cada um dos
atributos de Deus ter o poder de exercer essa ação transformadora e
controladora sobre a história, a característica que sobressai nesse salmo é a
sua santidade. Há três afirmações categóricas nesse sentido – duas vezes
(vv.3,5) se diz “ele é santo” (qadôsh hû’) e uma vez (v.9) “pois o Senhor,
nosso Deus, é santo” (kî-qadôsh yhwh ’elohênû). Ser santo significa existir
separado de tudo que é mal. Desse modo, não é muito fácil para nós,
pecadores em um mundo mau, observar a santidade do Senhor. Na verdade, o
próprio caráter abstrato do conceito da santidade torna difícil para nós o seu
vislumbre – se tivéssemos de representar graficamente o conceito, é provável
que o melhor que poderíamos fazer fosse apresentar a imagem de uma luz
radiante. Entretanto, a santidade de Deus influencia a história na forma de
atuações visíveis e interpretáveis. Nesse sentido, o salmista é extremamente
feliz ao nos trazer à vista três vislumbres da santidade de Deus durante a
história por meio dos efeitos que ela produz.
O primeiro vislumbre da santidade de Deus no decorrer da história humana,
presente no Salmo 99, é a vinda gloriosa e temível no futuro (vv.1-3).
Assim como nos salmos 93 e 97, esse salmo inicia afirmando o caráter
majestoso de Deus e seu efeito sobre a criação, especialmente sobre os
homens (v.1): “O Senhor reina, as nações estremecerão. Ele se assenta entre
querubins, a Terra tremerá” (yehwâ malak yirgezû ‘ammîm yoshev kerûvîm
tanût ha’arets). A gloriosa vinda do Senhor para efetuar julgamento é assunto
tratado de igual modo nos dois salmos precedentes. Aqui, também, o fato de
o Senhor ser agora um rei poderoso produzirá na Terra temor e tremor. Seria
diferente se não houvesse no mundo pecado, nem rebeldia. Contudo, a
existência do mal entre os homens redundará em um julgamento futuro, na
sua vinda, motivo pelo qual é dito que as nações estremecerão. Ninguém
escapará desse juízo, já que o Senhor comanda a história e todos os povos –
tanto Israel como as demais nações (v.2): “O Senhor é grande em Sião. Ele é
elevado sobre todos os povos” (yhwh betsîyôn gadôl weram hû’ ‘al-kol-
ha‘ammîm).
Falando do futuro, o salmista completa com o outro lado da moeda, ou seja,
com a reação dos que não serão abalados diante da santidade de Deus, mas
comemorarão e o receberão com alegria (v.3): “Eles celebrarão o teu nome
grande e temível. Ele é santo” (yôdû shimka gadol wenôra’ qadôsh hû’). Ao
dizer “ele é santo”, o escritor parece se referir ao nome de Deus – é ele que
aparece na frase ligado a um pronome na terceira pessoa singular,
combinando com a cláusula final. Entretanto, citar o nome de Deus é fazer
menção a ele como um todo, de modo que não é apenas o nome do Senhor
que é santo, mas o próprio Senhor. O que o salmista transmite é a ideia de
que “Deus é grande e temível” – grande do ponto de vista de uns e temível do
ponto de vista de outros.
O segundo vislumbre é a justiça do seu caráter no presente (vv.4,5). Algo
que Israel conhecia muito bem era a descrição do caráter divino. Fosse pelo
que aprenderam, fosse pelo que viam Deus fazer, eles sabiam quão cara para
Deus era a justiça (v.4): “O rei é poderoso. Ele ama a decisão justa. Tu
instituis a equidade. Tu promoves juízo e a justiça em Jacó” (we‘oz melek
mishpat ’attâ kônanta mêsharîm mishpat ûtsedaqâ beya‘aqov ’attâ ‘asîta).
Apesar de os verbos estarem no tempo hebraico chamado “perfeito” – que
normalmente indica o tempo passado –, seu amor pela justiça, que não se
limita ao passado, sugere uma realidade contínua que marca todo o versículo.
Assim, equidade, juízo e justiça são interesses perenes de Deus em todo
tempo, evidências vivas da santidade daquele que é separado de tudo que é
mal e corrompido.
Não sabemos o contexto em que o salmo foi escrito, mas é possível que
uma atuação no sentido de preservar a justiça no meio do seu povo,
protegendo-os de inimigos internos ou externos, tenha sido o que inspirou o
salmista a escrever. Essa seria a ação de um rei justo e poderoso que comanda
tudo ao seu redor e faz valer sua lei e sua moral, como o próprio Deus é
descrito a seguir (v.5): “Exaltai ao Senhor, nosso Deus, e prostrai-vos diante
do estrado dos seus pés. Ele é santo” (rômemû yhwh ’elohênû wehishtahawû
lahadom raglayw qadosh hû’). Esse “estrado” (ou “escabelo”) é um apoio
para os pés que, nas Escrituras, é associado à figura do trono de Deus (Is
66.1), produzindo a ideia do domínio que ele exerce. A razão, mais uma vez,
é o resultado de ele ser santo e repudiar o mal, a injustiça e o pecado.
O último vislumbre da santidade divina evidenciada na história é o
tratamento do seu povo no passado (vv.6-8). A separação de Deus daquilo
que é indigno dele se fez ver muitas vezes na história israelita. Ela se fez ver
no uso de intermediários entre Deus e os homens (v.6): “Moisés e Arão, entre
os seus sacerdotes, e Samuel, entre os que invocam o teu nome, clamaram ao
Senhor e tu lhes respondeste” (mosheh we’aharon bekohanayw ûshemû’el
beqor’ê shemô qari’ym ’el-yhwh wehû’ ya‘anem). Esses personagens bíblicos
e outros foram veículos das palavras de Deus aos homens e também dos
clamores dos israelitas ao Senhor. A clara imagem que se forma em nossa
mente é que esse tipo de acesso era restrito a poucos homens, homens
escolhidos por Deus, justamente porque a humanidade se viu afastada dele
por ser pecadora, enquanto Deus é santo.
Além do mais, a santidade do Senhor ficou expressa ao povo por meio da
lei mosaica que tanto evidenciava a perfeita moral divina como a
pecaminosidade dos homens (v.7): “Em uma coluna de nuvem tu lhes falaste.
Eles guardaram os teus preceitos e o estatuto que lhes deste” (be‘ammûd
‘anan yedavver ’alêhem shamrû ‘edotayw wehoq natan-lamô). Ou Israel se
adequava à santidade de Deus ou não podia ter comunhão com ele. O
tratamento rendido aos israelitas no decorrer da história bradava a mesma
lição, já que era comum observar que quem se arrependia dos pecados era
perdoado – a santidade não permite que o homem se concilie com Deus sem
que haja perdão e os meios para a efetivação desse perdão – e quem
permanecia rebelde era punido – a lei previa punição aos pecadores infiéis
(v.8): “Ó Senhor, nosso Deus, tu lhes respondeste. Tu foste para eles um
Deus perdoador e um vingador dos seus feitos” (yhwh elohênû ’attâ ‘anîtam
’el nose’ hayîta lahem wenoqem ‘al-‘alîlôtam).
Diante da visão da santidade de Deus e do modo como isso é revertido no
relacionamento com o homem em todos os tempos, o chamado no final do
salmo é inevitável (v.9): “Exaltai ao Senhor, nosso Deus, e prostrai-vos
diante do seu monte santo, pois o Senhor, nosso Deus, é santo” (rômemû
yhwh ’elohênû wehishtahawû lehar qodshô kî-qadôsh yhwh ’elohênû). O
convite a se curvar diante do “monte santo” de Deus é um chamado duplo.
Em primeiro lugar, para reverenciá-lo como Deus, na figura de adoradores se
prostrando diante do Templo que marcava a habitação divina no meio de
Israel. Em segundo lugar, para servi-lo, como fazem súditos que se prostram
ante seu rei, sabendo que em Jerusalém reinaria o santo descendente de Davi
prometido por Deus – a quem o Novo Testamento depois identificaria como o
Senhor Jesus Cristo: “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem
chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do
Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para
sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1.31-33).
Esse mesmo chamado vale hoje tanto quanto valeu naqueles dias. O
vislumbre da santidade do Senhor ainda deve produzir temor e tremor,
clamor e reverência, obediência e louvor. Curve-se você também diante do
trono do santo Deus e exalte o seu santo nome!
SALMO 100
De Quê Consiste o Verdadeiro Louvor

Durante algum tempo, perdi um pouco o gosto de ir a festas infantis de


aniversário – o que é estranho para mim, já que gosto muito de crianças e de
diverti-las com brincadeiras. Contudo, apesar da amizade dos pais e da
hospitalidade com que sempre fui recebido, algo quase sempre me
constrangia e me deixava pouco à vontade durante a festa. Em tempos de
consumismo, muitas crianças aguardam sua festa de aniversário não para
comemorar mais um ano de vida ou para se alegrar com os amigos, mas para
receber presentes. Por isso, é muito comum alguém chegar a uma festa,
presentear o aniversariante e imediatamente ser ignorado por ele em face do
desejo de abrir o presente e ver o que ganhou. Ainda que vinda de uma
pequena criança, essa é uma atitude muito grosseira. Então, os pais,
totalmente envergonhados, obrigam a criança a voltar até a pessoa que deu o
presente para agradecer-lhe, o que a criança faz, muitas vezes, demonstrando
um ânimo tremendamente contrariado. É nesse momento, quando está nítida
a ingratidão do infante e quando o convidado tem de dar um sorriso forçado
para não parecer que se sentiu desprezado, é que eu me senti diversas vezes
embaraçado como se fosse um tipo de intruso indesejado.
O Salmo 100 se preocupa com o assunto relativo à demonstração da
gratidão. A diferença é que o que ele focaliza não é a gratidão alheia para
consigo, mas a gratidão pessoal voltada a Deus. O título, definido pelo
próprio salmista, demonstra que sua composição é um salmo de
agradecimento a Deus: “Cântico de ação de graças” (mizmôr letôdâ). A
ocasião da sua composição não é declarada. Nem sequer se percebe se o
salmista tinha em mente um tipo especial de agradecimento – por alguma
atuação específica de Deus – ou se ele simplesmente convoca o mundo todo a
fazer o que lhe cabe em todo o tempo. O fato é que, dadas as características
do salmo, ele é reconhecido como um instrumento de culto a Deus no
Templo de Jerusalém, em tempos antigos. Ele surge, no saltério, logo após
uma seção que apresenta o Senhor como rei soberano sobre tudo que existe
(Sl 93, 95-99) e que, por isso mesmo, deve ser amado, temido e glorificado –
um ótimo nicho para um chamado universal à adoração como é o caso do
centésimo salmo. Assim, o que brota do texto são cinco importantes marcas
do louvor a Deus que devem permear a experiência daqueles que o
reconhecem como seu Deus, seu criador e seu salvador.
A primeira marca do verdadeiro louvor é o chamado universal à adoração
(v.1): “Aclame ao Senhor, toda a Terra” (harî‘û layhwh kol-ha’arets). Outras
possíveis traduções são “aclamai a Deus, todas as terras” e “aclamai a Deus,
moradores de toda a Terra” – já que o verbo se encontra na forma plural.
Entretanto, a ênfase na Terra toda devendo louvor ao Senhor não pode ser
diminuída. Isso é interessante de se ver porque é frequente, no Antigo
Testamento, a busca do Senhor para que vindique o povo de Israel e traga
juízo sobre as nações opressoras. Essa salmo rompe tal dinâmica e posiciona
pessoas de todas as nações dentro da congregação que deve louvor a Deus.
Alguns estudiosos, enfatizando esse caráter, consideram o salmo um
chamado específico aos gentios – apesar disso, o modo correto de se encarar
o salmo é como um chamado universal que não prevê divisões étnicas, mas
atinge a todos, judeus e gentios. Essa marca do culto a Deus é uma
demonstração de reconhecimento da soberania universal do Senhor – não
haveria necessidade de um chamado amplo caso isso não fosse verdade. E,
nesse caso, o que surge de tal visão não é o ciúme de não ter Deus somente
para si, como um Deus nacional, mas gratidão por ser ele também o Deus de
toda a Terra e um Senhor disposto a receber adoradores de todas as partes.
A segunda marca do louvor é a busca pela presença de Deus (v.2): “Servi
ao Senhor com alegria. Entrai em sua presença com brado de júbilo” (‘ivdû
’et-yhwh besimhâ bo’û lefanayw birnanâ). É óbvio que “entrar na presença de
Deus” é o que os israelitas identificavam como adentrar o Templo do Senhor,
em Jerusalém, para adorá-lo. Apesar de ele estar em toda parte (cf. Sl 139),
sua presença entre o povo era representada pela sua glória no Templo.
Contudo, o conceito de entrar em sua presença não admite uma ação
mecânica, nem envolve somente o comparecimento geográfico. Ir ao Templo
devia pressupor buscar o próprio Deus e se colocar diante dele como um
adorador. Por isso, a ordem é “servi ao Senhor”. O escritor não visa a
qualquer tipo de serviço, mas ao serviço religioso, ou seja, à “adoração” – a
língua inglesa preserva esse sentido ao ter a palavra service, cuja raiz é servir,
para designar o culto. Se essa marca não tinha um caráter meramente
mecânico ou geográfico, também não deveria ser impessoal. O chamado não
é apenas servir, mas servir “com alegria”, alegria essa que nasce de uma
gratidão verdadeira que vem do coração de pessoas que são agraciadas pelo
Deus do universo, as quais reconhecem a mão do Senhor sustentando,
dirigindo e protegendo.
A terceira marca é a subordinação que cabe aos homens (v.3):
“Reconhecei que o Senhor é Deus” (de‘û kî-yhwh hû’ ’elohîm). O salmista
não coloca em dúvida a divindade do Altíssimo – ela é certa, quer os homens
reconheçam ou não. Em lugar disso, o enfoque desse texto recai sobre os
adoradores que são chamados de todas as partes do globo a cultuar a Deus
com gratidão. Para que atendam o chamado, devem, inexoravelmente,
“reconhecer” o Senhor como Deus. Não serve imaginá-lo como um dentre
muitos deuses, ou como um ser falho e limitado como nós. É preciso
reconhecê-lo como Deus supremo e único. A aplicação desse conceito é que a
divindade do Senhor deve curvar o homem diante dele. A subordinação
humana a Deus se dá primeiro porque ele, como Deus que é, criou tudo que
existe, incluindo cada pessoa do planeta. Em segundo lugar, porque tudo que
Deus criou lhe pertence: “Foi ele quem nos criou e nós somos dele, seu povo
e rebanho do seu aprisco” (hû’-‘asanû welô ’anahnû ‘ammô wetso’n mar‘îtô).
Por isso, como criação e possessão de Deus, devemos assumir nosso lugar
aos seus pés, na figura de servos humildes.
A quarta marca é a demonstração pública de gratidão. A ordem aos
homens de todo mundo é (v.4): “Adentrai os seus portões com ação de graças
[e] os seu átrios com louvor” (bo’û she‘arayw betôdâ hatserotayw bithillâ).
Isso devia soar um pouco estranho para muitos israelitas, já que os gentios
não tinham acesso a todos os átrios do Templo. Entretanto, a ordem é essa
mesma, mostrando que o Senhor era Deus de todos os povos e que Israel,
como povo da aliança, devia agir como sacerdote entre o Senhor e as demais
nações (cf. Ex 19.6). A ordem subsequente, pressupondo o atendimento ao
chamado de vir a Deus, é: “Celebrai-o, bendizei o seu nome” (hôdû-lô
barakû shemô). Não há aqui nenhuma superstição ligada ao uso do nome de
Deus – alguns movimentos religiosos afirmam que a pronúncia correta do
nome de Deus e de Jesus é necessária para alguém fazer parte do povo de
Deus e ser aceito por ele. Longe disso, o salmista, ao celebrar e bendizer o
nome de Deus, o faz pensando na pessoa de Deus, na sua fama, no seu caráter
e na sua grandeza. É o próprio Deus que, publicamente, deve receber a
adoração dos seus servos, por meio da aclamação jubilosa e da exposição
verbal das suas grandezas.
A última marca do verdadeiro louvor a Deus é a correta motivação da
adoração. O culto grato a Deus não é apenas um ritual religioso que nasce da
tradição. Muitas demonstrações religiosas tradicionais passam a existir
simplesmente porque a geração anterior assim o fazia. Se perguntarmos para
muitas pessoas que celebram aquilo que seus pais celebravam qual é a razão
por trás do seu hábito religioso, elas não saberão responder. Para que isso não
ocorra no culto verdadeiro, o salmista dá dois motivos para sua existência. O
primeiro é a bondade de Deus (v.5): “Pois o Senhor é bom” (kî-tôv yhwh). Eis
uma motivação da gratidão a Deus de caráter bastante prático. Em segundo
lugar, o salmista aponta as promessas de Deus e a certeza de que ele sempre
cumpre o que diz: “Sua lealdade é para sempre e a sua fidelidade de geração
em geração” (le‘ôlam hasdô we‘ad-dor wadôr ’amûnatô). A lealdade, ou o
“amor leal” de Deus, assume uma forma especial dentro do seu
relacionamento com Israel. Significa que as alianças que fez com servos
como Abraão e Davi não podem ser ignoradas por ele. Por isso, em amor
pelos servos com quem se comprometeu voluntariamente, o Senhor cumprirá
cada palavra que disse e será fiel mesmo depois de muito tempo e muitas
gerações terem passado – o que inevitavelmente produz esperança firme em
seus servos e, consequentemente, uma gratidão verdadeira que os leva à
adoração.
É muito fácil para nós, homens cuja velha natureza ainda nos imprime um
caráter com traços de egoísmo e de soberba, transformarmos o culto a Deus
em ocasião de satisfação pessoal. Quando isso acontece, as pessoas buscam
realizar atividades religiosas que as agrade e satisfaça – as músicas têm de ser
do seu agrado, a pregação não pode tocar pontos incômodos e as emoções
têm de ser todas positivas. O problema disso é que se esquece totalmente o
propósito do culto: oferecer a Deus verdadeira adoração com um espírito de
gratidão por tudo aquilo que ele é e por tudo aquilo que ele faz. Isso não pode
de modo algum acontecer. Centralizar o homem nos cultos a Deus é o mesmo
que, com muita ingratidão, receber um presente de alguém e, sem sequer
dizer “obrigado”, correr para algum canto a fim de abrir o pacote e se deleitar
em suas posses.

SALMO 101
Os Votos e os Propósitos do Servo de Deus

No mundo antigo, o Egito sempre se destacou como potência política e


militar. Entre seus temíveis exércitos, houve um grupo de destaque na cidade
de Tebas, chamada no Antigo Testamento pelo seu nome egípcio Nô-Amom
(Jr 46.25; Ez 30.14-16; Na 3.8). Esse grupo, formado por 3 mil soldados,
aterrorizava qualquer inimigo que tivesse de enfrentá-lo. A razão disso é que
esses soldados fizeram um juramento de amizade perpétua que previa que
eles permaneceriam juntos, em uma batalha, até que a última gota de sangue
fosse derramada em terra. Ninguém fugia, nem abandonava seus
companheiros. Isso fazia toda diferença em tempos quando a guerra era
corporal e na qual a coragem, a determinação e a fidelidade eram armas tão
importantes quanto espadas e escudos. A devoção desses homens por seu país
e a fidelidade que mantinham uns pelos outros lhes renderam o título de “o
batalhão sagrado”.
O Salmo 101 também trata de um voto que transforma quem o faz em uma
pessoa melhor e em alguém confiável e fiel. Seu título deixa clara a autoria:
“Cântico de Davi” (ledawid mizmôr). O que não fica clara é a ocasião em que
o salmo foi composto, apesar de ser nítido que seu compositor já vivia na
função de rei – o salmista demonstra ter poder para executar juízo (vv.5,8) e
ter gente a seu serviço (v.6). Outra indicação é que o local do trono parece ser
Jerusalém e não Hebrom – é muito forte essa sugestão a partir da menção da
“cidade do Senhor” (v.8). O início do reinado de Davi em Jerusalém (1004
a.C.) – depois de reinar sete anos em Hebrom – parece ser uma data
compatível com a mensagem desse salmo, já que nele aparecem os propósitos
e os votos do salmista de agir como um líder fiel a Deus na sua inteira
dependência. Desse modo, o rei Davi, desejoso de servir o Senhor, faz-lhe
seis votos.
O primeiro voto de Davi ao Senhor é encarecer a retidão do caráter
divino (v.1). Ele inicia seu canto com uma frase que é possível traduzir
interpretando os verbos no tempo futuro – seguindo a Septuaginta.
Entretanto, seria injusto com o salmista imaginá-lo fazendo afirmações
arrogantes sobre um futuro que ele não controla – já que não é assim que ele
coloca a questão. Usando, no início do salmo, um modo verbal chamado
“coortativo” – que tem a função de um imperativo da primeira pessoa –, ele
demonstra seus propósitos, ou seja, aquilo que ele deseja fazer e que, diante
de Deus, assume como objetivo a ser buscado: “Que eu cante a lealdade e a
fidelidade! Que eu faça músicas para ti, ó Senhor!” (hesed-ûmishpat ’ashîrâ
leka yehwâ ’azammerâ). O que parece, a princípio, apenas um ato de louvor,
assume um novo caráter quando exposto ao restante do salmo. A primeira
palavra, “lealdade” ou “amor leal” (hesed), aponta para a fidelidade de Deus
para o compromisso assumido com seus servos, com quem entrou em aliança,
e com seu povo que escolheu e lhe designou o futuro. A segunda palavra,
“juízo” ou “decisão justa” (mishpat), expressa o desalinho de Deus com tudo
o que é mau, além da sua iniciativa de punir o erro e promover o bem. Como
era exatamente esse o modo de proceder que Davi queria, cantar tais valores
do caráter divino era mantê-los diante de si para que os imitasse, além de
transmitir e ensiná-los ao povo de Israel.
O segundo voto de Davi é seguir o caminho da perfeição (v.2). O rei
coloca diante de Deus mais um propósito: “Que eu preste atenção ao caminho
da integridade” (’askîlâ bederek tamîd). “Integridade” ou “inteireza” contêm
a ideia de ser cheio do bem e de buscar a perfeição. É claro que Davi não se
via como uma pessoa perfeita. Por esse motivo, introduz uma frase
parentética na qual expressa sua dependência de Deus para tanto: “Quando tu
virás a mim?” (matay tavô’ ’elay). Essa pergunta equivale a dizer “por favor,
dá-me forças para isso”. Com tal dependência em mente, Davi muda o modo
dos seus verbos do coortativo para o tempo futuro e, confiado no auxílio
divino e sem parecer arrogante, diz: “Procederei com coração reto no interior
da minha casa” (’ethallek betam-levavî beqerev bêtî). O que ele tinha em
mente não era um modo público de proceder a fim de mostrar algo aos
outros. A perfeição que tinha em mente começava em sua vida particular,
dentro da própria casa, onde o público não o via.
Seu terceiro voto é manter a separação daquilo que é mau (vv.3,4). Os
votos do rei não eram palavras vazias, mas propósitos que teriam implicações
práticas (v.3): “Não porei diante dos meus olhos coisa alguma que seja
perversa” (lo’-’ashît leneged ‘ênay devar-belîya‘al). Esse é um voto de ser
criterioso e de não fazer “vistas grossas” a coisas que são ruins ou cuja
maldade é camuflada por desculpas ou racionalizações ilegítimas. Ele não se
beneficiaria de nenhum fruto de injustiças. Também não aprovaria aqueles
que agem assim, nem se associaria com eles: “Eu odeio o agir dos perversos.
Isso não terá ligação comigo” (‘asoh-setîm sane’tî lo’ yidbaq bî).
Gramaticalmente, não é fácil definir se Davi está falando da ligação com os
perversos, ou com o agir dos perversos. Na prática, o efeito é o mesmo: ele
não compactuaria nem participaria da maldade dos homens vis. Essa era a
razão pela qual as pessoas que agissem de modo injusto e indecente se
afastariam dele (v.4): “[A pessoa de] coração depravado se desviará de mim.
Eu não conviverei com o mal” (levav ‘iqqesh yasûr mimmennî ra‘ lo’ ’eda‘).
O quarto voto é atuar na supressão da injustiça (v.5). A perfeição não
seria buscada apenas na vida privada de Davi, mas também naquilo que
estava a seu alcance e que era da sua responsabilidade. Como rei, uma das
suas obrigações era conter o mal. Por isso, ele diz: “Eu farei calar aquele que
ocultamente calunia o seu próximo” (melashnî bassater re‘ehû ’ôtô ’atsmît).
Acusações mentirosas não seriam acolhidas nem validadas no tribunal
dirigido pelo rei. Antes, Davi trabalharia para calar tais difamações
mostrando que ações assim não teriam lugar em Israel. Diferente das cortes
reais do resto do mundo, ele também não abriria espaço para soberba e
arrogância: “Eu não tolerarei olhos altivos, nem coração arrogante”
(gevah-‘ênayim ûrehav levav ’otô lo’ ’ûkal). Deve-se notar que essa intenção
não visa somente a controlar o modo de os homens se portarem ou de verem
a si mesmos, mas as atuações decorrentes disso – a quem arrogantemente se
acha melhor que os outros, concede-se o direito de subjugar e explorar os
mais fracos. O voto do rei previa a supressão de todo tipo de injustiça.
O quinto voto é buscar a convivência com pessoas justas. É normal que
um rei seja cercado por muita gente, mas Davi seria criterioso também em
suas companhias (v.6): “[Dirigirei] os meus olhos aos fiéis da terra para que
habitem comigo. Aqueles que andam no caminho da integridade estarão a
meu serviço” (‘ênay bene’emnê-’erets lashevet ‘immadî holek bederek tamîm
hû’ yeshortenî). Motivos torpes não seriam o critério de contratação dos seus
servos, nem na escolha dos seus amigos. Ele procuraria conviver com gente
que fosse compatível com sua fé no Senhor e com seu desejo de buscar um
caráter fiel. Pela mesma razão, as más companhias seriam repelidas (v.7): “O
que pratica a trapaça não permanecerá no interior da minha casa. O que diz
falsidades não permanecerá diante dos meus olhos” (lo’-yeshev beqerev bêtî
‘oseh remîyâ dover sheqarîm lo’-yikkôn leneged ‘ênay). A importância desse
voto é que é muito fácil se deixar levar por pessoas com quem convivemos
muito tempo e que nos fazem admirá-las, mesmo sem ser por causa das suas
qualidades. A convivência íntima com homens injustos poderia afetar a busca
da perfeição por parte do rei de Israel, além de fazê-lo condescender com o
que é errado e repreensível.
O último voto do rei a Deus é perseverar no cumprimento dos seus
propósitos. O versículo final renova a intenção de perseguir e suprimir a
injustiça. Contudo, um novo elemento é introduzido gerando a ideia de
continuidade da ação e da perseverança dos propósitos (v.8): “A cada manhã
eu reprimirei todos os ímpios da terra a fim de arrancar da cidade do Senhor
todos os que praticam a iniquidade” (lavveqarîm ’atsmît kol-rish‘ê-arets
lehakrît me‘îr-yehwâ kol-po‘alê ’awen). A expressão “a cada manhã”
expressa a intenção de manter uma luta constante, sem se deixar desanimar
nem mesmo nos momentos mais difíceis em que haja um custo alto por ser
fiel a Deus. Nem tampouco mudar de propósitos durante a vida buscando
adaptação a situações mais vantajosas em que a honestidade e o bom caráter
sejam empecilhos. Manhã após manhã todos esses votos deviam ser
relembrados e renovados a fim de tornar Davi – e qualquer outro que queira
servir ao Deus santo – um servo digno do seu Senhor.
Acredito que nós, igreja de Deus do século 21, precisamos relembrar e
renovar nossos votos a Deus. Se nunca os fizemos, devemos, então, formulá-
los e expô-los ao nosso Deus de modo a buscar o bem, a justiça, a perfeição e
o bom testemunho do nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Chega de
compactuar com o sistema mundano! Chega de tolerar o pecado! Basta de
desculpas para não nos afastarmos do estilo de vida corrompido da
atualidade! Nossa fidelidade deve ser dirigida ao nosso Senhor e não aos
nossos impulsos carnais. Nosso caráter deve ser moldado por aquele que tem
o caráter perfeito e reto. E nossa luta deve ser a cada dia nos parecermos mais
com nosso Redentor. Sigamos o exemplo do rei que, na dependência de
Deus, fez votos de fidelidade e obediência. Que essa seja nossa oração em
cada manhã, completada pela declaração de submissão e de clamor por
auxílio: “Quando tu virás a nós?”.

SALMO 102
O Microcosmos das Alianças de Deus

Na coleção de documentos da Casa Branca, nos Estados Unidos, há uma


carta de uma criança, escrita em setembro de 1895, endereçada ao presidente
Cleveland. Seu conteúdo é mais ou menos assim: “Para sua majestade (sic), o
presidente Cleveland: Caro presidente, eu estou em um terrível estado de
espírito e pensei em lhe escrever e contar tudo. Há cerca de dois anos eu usei
dois selos postais que já tinham sido usados antes em correspondências,
talvez mais de duas vezes. Eu não percebi o que eu fiz até recentemente.
Tenho pensado nisso dia e noite. Assim, caro presidente, o senhor poderia me
perdoar? Eu prometo nunca mais fazer isso. Segue incluso o dinheiro
referente a três selos. Perdoe-me, pois estou sinceramente arrependido do que
fiz. De um dos seus súditos (sic)”.
Essa é uma correspondência muito interessante. Nas várias vezes que a li,
surgiram sentimentos diversos como o bom humor – ri algumas vezes da
inocência e dos termos bem intencionados, mas equivocados, do jovenzinho.
Outro sentimento despertado durante as leituras foi certa emoção ligada à
percepção do conceito de honra mesmo em um pequeno rapaz. Entretanto,
algo que me marcou foi o encorajamento de ver um jovem confessar um erro
que jamais seria descoberto de outro modo e reparar o dano causado
enviando o dinheiro devido. Essa é a verdadeira demonstração de
arrependimento e mudança de coração que deve marcar a vida de todos os
cristãos, incluindo os do nosso tempo. Nesse sentido, o Salmo 102 guarda
certas semelhanças. Por um lado, o salmista também está atribulado e
enfrentando um estado de espírito terrível. Por outro, ele reconhece o erro das
suas ações – ou do povo de Judá – e percebe que há consequências em se agir
contra o bem. Não podemos deixar de notar que o salmista, assim como
aquele pequeno rapaz que escreveu ao presidente americano, também tinha a
esperança de ser alvo do perdão supremo.
O salmista não parece estar no final de uma vida longa, como dizem os que
sugerem ser Daniel, em avançada velhice, seu compositor (vv.23,24) – apesar
de certos trechos darem a impressão de que Jerusalém estava abandonada há
tempos (vv.13,14). Entretanto, a aflição do escritor não parece ser fruto de
uma reflexão sobre a triste condição que há tempos se abate sobre uma cidade
que não vê, mas, sim, da observação presente da calamidade da cidade que
ama e do povo a que pertence – suas ações são de profundo luto (vv.4-7,9), há
inimigos que o perseguem por causa da calamidade (v.8) e a ira de Deus não
parece estar prestes a acabar, mas em pleno decurso (v.10). Na verdade, as
características ligadas ao contexto e a forte semelhança com o livro de
Lamentações colocam Jeremias – ou alguém que compatilhou da sua
realidade e que conhecia sua teologia – como um possível compositor do
salmo. De qualquer modo, assim como no livro de Jeremias, é possível ver
que o salmo engloba boa parte da teologia e da esperança dos servos de Deus
do ponto de vista dos israelitas da antiga aliança. Duas verdades teológicas
marcantes no Antigo Testamento ficam em destaque.
A primeira verdade teológica presente no salmo e em todo o Antigo
Testamento é a repreensão do mal prevista na aliança condicional –
aliança mosaica. Diferente do que alguns comentaristas bíblicos possam
dizer, o salmista sabe sim a razão do seu sofrimento – não é como no caso de
Jó, cujas razões da angústia lhe escapavam à compreensão. Plenamente
cônscio das cláusulas de castigo pela desobediência inseridas na aliança
mosaica (Lv 26; Dt 28), ele atribui os acontecimentos que se abateram sobre
ele e sobre a cidade de Jerusalém à ira divina contra os pecados israelitas e à
sua consequente condenação (v.10): “Por causa da tua indignação e da tua ira,
visto que me elevaste e me lançaste [abaixo]” (miffenê-za‘amka weqitspeka kî
nesa’tanî wattashlîkenî) – o texto diz apenas “me lançaste”, mas sua ideia é a
de reverter a ação anterior de elevar. Desse modo, a bênção oferecida no
passado (Lv 26.3-13; Dt 28.1-14) seria, agora, revertida e transformada em
castigo, conforme estipulado na aliança mosaica (Lv 26.14-39; Dt 28.15-68).
O resultado desse tratamento punitivo é a exposição, por parte do salmista,
de uma tristeza tão profunda que não pode deixar de ser percebida e até
sentida pelos leitores. Desde o título do salmo é possível ver o ânimo do
escritor, pois se descreve como alguém “angustiado” (‘anî) e “que está a
desfalecer” (kî-ya‘atof). Ele expõe a Deus seu clamor angustiado (vv.1,2)
com termos sugestivos como “minha súplica” (tefillatî), “meu grito por
socorro” (shawatî), e “dia da minha aflição” (yôm tsar lî). A partir de então, o
salmista passa a descrever seu estado de abatimento por meio de
comparações marcantes e tristes. Ele se descreve como alguém a quem o
tempo está consumindo (v.3,11) e que está para morrer antes da hora
(vv.23,24). Sua alegria se dissipou de modo que nem sequer tem o desejo de
se alimentar (v.4). O sentimento de aflição é tão grande que ele passa a sentir
efeitos psicossomáticos que lhe causam dores corporais (v.5). Entre suas
reações estão insônia frequente (v.6,7) e choro amargurado (v.9). Não é para
menos, pois, além de ver o sofrimento do seu povo, ele também se tornou
alvo da amargura alheia (v.8) pelo que está acontecendo com Judá e, mais
especificamente, com a cidade de Jerusalém, nomeada como “Sião” (v.14).
A segunda verdade teológica marcante é a esperança da restauração
futura prevista nas alianças incondicionais – aliança abraâmica, aliança
davídica e nova aliança. Não obstante o sofrimento presente e a devastação
que está para acontecer, o salmista olha para o futuro e traz de lá esperanças
muito vivas a respeito do perdão de Deus e da restauração da capital israelita
(v.13): “Tu te levantarás e terás compaixão de Sião” (’attâ taqûm terahem
tsîyôm) – a nova aliança enfatiza a ideia da restauração, enquanto a aliança
abraâmica aponta para a posse e habitação da terra da promessa e a aliança
davídiva aponta para o reinado perpétuo da dinastia de Davi na pessoa de
Jesus. Olhando para a ocasião dessa ação restauradora de Deus, ele a
descreve não como um evento produzido por circunstâncias aleatórias, mas
como um tempo determinado para uma ação anunciada: “Pois é tempo de se
mostrar o favor, pois chegou a ocasião determinada” (kî-‘et lehennah kî-ba’
mô‘ed). Os eventos descritos pelo salmista, os quais envolvem a restauração
de Israel e o temor das nações a Deus (vv.15-17), identificam essa resposta às
orações do salmista por restauração com o “Dia do Senhor” (Ob 15,17; Jl
3.14;17) e com reinado do rei eterno nascido em Belém (Mq 5.2-4; Ob 21),
redundando na punição dos rebeldes (Is 2.12; Ez 30.3) e na associação dos
tementes (Jl 2.31,32; Mq 4.1-3 cf. Sl 102.21,22). Esses eventos de perdão e
restauração espiritual e política de Israel são previstos no que Jeremias
descreveu como uma “nova aliança com a casa de Israel e com a casa de
Judá” (Jr 31.31 cf. vv.32-40). É surpreendente ver o salmista pensando em
uma esperança tão definida e gloriosa em tempos em que a realidade que
enfrentava era diametralmente oposta a isso – além do mais, podia surgir a
impressão de que Deus havia desistido do seu povo e de cumprir o que lhe
prometeu.
Como base para a segurança e a esperança apresentadas pelo escritor do
salmo, são propostos alguns atributos de Deus que garantiam o futuro de
Israel e de Jerusalém. Em primeiro lugar, o poder de Deus é exaltado a fim de
criar esperança nos leitores de que, independente da força das nações, o
Senhor é poderoso para reverter a situação. Esse poder é visto na sujeição dos
reis e dos reinos a ele (vv.15,22), na sua demonstração de glória (vv.15,16) e
na supremacia e elevação do seu trono (v.19). Em segundo lugar, o salmista
alista a eternidade de Deus como motivo de confiança, já que ele – e seu
correspondente domínio – sempre existiu e sempre existirá (vv.12,25,27).
Mesmo os reinos poderosos pereceriam, enquanto o Senhor permaneceria
(v.26), de modo que a geração que seria restaurada testemunharia tal
pernamência (v.18). Em último lugar está a imutabilidade de Deus (v.27):
“Pois tu és ele mesmo” (we’attâ-hû’) – ao dizer isso, o escritor aponta para o
fato de que Deus é quem as Escrituras descrevem e que não haverá tempo em
que ele não corresponderá à descrição bíblica ou às espectativas baseadas em
suas promessas. Surge daí a noção da “fidelidade” de Deus, razão pela qual o
profeta confia nas promessas de restauração futura do seu povo (nova aliança
– cf. Jr 31; Ez 36; Jl 2), na habitação de Israel na terra prometida a Abraão
(aliança abraâmica – cf. Gn 15.17-21) e no reinado perpétuo do descendente
de Davi (aliança davídica – cf. 2Sm 7.11-17). Nesse dia se cumprirá o que o
salmista, ainda que abatido ao escrever, previu esperançosamente (v.28): “Os
filhos dos teus servos habitarão [aqui] e seus descendentes serão firmados
diante de ti” (benê-‘avadeyka yishkônû wezar‘am yikkôn).
Que verdades gloriosas que revelam tanto a justiça e a santidade de Deus
como sua fidelidade, amor, graça e poder! A mesma esperança é
compartilhada pela igreja visto ser beneficiária de promessas de
estabelecimento eterno na presença de Deus. A certeza de que Deus cumprirá
todas as suas promessas nos enche de esperança de ver o que foi anunciado. E
a convicção de que, não importa quanto o mundo se afaste do bem e quanto o
diabo demonstre ser o “deus desse século” (cf. 2Co 4.4), a vitória final
pertence a Deus e ao Senhor Jesus Cristo (Ap 11.15)! Essa é uma esperança
que devemos nutrir todos os dias e, guiados e fortalecidos por ela, manter
uma vida santa no presente como quem viverá em glória no futuro.

SALMO 103
As Qualidades Louváveis de Deus

Os homens têm capacidade de fazer coisas incríveis. A inteligência e as


habilidades humanas são muitas vezes responsáveis por obras e feitos que
marcam a história. Leonardo da Vinci tinha um talento artístico ímpar na
pintura, na escultura, na arquitetura e em tantas outras áreas que chega a ser
difícil alistar. Wolfgang Amadeus Mozart apresentava um talento musical tão
destacado que começou a compor com cinco anos de idade. Isaac Newton,
por suas obras e estudos, foi considerado pela Royal Society como o cientista
que causou maior impacto na história da ciência. Entre os talentos ímpares
exibidos por certos homens, o Brasil conheceu um gênio do futebol chamado
Edson Arantes do Nascimento, o “Pelé”. Ele é assim considerado não por ter
sido apenas um grande goleador – encerrou sua carreira com 1.281 gols.
Basta assistir a algum documentário sobre o assunto para ver que ele
dominava muitas técnicas e se destacava em várias áreas – era bom no drible,
no cabeceio, no posicionamento em campo, na visão de jogo, no passe, na
cobrança de faltas, no domínio de bola, na “matada no peito” e, é claro, na
finalização. Ser bom em tantas áreas lhe rendeu o título de “rei do futebol”.
Ele é amado por isso, reconhecido em todo mundo e homenageado onde quer
que vá.
O Salmo 103 também louva alguém de muitas qualidades e feitos
impressionantes. Contudo, não se trata de um homem famoso, mas do Rei
eterno. O escritor é o rei Davi, autor de tantos outros salmos. Contudo,
diferente do habitual, Davi não escreve ao se deparar com alguma
circunstância específica como de perseguição, de pecado ou de consolo. O
assunto abordado é bem amplo e se focaliza em Deus e nas suas atuações
gerais, não apenas suas intervenções na vida do salmista. Assim, o louvor
também deve ser amplo e irrestrito, pelo que Davi conclama a si mesmo e,
por tabela, aos seus leitores (v.1): “Que a minha alma bendiga ao Senhor e
que tudo que há no meu íntimo [bendiga] o seu santo nome” (barakî nafshî
’et-yhwh wekol-qeravay ’et-shem qodshô). A razão do louvor também é ampla
(v.2): “Que a minha alma bendiga ao Senhor e que ela não se esqueça de
todos os seus favores” (barakî nafshî ’et-yhwh we’al-tishkehî kol-gemûlayw).
Nada podia passar despercebido pelos adoradores de Deus. Nenhum feito
divino podia ser omitido, visto serem frutos do caráter perfeito do Senhor.
Assim, Davi louva a Deus sem reservas devido a quatro qualidades divinas.
A primeira qualidade divina digna de todo louvor é a misericórdia. Essa é,
disparado, a qualidade mais enfatizada no salmo (v.4): “[Deus é] aquele que
resgata a tua vida da cova e que te coroa com amor e compaixão” (haggô’el
mishahat hayyaykî ham‘atterekî hesed werahamîm) – pelo uso de pronomes
femininos ao longo do salmo, tudo indica que Davi está usando um modo de
se referir a si mesmo se dirigindo à sua própria alma (cf. vv.1,2) como
beneficiária da ação de Deus (cf. Sl 16.10). A figura da “coroação” deve ser
compreendida aqui como uma “concessão”. Significa que o homem não
merece a misericórdia que recebe de Deus, mas a recebe assim mesmo
porque o Senhor escolheu manter sentimentos positivos, expressos pelas
palavras “amor” e “compaixão”, a fim de atuar na vida dos servos. Os efeitos
da misericórdia divina são muitos. Deus concede-lhes o que necessitam,
atenuando o peso dos dias maus que fazem o sofredor envelhecer antes da
hora (v.5): “[Deus é] aquele que satisfaz os teus anelos com coisas boas
[fazendo] a tua juventude renovar-se como a águia” (hammasbîa‘ battôv
‘orgek tithaddesh kannesher ne‘ûraykî) – apesar de não termos notícia do
conhecimento popular da época sobre um suposto rejuvenescimento das
águias, fica clara a ideia da preservação da juventude dos servos aliviando-
lhes, por meio da provisão, as preocupações excessivas.
A misericórdia de Deus faz com que ele seja, também, tardio em se irar
contra seus servos e pronto a lhes render seu amor (v.8), sendo descrito como
“paciente e misericordioso” (’erek ’affayim werav-hased). Sem paciência,
certamente seu tratamento traria punição tão logo o homem pecasse, mas, em
lugar disso, sua misericordiosa paciente retém o castigo e oferece um
tratamento benigno (v.10): “Ele não age para conosco conforme os nossos
pecados e não nos retribui conforme a nossa culpa” (lo’ kahata’ênû ‘asâ lanû
welo’ ka‘aônotênû gamal ‘alênû). Essa misericórdia se dilata de modo
espantoso diante dos olhos humanos acostumados a ser mesquinhos com seus
próximos (v.11): “Pois, como os céus são elevados sobre a terra, o seu amor
se sobrepõe sobre os que o temem” (kî kigvoah shamayim ‘al-ha’arets gavar
hasdô ‘al-yere’ayw). Por fim, a misericórdia de Deus faz com que ele trate
seus servos de maneira paternal, rendendo-lhes tanto os sentimentos como os
cuidados de um relacionamento desse tipo (v.13): “Assim como um pai se
compadece dos filhos, o Senhor se compadece dos que o temem” (kerahem
’av ‘al-banîm riham yhwh ‘al-yere’ayw).
A segunda qualidade divina é a disposição de perdoar. Apesar de a
misericórdia ser a razão do perdão, o ato de perdoar em si é tão pontual e seu
efeito é tão importante que ele merece ser descrito de modo particular. Assim,
o rei Davi, conhecedor dessa qualidade especial de Deus, diz (v.3): “[Deus é]
aquele que perdoa toda a tua culpa, aquele que cura toda a tua enfermidade”
(hassoleah lekol-‘aônekî harofe’ lekol-tahalu’oykî). “Enfermidade”, nesse
texto, não visa a apontar desordens físicas, mas a doença espiritual
promovida pelo pecado – essa mesma metáfora é utilizada pelo profeta Isaías
ao chamar de “enfermidades” as “iniquidades” pelo qual o “Servo do Senhor”
foi traspassado e moído (Is 53.4,5). Mesmo quando o Senhor não desvia sua
ira disciplinadora dos seus servos, a disposição divina de perdoar faz com que
a punição dure certo tempo e depois ceda espaço para a restauração (v.9):
“Ele não repreende continuamente, nem guarda rancor para sempre” (lo’-
lanetsah yarîv welo’ le‘ôlam yittôr). Na verdade, o Senhor trabalha por uma
restauração plena dos seus servos, perdoando-lhes totalmente os pecados a
fim de que, sem bloqueio algum, sejam aceitos por ele (v.12): “Assim como o
extremo leste fica afastado do extremo oeste, ele afasta de nós as nossas
transgressões” (kirhoq mizrâ mimma‘arav hirhîq mimmennû ’et-pesha‘ênû).
A terceira qualidade louvável é a justiça. Em primeiro lugar, Deus age
como um juiz reto (v.6): “O Senhor promove justiça e decisões justas para
todos os oprimidos” (‘oseh tsedaqôt yhwh ûmishpatîm lekol-‘ashûqîm).
“Justiça” e “decisões justas” – ou “juízo” – foi o que Deus ordenou aos
israelitas e eles falharam em cumprir (Is 5.7). O Senhor, por sua vez, não
falha em agir como protetor dos desvalidos e como punidor dos injustos. É
interessante notar que, apesar de as palavras “justiça” e “juízo” caberem no
contexto na forma singular, ambas surgem no plural combinando com os
objetos da ação de Deus: os “oprimidos”. Não há como olhar para isso sem
perceber como o Senhor se importa com cada pessoa em particular e, longe
de tratar o povo como números estatísticos, se incomoda com a injustiça feita
a cada pessoa. Em segundo lugar, ele atua como um legislador sábio, santo e
reto (v.7): “Ele revelou os seus caminhos a Moisés e os seus feitos aos filhos
de Israel” (yôdîa‘ derakayw lemosheh livnê yisra’el ‘alîlôtayw). Esse texto é
difícil de interpretar, pois parece desconectado dos textos contíguos, a não ser
que olhemos para ele como desdobramento prático da afirmação anterior.
Desse modo, a “justiça” e o “juízo” promovidos por Deus foram revelados
em sua lei, dada a Moisés no Sinai, e exemplificados na salvação e proteção
de Israel das mãos dos egípcios, dos amalequitas, dos moabitas e dos
midianitas quando se dirigia à terra de Canaã.
A última qualidade digna de todo louvor é a grandeza. Em primeiro lugar,
Deus é apresentado como grande e ilimitado por conhecer todas as coisas,
incluindo os mistérios da condição humana ligada à sua criação e
transitoriedade (v.14): “Pois ele conhece a nossa condição, sabedor de que
nós somos pó” (kî-hû’ yada’ yitsrenû zakûr kî-‘afar ’anahnû). Em segundo
lugar, Deus é grande e ilimitado por viver eternamente (vv.15-18). Esse
trecho afirma (v.17) que o “amor do Senhor é de eternidade a eternidade”
(hesed yehwâ me‘ôlam we‘ad-‘ôlam). Apesar da ênfase no “amor”, o texto
contrasta a realidade divina com a transitoriedade do homem (vv.14-16)
mostrando que Deus dura para sempre e, por causa disso, também os seus
atributos. Em terceiro lugar, Deus é grande e ilimitado por controlar tudo que
existe (vv.19-22). Ele não é o rei apenas de Israel, mas o regente de todos os
povos (v.19). Além disso, seu governo se estende às esferas angelicais, tendo
para si um exército de poderosos anjos que lhe obedecem o comando (v.20).
O v.21 parece ser continuidade do anterior, chamando os anjos de “seus
exércitos” (tseva’ayw) e de “seus ministros” (meshortayw). Contudo, como os
vv.19-22 apresentam a soberania de Deus de um modo crescente, é possível
que o v.21 faça menção a exércitos e servos de Deus em todas as esferas a
fim de se referir ao seu comando pleno do universo. Por fim, o v.22 conclama
toda a criação em toda parte a bendizer o Deus grandioso e supremo.
Diante de motivos tão importantes para se louvar a Deus e da intensidade
da adoração mantida por Davi, surge um grande contraste em relação ao que
vemos hoje em dia sob o título de “louvor”. Os “adoradores” modernos
parecem mais preocupados em buscar satisfação pessoal que em louvar o
soberano pelas óbvias razões que devem nos conduzir a uma dedicada e
intensa adoração, a qual deve ser dirigida e filtrada pela orientação de Deus
nas Escrituras. Que esse salmo nos conduza ao tipo e à qualidade da
adoração sem reservas e digna de Deus que cabe aos seus servos apresentar.

SALMO 104
A Multiforme Obra de Deus

Quando cursei Odontologia, um dos meus primeiros espantos foi saber que
cada dente possuía um nome e uma anatomia própria que o faz ser
reconhecido mesmo fora da arcada dentária – antes de aprender isso, os
dentes, para mim, se dividiam apenas em “dentes da frente”, “dentes do
fundo” e “presas”. Mais impressionante foi descobrir que cada um tinha uma
forma peculiar a fim de desenvolver uma ação bastante definida. A partir
disso, imagine qual foi minha surpresa ao descobrir que o corpo todo tem
formas e funções tão específicas e inteligentes que nem uma equipe de
engenheiros muito bons poderia conceber. O fato foi que, quanto mais eu
conhecia a anatomia, a fisiologia e a bioquímica do corpo humano, mais eu
admirava o Senhor como um perfeito, sábio e poderoso criador.
O Salmo 104 narra uma observação parecida. Entretanto, em lugar de
analisar o corpo humano, o salmista observa a natureza e, mesmo que tais
informações fossem apenas superficiais comparadas ao nosso conhecimento
no tempo presente, as conclusões são as mesmas. Isso não é de espantar já
que as Escrituras afirmam que “os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das
coisas que foram criadas” (Rm 1.20). Dadas as semelhanças, principalmente
de abertura e de encerramento, é possível que os Salmos 103 e 104 sejam
companheiros e provindos da mesma pena. De qualquer modo, assim como
Davi, esse salmista tem um olho observador no que tange àquilo que a
natureza revela a respeito do Senhor, de modo que sua observação o leva a
uma adoração nada acanhada (v.1,2a): “Que a minha alma bendiga ao
Senhor. Ó Senhor, meu Deus, tu és grandessíssimo. Estás revestido de glória
e majestade, coberto de luz como se fosse um manto” (barakî nafshî ’et-yhwh
yhwh ’elohay gadalta me’od hôd wehadar lavashta). Assim, o salmista faz
cinco observações reveladoras sobre a glória de Deus.
A primeira observação é com relação ao tamanho e à perfeição da criação
(vv.2-5). A análise começa por uma das mais impressionantes provas do
tamanho do poder glorioso de Deus: os céus – deve-se notar que essa é uma
referência ao universo como um todo, já que se trata da observação das
estrelas (v.2b): “Estendestes os céus como se fossem uma tenda” (noteh
shamayim kayrî‘â). “Estendestes” pode também ser traduzido como
“desenrolastes”, de modo que o salmista apela para a figura de um homem
desenrolando os tecidos de uma tenda para armá-la e colocá-la como proteção
sobre a cabeça dos seus – para Deus, criar o universo foi tão fácil como armar
uma barraca. A análise lança, agora, os olhos sobre a atmosfera terrestre
(v.3): “Construístes nas águas a tua morada, fizestes das núvens a tua
carruagem, caminhastes sobre as asas do vento” (hamqareh bammayim
‘alîyôtayw hassam-‘avîm rekûvô hamhallek ‘al-kanfê-rûah). Apesar de a
palavra “águas” parecer ser uma referência aos mares, por se tratar de um
relato da criação quando havia “águas sobre o firmamento” (Gn 1.6,7 – isso
parece ter existido somente até o dilúvio, cf. Gn 7.11) –, essas águas devem
ser compreendidas como paralelas às nuvens, de modo que o Senhor está
acima da terra, nos céus, olhando para nós como de uma “varanda” ou de um
“mirante” – traduções alternativas para a palavra “morada”. Além do mais,
ele controla os efeitos naturais poderosos dos céus: os “ventos” e os “raios” –
esses últimos são descritos aqui como “fogo ardente” (v.4). Por fim, o
salmista se refere ao mundo como uma estrutura firme (v.5): “Estabelecestes
a Terra sobre seus fundamentos, [de modo que] ela nunca, em tempo algum,
seja abalada” (yosed-’erets ‘al-mekôneyha bal-timmôt ‘ôlam wa’ed).
A segunda observação é quanto ao poder empregado no dilúvio (vv.6-9).
Em primeiro lugar, Deus trouxe as águas sobre toda a porção seca, fazendo
com que toda a Terra fosse coberta (v.6): “Tu a cobriste com o oceano como
se fosse uma roupagem. As águas permaneceram sobre os montes” (tehôm
kallevûsh kissôtô ‘al-harîm ya‘amdû-mayim). Em seguida, com o mesmo
poder, ordenou o recuo das águas para haver novamente porção seca (v.7):
“Elas fugiram diante da tua repreensão e se apressaram diante da tua voz
trovejante” (min-ga‘arotka yenûsûn min-qôl ra‘amka yehafezûn). Muita gente
se questiona como as águas se recolheram, ou para onde foi tanta água.
Talvez, o versículo seguinte responda a essa questão (v.8): “As montanhas se
elevaram [e] as planícies desceram até o lugar que tu determinaste para elas”
(ya‘alû harîm yerdû beqa‘ôt ’el-meqôm zeh yasadta lahem). Essa pode ser
uma referência à locomoção das placas tectônicas afastando algumas e
colidindo outras entre si, criando, com isso, cadeias montanhosas que
elevaram a terra e abriram espaço para a acomodação das águas – é bem
provável que a Terra tivesse um relevo mais baixo antes do dilúvio, sem
montanhas altas ou planaltos elevados. O resultado foi que a nova geografia
fez as águas assumirem um lugar que garantiu a existência perene da terra
seca em que habitamos (v.9).
A terceira é quanto ao cuidado da fauna e da flora (vv.10-18). Os rios,
descendo pelos montes, também são obra de Deus (v.10). Dessas águas
dependem os animais (vv.11,12). Entretanto, para manter os rios correndo, o
Senhor constantemente os abastece por meio do controle que possui sobre as
chuvas (v.13): “Da tua morada tu regas os montes, [de modo que] a terra se
enche do fruto das tuas obras” (mashqeh harîm me‘alîyôtayw mifferî
ma‘aseyka tisba‘ ha’arets). Essa é uma referência à irrigação pluvial e fluvial
que faz crescer os vegetais que servem de alimento para os animais e para o
homem (v.14): “Tu fazes brotar a erva para os animais e os vegetais para a
lavoura do homem a fim de tirar [seu] pão da terra” (matsmîah hatsîr
lavvehemâ we‘eseh la‘avodat ha’adam lehôtsî’ lehem min-ha’arets). Na
verdade, o homem parece ser o alvo final e primordial desse suprimento
(v.15). Além da fauna, a flora no geral também se estabelece por causa do
controle de Deus sobre as chuvas (v.16), beneficiando outros animais não
citados até então, a saber, as aves (v.17a). A citação de diversos animais que
habitam lugares diferentes e quase inatingíveis ao homem serve para mostrar
a variedade dos seres vivos e o amplo cuidado que o Senhor exerce sobre
toda a criação (vv.17b,18).
A quarta observação é a utilidade do dia e da noite (vv.19-23). Assim
como o corpo humano possui uma fisiologia inteligente, o mundo e a vida na
Terra também são sustentados por ciclos que promovem seu perfeito
funcionamento. Isso se dá pela sucessão interminável de dias e noites descrita
pelos astros que marcam cada período (v.19): “Ele fez a Lua para as ocasiões
[determinadas e] o Sol conhece sua hora de se pôr” (‘asâ yareah lemô‘adîm
shemesh yada‘ mevô’ô). A palavra “ocasiões” também pode ser traduzida
como “estações do ano”, mas, como o parágrafo todo trata do dia e da noite,
deve ser compreendida como as ocasiões em que a Lua surge, ou seja, o
período noturno. Tanto o dia como a noite são benéficos para a criação, já
que a noite é o momento da caça e da alimentação de certos animais (v.21),
enquanto durante o dia eles se protegem e o homem sai ao trabalho a fim de
se sustentar (vv.22,23). É claro que essa breve descrição não expressa tudo
que acontece durante os dias e as noites, mas serve para exemplificar o
funcionamento diuturno da fauna e da flora ao redor do globo.
A última observação é sobre a manutenção da vida (vv.25-30). Nessa
seção, o salmista trata do hábitat que faltou, o mar e as populações marinhas
(v.25): “Eis o mar, enorme e extenso, no qual há incontáveis peixes, seres
pequenos junto com os grandes (zeh hayyam gadôl ûrehav yadayim shom-
remes we’ên mispar hayyôt qetannôt ‘im-gedolôt). Não importa o número
incontável de peixes ou o tamanho imensurável do mar (v.26), todos os seres
marinhos são alimentados pelo Senhor (v.27): “Todos eles esperam de ti que
lhes dê de comer no tempo devido” (kullam ’eleyka yesavverûn latet ’oklam
be‘ittô). O salmista escolheu bem os peixes para expressar o ato divino de
alimentar cada criatura, já que o número excessivo de seres marinhos exalta
ao infinito a capacidade de Deus de sustentar a vida no planeta. Não importa
o quão ferozes ou hábeis sejam, se o Senhor lhes dá o que comer, eles se
alimentam (v.28), mas se não dá, passam fome (v.29) – no v.29, ao citar a
“respiração”, o salmista não se limita à vida marinha, mas à vida em todas as
esferas. Por fim, a vida depende tanto de Deus que, quando morrem seres
vivos (v.29), outros vêm à vida como se fosse uma nova criação (v.30): “Tu
envias o teu sopro e eles são criados e, assim, tu renovas a face do solo”
(teshallah rûhaka yivvare’ûn ûtehaddesh penê ’adamâ) – Deus cessou a
criação ao final do sexto dia, mas a renovação da vida depende dele assim
como a criação também dependeu (cf. Gn 2.7).
Olhando para a variedade e grandiosidade tanto das ações acabadas como
das ações contínuas de Deus sobre o mundo, o salmista não podia chegar a
outra conclusão (v.24): “Ó, quantas são as tuas obras, ó Senhor! Tu fizestes
todas elas com sabedoria! A Terra está repleta das tuas criaturas” (mâ-ravvû
yhwh kullam behokmâ ‘asîta mol’â ha’arets qinyaneka). Uma conclusão
como essa não pode deixar o observador inerte. O salmista não fica inerte.
Ele glorifica a Deus por tudo que fez e que faz (v.31), reconhece seu poder
soberano (v.32), assume definitiva e permanentemente a posição de um servo
do Senhor (v.33), prima por manter uma vida que lhe seja agradável (v.34) e
reconhece que o pecado e a imperfeição não podem conviver com aquele que
é perfeito. Devemos continuamente fazer o mesmo e bradar todos os dias
(v.35): “Que a minha alma bendiga ao Senhor! Exaltai ao Senhor!” (barakî
nafshî ’et-yhwh yhwh hallû-yah).

SALMO 105
Quanto o Senhor já Fez por nós

Quando o cientista cristão Michael Faraday (1791-1867) – responsável por


diversos conhecimentos físico-químicos cujo valor e utilidade perduram até
hoje – se aproximava da morte, um repórter lhe perguntou sobre as
especulações que ele tecia sobre a vida após a morte. Sem meias-palavras, ele
respondeu: “Especulações? Não sei nada sobre especulações. Eu repouso
sobre certezas. Sei que meu Redentor vive. E, porque ele vive, eu também
viverei”. É certo que muitas pessoas, ao saberem da resposta desse cristão,
dirão que o cristianismo é uma ilusão bem convincente. Contudo, o que tais
pessoas não sabem é que as convicções cristãs não provêm apenas dos
estatutos da fé, mas de vidas vividas com o Senhor. Somente um texto da
Bíblia bastaria para os cristãos terem a certeza da vida eterna, mas a jornada
que atravessaram, sendo guiados, sustentados, consolados e fortalecidos
diariamente por Deus, faz com que não apenas tenham convicção da
veracidade do que as Escrituras revelam, mas do próprio caráter amoroso e
gracioso do seu Senhor e Salvador.
O Salmo 105 foi escrito por alguém – talvez Davi ou Asafe – que também
conhecia a atuação de Deus e, por isso mesmo, o glorificava sabendo quem
ele é. Apesar de o contexto histórico não ser declarado no salmo, 1Crônicas o
localiza na ocasião em que a arca foi levada a Jerusalém por Davi. O texto de
1Crônicas 16.8-22 é praticamente idêntico ao Salmo 105.1-15 – os salmos 96
e 106 parecem ter sido compostos na mesma ocasião (Sl 96.1b-13a cf. 1Cr
16.23-33; Sl 106.1b,47,48 cf. 1Cr 16.34-36). Sabendo que um dos piores
castigos impostos pelo Senhor foi a perda da arca para os filisteus (1Sm 5.1-
12) e seu retorno parcial a Israel (1Sm 6.1 – 7.1), a volta da arca ao culto
israelita era uma bênção de natureza magnífica. Mesmo parecendo que esse
dia nunca chegaria, o salmista olha para o passado, demonstra a mesma
confiança nos feitos divinos de cristãos como Faraday e cita as maravilhas
que o Senhor já havia feito ao seu povo (vv.1-6) – há uma ênfase nos feitos de
Deus (vv.1,2,5) por meio das expressões “seus feitos” (‘alîlôtayw), “seus atos
maravilhosos” (nifle’ôtayw) e “seus milagres” (moftayw). Assim, tais feitos
maravilhosos demonstravam para o salmista e para seus irmãos que o Senhor,
cujo poder e bondade ficaram patentes no passado, voltaria a beneficiá-los e
cumpriria todas as promessas que fez – o retorno da arca era um desses
benefícios.
Assim, o primeiro feito maravilhoso de Deus em benefício do seu povo
exposto no salmo foi a eleição do povo da promessa (vv.7-11). A existência
de Israel se devia inteiramente à ação divina. Abraão nunca teria uma
descendência (Gn 11.29,30) caso o Senhor não o tivesse escolhido e chamado
para o abençoar (Gn 12.1 cf. Ne 9.7, Is 41.9) – a eleição de Abraão coincide
com a própria eleição de Israel (v.6): “Descendência de Abraão, seu servo,
filhos de Jacó, seus escolhidos” (zera‘ ’avraham ‘avdô benê ya‘aqov
behîrayw). Ao chamar Abraão, Deus lhe fez promessas maravilhosas de uma
descendência numerosa e de bênçãos para ele, para seu povo e até para
pessoas de outras nações (Gn 12.1-3). Depois, lhe prometeu uma terra para
habitação da sua descendência pela perpetuidade (Gn 13.14,15). Na verdade,
para que Abraão e seus descendentes não fossem tomados de dúvidas, o
Senhor selou uma aliança formal com o patriarca (Gn 15.17-21) – que
conhecemos como “aliança abraâmica” – à qual o salmista faz menção
(vv.8,9a): “Ele se lembra perpetuamente da sua aliança, a promessa que
decretou para mil gerações, à qual prometeu a Abraão” (zakar le‘ôlam berîtô
davar tsiwwâ le’elef dôr ’asher karat ’et-’avraham). Se Israel possuía uma
terra, esse era o resultado de uma promessa bem específica do Senhor e do
seu cumprimento soberano (vv.10,11).
O segundo feito maravilhoso foi a proteção na fraqueza (vv.12-15). Levou
25 anos para se cumprir a promessa do nascimento de Isaque (Gn 21.5 cf.
12.4) e sessenta anos para o nascimento de Jacó (Gn 25.20,26). Este migrou
para o Egito quando sua família contava com apenas setenta pessoas (Gn
46.27; Dt 10.22). Durante todo esse tempo – entre 2091 e 1876 a.C. –, sendo
um pequeno e desprotegido contingente sem terra própria (vv.12,13), o
Senhor protegeu a pequena família da promessa (v.14a): “Não permitiu que
homem [algum] os oprimisse” (lo’-hinnîah ’adam le‘oshqam). Nos 215 anos
entre o chamado de Abraão e o benefício e proteção do Faraó à família de
Jacó, muita coisa podia ter dado errado, como nas vezes em que Sara, esposa
de Abraão, foi tomada para ser esposa do Faraó (Gn 12.10-20) e do rei de
Gerar (Gn 20.1-18), quando Abraão temia por sua vida. Entretanto, Deus
repreendeu até mesmo reis como esses para garantir o cumprimento das suas
promessas (vv.14b,15): “Mas repreendeu reis por causa deles, [dizendo]:
‘Não ponhais a mão em meus ungidos, nem sejais maldosos com meus
profetas’” (wayyôkah ‘alêhem melakîm ’al-tigge‘û bimshîhay welinvî’ay ’al-
tare‘û).
O terceiro feito foi a direção por intermédio de dificuldades (vv.16-25).
O Senhor prometeu uma nação numerosa ao patriarca Abraão e avisou-lhe
que não seria na terra da promessa que o crescimento ocorreria (Gn 15.12-
16). Para colocar o plano em ação, Deus se valeu de diversas dificuldades na
vida dos seus servos. Em primeiro lugar, enviou José como escravo para o
Egito (v.17): “Enviou adiante deles um homem, vendido como escravo, [a
saber] José” (shalah lifnêhem ’îsh le‘eved nimkar yôsef). O que parecia ser
um desfavor, revelou-se uma providência de Deus a fim de colocar José
como governador no Egito, abaixo somente do faraó (Gn 41.40-44),
cumprindo o plano perfeito do Senhor (v.19). O próximo passo foi enviar a
fome ao mundo (v.16), o que obrigou a família de Jacó a buscar suprimentos
no Egito, favorecendo o reencontro de José com sua família e o traslado da
casa de Jacó (v.23) a um terra propícia para que, em quatro séculos, a
pequena família se tornasse um povo numeroso. Em último lugar, o Senhor
deliberadamente fez com que os egípcios oprimissem os israelitas a fim de
preparar o pano de fundo para sua libertação maravilhosa (v.25):
“Transformou o coração deles a fim de odiarem seu povo e usarem de
esperteza para com os seus servos” (hafak livvam lisno’ ‘ammô lehitnakkel
ba‘avadayw). “Escravidão”, “fome” e “opressão”, que normalmente são
consideradas maldições, foram as ferramentas de Deus para abençoar e dirigir
seu povo.
O quarto feito foi o crescimento surpreendente (v.24): “Ele multiplicou o
seu povo abundantemente e o tornou mais poderoso que seus adversários”
(wayyefer ’et-‘ammô me’od wayya‘atsimehû mitsarayw). A pequena família
de Jacó, em um período de 430 anos (Ex 12.40), teve um crescimento incrível
a tal ponto de serem contatos, na sua partida do Egito, 600 mil homens (Ex
12.37). Se considerarmos que, para cada homem haveria também uma
mulher, além de meninos em idade de não serem contados entre os homens, o
número de israelitas do êxodo não pode ter sido menor do que 2 milhões de
pessoas. Esse crescimento é tão surpreendente que estudiosos como Carl
Friedrich Keil e Franz Delitzsch tiveram de fazer contas para provar, em seu
livro que trata da teologia do Pentateuco, que tal crescimento era
matematicamente possível. Porém, ainda que possível, ele não deixa de ser
surpreendente e prova do poder e das maravilhas de Deus.
O quinto feito maravilhoso foi a salvação da escravidão (vv.26-38). Por
meio de um servo improvável – Moisés (v.26) –, Deus fez grandes
maravilhas no Egito (v.27). As pragas lançadas sobre o país, além de o
devastarem (vv.28-36), fizeram com que o nome do Senhor e seu feito
libertador fossem conhecidos em toda parte. As nações que Israel saiu a
conquistar passaram a sentir pavor dos israelitas e do seu Deus (Ex 15.14-16),
assim como o próprio Egito se sentiu (v.38): “O Egito se alegrou quando eles
saíram, pois lhes sobreveio um pavor deles” (samah mitsrayim betse’tam kî-
nafal pahdam ‘alêhem). Além da saída em meio ao poder de Deus, a salvação
foi plena a ponto de deixarem o Egito também com riquezas, conforme a
promessa que Deus fez a Abraão (Gn 15.14), mostrando que nada daquilo era
fruto do acaso (v.37): “E os fez sair com prata e ouro” (wayyôtsî’em bekesef
wezahav). Além disso, para garantir a salvação completa que envolvia uma
longa viagem a pé, Deus cuidou para que, na ocasião, não houvesse quem
não pudesse marchar, de modo que ninguém fosse deixado para trás: “E entre
as suas tribos não havia [nenhum] manco” (we’ên bishvatayw kôshel).
O último feito maravilhoso de Deus em benefício do seu povo foi o
suprimento das necessidades (vv.39-45). Apesar de passarem quarenta anos
em um lugar que não possuía condições propícias para a sobrevivência de um
povo tão numeroso, o Senhor os protegeu do Sol forte e do frio da noite
(v.39) e enviou milagrosamente comida dos céus (v.40) e águas que brotaram
de rochas (v.41). Cumprindo, enfim, a promessa ao patriarca (v.42) da
necessária terra para a habitação do seu povo (v.44), passou a tratar-lhes
conforme a aliança que fez com eles no Sinai (v.45 cf. Ex 19). Eis a razão
pela qual, ao fazer retornar a arca ao culto israelita, em Jerusalém, o salmista
recordou de todas as maravilhas que Deus lhes havia feito no passado.
Da mesma forma, a igreja primitiva também começou pequena, por meio da
eleição de servos humildes dentre o povo (Mc 3.13-19), foi protegida quando
poderes violentos se abateram sobre ela (Mc 4.38,39), experimentou a
expansão por meio da perseguição que sofreu (At 8.1), viu um crescimento
que espantou e alarmou as pessoas ao redor (At 2.41; 6.7; Cl 1.6),
testemunhou a salvação de um povo que vivia escravizado pelo pecado (Rm
6.17,18) e foi suprida de maneira maravilhosa (Fp 4.18; 1Co 16.1-4; 2Co
11.9 cf. Mt 6.11; Lc 12.22-31). Na verdade, essa dinâmica, de modo cíclico,
se repetiu muitas vezes durante a história. Por isso, ainda hoje, muito tempo
depois da sua fundação, nós, igreja de Cristo, continuamos confiando no seu
poder e repetimos o que o salmista disse ao concluir seu cântico (v.45):
“Exaltai ao Senhor!” (hallû-yah).

SALMO 106
Quanto o Povo de Deus já Fez

O grande pregador britânico John Wesley (1703-1791) e seu irmão Charles


(1707-1788) tiveram uma mãe cuja paciência era notável. Certa vez, seu
marido a elogiou: “Eu admiro sua paciência! Por vinte vezes você falou a
mesma coisa para as crianças”. Ela respondeu: “Se eu tivesse falado apenas
dezenove vezes, teria perdido todo o meu trabalho”. Essa pequena história
demonstra que essa mãe, Susanna Wesley, tinha um objetivo a cumprir e isso
valia ser paciente e lançar sobre si mesma o custo do desgosto de ter sua
palavra desobedecida quase tantas vezes quanto pronunciada. Essa disposição
se chama “misericórdia” e, longe de promover o castigo tão rápido ele
mereça ser aplicado, visa a um objetivo final que justifica a paciência e que
administra a justiça e o amor no tratamento do rebelde.
O Salmo 106 foi escrito sob a óptica do tratamento misericordioso de Deus
a um povo que, “repetidas vezes” se rebelou contra ele, mesmo quando suas
bênçãos estavam em pleno curso de ação. Assim como os salmos 96 e 105,
este reproduz um trecho do cântico celebrado na introdução da arca em
Jerusalém (vv.47,48 cf. 1Cr 16.35,36). Contudo, o pequeno tamanho do texto
coincidente e a evidência interna do salmo de uma ocasião de exílio
(vv.46,47) não excluem a possibilidade de ter sido composto alguns séculos
depois – até mesmo durante ou depois do cativeiro babilônico (notar a
semelhança entre o v.1 e Jr 33.11). Independente disso, o enfoque do
salmista, em termos históricos, recai sobre as ações dos israelitas contra Deus
durante o período entre o êxodo e a conquista de Canaã – período semelhante
ao vislumbrado no Salmo 105. Porém, ao focalizar a ação rebelde dos
israelitas, há a evidenciação e exaltação da misericórdia com que Deus os
tratou em toda essa jornada. Assim, o salmista fornece quatro visões sobre a
misericórdia de Deus no tratamento dos seus servos.
A primeira visão é que a misericórdia de Deus gera louvores ao seu
nome (vv.1-5). O salmo é uma exaltação a Deus (v.1): “Exaltai ao Senhor!
Celebrai ao Senhor, pois ele é bom, pois a sua misericórdia dura para
sempre” (hallû-yah hôdû layhwh kî-tov kî le‘ôlam hasdô) – no contexto das
alianças, a palavra hebraica hesed deve ser entendida como “amor leal” ou
“lealdade”, mas como o contexto desse salmo enfatiza o tratamento paciente
e bondoso de Deus com pessoas que mereciam punição, o sentido de
“misericórdia” suplanta o de lealdade à aliança. A visão dessa misericórdia,
portanto, é o que leva o salmista a conclamar seus pares ao louvor. Apesar de
encarecer a atitude submissa e obediente dos servos do Senhor (v.3), o
enfoque reside em situações adversas nas quais o povo necessita de um
tratamento bondoso que reverta as consequências das suas decisões erradas
(v.4): “Lembra-te de mim, ó Senhor, ao ser amável com teu povo. Visita-me
com a tua salvação” (zokrenî yhwh birtsôn ‘ammeka poqdenî bîshû‘ateka).
Vale notar que o salmista louva o Senhor por sua misericórdia não apenas por
ser ela um atributo louvável, mas pelos benefícios que os adoradores têm da
sua aplicação sobre eles (v.5): “Para que eu veja a prosperidade dos teus
escolhidos, para que eu me alegre com a alegria do teu povo e para que eu me
glorie com a tua herança” (lir’ôt betôvat behîreyka lismoah besimhat gôyeka
lehithallel ‘im-nahalateka).
A segunda visão é que a misericórdia de Deus evita a imediata
destruição dos pecadores (vv.6-12;19-23;28-31). Os vv.6-42 contêm uma
mescla de dois tipos de resposta de Deus – perdão e disciplina – a um único
tipo de ação dos homens – rebeldia. Dispostas de modo intercalado, elas
evidenciam como o Senhor administra misericordiosamente seu amor e sua
justiça. O primeiro grupo de respostas divinas mostra o perdão de Deus e
seus benefícios imerecidos. O salmista inicia esse trecho com uma confissão
de ordem nacional (v.6): “Nós pecamos como nossos pais. Nós nos
pervertemos. Nós agimos mal” (hata’nû ‘im-’avôteynû he‘ewînû hirsho‘nû).
Tal declaração não surge desprovida de fatos que a comprovem. O primeiro
fato é a ingratidão de Israel, diante da maravilhosa libertação do Egito, ao
murmurar duramente às margens do mar Vermelho (v.7 cf. Ex 14.11,12).
Nesse caso, a misericórdia de Deus, em lugar de consumi-los, salvou-os mais
uma vez por meio de feitos ainda maiores como a abertura do mar para que o
atravessassem em segurança (vv.8,9 cf. Ex 14.21,22) e a destruição do
poderoso exército inimigo (vv.10-12 cf. Ex 14.23-28). O segundo fato é o
rápido abandono de Deus ao fazerem para si um bezerro de ouro para, aos pés
do monte Sinai – aqui chamado Horebe –, renderem-lhe adoração (vv.19-22
cf. Ex 32.1-6). Deus os poupou da destruição, atendendo ao pedido de Moisés
para que os perdoasse (v.23 cf. Ex 32.11-14). O terceiro fato foi a
participação do culto de Baal-Peor, comendo dos seus sacrifícios e se
deitando com as mulheres midianitas (vv.28,29 cf. Nm 25.1-3). Mesmo que
um grande número de israelitas tivesse se desviado, o Senhor aceitou a
fidelidade de um único israelita como propiciação e apaziguamento da sua ira
(vv.30,31 cf. Nm 25.6-11).
A terceira visão é que a misericórdia de Deus não anula a justiça divina
contra o mal (vv.13-18;24-27;32-42). O segundo grupo de respostas à
rebeldia do seu povo mostra que Deus, mesmo sendo misericordioso e
amoroso, não se deixa zombar e encarece sua santidade por meio da
disciplina do erro. O primeiro fato apresentado para corroborar tal visão não é
especificado com uma ocasião em especial, mas com uma atitude ingrata a
respeito do que tinham e cobiçosa do que não tinham (v.13). A punição de
Deus veio de modo peculiar ao conceder exatamente o que cobiçavam (v.14)
– a citação do resultado negativo da concessão parece identificar o evento
como a murmuração e o clamor dos israelitas pelas comidas que tinham no
Egito, quando eram escravos (Nm 11.4,33,34). O segundo fato é a revolta de
Corá, Datã e Abirão contra a liderança de Moisés e, obviamente, do próprio
Deus (v.16 cf. Nm 16.1-3). O castigo se abateu sobre eles quando o Senhor
fez a terra se abrir e tragá-los, juntamente com suas famílias, e quando enviou
um fogo que consumiu os rebeldes (vv.17,18 cf. Nm 16.31-38). O terceiro
fato foi a negação de seguirem avante para a terra da promessa devido ao
relatório ruim de dez dos doze espias que percorreram Canaã (vv.24,25 cf.
Nm 14.1-4). O Senhor impediu aquela geração de possuir a terra da promessa
e os fez morrer no deserto (v.26 cf. Nm 14.20-23) – além disso, o salmista se
lembrou dos estatutos da lei que previam desterro diante desse tipo de pecado
(v.27 cf. Lv 26.33; Dt 28.37,64,65).
O próximo fato ocorreu em Meribá, quando a murmuração chegou a um
nível extremo, produzindo também em Moisés uma atitude negativa (v.32 cf.
Nm 20.2-11). O juízo veio pela vindicação do nome do Senhor e pela
proibição de Moisés entrar na terra (v.33 cf. Nm 20.12,13). Finalmente, o
salmista cita a desobediência do povo em exterminar as nações cananitas e
em se misturar a elas e à adoração pagã (vv.34-39 cf. Jz 1.19,21,27-35). A
punição veio na forma de opressões pela mão de seis povos ao redor (vv.40-
42) – os opressores foram os arameus (Jz 3.7-11), os moabitas (Jz 3.12-30),
os filisteus (Jz 3.31;13 – 16), os cananeus (Jz 4 – 5), os midianitas (Jz 6 – 8) e
os amonitas (Jz 10.6 – 12.7). Mesmo disciplinando o povo pelos seus
pecados, a misericórdia de Deus fica patente porque o resultado final não foi
a destruição total do povo, mas o desencorajamento de manterem a
obstinação e a extinção de diversos rebeldes, como uma amputação da parte
doente a fim de salvar o corpo.
A última visão é que a misericórdia de Deus promoverá a restauração
do seu povo (vv.43-48). O último parágrafo do salmo começa com um
vislumbre triste no que tange ao modo ingrato e resistente de Israel tratar a
Deus (v.43): “Muitas vezes ele os salvou, mas eles se rebelaram em seus
desígnios e se arruinaram com sua iniquidade” (pe‘amîm ravvôt yatsîlem
wehemmâ yamrû ba‘atsatam wayyamokû ba‘aônam). Não obstante, a
misericórdia divina fez com que o Senhor lhes ouvisse as orações e
permanecesse fiel às promessas que fez (vv.44,45). Mesmo ao enviar parte
deles para o exílio, sua boa mão os acompanhou a fim de preservá-los (v.46).
É olhando para esse tratamento gracioso que o salmista clama por um retorno
completo dos israelitas à terra da promessa (v.47): “Salva-nos, ó Senhor,
nosso Deus, e reúna-nos de entre os povos a fim de celebrarmos o teu santo
nome e nos gloriarmos no teu louvor ” (hôshî‘enû yhwh ’elohênû
weqavvetsenû min-haggôyim lehodôt leshem qodsheka lehishtavveah
bithillateka). O clamor do salmista não para no aspecto político da
restauração do seu povo, mas mantém a esperança de uma restauração
espiritual que faça com que a nação sirva e adore ao seu Deus (v.48):
“Bendito é o Senhor, Deus de Israel, de eternidade a eternidade! E todo o
povo diga: ‘Amém! Exaltai ao Senhor!’” (barûk-yhwh ’elohê yisra’el min-
ha‘ôlam we‘ad ha‘ôlam we’amar kol-ha‘am ’amen hallû-yah).
Quanta coisa má Israel fez como resposta à bondade de Deus! Na verdade,
olhando para a história como um todo, podemos também dizer: “Quanta coisa
ruim a igreja de Cristo já fez, tornando muitas vezes o nome de Deus
desprezível diante do mundo!”. Mesmo assim, a misericórdia do Senhor nos
acompanha da mesma maneira como acompanhou o povo de Israel. Deus
também nos perdoa e nos livra do mal – incluindo a extinção da igreja, já que
tantas vezes ela foi perseguida com esse propósito. E apesar da sua
misericórdia, o Senhor nunca deixou de disciplinar seu povo a fim de o
afastar do pecado e o livrar da apostasia. Não é coincidência que também
nutrimos a esperança de uma reunião futura, o ajuntamento de todos os
crentes em um estado de glorificação. É por isso mesmo que, agora, enquanto
ainda somos peregrinos no deserto do mundo, devemos compartilhar com o
salmista a sua visão sobre como se deve servir a Deus (v.3): “Felizes são os
que guardam a retidão e praticam a justiça em todo tempo” (’asrê shomerê
mishpat ‘oseh tsedaqâ bekol-‘et).

SALMO 107
As Lições que Aprendemos

Certa vez, ouvi o relato sobre uma reunião realizada por irmãos de outra
denominação, cujos membros eu conhecia, que, diante da chegada das
planejadas férias do pastor, buscavam a organização do pessoal para ajudar
nos cultos. A proposta era que cada irmão assumisse a responsabilidade por
algo a fim de que os trabalhos diários daquela igreja não sofressem nenhuma
ruptura com a ausência do seu líder. Enquanto cada um se propunha a
assumir uma tarefa, um recém-convertido disse a todos: “Os irmãos sabem
que eu sou crente há pouco tempo e que eu ainda sei muito pouco. Mas o
pouquinho que eu aprendi usarei para ajudar: um ‘aleluia’... um ‘glória a
Deus’...”. O que esse homem quis dizer foi que, apesar do pequeno
conhecimento que possuía, seu coração estava disposto a ajudar e a servir ao
Senhor.
O Salmo 107 é também fruto de lições aprendidas, mas não por pessoas
inexperientes e que ainda conhecem pouco o Senhor. Ao contrário, trata de
lições aprendidas pela exposição da palavra do Senhor e pela experiência de
se ver abatido pela maldade de outros homens, pelas intempéries da natureza
e pela desobediência aos ensinos de Deus. Contudo, uma peculiaridade
dessas lições é que elas foram aprendidas por gente que Deus poupou da
morte e libertou de destinos funestos. Por isso, o salmo é dirigido a pessoas
que o salmista nomeia (v.2) como “redimidos do Senhor, os quais ele
resgatou da mão do inimigo e reuniu de entre as terras” (ge’ûlê yhwh ’asher
ge’alam mîyad-tsar ûme’aratsôt qivvetsam) – nesse texto, a palavra
“redimidos” não tem uma conotação espiritual como no Novo Testamento,
mas aponta para pessoas que foram libertas de males temporais como
escravidão, exílio e morte. Ao citar um retorno do exílio, é óbvio que surge
na mente do leitor a ocasião do retorno do cativeiro babilônico, mas o
salmista parece ter em mente situações diversas, pois diz que a reunião dos
seus irmãos se deu “do Leste e do Oeste, do Norte e do mar” (mimmizrâ
ûmimma‘arav mitsafôn ûmîyam). A esses, o salmista conclama a proclamar a
lição que aprenderam: que Deus é bondoso e que sua misericórdia sempre os
acompanha (v.1).
O salmo dispõe quatro lições aprendidas por esses redimidos – e por tantos
quantos chegaram a saber do que lhes ocorreu. Tais lições são separadas por
duas frases que se repetem ao longo do salmo, marcando cada trecho como
uma unidade definida. Esses trechos iniciam com a descrição dos sofredores
de Israel, seguido pelo fato de Deus ter-lhes atendido as súplicas (v.6): “Mas,
na sua angústia, eles clamaram ao Senhor e ele os livrou das suas tribulações”
(wayyits‘aqû ’el-yhwh batsar lahem mimmetsûqôtêhem yatsîlem) – os
vv.13,19,28 repetem a mesma ideia com pequenas variações de palavras
hebraicas sinônimas. Depois de cada uma dessas afirmações da resposta de
Deus, o salmista especifica a ação libertadora do Senhor e proclama outra
frase que se repete de modo idêntico a cada ciclo (vv.8,15,21,31): “Celebrai
ao Senhor por sua misericórdia e por seus maravilhosos feitos aos filhos dos
homens!” (yôdû layhwh hasdô wenifle’ôtayw livnê ’adam).
Assim, a primeira lição que os redimidos tiveram foi que Deus guia seu
povo até o destino seguro (vv.4-9). Nesse caso, o salmista parece refletir
sobre a jornada de quatro décadas de Israel no deserto da península do Sinai,
após deixar o Egito (v.4): “Eles vagaram pelo deserto, por um caminho ermo,
sem encontrar uma cidade de habitação” (ta‘û bammidbar bîshîôn derek ‘îr
môshav lo’ matsa’û). Como resultado disso, o texto afirma (v.5): “Famintos e
sedentos, desfalecia neles a sua alma” (re‘evîm gam-tseme’îm nafsham bahem
tit‘attaf). Sabe-se que o cuidado do Senhor no deserto os sustentou, mas não
como o modo maravilhoso com o qual os trataria na terra da promessa ao lhes
prover com frutos maravilhosos da terra (Lv 20.24; Dt 28.8; Js 24.13) e com
chuvas na hora certa que lhes produzisse fartura do que comer e do que beber
(Lv 26.4; Dt 11.14). Por isso, o Senhor os guiou com mão poderosa até a terra
da sua devida morada (v.7): “Ele os guiou por um caminho reto a fim de
chegarem à cidade de habitação” (wayyadrîkem bederek yesharâ laleket ’el-‘îr
môshav) – “caminho reto” aqui não enfatiza o trajeto em si, mas a ideia da
proteção de Deus durante a jornada e sua intenção final de conduzi-los ao
bom destino. O resultado foi serem providos da segurança e dos víveres
necessários ao seu bem-estar (v.9).
A segunda lição dos redimidos foi que Deus livra seu povo da opressão
(vv.10-16). O salmista se refere, a essa altura, a israelitas que enfrentaram
uma realidade tão terrível que era como se vivessem na companhia da morte
(v.10), chamando-os de “aqueles que se assentaram na escuridão e às sombras
da morte” (yoshvê hoshek wetsalmawet). Essa linguagem figurada cede,
então, lugar para uma descrição mais clara que revela a escravidão no exílio
infligida por outros povos: “Prisioneiros da opressão e [postos] à ferro”
(’asîrê ‘anî ûvarzel) – “ferro” aqui pode ser uma referência a correntes e
algemas que detêm um cativo ou a armas de ferro que os inimigos utilizam
para ameaçar e deter os presos. Nesse cativeiro, causado pelo próprio pecado
do povo (v.11), os israelitas se viram em grande sofrimento, entregues aos
inimigos, sem ter qualquer esperança de serem resgatados por seus irmãos
(v.12): “Eles caíram e não havia quem os socorresse” (koshlû we’ên ‘ozer).
Mas Deus, no uso da sua misericórdia (v.14), “tirou-os da escuridão e da
sombra da morte e arrebentou as suas algemas” (yôtsî’em mehoshek
wetsalmawet ûmôserôtêhem yenatteq). Na verdade, o Senhor parece ter
abatido com mão poderosa o povo que os escravizava (v.16) – deve-se notar
que, para haver libertação, há a destruição do que causa a prisão.
A terceira lição foi que Deus protege seu povo da própria tolice (vv.17-
22). Os alvos da atuação de Deus, dessa vez, são pessoas consideradas tolas
por sofrerem um juízo divino em decorrência dos seus pecados (v.17): “Os
insensatos que foram afligidos devido aos seus caminhos de transgressão e às
suas iniquidades” (’ewilîm midderek pish‘am ûme‘aônotêhem yit‘annû).
Nesse caso, a aflição parece ter vindo sobre eles na forma de doenças que
lhes tiraram completamente o apetite e pelas quais passaram a definhar quase
até a morte (v.18): “Eles tiveram repugnância de toda comida e chegaram à
beira da morte” (kol-’okel teta‘ev nafsham wayyaggî‘û ‘ad-sha‘arê mawet) –
isso ocorre certas vezes quando alguém é acometido por chagas e dores (Jó
33.19,20). A esses (v.20), o Senhor “enviou sua palavra e os curou, livrando-
os, assim, da cova que havia para eles” (yishlah devarû weyirpa’em wîmallet
mishahat hayyatam). Fica patente, nesse livramento que tem como base a
misericórdia divina, seu caráter disciplinador e supressor da tolice que leva ao
pecado.
A quarta lição que os redimidos tiveram foi que Deus guarda seu povo
quando está diante da morte (vv.18-32). Essa seção fala de homens cujo
perigoso trabalho colocava suas vidas em constante risco (v.23): “Aqueles
que descem ao mar nos navios, os que trabalham na vastidão das águas”
(yôredê hayyam ba’onîyôt ‘osê melo’kã bemayim ravvîm). Segundo o salmista,
o poder do Senhor que controla a natureza não era novidade (v.24). Em meio
à sua profissão, eles já estiveram em situações de grandes tempestades (v.25)
nas quais eles perderam a esperança de sobreviver (v.26): “Subiram aos céus,
desceram às profundezas. Na calamidade suas almas se derreteram” (ya‘alû
shamayim yerdû tehômôt nafsham bera‘â titmôgag). Esse movimento de
“sobe e desce” descreve o tamanho das vagas no mar revolto sobre as quais o
navio flutuava com dificuldade, de modo que o medo tomou conta deles –
outra possível tradução para esse resultado da tempestade é que “seus
estômagos se reviraram em meio ao transtorno”. Antes que viessem a
perecer, o Senhor lhes ouviu os clamores (v.29) e “apaziguou a tempestade
[tornando-a] uma brisa suave e suas ondas se aquietaram” (yaqem se‘arâ
lidmamâ wayyeheshû gallêhem). A ação libertadora foi levada a cabo por
Deus, acompanhando os marinheiros em segurança até o porto (v.30): “E os
conduziu até o porto desejado por eles” (wayyanhem ’el-mehôz heftsam).
Assim como nos casos anteriores, esse é um grande motivo de louvor
(vv.31,32).
Depois de citar essas quatro libertações, o salmista alista uma série de ações
benéficas do Senhor para redimir seu povo das suas tribulações e para
discipliná-los a fim de corrigir seu mau caminho (vv.33-42). Com isso em
mente, o escritor do salmo conclama cada um a ser sábio na análise desses
dados para saber distinguir a misericórdia de Deus em meio às circunstâncias
(v.43): “Quem é sábio observe essas coisas e considere as misericórdias do
Senhor” (mî-hakam weyishmar-’elleh weyitbônenû hasdê yhwh).
Está aqui uma ótima oportunidade de fazermos o mesmo: distinguir a
misericórdia de Deus sobre nossas vidas. O Senhor também guia sua igreja
até seu destino proveitoso quando ela jaz na ignorância sobre o futuro. Ela
também foi liberta de um jugo de escravidão, a escravidão da morte e do
pecado. O Senhor, por amor aos seus servos, também disciplina sua igreja
para que ela não ande na tolice dos seus desejos e cobiças, afastando-se dos
ensinos do seu mestre. E também é verdade que o Senhor tem guardado sua
igreja da destruição quando, ao longo dos séculos, seus inimigos se levantam
como ondas assassinas a fim de abatê-los. A lição que os israelitas
aprenderam, ao longo da sua história, sobre a misericórdia de Deus, também
foi ministrada à igreja. É por isso mesmo que é tão atual para a igreja de
Cristo a ordem repetida tantas vezes no salmo: “Celebrai ao Senhor por sua
misericórdia e por seus maravilhosos feitos aos filhos dos homens!” (yôdû
layhwh hasdô wenifle’ôtayw livnê ’adam).

Salmo 108
Louvor a Deus em Tempos Difíceis

É dito que uma refeição não é feita apenas pela comida, mas também pelo
ambiente em que as pessoas se alimentam. A verdade é que as horas de
refeição podem ser ocasiões para todo tipo alegre de comunicação e de
aprendizado, um momento de grata comunhão entre os participantes da mesa.
Nesse sentido, uma comida ruim pode ser redimida por uma conversação
alegre, grata e construtiva, mas uma boa comida pode ser irremediavelmente
arruinada por uma má conversação. O que esse pensamento pretende revelar
é que, até em momentos difíceis, é possível se manter uma atitude positiva
que trará muitos benefícios. Desdobrando essa lógica para nossa vida diária
com Deus, a gratidão que temos por tudo que ele nos fez, faz e fará pode
transformar os momentos mais difíceis da vida em ocasiões de sincera
adoração e de profundo louvor ao nosso Senhor.
O Salmo 108, que revela essa disposição no salmista, é a união de dois
trechos de outros salmos. Os vv.1-5 são referentes ao Sl 57.7-11, enquanto os
vv.6-13 são a reprodução do Sl 60.5-12. Os dois salmos que agem como fonte
para o Salmo 108 também pertencem a Davi e ajudam a mostrar o que o
compositor tinha em mente ao compilá-los. O Salmo 57 foi escrito quando
Davi fugia de Saul em uma caverna. O Salmo 60 foi composto quando Edom
atacou Judá enquanto Davi fazia uma campanha militar na Síria, a cerca de
500 km de Jerusalém. Nos dois casos Davi esteve para ser atingido
definitivamente e o Senhor o salvou, revertendo parcialmente a situação. Por
isso mesmo, o rei, provavelmente diante de outra libertação divina que não é
possível captar por esse salmo, toma dois trechos já conhecidos do povo para
cantar um salmo de agradecimento e louvor a Deus por sua presença e
proteção junto aos seus, ainda que tivessem certos problemas com que lidar.
Informações mais específicas sobre a contextualização e aplicação de cada
versículo devem ser pesquisadas nos livros de comentários dos salmos 57 e
60. Sob o enfoque do Salmo 108, ou seja, da editoração feita por Davi,
observaremos quatro razões para louvarmos a Deus em tempos de
dificuldades.
A primeira razão do louvor ao Senhor nas dificuldades é a atuação de
Deus conforme suas promessas (vv.1-4). Davi fornece o caráter do seu
sentimento ao iniciar o salmo com um trecho que fala da sua segurança em
Deus (v.1): “Meu coração está firme, ó Deus” (nakôn livvî ’elohîm). E essa
firmeza imediatamente o leva ao louvor: “Cantarei e farei músicas a ti com
todo o meu ser” (’ashîrâ wa’azammerâ ’af-kevôdî). Tal louvor é descrito
como uma atividade a ter início pela manhã (v.2), subentendendo sua
continuidade ao longo do dia por meio de tudo quanto é feito. Seu desejo é
que sua gratidão tenha certa abrangência e vá além dos seus próprios muros
anunciar as grandezas do Senhor a outros (v.3). Resta-nos saber que razão tão
maravilhosa pode motivar um louvor tão efusivo e sincero. A resposta é
apresentada logo a seguir (v.4): “Pois chega acima dos céus a tua
misericórdia e até as nuvens a tua fidelidade” (kî-gadol me‘ad-shamayim
hasdeka we‘ad-shehaqîm ’amitteka). Em primeiro lugar, o salmista se vê
como alguém que nada merece de Deus, pelo que os benefícios celestes lhe
sobrevêm por pura “misericórdia de Deus”, atributo este anunciado pelo
próprio Senhor em sua revelação escrita. Em segundo lugar, Davi olha para
as promessas de Deus como fonte da sua segurança pessoal, visto que a
“fidelidade de Deus” não permite que ele mude seus planos, nem cancele
suas promessas – uma dessas promessas foi a de ele vir a reinar sobre Israel
(1Sm 16.1,12,13).
A segunda razão do louvor é a resposta de Deus às nossas orações
(vv.5,6). Davi mais uma vez oferece a Deus sua adoração reconhecendo a
grandeza divina acima de tudo e de todos (v.5): “Seja elevado acima dos
céus, ó Deus” (rûmâ ‘al-shamayim ’elohîm). Ele completa a ideia e deseja
que a glória que ele vê por intermédio das Escrituras e da própria experiência
de andar com Deus seja, também, vista por toda parte: “E sobre toda a Terra
esteja a tua glória” (we‘al kol-ha’arets kevôdeka). O fato de Davi desejar que
a glória de Deus esteja sobre toda a Terra não é apenas um tipo de louvor,
mas a transição perfeita para a oração que apresentará a seguir. Na verdade,
ele ora para que a glória de Deus seja vista ao responder seu clamor por
libertação pessoal e do seu povo: (v.6): “Liberta-nos pela tua destra e
responda-me para que os teus amados possam ser livres” (lema‘an yeholtsûn
yedîdeyka hôshî‘â yemîneka wa‘anenî). Quando Davi escreveu isso pela
primeira vez, ele tinha obtido uma libertação parcial – mas fundamental – e
ainda aguardava uma atuação mais ampla do Senhor. Desse modo, ele já viu
sua oração ser atendida e espera que todo o propósito de Deus seja cumprido
em resposta aos seus clamores. A própria constância na oração de Davi, vista
nesse salmo e ao longo de vários livros do Antigo Testamento, aponta para o
fato de que ele confiava nas respostas porque conhecia Deus e
frequentemente era atendido por ele. Por isso, em sua experiência, o clamor e
o louvor andam juntos.
A terceira razão é o caráter santificador das ações de Deus (vv.7-9). Davi
faz menção de algo que Deus lhe falou em resposta à sua oração por ter
Edom atacado Judá enquanto ele estava bem ao norte de Israel (v.7): “Deus,
em sua santidade, disse” (’elohîm diber beqodshô). “Santificar” significa
separar. É o que esses versículos mostram. Além de separar um povo para si,
o fato de Deus atuar na santificação desse povo vai além de escolhê-lo e
alcançá-lo. Deus o preserva em um mundo hostil aos servos de Deus e
subjuga aqueles que se empenham em destruí-los. Nesse caso, promover a
santificação envolvia garantir aos israelitas a posse da terra que, logo após
sua conquista por Josué, foi “medida” e “dividida” a fim de ser dada às tribos
e famílias de Israel: “Eu exultarei, pois dividirei Siquém e medirei o vale de
Sucote” (’e‘lozâ ahalleqâ shekem we‘emeq sukôt ’amaded). Aquilo que Deus
preparou para o seu povo é dado efetivamente a ele, a quem o Senhor não
apenas protege, mas exalta (v.8). Por outro lado, a ação santificadora de
Deus, ainda que não elimine por hora os seus inimigos, os contem em sua
ação maléfica contra seu povo, além de guardar um tempo para puni-los de
modo pleno (v.9): “Moabe é o meu lavabo; sobre Edom jogarei a minha
sandália; sobre a Filístia eu cantarei vitória” (mô’av sîr rahtsî ‘al-’edôm
’ashlîk na‘alî ‘alê-peleshet ’etro‘a‘). Ver o Senhor, contra as expectativas
humanas, preservar seu povo e vencer seus inimigos é um grande motivo de
louvor.
A última razão do louvor ao Senhor é a certeza das vitórias que Deus nos
dará (vv.10-13). Davi lança mão, para escrever o final do salmo, de um
trecho que fazia referência à impossibilidade que encontrou de dominar as
fortificações edomitas no alto dos seus montes e dentro das suas cavernas
(v.10). Segundo o salmista, a razão da vitória parcial, ou seja, de conseguir
repelir o ataque edomita a Judá, sem conseguir, contudo, conquistá-los
totalmente a fim de impedir possíveis ataques futuros, era o fato de Deus não
tê-los feito vencer plenamente (v.11): “Ó Deus, acaso tu não nos rejeitaste?
Por isso, ó Deus, não sais com nossos exércitos” (halo’-’elohîm zenahtanû
welo’-tetse’ ’elohîm betsiv’ôteynû). Isso faz com que o salmista permaneça em
oração, sabendo que no meio do silêncio de Deus nenhuma providência
meramente humana pode ter sucesso (v.12): “Socorra-nos do adversário, pois
nulo é o socorro do homem” (havâ-lanû ‘ezrat mitsar weshawe’ teshû‘at
’adam). Apesar de o quadro não parecer até aqui muito bonito ou otimista,
isso não abala o rei de Israel. Ao contrário, ele tem seus olhos, por meio da
fé, voltados para frente. Ele conhece o Senhor e suas promessas. Baseado
nisso, não importa o que as circunstâncias digam, ele sabe que Deus os levará
em frente rumo aos destinos que previu e prometeu (v.13): “Em Deus nós
faremos proezas, pois ele investirá contra nossos adversários” (be’lohîm
na‘aseh-hayil wehû’ yabûs tsareynû). Essa certeza curva o salmista em
adoração e gratidão ao Senhor bondoso e soberano.
Olhando para todos esses motivos de se render verdadeira adoração ao
nosso Deus, não é difícil entender os textos que Davi selecionou para compor
esse hino de gratidão. Na verdade, nós, igreja de Cristo e povo de Deus,
também temos as mesmas razões para elevar nossos louvores aos céus. Nosso
maravilhoso Deus nos prometeu a salvação pela fé (Jo 3.36; Rm 1.16,17), a
segurança de permanecermos salvos (Rm 8.1,37-39), a sua presença constante
conosco (Mt 28.20) e a direção para nossa vida (Jo 16.13). Ele também está
atento às nossas orações (Fp 4.6), auxiliando-nos até mesmo na imperfeição
dos nossos clamores (Rm 8.26). É ele quem nos preserva (Jo 17.14,15), que
contém os ímpios para que não abatam sua igreja (Mt 16.18) e que tem
reservado um tempo em que punirá seus inimigos (Mt 13.49,50). Finalmente,
é ele quem nos garante a vitória (Rm 8.37) e que nos capacita a fazer o que
seria impossível para nós (Rm 12.3-8). Que razões mais nós precisaríamos
para louvar o Senhor glorioso, mesmo quando atravessamos dificuldades,
mas vemos sua mão nos guiando e fortalecendo?

SALMO 109
Lições Aprendidas no Meio da Indignação

Um dos grandes heróis dos teólogos reformados é João Calvino (1509-


1564). Dono de uma inteligência ímpar e de uma capacidade de sintetizar e
relacionar a teologia de maneira brilhante, ele representou um grande avanço
na definição do que é a Sã Doutrina para nós e no modo como a igreja deve
tratar as Escrituras. A igreja de hoje deve muito a esse homem que se
colocou como um instrumento nas mãos de Deus. Contudo, está ligado a ele
um dos momentos mais constrangedores da Reforma Protestante: a morte de
Serveto. Miguel Serveto Conesa (ca. 1511-1553), importante médico
espanhol que rejeitou a doutrina da Trindade e defendeu uma visão não
ortodoxa da encarnação de Cristo, foi condenado em Genebra à morte na
fogueira por suas heresias. A situação em si é bem mais complexa do que
uma simples citação ou discussão possam sugerir, mas, ainda assim, defender
a Sã Doutrina à custa da vida humana não parece ser um exemplo elogiável a
ser imitado por nós. Sempre que esse episódio é relembrado, uma névoa paira
sobre a figura de João Calvino. Porém, o outro lado da moeda é que isso não
invalida sua obra como teólogo e como reformador.
Assim como esse momento histórico constrangedor que marcou o período
da Reforma, o Salmo 109 é um dos mais difíceis de se lidar de todo o saltério.
Isso se dá porque o salmista, em meio a uma situação de extremo aperto,
expressa seus mais profundos sentimentos de indignação contra a perseguição
injusta e não provocada que sofria. Esse é, por excelência, um ótimo exemplo
de “salmo imprecatório”. Os vv.6-20 possuem um conteúdo tão agressivo que
muitos tradutores e exegetas se esforçam para colocá-lo na boca dos
perseguidores em vez de na pena de Davi. Entretanto, essa solução causa
dificuldades piores. O fato é que, como expressão dos sentimentos e clamores
do salmista – a poesia hebraica é frequente veículo de exibição das mais
profundas emoções –, o salmo contém imprecações que também cumprem
uma função didática para nós, leitores das Escrituras (Rm 15.4). Na verdade,
a Bíblia contém muitos exemplos ruins ou no mínimo questionáveis que
também foram utilizados para nos instruir no sentido do que não fazer e por
que não se fazer. Por isso, mesmo com sua forma rude, o Salmo 109 contém
quatro importantes lições de Deus para nós.
A primeira lição é que os servos de Deus não devem agir do mesmo modo
negativo como muitas vezes são tratados (vv.1-5). O salmo foi escrito em um
momento de aflição e, consequentemente, de clamor a Deus (v.1): “Não
fiques em silêncio, ó Deus do meu louvor” (’elohê tehillatî ’al-teherash). Ao
pedir isso, Davi quer que o Senhor se manifeste nas circunstâncias que ele
atravessa. A causa do pedido – e do sofrimento – é a perseguição injusta e
cruel que ele vinha experimentando (v.2): “Pois eles abrem a boca perversa e
mentirosa contra mim. Falam de mim com língua enganosa” (kî pî rasha‘
ûpî-mirmâ ‘alay patahû dibberû ’ittî leshôn shaqer). Toda essa falsidade agia
como um adorno macabro de outra postura negativa, uma atitude irada e
violenta (v.3): “Eles me cercam com palavras de ódio e sem motivo me
hostilizam” (wedivrê sin’â sevavûnî wayyillahamûnî hinnam). Algo notável
nessa frase é a explicação de que esse ódio todo não foi provocado, mas
existia “sem motivo”.
Para que não se diga que Davi está arbitrando em causa própria ao avaliar
desse modo a situação, ele apresenta seu procedimento para com seus
perseguidores (v.4a): “Em troca do meu amor, eles me acusam”
(tahat-’ahavatî yistenûnî). Note-se que Davi é perseguido por pessoas a quem
ele beneficiava e demonstrava amor, motivo pelo qual o pecado daqueles
homens era ainda mais repreensível – o v.5 enfatiza esse disparate. Assim,
Davi tinha não apenas os meios, mas as razões e a motivação para
descarregar toda sua indignação contra aqueles perversos. E ninguém poderia
dizer que, se assim ele o fizesse, seria “sem motivo”. Entretanto, ainda em
meio à dor causada injustamente, Davi suprime seus atos de vingança e
recorre a Deus (v.4b): “Mas [em lugar disso], eu oro” (wa’anî tefillâ) – essa
atitude nos lembra a do próprio Senhor Jesus Cristo: “Pois ele, quando
ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças,
mas entregava-se àquele que julga retamente” (1Pe 2.23).
A segunda lição é que a maldade dos ímpios não passa despercebida por
Deus e receberá a devida punição (vv.6-20). Nesses versos, Davi roga a Deus
que traga aos seus injustos perseguidores as mais severas punições. Ele pede
que Deus levante contra eles o mesmo mal que eles produziam (v.6), que as
orações deles não fossem atendidas (v.7), que eles morressem em breve (v.8),
que suas famílias sofressem com sua morte (vv.9,10), que seus bens lhes
fossem tomados (v.11), que não encontrassem misericórdia em parte alguma
(v.12), que sua linhagem perecesse (vv.13,15), que Deus não lhes perdoasse
os pecados (v.14-16) e que fossem amaldiçoados pelo Senhor (v.17-20). Que
palavras duras!
É bem difícil olhar com naturalidade para esses pedidos do salmista,
principalmente sabendo como Cristo nos orientou a amar os inimigos (Mt
5.44) e a pagar o mal com o bem (Lc 6.27). Entretanto, esses desejos
extremamente indignados de Davi – aos quais não somos encorajados a
imitar – estão dentro de uma esfera na qual ele clama a Deus por vingança,
mas não busca promovê-la com suas próprias mãos (vv.4,5). Assim, suas
imprecações não tiram de Deus a prerrogativa de ser o vingador do mal: “A
mim me pertence a vingança, a retribuição, a seu tempo” (Dt 32.35a). O fato
de não ser próprio dos servos de Deus desejar a ruína dos inimigos não quer
dizer que o Senhor não trará a devida punição aos pecadores. Davi mesmo,
sabendo do merecimento de punição de Joabe (1Rs 2.5,6) e de Simei (1Rs
2.8,9), tolheu-se de agir mal para com eles e lhes rendeu misericórdia.
Entretanto, no momento devido, o Senhor fez recair sobre eles todo o mal que
fizeram e, assim, foram abatidos (1Rs 2.28-46).
A terceira lição é que Deus não impede nessa vida que seus servos passem
por algumas situações de sofrimento injusto (vv.21-25). Nesse parágrafo, fica
clara a razão pela qual o salmista extrapola suas emoções. Ele clama mais
uma vez ao Senhor por socorro (v.21), apresentando sua situação (v.22):
“Pois [me sinto] pobre e desamparado e meu coração, no meu íntimo, está
traspassado” (kî-’anî ‘anî we’evyôn ’anokî welivvî halal beqirbî). Palavras
bem escolhidas para expressar uma dor aguda pela injustiça e ingratidão
lançadas sobre ele. Ele continua expondo seus sentimentos e afirma estar
sendo consumido pela dor, como se fosse uma sombra que some com o
passar do tempo ou um gafanhoto que o vento carrega (v.23).
Essa situação afetou até mesmo sua alimentação e o fez a tal ponto que ele
já havia emagrecido e enfrentava fraqueza física (v.24): “Meus joelhos
fraquejam devido ao jejum e o meu corpo se esvaiu de gordura” (birkay
koshlû mitsôm ûvesarî kahash mishamen) – não sabemos se a falta de
alimentação se dava por perda extrema de apetite devido à tristeza ou se, por
algum motivo ligado à perseguição, estava privado de alimentos. O versículo
seguinte parece favorecer a primeira possibilidade, já que o desprezo e a
zombaria têm efeitos tremendamente destruidores sobre os homens (v.25).
Contudo, apesar da situação terrível que Davi atravessava, ele não via o
Senhor ausente ou indiferente a ele, mas como alguém bondoso e fiel em
todo tempo (v.21): “Pois boa é a tua lealdade” (kî-tôv hasdeka). O amor de
Deus não depende de ele livrar seus servos de todas as aflições, mas de estar
com eles em todas as situações — boas e ruins.
A última lição é que tais situações servem para Deus sujeitar a si os seus
servos e promover a glória do seu nome (vv.26-31). O último parágrafo
também começa com clamor por socorro (v.26). Porém, um fator novo é
introduzido aqui, pois o salmista não vislumbra a partir da resposta à sua
oração apenas seu alívio pessoal, mas também a manifestação pública da
glória de Deus (v.27): “Assim eles saberão que a tua mão fez isso, que tu o
fizeste, ó Senhor” (weyed‘û kî-yodka zo’t ’attâ yhwh ‘asîtah). A atuação
divina que Davi tem em mente é semelhante ao que Deus fez no caso de
Balaão, o qual, sendo contratado para amaldiçoar Israel, teve de abençoá-lo
por mandado divino (Nm 23.8). É o que Davi parece ter em mente (v.28):
“Eles amaldiçoam, mas tu abençoas” (yeqallû-hemmâ we’attâ tevarek). Assim,
a exposição do poder de Deus, da bondade para com os seus e a justiça e
santidade no tratamento do pecado (vv.28,29) demonstrariam a glória do
Senhor.
Se esse é um benefício que Deus alça por meio do sofrimento dos seus
servos, o segundo benefício está ligado ao íntimo dos que o buscam,
tornando-os cada vez mais dependentes dele e gratos por sua misericórdia.
Por isso, o salmista garante (v.30): “Eu agradecerei muito ao Senhor com
minha boca” (’ôdeh yhwh me’od befî). Além da óbvia gratidão, a menção de o
fazer por meio da boca envolve a ideia de uma proclamação e um louvor
público, pelo que completa dizendo “e o louvarei no meio da multidão”
(ûbetôk ravvîm ’ahallennû), justamente por ser o ele protetor dos aflitos e o
punidor dos injustos (v.31).
Diante das palavras duras e do sentimento de indignação do salmista,
surgem, por meio do Salmo 109, lições importantes sobre o domínio próprio,
a oração, a dependência de Deus e a difícil atitude de não revidar os ataques.
E justamente porque tais lições nascem do meio de uma crise de indignação e
sofrimento do salmista, nenhum de nós pode dizer que, devido a situações de
especial aflição, ficamos isentos do dever de honrar o nosso Deus pela
obediência às suas palavras, pela oração constante e até pelo amor aos
inimigos. Afinal, qual de nós passou ou tem passado por uma situação pior
que a de Davi? E qual de nós pode dizer que os grandes servos de Deus eram
fiéis e obedientes somente nas horas boas?

SALMO 110
Uma Visão do Futuro

Muitos homens durante a história foram reconhecidos como “mentes à


frente do seu tempo” – alguns com justiça, outros não. Um que foi justamente
reconhecido como um visionário, vislumbrou o futuro e até abriu caminho
para inventos bem posteriores a ele foi Leonardo da Vinci (1452-1519).
Apesar de ser mais conhecido como pintor e escultor, ele era também
arquiteto e engenheiro, entre outras habilidades que possuía. Dos seus muitos
projetos, um chama a atenção pela visão bem além do seu tempo. Foi o
desenho de uma aeronave de asa espiral, chamada La Hélice, que lembra os
modernos helicópteros. Os princípios físicos são plenamente respeitados no
projeto de modo que, se fosse construída, ainda que não fosse perfeitamente
funcional – talvez ela tivesse sérios problemas de estabilidade –, seria pelo
menos viável. O projeto só não saiu do papel pela falta de um sistema de
impulso que hoje temos por meio do uso dos motores. Mesmo assim,
Leonardo da Vinci pode ser reconhecido como um visionário em sua época.
O Salmo 110 pode ter sido escrito, de certo modo, por um visionário – já
que ele escreveu sobre eventos futuros de ideais perfeitos. A diferença é que
Davi, diferente de Da Vinci, não o fez por criatividade ou por habilidade
pessoal, mas pelas promessas de Deus e por revelação do Espírito Santo (Mc
12.36). Ele, a quem foi feita a promessa de um trono perpétuo por meio de
uma dinastia que permaneceria para sempre (2Sm 7.11-17), vislumbrou o
cumprimento futuro dessa aliança. Esse é um perfeito exemplo de um salmo
messiânico, ou seja, que faz referências diretas ao Messias, o rei prometido
da casa de Davi (Mt 22.42), cuja existência é eterna e divina (Is 9.6; Mq 5.2).
Apesar de conter um texto com trechos de difícil tradução e interpretação,
esse é um salmo muito citado no Novo Testamento, contendo grande
importância teológica. Assim, dentro do vislumbre futuro de Davi, o Salmo
110 apresenta quatro visões ligadas ao Messias prometido.
A primeira visão é a de um trono divino (v.1a). Apesar de o Messias ter
sido prometido como um descendente do rei Davi, aqui o próprio rei o
descreve de modo peculiar. O salmista, pela ação do Espírito Santo (Mt
22.43,44), expõe o salmo como uma declaração de Deus ao Messias. Logo de
início, Davi o descreve não como seu filho, mas como seu Senhor (v.1a):
“Declaração do Senhor ao meu Senhor” (ne’um yhwh la’donî). Curioso como
Davi, no cargo de um rei, se coloca como súdito de um rei que lhe seria
descendente – ele o faz ao chamá-lo de “meu” Senhor. Isso somente deixa de
ser um contrassenso quando se percebe que, junto com a prerrogativa real, o
Messias também possui natureza divina, motivo pelo qual Davi o reconhece
como seu Senhor pessoal. Jesus se valeu justamente desse texto para defender
sua divindade, dizendo: “Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu
filho?” (Mt 22.45). Nesse sentido, o salmista, com a visão que tinha do
Messias, bem poderia ter dito as mesmas palavras de Tomé: “Senhor meu e
Deus meu!” (Jo 20.28). A palavra Senhor tem aqui, ao mesmo tempo, sentido
de realeza e de divindade.
A segunda visão é a de um reino conquistado (vv.1b-3). Ainda que, como
Deus eterno (Is 9.6 – “Deus forte” e “Pai da eternidade”), o Messias reina
agora e sempre sobre o universo, o texto vislumbra um tipo de reinado bem
pontual que não pode ser confundido ou diluído em seu domínio eterno sobre
tudo e sobre todos. Em primeiro lugar, esse reinado seria futuro e ainda não
era realidade nos dias em que o salmo foi escrito, pelo que Deus promete
(v.1b): “Assenta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos por
estrado para os teus pés” (shev lîmînî ‘ad-’ashît ’oyeveyka hadom leragleyka).
Além de percebermos que o Messias desfruta das mesmas prerrogativas de
Deus – assentar-se ao lado direito de um rei significava compartilhar com ele
do seu reinado, na função de um regente –, notamos que o início do seu
reinado aguardava o tempo de Deus abater e submeter seus inimigos –
observe a expressão “até que”. Desse modo, não obstante o Messias reinar
sobre a criação desde sempre, o reinado do qual Davi fez menção somente
ocorreria no futuro. Em seguida, Deus se dirige ao Messias e garante que seu
reinado partiria de Jerusalém e dominaria o mundo (v.2): “O Senhor enviará
de Sião o cetro do teu poder. Domina no meio dos teus inimigos”
(matteh-‘uzzeka yishlah yhwh mitsîyôn redeh beqerev ’oyeveyka).
Nessa ocasião, Israel se apresentará como exército para servir seu rei e por
ele lutar (v.3): “O teu povo se oferecerá voluntariamente no dia do teu poder”
(‘ammeka nedavot beyôm hêleka). “Dia do teu poder” significa o tempo em
que o Messias levará o seu poder vencendo os inimigos ao redor do mundo.
O resultado desse voluntariado é descrito em um dos trechos mais difíceis de
se traduzir de todo o salmo: “Os teus jovens, com santos ornamentos, serão
como orvalho ao nascer da alvorada” (behadrê-qodesh merehem mishhar leka
tal yalduteyka). Parece que a ideia do salmista é dizer que, como o orvalho,
que antes de nascer o Sol está por toda parte, assim o povo de Israel, como
exército de Deus, estará por todo o mundo para promover o poder do seu Rei:
“O restante de Jacó estará no meio de muitos povos, como orvalho do
Senhor, como chuvisco sobre a erva, que não espera pelo homem, nem
depende dos filhos de homens” (Mq 5.7). O que esses versículos querem
transmitir é que o Messias, quando sair a conquistar seu reino, obterá vitória
plena contra todos os inimigos em toda parte.
A terceira visão é a de um sacerdócio real (v.4). Esse é um texto que
também exige uma visão ampla das Escrituras (v.4): “O Senhor fez um
juramento e não voltará atrás: ‘Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem
de Melquisedeque’” (nishba‘ yhwh welo’ yinnahem ’attâ-kohen le‘ôlam ‘al-
divratî malkî-tsedek). Melquisedeque é apresentado como rei de Salém –
Jerusalém – nos dias de Abraão (Gn 14.18). O mesmo texto o descreve como
“sacerdote do Deus Altíssimo”. Quando Davi conquistou Jerusalém e a
tornou sede do trono israelita, ele passou a agir também como um sacerdote,
oferecendo sacrifícios e abençoando o povo junto aos sacerdotes levitas
quando a arca foi trazida a Jerusalém (2Sm 6.17,18; 1Cr 15.26–16.6). Com
isso, somos levados à compreensão de que uma das atribuições dos reis de
Jerusalém, desde os dias de Melquisedeque, era ser também sacerdotes –
prerrogativa que Davi tomou para si e transmitiu à sua linhagem. Por isso, o
livro de Hebreus confirma o sacerdócio do rei Jesus, da linhagem de Davi,
segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 5.12; 6.20). Como rei de Israel com
sede em Jerusalém (cf. v.2 – “Sião”), o Messias une em si os dois cargos, rei
e sacerdote. Como rei ele rege o mundo. Como sacerdote ele intercede pelos
seus.
A última visão é a de um tribunal soberano (vv.5-7). Aqui o Messias é
novamente nomeado como Senhor (v.5): “O Senhor, [aquele] que está à tua
direita, esmagará os reis no dia da sua ira” (’adonay ‘al-yemîneka mahats
beyôm-’affô melakîm). Esse texto é compatível com a ideia da conquista do
reino (vv.1-3). Entretanto, uma nova figura surge quando é dito que isso se
dará não apenas por um impulso imperial, mas como resultado da justiça
(v.6): “Ele julgará as nações enchendo-as de cadáveres” (yadîn baggôyim
male’ gewîyôt). Isso significa que o controle mundial exercido pelo Messias é
também a ocasião quando os pecados dos homens serão castigados. Nesse
sentido, há uma ênfase sobre o abatimento dos líderes das nações: “Esmagará
os cabeças que governam sobre a Terra toda” (mahats ro’sh ‘al-’erets ravvâ).
Seria possível traduzir essa frase como “ele esmagará cabeças por toda a
Terra”, mas, traçando um paralelo com a ação do v.5 a os “alvos” de tal ação,
é preferível compreender a palavra “cabeça” (ro’sh) como uma referência aos
“líderes”, ou aos “principais” dentre os povos. Desse modo, entende-se que
grandes e pequenos sentirão a punição de Deus devido à sua maldade e
rebeldia.
O salmo termina com a ideia de um procedimento contínuo do Messias, em
seu reinado, no sentido se levar adiante o seu poder e a sua justiça sobre toda
a Terra (v.7): “Ele beberá da torrente no caminho e, por isso, erguerá a
cabeça” (minnahal badderek yishteh ‘al-ken yarîm ro’sh). A ideia produzida
por esse texto é a de que, em meio à conquista, o Messias não desistirá do seu
intento até completá-lo. Diferente de guerreiros que se cansam e têm de
desistir da batalha (1Sm 30.9,10), ele se refrigera e continua avançando.
Quando olhamos para os evangelhos, vemos Jesus na figura de um servo
que deu sua vida para nos salvar (Fp 2.6-8; 1Pe 3.18), contrariando as
expectativas da época de assumir o trono israelita (Lc 24.21), expulsar os
romanos e conquistar a terra prometida a Abraão (Gn 15.18-21) e trazer paz
ao seu povo (Is 9.7) e ao mundo (Mq 4.1-3). Na verdade, até hoje Israel vive
sem paz, sem o domínio pleno da terra da promessa, sem o controle de
Jerusalém (cf. Lc 21.24) e sem um rei da descendência de Davi. Como Deus
não mente e sempre cumpre o que promete, é certo que a esperança do
salmista aguarda seu inevitável cumprimento. Por isso, nossa esperança
reside no retorno de Jesus a Jerusalém (Zc 14.4 cf. At 1.10,11) para, a partir
dali, trazer de volta os israelitas espalhados pelo mundo (Jr 23.5-8; Ez 36.24)
e estabelecer seu reinado sobre o mundo (Dn 2.44,45; 7.13,14). Assim, ele
aglutinará as funções de Rei divino sobre toda a criação e Rei de Israel que
governa sobre as nações. Essa esperança, além de nos encher de coragem
para continuar servindo a Deus em um mundo hostil ao Evangelho, nos dá o
senso de responsabilidade de viver de maneira compatível com o caráter do
nosso Rei. Por fim, nossa tarefa é viver hoje o que será comum ao “reino
terreno” do Messias e, desde já, expandir seu “reino espiritual” por meio do
testemunho das Boas Novas da salvação.

SALMO 111
Os Deveres dos Verdadeiros Adoradores

Um dos personagens políticos mais marcantes da história brasileira foi


Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Chefe de Estado por cerca de
dezenove anos (1930-1945 e 1951-1954), instituiu leis trabalhistas que lhe
renderam o apelido de “pai dos pobres” – termo cunhado a partir da bondade
de Jó para com os necessitados (Jó 29.16). Em 2010, uma lei federal garantiu
o direito de seu nome ser inscrito no Livro dos Heróis da Pátria que se
encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília, ao lado de
personalidades como Dom Pedro I, marechal Manoel Deodoro da Fonseca e
Tiradentes. Apesar de Getúlio Vargas ter morrido na década de 1950, mais de
meio século depois ainda há partidos políticos que se apresentam como seus
herdeiros políticos. Na verdade, há pessoas que, apaixonadamente, defendem
o ex-presidente e se denominam “getulistas”. De algum modo, esses ainda se
sentem devedores ao político gaúcho. A lembrança do seu legado as move a
tomar atitudes que, por um lado, transmitem um grau de politização e, por
outro, certo fanatismo. De qualquer modo, pouca gente que viveu em seus
dias conseguiu ficar indiferente a ele.
Se um político polêmico pode causar tanto impacto nas pessoas, quanto
mais o próprio Senhor Deus, eterno e perfeito soberano! Entretanto, o que
impele os adoradores do Senhor ao seu louvor não é uma personalidade
carismática, uma política agradável ao povo ou um partidarismo regionalista.
Nada disso! O que o Salmo 111 enfatiza é que a admiração dos seguidores do
Deus verdadeiro vem da observação das suas obras, dos seus atributos e das
suas palavras. Portanto, expondo essas qualidades louváveis de Deus, o
salmista acaba por exemplificar quatro deveres dos verdadeiros servos.
Em primeiro lugar, os servos de Deus devem adorá-lo publicamente (v.1).
Esse é um salmo de louvor. Assim como os salmos 112 e 113, seu início se
dá com a declaração do objetivo central do escritor (v.1): “Exaltai ao
Senhor!” (hallû yah). Porém, esse não é um desejo recluso ou tímido. Em
lugar disso, há um grande anseio por se efetivar o louvor ao Senhor Deus
diante de todos – escrever um salmo para ser cantado publicamente é um dos
recursos que o escritor utiliza para externar sua adoração. Mas não é só isso:
ele também se propõe a participar do louvor público junto a outros servos:
“Celebrarei ao Senhor de todo o coração na companhia dos retos e
assembleia” (’ôdeh yhwh bekol-levav besôd yesharîm we‘edâ). Não somente o
público aqui mencionado – homens “retos” – como também a ocasião – a
“assembleia” era um ajuntamento do povo normalmente com intenção de
prestar culto a Deus – demonstram o reconhecimento do dever que o salmista
tinha de cumprir seu papel dentro do povo do Senhor. Por isso mesmo, ele
não se isenta de elevar sua voz publicamente e proclamar, no meio dos seus
irmãos, as glórias do Todo-poderoso.
Em segundo lugar, os servos de Deus devem atentar para suas
qualidades (vv.2-6). Esse é um trecho em que há uma grande ênfase nos
feitos do Senhor. Entretanto, eles agem como agentes reveladores do seu
caráter. Seguindo essa ideia, o primeiro atributo é a supremacia do Senhor
(v.2): “Grandes são os feitos do Senhor, almejados por todos os que se
comprazem neles” (gedolîm ma‘asê yhwh derûshîm lekol-heftsêhem). Além de
mostrar que as obras de Deus são incomparáveis, o salmista acrescenta aos
feitos de Deus as qualidades (v.3a) de “majestade e glória” (hôd-wehadar),
evidenciando que o Senhor está maravilhosamente acima de tudo que
conhecemos. Outro atributo divino é a justiça (v.3b): “Sua justiça permanece
para sempre” (wetsidqatô ‘omedet la’ad). A afirmação sobre a perenidade do
caráter justo de Deus faz o conceito de justiça surgir em um molde perfeito e
pleno. Por outro lado, os atributos de Deus não lhe conferem apenas dureza
contra o mal, mas calor de um coração marcado por atributos como “amor” e
“misericórdia”, mostrando que essa disposição já havia produzido resultados
que seu povo jamais esqueceria (v.4): “Ele faz seus prodígios serem
memoráveis. O Senhor é gracioso e compassivo” (zeker ‘asâ lenifle’otayw
hannûn werahûm yhwh).
A “fidelidade” divina também é um atributo a ser notado e louvado, de
modo que o salmista a evidencia na provisão do Senhor (v.5): “Ele dá
sustento aos que o temem” (teref natan lîre’ayw). O ato de prover as
necessidades dos servos, além de mostrar naturalmente sua “bondade”, é
associado à fidelidade no cumprimento daquilo que prometeu: “Ele se
lembrará para sempre da sua aliança” (yizkor le‘ôlam berîtô). Finalmente, a
fidelidade de Deus nada seria caso um de seus atributos não fosse a poderosa
“soberania” (v.6): “Ele prova ao seu povo o poder dos seus feitos ao dar-lhes
a possessão das nações” (koah ma‘asayw higgîd le‘ammô latet lahem nahalat
gôyim). A posse das nações é um dos pontos ligados às alianças que o Senhor
fez com Israel. Nesse caso, o texto mostra que não basta ter a disposição de
cumprir o que foi prometido. É também preciso ter o poder de controlar e
guiar soberanamente a história a fim de cumprir o que foi dito.
Em terceiro lugar, os servos de Deus devem valorizar a sua palavra
(vv.7,8). O salmo valoriza muito as obras maravilhosas de Deus, mas não
deixa de, ao lado delas, apresentar os ensinos do Senhor como evidência das
suas perfeições e como razão de um louvor genuíno (v.7): “Os feitos das suas
mãos são verdade e justiça. Todos os seus preceitos são confiáveis” (ma‘asê
yadayw ’emet ûmishpat ne’emanîm kol-piqqûdayw). Os “preceitos” de Deus
são suas “ordens” ou “disposições”. Nos dias do salmista, essa era uma
referência à lei mosaica dada na forma de uma aliança, no Sinai. Desse modo,
o que é dito aqui é que o fato de os israelitas obedecerem as palavras de Deus
registradas por Moisés os tornava alvos de bênçãos. Eles podiam confiar que
seria bom para eles assumirem uma postura de submissão aos ensinos do
Senhor. Além do mais, a confiança que eles deveriam ter nos preceitos
divinos derivava do caráter fiel do Senhor. Por isso mesmo, eles deveriam
observar não apenas as disposições requeridas pelo Senhor, mas suas
promessas de bênçãos temporais e eternas (v.8): “Eles estão firmados para
todo o sempre, estabelecidos em verdade e retidão” (semûkîm la‘ad le‘ôlam
‘asûyim be’emet weyashar). O teor das orientações divinas são “verdade e
retidão”, assim como aquilo que leva o Senhor a cumprir o que disse. Sua
palavra provém da verdade, é verdadeira e conduz à verdade.
Finalmente, os servos de Deus devem temer seu Senhor (vv.9,10). O
salmista aponta os benefícios produzidos pela graça de Deus e, em lugar de
ser negligente por causa da libertação, sente-se temeroso diante da grande
demonstração do poder divino (v.9): “Ele enviou a redenção ao seu povo.
Decretou a sua aliança perpetuamente. Seu nome é santo e temível” (pedût
shalah le‘ammô tsiwwâ- le‘ôlam berîtô qadôsh wenôra’ shemô). Nisso tudo,
parece que o temor é o tema que ele agora quer abordar, de modo que
prossegue dizendo (v.10): “O temor do Senhor é o início da sabedoria”
(re’shît hokmâ yir’at yhwh). A palavra traduzida tradicionalmente como
“temor” (yir’ah) também significa “reverência” quando utilizada para
descrever o relacionamento do homem com Deus. Isso quer dizer que, além
de medo de ser repreendido por Deus tão poderoso, justo e santo, os servos
do Senhor também nutrem um profundo respeito e devoção por ele. Esse
misto de temor e devoção é o que produz, na vida dos crentes, ações sábias
que condizem com o ensino e com o caráter de Deus: “O bom senso está em
todos os que os praticam” (sekel tôv lekol-‘osêhem). Ao dizer “os praticam”
se faz uma referência aos “preceitos” de Deus (v.7), podendo ser entendido
“os que praticam seus preceitos”. Assim, o que se está ensinando é que a
sabedoria e o bom senso se manifestam na obediência às orientações de Deus,
as quais revelam o temor e a reverência dos servos.
Nós, como adoradores do Senhor, temos os mesmos deveres do salmista. A
dificuldade tem sido colocá-los em prática em tempos quando a igreja é
desvalorizada, como se fosse mera aplicação de uma religiosidade vazia ou
de uma característica cultural; em tempos em que não importam mais os
atributos de Deus, mas os desejos dos homens; em tempos em que as
Escrituras sofrem todo tipo de ataque, desde a negação da inerrância por vir
diretamente de Deus até seu uso ilegítimo por pessoas que deliberadamente
as distorcem a fim de atingir objetivos pessoais; e em tempos quando o temor
e a devoção a Deus passaram a ser conceitos desconhecidos. É por isso que,
mais que nunca, devemos nos voltar a Deus e à simplicidade do evangelho.
Necessitamos desenvolver as práticas da oração e da meditação na verdade.
Carecemos de um caráter que produza cada vez mais temor, arrependimento e
adoração. Precisamos, a exemplo do salmista, lembrar como somos
devedores ao nosso Deus e proclamar, com nossas vozes e com nossas vidas,
sozinhos e entre os irmãos: “Exaltai ao Senhor!” (hallû yah).

SALMO 112
A Alegria de Ser um Homem que Teme a Deus

Em 1975, Carl Hubbs, de 81 anos na época, professor emérito de Biologia


do Instituto de Oceanografia Scripps de San Diego (EUA) – um dos maiores,
mais antigos e mais importantes centros de pesquisa marinha do mundo –, foi
aplaudido longamente ao receber o Prêmio Headliner oferecido pelo San
Diego Press Club. O interessante na premiação foram as palavras do
professor ao ser condecorado: “Eu realmente não sei por que estou recebendo
isso. Tudo que eu sempre fiz foi exatamente aquilo que eu queria fazer”. O
que ele quis dizer é que não era mérito alguém ser ou fazer aquilo de que
gosta. O prêmio já está em sê-lo ou fazê-lo. Contudo, a plateia deve ter
discordado ao relembrar as contribuições que aquele homem havia feito para
o conhecimento científico e para a melhoria da vida das pessoas. Eles até
podiam concordar que ele viveu como alguém realizado por cumprir seus
desejos e objetivos, mas, dado o valor do seu legado, merecia também o
reconhecimento público.
O Salmo 112 não difere muito de alguns princípios dessa história. O
salmista anônimo olha para a vida dos servos de Deus que buscam e se
alegram com suas palavras. Apesar de receberem títulos honrosos como
“homem que teme ao Senhor” (v.1) e “retos” (v.2) – o que em si mesmo é a
melhor posição que um homem pode ter diante do criador e sustentador do
universo –, eles ainda recebem bênçãos suplementares de Deus por lhe
pertencer. É como se eles fossem premiados com uma medalha por terem
recebido outra medalha. É bênção em decorrência de outra bênção. Por isso,
o salmista olha para os abençoados servos de Deus e lhes aponta benefícios
temporais que recebem de Deus, os quais emolduram as bênçãos eternas que
lhes foram prometidas e garantidas, e o modo como eles mesmos são veículos
de bênçãos para as pessoas ao seu redor. Segundo o autor, pelo menos quatro
realidades temporais estão presentes nas vidas dos tementes.
A primeira realidade temporal ligada ao homem que teme a Deus é que ele
é alvo de muitas bênçãos (vv.1,2). Assim como no salmo precedente, há
uma exaltação a Deus. Ela é seguida pela afirmação da bem-aventurança
vantajosa ligada aos servos de Deus (v.1): “Exaltai ao Senhor! Feliz é o
homem que teme ao Senhor, o qual se compraz intensamente em seus
mandamentos” (hallû yah ’ashrê-’îsh yare’ ’et-yhwh bemitsôtayw hafets
me’od). Deve-se notar que, para o Israel dos dias do salmista, havia uma
dupla fonte de felicidade ao temer a Deus e obedecer à sua lei. Em primeiro
lugar, a sabedoria e santidade dos preceitos divinos visavam a colocar os
israelitas em comunhão com o Senhor e em pleno desfrute desse
relacionamento. Em segundo lugar, havia promessas específicas de bênçãos
pela obediência à aliança que garantiriam o bem-estar do povo na terra da
promessa (Lv 26.3-13; Dt 28.1-14). Assim, não é sem razão que os homens
que se adequavam à esperada submissão a Deus e à obediência aos
mandamentos podiam ser chamados de “felizes”. Já que no mundo antigo
uma das maiores marcas de alguém feliz e repleto de bênçãos era uma
posteridade numerosa e duradoura, o salmista apresenta esse benefício como
bênção de Deus concedida aos seus servos tementes (v.2): “A sua
descendência será poderosa na Terra. A geração dos retos será abençoada”
(givvôr ba’arets yihyeh zar‘ô dôr yesharîm yevorak).
A segunda realidade temporal é que ele impacta sua comunidade (vv.3-6).
O homem que teme a Deus não é apenas alvo de bênçãos divinas, mas
também um veículo de bênçãos para sua comunidade. Por isso, o salmista
descreve as bênçãos dos justos previstas na aliança lado a lado com seu
caráter justo que as administra (v.3): “Na sua casa há prosperidade e
abundância e a sua justiça permanece perpetuamente” (hôn-wa‘osher bevêtô
wetsidqatô ‘omedet la‘ad). Sendo assim, não há riscos de ele usar os bens que
Deus lhe concedeu para fazer o mal ou para sobrepujar e explorar seus
colegas. Em lugar disso, ele age com justiça. Ao fazê-lo, ele se torna um
exemplo em sua comunidade (v.4): “Na escuridão ele brilha uma luz para os
retos, [sendo] benigno, compassivo e justo” (zarah bahoshek ’ôr laysharîm
hannûn werahûm wetsaddîq). Esse texto aponta para a generosidade do servo
de Deus no uso dos seus bens (cf. v.5), de modo que se torna uma luz que
brilha sobre o caminho a ser seguido por outras pessoas que possuem o
mesmo caráter.
O resultado prático da sua generosidade surge quando ele, compadecido da
situação difícil de outras pessoas, lhes socorre com o necessário (v.5a): “Bom
é o homem que se compadece e que empresta.” (tôv-’îsh hônen ûmalweh). E
essa não é uma bondade somente aparente que esconde intenções
questionáveis e gananciosas, pois ele não se aproveita dessa situação para se
beneficiar com explorações (vv.5b,6a): “Ele administra seus negócios com
integridade, de modo que nunca será abalado” (yekalkel devarayw bemishpat
kî-le‘ôlam lo’-yimmôt). Esse tipo de homem é também descrito em outro
lugar como “o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita
suborno contra o inocente. Quem deste modo procede não será jamais
abalado” (Sl 15.5). O impacto positivo da vida do servo de Deus em sua
comunidade é descrito no fato de que ele é lembrado pelas pessoas com
saudades e como um exemplo a ser seguido (v.6b): “Sempre haverá
recordação do justo” (lezeker ‘ôlam yihyeh tsaddîq).
A terceira realidade é que ele não teme os revezes (vv.7,8). Isso não quer
dizer que se trate de alguém inconsequente e irresponsável. Sua coragem
também não vem de uma confiança desmedida em sua própria capacidade.
Em lugar disso, seu relacionamento com Deus, guiado pelas Escrituras, lhe
confere confiança em seu Senhor soberano (v.7): “Ele não tem medo de
notícias ruins. Seu coração está firmado, confiado no Senhor” (mishemû‘â
ra‘â lo’ yiyra’ nakôn livvô batuah bayhwh). Outra possível tradução para a
palavra “firmado” é “preparado”, transmitindo a ideia de que o servo que
conhece bem a Deus está preparado para enfrentar revezes, pois sabe que
nenhum deles é maior que o Senhor e que Deus não tem qualquer dificuldade
de efetuar o que decide fazer (Jó 42.2). Por isso, sua confiança e falta de
temor não vêm de arrogância pessoal ou de inconsequência, mas do ensino
bíblico sobre quem Deus é e como ele age para com os que lhe pertencem.
Conhecendo tais realidades, seu coração continua firme até o final das lutas
(v.8): “Seu coração é estável. Ele não tem medo até que veja seus inimigos
[derrotados]” (samûk livvô lo’ yiyra’ ‘ad ’asher-yir’eh betsarayw). O uso da
preposição “até” não sugere que depois de certo tempo ele passa a ter medo,
mas que ele confia em Deus durante “todo” o processo de lidar com o perigo
e que, em decorrência disso, não dá espaço ao temor.
A última realidade temporal ligada ao homem que teme a Deus é que ele
contrasta com os ímpios (vv.9,10). Antes de concluir o salmo, o escritor faz
um resumo das qualidades já expostas do homem que teme a Deus. Em
primeiro lugar, ele é generoso (v.9): “Ele reparte [o que tem], dá aos
necessitados” (pizzar natan la’evyônîm). Sua justiça é perene, não mudando
conforme as circunstâncias: “Sua justiça permanece perpetuamente” (tsidqatô
‘omedet la‘ad). E seu progresso se dá em conformidade com a honestidade e
a respeitabilidade: “Seu poder se elevará honrosamente” (qarnô tarûm
bekavôd). Esse é um quadro muito bonito. Entretanto, tal beleza tem a
capacidade de tornar ainda mais horrível o estado dos homens maus. Quando
colocados lado a lado com os tementes servos de Deus, os ímpios têm seus
pecados e falhas de caráter postos em relevo. Esse contraste causa neles um
extremo desconforto (v.10): “O ímpio vê [isso] e se enfurece, range seus
dentes e desfalece. O desejo dos ímpios perecerá” (rasha‘ yir’eh weka‘as
shinnayw yaharoq wenamas ta’awat resha‘îm to’ved). A razão de tal contraste
é exposta pelo apóstolo que, ao citar os feitos indignos dos ímpios (Ef 5.12),
afirma sua evidenciação diante da exposição do bem: “Mas todas as coisas,
quando reprovadas pela luz, se tornam manifestas; porque tudo que se
manifesta é luz” (Ef 5.13).
Desde a época em que o salmo foi escrito, a realidade dos servos de Deus
não mudou. Eles continuam abençoados por Deus – ainda que não mediante
as cláusulas específicas da aliança mosaica: “Bendito o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção
espiritual nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3). Têm a responsabilidade
de impactar a sociedade com os ensinos de Cristo: “Vós sois o sal da Terra;
ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais
presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do
mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte” (Mt
5.13,14). Têm motivos bíblicos para manter plena confiança em Deus nos
momentos difíceis: “E eis que estou convosco todos os dias até à consumação
do século” (Mt 28.20b). E são chamados a viver de modo contrário ao
mundanismo presente: “No sentido de que, quanto ao trato passado, vos
despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do
engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do
novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da
verdade” (Ef 4.22-24). Com isso em mente, que este salmo seja a realidade
diária da nossa vida, servos que temem a Deus!

SALMO 113
Deus acima dos Céus e sobre a Terra

Li uma história muito interessante. Havia uma pequena instituição religiosa


de ensino que estava atravessando problemas financeiros. Certo dia, um
visitante veio até o campus e perguntou a um pintor, um senhor grisalho que
estava atarefado com a pintura de uma parede, onde poderia encontrar o
presidente da instituição. O pintor apontou uma casa e informou que o
presidente estaria ali mais tarde. Quando o visitante bateu na porta da casa na
hora indicada, foi atendido justamente por aquele senhor, o pintor, agora
trajado adequadamente como presidente do estabelecimento de ensino. Então
o visitante, certamente tocado pela humildade daquele homem que, não se
importando com sua posição, não teve vergonha de vestir roupas de trabalho
simples e fazer o que era preciso como um servo humilde, fez uma
contribuição de 50 mil dólares à instituição.
Minha primeira lembrança ao ler a história acima relatada foi o texto de
Paulo sobre a atitude de Jesus: “Tende em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não
julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou,
assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e,
reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se
obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.5-8). Nesse mesmo sentido, o
Salmo 113 apresenta um Deus que, mesmo que esteja acima de tudo que
existe, demonstra os traços de “humildade e mansidão” vistos em Jesus (Mt
11.29) na busca de homens que, comparados a ele, nenhum valor possuem. É
o Deus transcendente que se faz imanente por amor de criaturas indignas
dele. Pensando nisso, o salmista apresenta os dois lados da moeda
contrastando-os por um tipo de dobradiça (v.6) que evidencia, de modo
maravilhoso, todos as formas das qualidades do nosso Deus. A primeira
seção apresenta o Senhor como um Deus glorioso acima dos céus, enquanto a
segunda, como um Deus humilde e amoroso sobre a Terra, no âmbito da
existência humana.
A primeira marca do Deus acima dos céus é que ele é digno de todo
louvor (vv.1-3). Esse salmo, como seus antecessores, inicia com o chamado
público à exaltação do Senhor, porém, de modo mais enfático por meio do
chamado específico aos “servos do Senhor” (v.1): “Exaltai ao Senhor!
Exaltai, ó servos do Senhor! Exaltai o nome do Senhor!” (hallû yah hallû
‘avdê yhwh hallû ’et-shem yhwh). O “nome do Senhor” é uma figura de
linguagem que serve para indicá-lo como todo, mas que também aponta para
sua fama e para seus feitos, de modo que os três primeiros versículos do
salmo fazem menção do seu nome (v.2): “Seja bendito o nome do Senhor,
desde agora até a eternidade!” (yehî shem yhwh mevorak me‘attâ
we‘ad-‘ôlam). Se o louvor a Deus se estende pelos séculos, também se
estende por toda a face da Terra (v.3): “Desde o levante do Sol até o seu
poente, digno de louvor é o nome do Senhor” (mimmizrah-shemesh ‘ad-
mevô’ô mehullal shem yhwh). “Levante do Sol até seu poente” é o mesmo que
dizer “do Oriente ao Ocidente”, uma expressão que visa a apontar para o
mundo inteiro.
A segunda marca do Deus acima dos céus é que ele é supremo sobre tudo
(v.4): “O Senhor é exaltado acima de todas as nações e sua glória acima dos
céus” (ram ‘al-kol-gôyim yhwh ‘al hashamayim kevôdô). Toda a criação, seja
na Terra, seja nos céus, estão abaixo do Senhor. A ideia não é exatamente de
localização, mas de valor, dignidade e poder. Ainda que Deus esteja em toda
parte, ele não pode ser contido pela Terra e pelos céus e não pode ser detido
por ninguém, sejam homens, animais, nações ou anjos. Ele está acima de
todos eles.
A terceira marca do Deus acima dos céus é que ele é plenamente
incomparável (v.5): “Quem é como o Senhor, nosso Deus, que está
assentado nas alturas?” (mî kayhwh ’elohênû hammagbîhî lashavet). Essa é
uma pergunta retórica. O autor não está pesquisando um candidato que
compartilhe dos mesmos atributos e da mesma dignidade de Deus, que possa
ser colocado lado a lado com o Senhor. Na verdade, essa é uma pergunta que
torna completamente ridícula essa busca. Ela quer dizer: Ninguém é como o
Senhor, nosso Deus, e ninguém, como ele, fez seu trono elevado, acima de
tudo e de todos.
Não há dúvidas de que o salmista tem uma elevada visão de Deus e de que
o Senhor faz jus a toda essa revelação e reverência. Contudo, diante do
quadro supremo apresentado até aqui, o texto dá uma virada surpreendente ao
pintar o Deus transcendente e glorioso se voltando com interesse para a
criação. Como se fosse uma dobradiça no texto, que tira nossos olhos das
alturas e os traz de volta à Terra, as palavras do salmista são (v.6): “Ele se
abaixa para ver [o que acontece] nos céus e na Terra” (hammashpîlî lir’ôt
bashamayim ûba’arets). Essa afirmação é a continuação do versículo anterior
que vinha descrevendo a grandeza e supremacia de Deus. Ao continuar a
descrição, o salmista produz a visão de que Deus, do seu alto trono, se volta
para sua criação a fim de socorrer o necessitado (cf. vv.7-9). O verbo
traduzido no v.6 por “se abaixar” também tem o sentido de “se humilhar” – o
que nos lembra, novamente, a disposição de Cristo na busca do perdido (Fp
2.5-8). Ele mostra que Deus, mesmo sem precisar de nós, vem nos auxiliar
em nossas necessidades, na inferioridade da nossa condição – a ação do Deus
sobre a Terra –, demonstrando humildade e um amor incomparável.
Nesse sentido, a primeira ação do Deus sobre a Terra é se importar com
os homens (v.7). Normalmente, os homens poderosos ignoram os mais
fracos. A diferença entre eles cega os olhos dos grandes em relação aos fracos
e aflitos. Mas com Deus isso é bem diferente. Ele não apenas olha para os
pequenos dentre os homens como se importa com a condição em que eles
vivem. Para demonstrar isso, o salmista toma como exemplo os homens mais
sofridos, pobres no meio do povo e aflitos que se assentam em monturos de
detritos (v.7): “Ele é quem levanta o pobre do pó e que retira o desamparado
do monte de lixo” (meqîmî me‘afar dal me’ashpot yarîm ’evyôn). Pessoas
assim são conhecidas em nossa sociedade como indigentes – chamá-los assim
parece exercer um efeito que os diminui como seres humanos e reduz a
responsabilidade dos grandes de socorrê-los. Porém, Deus não apenas se
importa com eles como age em seu favor.
A segunda ação do Deus sobre a Terra é exaltar o humilde (v.8). Esse
texto é a continuação e a consequência do anterior. Se primeiro Deus levanta
os abatidos de sua condição desfavorável, ele também os exalta e os iguala
aos principais dentre os homens (v.8): “A fim de fazê-lo sentar com os
nobres, com os nobres do seu povo” (lehôshîvî ‘im-nedîvîm ‘im nedîvê
‘ammô). É claro que, ao lermos um texto assim, surge-nos a pergunta:
“Então, por que ainda há desigualdade social?”. Ela existe porque os homens
ainda são pecadores e ainda mantêm sua cobiça e ganância a todo custo.
Entretanto, Deus age no sentido de exaltar o humilde tanto ensinando seus
valores ao seu povo, por meio da sua Palavra, como fazendo promessas de
um futuro de restauração para aqueles que creem, cuja realidade será de
igualdade e de plena felicidade e abastança.
Finalmente, a terceira ação do Deus sobre a Terra é satisfazer o incapaz
(v.9). Ainda que muito do que Deus tem preparado para o seu povo só será
vivenciado no futuro, no presente ele dá demonstrações de amor ao produzir
muitas coisas que para nós seriam improváveis e até impossíveis. Como
exemplo disso, o salmista cita uma mulher estéril, cuja condição, no mundo
antigo, era de humilhação e tristeza. Muitas dessas mulheres, conforme as
Escrituras, tiveram sua condição alterada por Deus e passaram a se sentir
valorizadas e plenamente realizadas (v.9): “Ele é quem faz com que a mulher
estéril da casa se sente alegremente com os filhos. Exaltai ao Senhor!”
(môshîvî ‘aqeret havvayit ’em-havvanîm semehâ hallû-yah).
É maravilhoso olhar para a glória do Senhor, sua capacidade criativa, o
poder que tem para fazer tudo que quiser e a incapacidade que qualquer
criatura tem de deter seus desígnios. Nenhum “falso deus” da antiguidade
transmitia um quadro de glória e majestade como nosso Deus – o Senhor
acima de todos os senhores, o Deus que é completo, o Rei de todo universo.
Porém, o que parecia não poder melhorar assume uma coloração ainda mais
vívida quando esse Deus supremo e poderoso olha com amor para nós, seres
pecadores, fracos e indignos. E mais: além de olhar para nós, assume uma
posição humilde na qual o Filho, o Senhor Jesus Cristo, deixando seu trono
na glória, assume humildemente a forma humana na encarnação e se torna
obediente, um servo, a fim de entregar sua própria vida por nós. É muito mais
que a imagem de um rei descendo de uma carruagem de ouro para tomar no
colo e lavar a feridas de um mendigo sujo e malcheiroso. É muito mais! É a
visão do Deus eterno se curvando para nos elevar, visão essa que deve nos
encurvar diante do seu trono e definitivamente elevar e exaltar seu nome
acima de todo nome!

SALMO 114
A Presença da Glória do Senhor

O famoso tenor italiano Enrico Caruso (1873-1921) teve uma experiência


muito interessante. Certa vez, quando viajava pela Região Norte do Estado de
Nova York, seu carro teve um problema mecânico que o obrigou a
interromper a viagem e buscar o socorro em uma pequena fazenda. Enquanto
o veículo era consertado, o cantor desfrutou da hospitalidade do dono da
propriedade em uma agradável conversa. Passado algum tempo, o fazendeiro
perguntou seu nome e ele respondeu: “Caruso”! O fazendeiro, então, tomado
de emoção, saltou da cadeira, apertou a mão do hóspede e exclamou: “Eu
nunca pensei que um dia veria um homem como o senhor em minha cozinha!
Caruso!”. Enquanto o tenor se preparava para agradecer pela expressão de
admiração, o fazendeiro completou: “... Robinson Caruso, o grande
viajante!”. Enrico Caruso ficou surpreso por ser confundido com outro
homem – Robinson Caruso, também conhecido como Robinson Crusoé,
personagem do livro de Daniel Defoe – e percebeu que ninguém é tão famoso
e conhecido quanto pensa.
Diferente da experiência de Caruso, o alvo de admiração no Salmo 114 é
alguém que não pode ser confundido nem ignorado, a saber, o próprio Senhor
glorioso. Trata-se de um salmo com quatro estrofes de duas linhas cada – um
tipo de corinho. Sua mensagem é emoldurada por uma linguagem fortemente
figurada, mas não infértil. Contudo, pouca informação há sobre a ocasião da
sua composição ou sua autoria. As mesmas formas verbais hebraicas
peculiares contidas no Salmo 113 se repetem nesse salmo, fazendo parecer
que foram escritos pelo mesmo autor, possivelmente na mesma ocasião – um
período de livramento e restauração. Não é possível dizer com certeza que se
trate do retorno do exílio babilônico ou de outro livramento específico.
Entretanto, a ênfase na restauração misericordiosa dos desvalidos no Salmo
113 e a lembrança da libertação da escravidão egípcia no Salmo 114 fazem
notar que o escritor quer louvar a Deus por uma atuação poderosa e benéfica
para com Israel. Também não se pode eliminar a possibilidade de terem sido
compostos para uma ocasião festiva como a Páscoa, na qual a lembrança da
libertação do Egito era a tônica. De qualquer modo, o salmista tem a intenção
de glorificar a Deus pelo que fez no passado e pelo que fazia nos seus dias.
Para isso, ele usa os versos do salmo para apresentar o Deus digno de louvor
pelo modo como tratou Israel.
Em primeiro lugar, o salmista apresenta um Deus que se faz imanente
(vv.1,2). Imanência é a qualidade de Deus que o faz presente junto à criação,
a qual permite que ele se relacione com suas criaturas – em especial, o
homem. Isso é visto na intervenção histórica promovida por Deus em um
momento crucial e de uma maneira marcante (vv.1,2): “Quando Israel saiu do
Egito, a casa de Jacó, do meio de um povo de língua estranha, Judá passou a
ser seu santuário e Israel, o seu domínio” (betse’t yisra’el mimmitsrayim bêt
ya‘aqov me‘am lo‘ez haytâ yehûdâ leqodshô yisra’el mamshelôtayw). O
salmista fez questão de expor a condição desfavorável dos israelitas no Egito
ao dizer que estavam “no meio de um povo de língua estranha”. Isso aponta
para o fato de estarem fora da terra deles e vivendo no meio de um povo
diferente do seu, com costumes desiguais, com deuses estranhos. No Antigo
Testamento, a figura da “língua estranha” é, também, um sinal de desfavor e
de juízo divino para Israel por meio dos exércitos de nações estrangeiras (Dt
28.49,50; Is 28.11; Jr 5.15). Não restam dúvidas de que o povo estava em
uma situação ruim na qual não desejavam, mas que não tinha condições de
evitar.
Mesmo contra todas as circunstâncias contrárias, Deus buscou Israel no
Egito fazendo valer sua vontade e seu poder. O resultado é que aquele povo
que não tinha uma terra passou a ter. Aqueles que viviam entre deuses
estranhos passaram a servir o Deus verdadeiro. A nação que era propriedade
do Egito passou a ser posse declarada do Senhor soberano. Por isso, o salmo
afirma que Israel passou a ser “santuário” e “domínio” de Deus. Como
santuário, recebeu a presença de Deus como se fosse uma habitação, algo que
era visualizado no meio do povo pela presença do tabernáculo. Como
domínio – a palavra também pode ser traduzida como “seus súditos” –, o
Senhor fazia valer o que prometeu ao povo da aliança: “E habitarei no meio
dos filhos de Israel e serei o seu Deus” (Ex 29.45). É possível que esse salmo
tenha sido escrito nos dias quando Israel estava dividido em dois reinos: Judá
e Israel. Entretanto, a citação aqui desses dois termos não tem por objetivo
fazer tal distinção, mas representar o povo como um todo por meio de termos
sinônimos: os dois nomes de Jacó. Esse povo, quando Deus se fez presente,
deixou de habitar entre seus dominadores e passou a ser habitação daquele
que poderosamente os tornou seu domínio, seus próprios súditos.
Depois, o escritor do salmo apresenta um Deus poderoso e irresistível
(vv.3-6). Se a primeira estrofe do cântico evidenciou as bênçãos da presença
de Deus, as duas estrofes centrais realçam seu poder ao efetivar a libertação.
Esses versículos não são específicos nas ações de Deus, mas não é
necessário. A história do êxodo era tão conhecida dos israelitas e até das
outras nações que bastava citar os elementos envolvidos no decorrer do
livramento e da conquista da terra da promessa para que os fatos viessem
todos à mente dos ouvintes. Por isso, bastou uma breve citação para trazer à
memória do povo os episódios do mar Vermelho e do rio Jordão (v.3): “O
mar viu isso e fugiu. O Jordão retrocedeu” (hayyam ra’â wayyanos
hayyarden yissov le’ahôr). As menções são à abertura do mar, como se as
águas fugissem diante do poder do Senhor, e do estancamento do Jordão para
que o povo entrasse em Canaã em seco, sem dificuldades.
Fazem-se, a seguir, menções de montes tremendo (v.4): “Os montes
saltaram como carneiros. As colinas, como filhotes de ovelha” (heharîm
roqdû ke’êlîm geva‘ôt kivnê-tso’n). A menção não é tão óbvia como a das
águas, podendo – o mais provável – apontar para os episódios ligados à
demonstração da glória de Deus no Sinai ou para a queda das cidades
cananitas durante a conquista, boa parte delas sobre os montes. O que não
traz dúvidas é que Deus atuou poderosamente para abençoar seu povo. Esse
poder foi tão arrebatador que o salmista praticamente repete o que disse,
porém, na forma de interrogações (vv.5,6): “O que te acontece, ó mar, que
foges? [E tu], Jordão, [que] retrocedes? [E vós], montes, que saltais como
carneiros? [E vós], colinas, como filhotes de ovelha?” (mah-leka hayyam kî
tanûs hayyarden tissov le’ahôr heharîm tirqedû ke’êlîm geva‘ôt kivnê-tso’n). É
nítida a ironia dessas perguntas cujos efeitos são retóricos. É como perguntar:
“Quem pode impedir Deus de cumprir os seus decretos?”. Além de certa
ironia, o efeito das perguntas dos vv.5,6 é enfático, produzindo respostas que
indicam o “poder irresistível do Senhor”.
Finalmente, o salmista apresenta um Deus cuja presença é gloriosa (vv.7-
8). Assim como as nações cananitas temeram os relatórios que ouviram a
respeito do êxodo (Ex 15.14-16), o escritor do salmo afirma que a própria
Terra deveria tremer diante do Senhor (v.7): “Treme, ó Terra, diante da
presença do Senhor, diante do Deus de Jacó” (millifnê ’adôn hûlî ’arets
millifnê ’elôah ya‘aqov). Essa personificação da Terra tem por objetivo
atingir não os elementos da natureza, mas os homens, os ouvintes do salmo e
da mensagem do que Deus fez a Israel. Nesse sentido, o salmista não aponta
somente a mão de Deus poderosa para livrar, mas também para prover (v.8):
“Aquele que transformou a rocha em uma fonte de água, a pedra, em
manancial de água” (hahofkî hatsûr ’agam-mayim hallamîsh lema‘yenû-
mayim). Mais uma vez a natureza tem sua força abatida por Deus e a rocha
dura é fendida para brotar dela água que sacie os israelitas no deserto, como
se a dureza da rocha se derretesse e fluísse diante da glória do Altíssimo. Não
é possível estar diante de Deus e não tremer ante sua gloriosa presença.
Dá para entender por que esse salmo está colecionado ao lado de outras
obras feitas para o louvor do Senhor. Talvez a Septuaginta, tradução grega do
Antigo Testamento, tenha acertado ao colocar as últimas do salmo anterior –
“Exaltai ao Senhor!” (hallû-yah) – no início deste. Isso colocaria o Salmo 114
em um grupo que começaria no 111, todos exaltando a Deus com a famosa
transliteração: “Aleluia!”. Entretanto, não temos de adivinhar a posição
dessas palavras, mas notar a glória de Deus, o devido louvor e adoração que
nos cabe e a reverência que deve ser produzida a partir da observação de
quem o Senhor é. Que ninguém seja mais admirado por nós que o Deus
Todo-poderoso; nem mais conhecido, amado, servido, anunciado e honrado!
Treme, ó Terra, e tremei, vós homens!

SALMO 115
A Disposição Correta para Louvar a Deus

Há cerca de quinze anos, assisti a um filme, baseado na obra de William


Shakespeare, sobre o rei britânico Henrique V (1387-1422). Em alguns
momentos, o filme é um pouco monótono, mas, depois de representar um
discurso emocionante — no qual foi cunhado o termo “band of brothers” —
e a famosa batalha de Azincourt (25-10-1415), o rei diz algo que me marcou.
Lembro-me desse momento do filme como se o estivesse vendo agora. O rei,
interpretado pelo ator Kenneth Branagh, ao saber da vitória esmagadora sobre
os franceses, diz, em tom reverente, que haveria morte para qualquer um que
clamasse para si a responsabilidade daquela vitória ou que tomasse de Deus o
louvor que pertencia somente a ele. Logo após, um soldado começa a cantar
sozinho o hino Non nobis Domine — “Não a nós, Senhor” —, sendo seguido
pelo restante do exército em uma das cenas mais emocionantes a que já
assisti.
O Salmo 115 é o hino cuja letra foi cantada por esses vencedores e por
muitos personagens, durante a história, que obtiveram vitórias fantásticas,
mas que não clamaram para si o louvor, rendendo-o inteiramente a Deus. O
contexto do salmo é uma situação de crise em Israel seguida pela atuação
soberana e libertadora do Senhor. O que não se tem certeza é se o salmista
está orando para que Deus liberte ou se o salmo é um agradecimento pela
libertação já realizada. Apesar de parecer, a princípio, que a primeira opção
se encaixa melhor, o tom positivo do salmo e a zombaria do salmista aos
falsos deuses estrangeiros e aos seus adoradores sugerem que a libertação já
veio e que o salmo visa a evidenciar a supremacia de Deus e a exaltar seu
nome, vindicando sua honra diante do desprezo que as nações lhe
demonstraram. Não fica excluída a possibilidade de que esse tom positivo se
deva a uma confiança irrestrita por parte do salmista. Contudo, nesses casos é
comum vermos mais lamento e súplicas do que o que temos nesse salmo.
Além do mais, o v.1 é um louvor tão positivo que, a exemplo da história
acima, sempre foi usado para glorificar a Deus por seus feitos libertadores e
pelas vitórias concedidas aos servos. Em meio a isso, o salmista oferece
quatro disposições que os servos de Deus devem manter para lhe oferecer um
louvor digno e condizente com sua natureza e glória.
A primeira disposição dos servos de Deus para louvá-lo é a humildade
(vv.1,2). O início do salmo coloca o salmista em um clamor para que Deus
mostre sua glória ao mundo e, ao fazê-lo, não deixasse que homem algum
fosse glorificado em lugar dele ou que compartilhasse do louvor que lhe é
exclusivo (v.1): “Não a nós, Senhor, não a nós, mas dá glória ao teu nome por
causa da tua lealdade e da tua fidelidade” (lo’ lanû yhwh lo’ lanû kî-leshimka
ten kavôd ‘al-hasdeka ‘al-’amitteka). É como se ele dissesse: “Mostra a tua
glória, ó Senhor, e não nos deixe pensar ou anunciar que somos gloriosos”. O
salmista demonstra a verdadeira humildade que combina muito com a
disposição de João Batista diante de Jesus: “Convém que ele cresça e que eu
diminua” (Jo 3.30). Isso fica mais em evidência quando se observa o
contexto. A zombaria das nações estrangeiras sobre Israel afetava os israelitas
pessoalmente. Entretanto, o escritor não clama por vindicação para si mesmo
ou para a nação, mas para o nome de Deus (v.2): “Porque as nações diriam:
‘Onde está o Deus deles?’” (lammâ yo’merû haggôyim ’ayyeh-na’
’elohêhem). Esse desprezo é semelhante ao que foi demonstrado nas palavras
de Rabsaqué, servo de Senaqueribe, quando ameaçou Jerusalém nos dias de
Ezequias afirmando que nenhum deus tinha livrado seus povos dos assírios e,
por isso, o Deus de Israel também não poderia livrá-los (2Rs 18.32-35).
Diante disso, o salmista tem todo prazer em saber que o Senhor vindica sua
glória e supremacia, agindo com “lealdade” e “fidelidade” para com seus
servos. E mesmo havendo vindicação também do povo, o escritor do salmo
se recusa e receber glórias para si, sendo ele mesmo humilde.
A segunda disposição dos servos de Deus para louvá-lo é a admiração
(vv.3-8). Esse trecho mostra como a arrogância das nações opressoras foi
abatida por Deus, de modo que o salmista o diz em um tom que chega a ser
jocoso. É como se desse o troco em relação ao desprezo que os inimigos
demonstraram pelo Deus verdadeiro durante a opressão de Israel. Ao fazê-lo,
deixa transparecer a admiração que tem pelo Senhor e por tudo que ele faz
(v.3): “Mas o nosso Deus está nos céus. Ele faz tudo que lhe agrada”
(we’lohênû bashamayim kol ’asher-hafets ‘asâ). A admiração do salmista
surge primeiro por Deus ter uma natureza acima da criação, descrita pela sua
transcendência, e depois por ser soberano, tendo o poder de efetivar todos
seus planos e desejos sem que ninguém possa impedi-lo (Jó 42.2). Em
consequência disso, a arrogância das nações é abatida na figura dos seus
falsos deuses (v.4): “Os ídolos deles são de prata e ouro, obras das mãos de
homens” (‘atsavvêhem kesef wezahav ma‘aseh yedê ’adam). Essa nulidade é
enfatizada até o ponto de os falsos deuses se tornarem desprezíveis e objeto
de chacota aos olhos de todos (vv.5-7). Contudo, o “tapa com luva de pelica”
não se destina a deuses inexistentes, mas ao insensatos adoradores de objetos
feitos pelo próprio homem (v.8): “Sejam como eles os que os fazem, todos
que confiam neles” (kemôhem yihyû ‘osêhem kol ’asher-boteah bahem). Para
o salmista, o terror anunciado pelos adoradores dos falsos deuses nada era
comparado à ação do Deus glorioso e admirável que os reduz a nada.
A terceira disposição é a confiança (vv.9-11). Se ficou clara a insensatez de
confiar em deuses de ouro e prata feitos por artífices, a confiança no Deus
criador de tudo que existe é uma ação encarecida pelo salmo (v.9): “Ó Israel,
confia no Senhor! Ele é o socorro e o escudo deles” (yisra’el betah bayhwh
‘ezram ûmaginnam hû’). É nítido o tom de comparação entre a fé verdadeira
dos servos de Deus e a fé insensata dos idólatras. O interessante é a ênfase
que o salmista dá na razão pela qual Israel deve confiar em Deus, pois a
segunda parte desse versículo se repete nos dois seguintes. Assim, a casa
sacerdotal, talvez por ter sido afetada pelos inimigos e obrigada a interromper
os sacrifícios, é chamada a confiar (v.10): “Ó casa de Arão, confia no Senhor!
Ele é o socorro e o escudo deles” (bêt ’aharon bithû bayhwh ‘ezram
ûmaginnam hû’). Em seguida, completando uma tríade bastante sugestiva,
diz (v.11): “Ó [vós] que temem o Senhor, confiai no Senhor! Ele é o socorro
e o escudo deles” (yir’ê yehwâ bithû bayhwh ‘ezram ûmaginnam hû’). Não há
como se enquadrar como servo do Senhor que se dedica ao seu louvor sem
confiança em quem Deus é e em suas promessas.
Finalmente, a última disposição para louvar a Deus é a gratidão (vv.12-18).
Apesar do aperto que Israel passou, a libertação não trouxe atenção somente
sobre a condição benéfica — o que é muito comum acontecer. Em lugar
disso, o salmista olha para a causa da condição que é a própria atuação de
Deus abençoando seu povo (vv.12,13): “O Senhor se lembrou de nós e nos
abençoará. Abençoará a casa de Israel. Abençoará a casa de Arão. Abençoará
os que temem o Senhor, os pequenos juntamente com os grandes” (yhwh
zekaranû yevarek yevarek ’et-bêt yisra’el yevarek ’et-bêt ’aharon yevarek yir’ê
yhwh haqqetannîm ‘im-haggedolîm). Essa ação diretamente ligada ao
livramento da opressão é seguida por uma restauração do povo, fazendo-o
aumentar novamente em número e força (v.14): “O Senhor vos fará aumentar,
a vós e a vossos filhos” (yosef yhwh ‘alêkem alêkem we‘al-benêkem). A razão
para isso é diretamente a bênção de Deus (v.15): “Vós sois abençoados pelo
Senhor criador dos céus e da Terra” (berûkîm ’attem layhwh ‘oseh shamayim
wa’arets). O salmista não adora a Deus somente pelo que ele faz, mas
também por quem é, ou seja, um Deus acima dos homens (v.16): “Os céus
são os céus do Senhor, mas ele deu a Terra aos filhos dos homens”
(hashamayim shamayim layhwh weha’arets natan livnê-’adam). Finalmente,
o louvor é declarado pelo fato de Deus não tê-los deixado perecer, razão pela
qual é possível que eles lhe rendam todo louvor (vv.17,18): “Os mortos não
exaltam o Senhor, nem aqueles que descem ao lugar de silêncio. Mas nós
louvaremos o Senhor desde agora até a eternidade. Exaltai ao Senhor!” (lo’
hammetîm yehallû-yah welo’ kol-yordê dûmâ wa’anahnû nevarek yah me‘attâ
we‘ad-‘ôlam hallû-yah). Aqui, o salmista não diz que não há vida após a
morte, mas que Deus os preservou de morrer e, por isso, eles o exaltavam e o
exaltariam para sempre.
Como é comum ouvirmos membros de igreja dizer “preguei a um incrédulo
e o converti”, “fiz a igreja crescer”, “eu sustento esse trabalho sobre meus
ombros”, “obtive a vitória que almejávamos” ou “veja como sou importante
para o Senhor”. O crente que entende, como o salmista, quem é Deus, diz: “O
Senhor me deu a oportunidade de pregar a um incrédulo a fim de que ele o
convertesse”, “Deus tem dado crescimento à igreja”, “o Senhor sustenta esse
trabalho por sua graça apesar de mim”, “Deus nos concedeu a vitória que
almejávamos” e “veja como sou dependente do Senhor”. Com isso, esses
crentes não apenas demonstram uma teologia sadia e verdadeiramente
bíblica, como as disposições necessárias para ser um servo autêntico e um
adorador do Deus glorioso. Precisamos abandonar as pretensões arrogantes
de sermos grandes e, em lugar disso, engrandecer nosso soberano Deus. Com
essa disposição, assumiremos o lugar que é nosso, em humildade e
dependência, e reservaremos para Deus, em nosso coração, o lugar que é dele
e que nada nem ninguém podem ocupar. Não a nós, Senhor, mas ao teu
nome!
SALMO 116
Quando a Vida não Vale um Tostão Furado

Quase todos nós já ouvimos a expressão “isso não vale um tostão furado”.
O que pouca gente sabe é o que é um “tostão furado”. O tostão é uma moeda
brasileira antiga – inspirada na moeda portuguesa –, feita de níquel, que valia
cem réis – os réis circularam no Brasil desde o período Imperial até o
governo de Getúlio Vargas. Porém, antes dele, havia o tostão furado, o qual
equivalia a oitenta réis. No século 19, ele saiu de circulação para dar lugar ao
tostão cheio, conhecido simplesmente como tostão. Seu valor não passava de
dez centavos em relação ao cruzeiro antigo. Eram moedas que, sozinhas,
compravam pouca coisa e serviam para dar troco de pagamentos maiores.
Desse modo, dizer que alguém não tem um tostão significa não estar
carregando dinheiro algum. Com o tostão furado, a coisa era pior, pois, além
de valer 20% menos que o tostão cheio, perdeu totalmente seu valor ao ser
substituído e sair do mercado. Por isso, falar que algo não vale um tostão
furado significa que não há valor algum naquilo.
Olhando para essa expressão brasileira, podemos dizer que o salmista
atravessou um momento em que sua própria vida não valeu um tostão furado
no sentido de que esteve completamente à beira da morte. Ele deixa isso claro
ao dizer (v.3) que “laços da morte me envolveram” (’afafûnî hevlê-mawet) –
valendo-se dos dizeres de Davi ao se ver cercado por inimigos que queriam
tirar sua vida (Sl 18.4). Contudo, o salmista não pereceu porque Deus o livrou
da morte, preservando sua vida (v.6): “Eu estava desfalecido, mas ele me
salvou” (dallôtî welî yehôshîa‘). Se até aqui a natureza de tal salvação não fica
clara, ele resolve a questão afirmando (v.8): “Pois tu livraste a minha alma da
morte” (kî hillatsta nafshî mimmawet) – deve-se observar que “alma” aqui
não visa a indicar uma salvação de ordem espiritual, mas ao salmista como
um todo, como se ele dissesse “tu me livraste da morte”. Diante disso, muitos
comentaristas veem semelhanças notáveis entre as declarações desse salmista
e a experiência de libertação da morte do rei Ezequias que, avisado de que
iria morrer, ouviu do profeta Isaías que Deus lhe daria mais quinze anos de
vida (Is 38). Alguns até sugerem que o próprio Ezequias seja o escritor do
salmo. De qualquer modo, uma situação como a daquele rei que, achando-se
doente e não vendo possibilidades humanas para impedir que sua vida se
esvaísse, serve como um pano de fundo compatível com o salmo. Por isso,
por meio de quatro ações do escritor do Salmo 116, podemos aprender sobre
o procedimento adequado ao servo de Deus que vê que sua vida ruma para a
condição de não valer um tostão furado.
Quando o salmista se viu impotente contra os riscos à sua vida e percebeu
que só o Senhor, segundo seu plano, preserva seus servos, sua primeira ação
foi demonstrar seu amor por Deus (vv.1-3). Ele inicia o salmo com esta
declaração (v.1): “Eu amo o Senhor, pois ele ouve a minha voz, as minhas
súplicas” (’ahavtî kî-yishma‘ yhwh ’et-qôlî tahanûnay). Apesar de parecer ser
mais fácil amar a Deus quando tudo vai bem e quando a impressão é que a
vida só conhece bênçãos, a situação desse homem passou pelo extremo
oposto (v.3): “Laços da morte me envolveram e os assédios da sepultura me
sobrevieram” (’afafûnî hevlê-mawet ûmetsarê she’ôl metsa’ûnî). O escritor
personifica a própria morte como um caçador que passou a persegui-lo com
seus laços de armadilhas. Ele se sentiu sendo tragado pela sepultura onde
jazeria morto. O resultado foi um abatimento profundo: “Eu fui acometido
por angústia e aflição” (tsarâ weyagôn ’emtsa’). Mas é justamente nessa
situação que sente que Deus tem um relacionamento com ele pautado pelo
amor, já que o Senhor não foi alheio ou insensível ao seu sofrimento. Deus,
na verdade, se mostrou muito interessado na sua situação e lhe tratou como
alguém próximo e amado (v.2): “Pois inclinou seu ouvido para mim” (kî-hittâ
’oznô lî). Inclinar o ouvido não significa apenas escutar, mas atender à
oração. Assim, o salmista, em amor, se relaciona com Deus e se propõe fazê-
lo por toda a sua vida: “Pelo que nos meus dias [de vida] eu o invocarei”
(ûbeyamay ’eqra’).
A segunda ação foi levar a Deus seus pedidos (vv.4-9). Logo após fazer
uma descrição vívida do seu sofrimento, ele declara sua reação (v.4): “Mas eu
invoquei o nome do Senhor [dizendo]: ‘Ó Senhor, livra minha alma’”
(ûbeshem-yhwh ’eqra’ ’annâ yhwh malletâ nafshî). Trata-se de um pedido por
preservação da vida. Essa oração não foi feita sem esperança. O salmista
contava com os atributos de Deus pelos quais ele age beneficamente para
com seus servos (v.5): “O Senhor é compassivo e justo e o nosso Deus é
misericordioso” (hannûn yhwh wetsaddîq we’lohênû merahem). A resposta
divina à oração do salmista moribundo foi positiva e realmente o preservou
(v.6): “O Senhor guarda os simples. Eu estava desfalecido, mas ele me
salvou” (shomer peta’yim yhwh dallôtî welî yehôshîa‘). Imediatamente, sua
confiança na misericórdia de Deus lhe trouxe verdadeira paz em meio à
tempestade, avistando o porto e a terra firme para os quais o Senhor conduziu
o barco da sua vida (v.7): “Ó minha alma, volta ao lugar de descanso, pois o
Senhor foi benevolente para contigo” (shûvî nafshî limnûhoykî kî-yhwh gamal
‘aoykî). Se até aqui o tipo de libertação promovido pelo Senhor fica
subentendido, o escritor, então, o descreve com todas as letras, revelando a
resposta à sua oração (v.8): “Pois tu livraste a minha alma da morte, os meus
olhos das lágrimas [e] os meus pés do tropeço” (kî hillatsta nafshî mimmawet
’et-‘ênî min-dim‘â ’et-raglî middehî). O resultado final é que ele continuaria
vivo e servindo a Deus (v.9): “Servirei ao Senhor nas regiões dos viventes”
(’ethallek lifnê yhwh be’artsôt hahayyîm).
A terceira ação do salmista foi manter sua fé em Deus (vv.10-14). Crer em
Deus depois de ver uma grande libertação não é raro. Entretanto, crer
enquanto tudo que há em volta são problemas e dificuldades é algo mais
difícil de se ver. Pois foi exatamente isso que o salmista fez. Ele creu em
Deus no meio da aflição (v.10): “Eu confiei quando eu [ainda] dizia: ‘Estou
muito aflito’” (he’emantî kî ’adavver ’anî ‘anîtî me’od). Essa confiança fica
em maior relevo quando ele expõe que não apenas estava sofrendo, mas que
também estava desiludido com as pessoas e com sua capacidade de socorrê-lo
(v.11): “Na minha fúria, eu disse: ‘Todo homem é mentiroso’” (’anî ’amartî
behofzî kol-ha’adam kozev). Não é fácil ter fé em uma situação assim, mas o
salmista creu e Deus correspondeu à sua confiança. Se os homens são falhos
e infiéis, Deus é fiel e confiável. Essa constatação levou o escritor a meditar
sobre o modo como ele procederia diante da ação de Deus (v.12): “Como
retribuirei ao Senhor por todos os seus benefícios para comigo?” (mâ-’ashîv
layhwh kol-tagmûlôhî ‘alay). A resposta que ele encontra é dupla. A primeira
é demonstrar sua fé no Senhor, como se sua própria vida preservada agisse
como um brinde público a Deus (v.13): “Erguerei a taça da salvação e
invocarei o nome do Senhor” (kôs-yeshû‘ôt ’esha’ ûveshem yhwh ’eqra’). A
segunda é ser ele mesmo fiel, assim como Deus foi para com ele (v.14):
“Cumprirei meus votos ao Senhor perante todo o seu povo” (nedaray layhwh
’ashallem negdâ-na’ lekol-‘ammô).
A última ação foi oferecer a Deus o devido louvor (vv.15-19). Ao
introduzir um novo parágrafo, o escritor enaltece novamente a ação
preservadora de Deus (v.15): “Custosa aos olhos do Senhor é a morte dos
seus fiéis” (yaqar be‘ênê yhwh hammowtâ lahasîdayw). Apesar de esse texto
normalmente ser traduzido com a palavra “preciosa” –fazendo parecer um
coro aos dizeres de Paulo “o morrer é lucro” (Fp 1.21) –, o contexto geral do
salmo aponta para o fato de que Deus não despreza seus servos na hora da
morte. Ao contrário, ele sente o drama da morte dos seus fiéis, dá valor às
suas vidas e, se assim for seu plano, os preserva da morte – algo que ele fez
com esse servo (v.16). Devido a isso, o louvor toma conta das ações do
salmista (v.17): “Oferecerei a ti sacrifício de ação de graças e invocarei o
nome do Senhor” (leka-’ezbah zevah tôdâ ûveshem yhwh ’eqra’). Ele volta a
afirmar sua fidelidade a Deus por meio do cumprimento dos seus votos diante
do povo (v.18), acrescentando a informação de que o faria no templo do
Senhor, diante de todos (v.19): “Nos átrios da casa do Senhor, no meio de
Jerusalém” (behatsrôt bêt yhwh betôkekî yerûshalaim). Se o salmo começa
com uma declaração de amor, termina com uma proclamação da glória de
Deus: “Exaltai ao Senhor!” (hallû-yah).
Olhando para essa experiência de um servo de Deus que se viu diante da
morte, quando sua vida parecia não valer mais nada, somos encorajados
quando, diante de diversas tribulações que a vida reserva a todos, nos
sentimos desvalidos e inertes. Seja diante da morte, seja diante da vida
atribulada, lembramos que para Deus nós temos muito valor e somos tratados
como tal. Não somos, de modo algum, apenas um número na contabilidade
divina, mas pessoas, servos amados, por quem Deus enviou seu próprio Filho
a fim de nos substituir na condenação do pecado. O valor do Senhor Jesus
Cristo na cruz nos lembra e nos firma em fé, sabendo nós que não é verdade
que não valemos nem um tostão furado. Para Deus nós temos valor e ele nos
tem em meio aos maiores cuidados, atenção e misericórdia.

SALMO 117
O Glorioso Chamado das Nações

É provável que em qualquer lugar do mundo seja conhecida a famosa figura


do “tio Sam” apontando o dedo para quem a vê e dizendo “eu quero você
para o Exército dos EUA” (I want you for U.S. Army). Trata-se de uma
personificação do próprio País, os Estados Unidos da América, usada pela
primeira vez em 1812, na guerra anglo-americana, e desenhada mais ou
menos como conhecemos em 1852. Entretanto, aquele famoso cartaz com o
poderoso chamado a integrar o Exército americano data da Primeira Guerra
Mundial, quando os americanos estavam recrutando soldados para combater
na Europa. A necessidade fez com que esse chamado fosse revestido de
patriotismo – basta ver as cores e as estrelas estampadas nas vestes do tio
Sam –, pois a necessidade de reforçar as fileiras militares americanas era
grande. Muita gente orgulhosamente aceitou esse convite, partiu de casa e
jamais voltou.
O Salmo 117 também é um chamado em larga escala. Também convida
pessoas de lugares distantes a seguir um líder que os inspira. Também há um
pano de fundo glorioso que embeleza e reforça o chamado. E os homens que
respondem positivamente a esse chamado jamais voltam a ser os mesmos,
aceitando partir para outra pátria (Fp 3.20). A diferença é que, em lugar de
perderem a vida ao atender ao chamado, esses passam a viver. Em lugar de
morrerem em outra terra, herdam a terra toda e a própria vida. E em vez de
seguirem um personagem fictício, eles seguem um líder real, majestoso e
excelso que lhes conduz às bênçãos que o restante do mundo nem pode
imaginar. Esse salmo é o mais curto de todo o saltério, mas seu alcance, sua
mensagem e sua glória colocam esse capítulo entre os mais significativos da
Bíblia. Em seus dois versículos, ele leva até os confins da Terra um chamado
rico em teologia, cujos efeitos práticos se estendem até o futuro e até os céus.
Três pontos notáveis devem ser destacados nele.
O primeiro ponto notável desse salmo é para quê é o chamado. O salmista
convida seus ouvintes a prestar o devido louvor que cabe ao Deus Todo-
poderoso e Todo-glorioso (v.1): “Exaltai ao Senhor, ó todas as nações,
louvai-o, ó todas as tribos” (hallû ’et-yhwh kol-gôyim shavvehûhû kol-
ha’ummîm) – notar os destaques em itálico. Deus, em si mesmo, é digno de
todo louvor. Acrescentem-se a isso suas obras louváveis. O resultado é que
Deus criou o homem e o separou das trevas, por meio de Cristo, “a fim de
sermos para louvor da sua glória” (Ef 1,12). A própria nação israelita foi
separada por Deus para tanto e é chamada por ele de “povo que formei para
mim, para celebrar o meu louvor” (Is 43.21). Duas palavras com sentidos
semelhantes – “exaltai” e “louvai” – são utilizadas no primeiro versículo do
salmo para descrever a adoração devida a Deus. Entretanto, apesar de
sinônimas, uma enfatiza o ato do louvor e da exaltação, enquanto a outra
produz a ideia de uma reflexão sobre as qualidades gloriosas de Deus e, em
meio à admiração, enaltecer o Senhor por tudo que ele é e faz. Talvez, as
duas palavras entrem nessa composição não apenas para cumprir um efeito de
estilo literário, mas para pintar um quadro bem amplo da adoração que o
Senhor merece de nós, servos do seu amor.
O segundo ponto notável do salmo é para quem é o chamado. Apesar de
ser escrito por um israelita para o louvor de Deus em Israel, ele se dirige a
povos gentílicos, ou seja, pessoas não israelitas (v.1): “Exaltai ao Senhor, ó
todas as nações, louvai-o, ó todas as tribos” (hallû ’et-yhwh kol-gôyim
shavvehûhû kol-ha’ummîm) – observar as mudanças dos destaques em itálico.
Levando em conta que os israelitas não deviam se misturar com as outras
nações – “as gentes”, os “gentios” –, esse convite é surpreendente. Israel foi
proibido de fazer aliança com outros povos (Ex 34.12), de imitar suas
religiões (Ex 34.13-15) e até de se unirem a eles por meio de casamentos (Ex
34.16). As outras nações eram consideradas inimigas de Deus e de Israel, de
modo que os israelitas aguardavam o dia de ver o Senhor abater tais povos
(Am 5.18 cf. Ob 15). Por isso, o chamado e a esperança de ver pessoas de
outras nações se curvando diante do Deus de Israel e lhe rendendo adoração
de modo algum era fruto de um trabalho poético puramente humano, mas da
revelação de Deus quanto aos seus planos para o futuro. Como instrumento
da revelação da Palavra de Deus, o profeta Isaías anunciou: “Por isso,
glorificai ao Senhor no Oriente e, nas terras do mar, ao nome do Senhor,
Deus de Israel. Dos confins da Terra ouvimos cantar: Glória ao Justo!” (Is
24.15,16). É claro que não é cada pessoa do mundo que atenderá esse
convite. Não obstante, o chamado tem um caráter mundial demonstrando que,
independente de quem louvará ou não a Deus, o Senhor tem direito sobre
todos e dá a conhecer os seus atributos gloriosos tanto nos seus servos como
nos seus inimigos (Rm 9.22-24).
O terceiro ponto notável é a causa do chamado. Se o convite é para
oferecer louvor a Deus, a causa para tanto é dupla. A primeira delas é o
“amor de Deus” (v.2a): “Pois grande é o seu amor para conosco” (kî gavar
‘alênû hasdô). A palavra aqui traduzida como amor pode também ser
entendida como graça, bondade ou misericórdia. Entretanto, não é necessário
escolher um desses sentidos. Em lugar disso, deve-se somá-los como
demonstração ampla do que significa ser amado por Deus. Quer dizer que a
misericórdia amorosa de Deus entra em ação para perdoar pessoas que não
merecem esse benefício. Por isso, agora o salmista não vislumbra apenas os
gentios, mas também Israel ao dizer “para conosco”. O “vós” se torna “nós”
quando a graça de Deus salva israelitas e também gentios, tornando-os um
grupo coeso de servos, unidos de modo fundamental por meio da obra de
Cristo, acabando com os limites e com a separação: “Mas, agora, em Cristo
Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de
Cristo. Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um [...] para que dos
dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse
ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela
a inimizade” (Ef 2.13-16). “Ambos”, nesses dizeres de Paulo, são os “crentes
gentios” e os “crentes israelitas”, unidos pela fé em Cristo e pela justificação
de pecados.
A segunda causa para o chamado a louvar é a “fidelidade de Deus” (v.2b):
“E a fidelidade do Senhor permanece para sempre” (we’emet-yhwh le‘ôlam).
Por fidelidade, na teologia do Antigo Testamento, entende-se o inevitável
cumprimento, por parte de Deus, das promessas que fez. Se ele prometeu, é
certo que ele honrará sua fidelidade e cumprirá a promessa. A questão aqui é
“que promessa?”. A aliança mosaica, que previa bênçãos pela obediência e
castigo pela rebeldia (Lv 26; Dt 28), foi feita entre Deus e Israel e não dizia
respeito às outras nações. Em um chamado de natureza mundial como esse,
que promessas tornariam os gentios interessados em ver a fidelidade do
Senhor? A resposta não se acha no Sinai, mas em outro chamado: o de
Abraão (Gn 12.1-3). Quando Deus lhe prometeu uma nação numerosa e uma
terra para habitar, ele também lhe prometeu que ele seria veículo de benção
dentro da sua família, mas também fora dela: “Abençoarei os que te
abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas
todas as famílias da terra” (Gn 12.3). É claro que Abraão por si só não pode
salvar ninguém, mas, por meio de Cristo, seu descendente (Gl 3.16), a bênção
prometida a pessoas de “todas as famílias da Terra” seria efetivada: “Cristo
nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso
lugar [...] para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus
Cristo, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido” (Gl
3.13,14). E essa promessa é cumprida em toda parte por meio da fé no Senhor
Jesus.
É por isso que esse pequenino salmo é tão grandioso no saltério e nas
Escrituras. Ele revela quem é Deus, quão glorioso é ele e para que existem o
universo e, principalmente, a humanidade. Ele também expõe o desejo do
Senhor de salvar pessoas de todas as nações, raças, tribos e povos, os quais
devem se curvar diante da sua majestade. Finalmente, ele revela atributos
como amor, misericórdia, graça, verdade e fidelidade pelos quais o Senhor
mantém firmes seu propósito e seu curso de ação, mesmo quando a
humanidade dá provas de que merece imediatamente ser extinta. Não é sem
razão que esse pequeno cântico está entre um grupo de salmos que bradam
(v.2c): “Exaltai ao Senhor!” (hallû-yah). Deus é, sim, digno de todo louvor,
tanto por parte de judeus como de gentios que têm fé em Cristo para perdão
de pecados. Então, ergamos juntos nossas vozes a Deus e proclamemos por
toda parte que só ele é Senhor. É para isso que existimos: “Vós, porém, sois
raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de
Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas
para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9).

SALMO 118
Agradecendo pela Salvação Presente e Futura

O pregador e professor escocês, Dr. Alexander Whyte (1836-1921), da


cidade de Edimburgo, era famoso por suas orações feitas no púlpito da igreja.
Nessas orações, ele sempre encontrava um meio de agradecer a Deus por algo
bom que estivesse fazendo àquela igreja e àqueles irmãos. Certo dia, em uma
manhã quando uma forte tempestade se abatia sobre a cidade, um membro da
sua igreja pensou consigo: “O pregador não terá nada a agradecer a Deus em
uma manhã miserável como essa”. Entretanto, o Dr. Whyte iniciou sua
oração desse modo: “Nós te agradecemos, ó Deus, porque não é sempre que
está assim”.
Esse impulso de Alexander Whyte por agradecer a Deus por seus feitos e
por sua bondade é compartilhado pelo escritor do Salmo 118. Ele, que, com
Israel, atravessou momentos de crise, oferece a Deus um agradecimento
enfático que, por meio de várias repetições, torna-se fonte de instrução para
outros adoradores. Como o salmo não apresenta uma ideia claramente linear e
alguns detalhes ficam subentendidos, não é fácil notar o fator de ligação de
todo o texto. E as citações de alguns versículos no Novo Testamento —
principalmente o v.22 —, não tornam a tarefa mais fácil. Porém, o próprio
salmista nos ajuda a entender seu contexto a fim de compreendermos o que
ele tinha em mente ao render a Deus sua gratidão.
O escritor parece ter sido o próprio rei de Israel — ou de Judá, caso a
composição tenha tido lugar na época do reino dividido, após 931 a.C. —,
visto que ele se apresenta como o comandante militar ao falar três vezes que
derrotou os inimigos (vv.10,11,12): “Mas, em nome do Senhor eu os
eliminei” (beshem yhwh kî ’amîlam). Esse ataque parece ter vindo de uma
conflagração multinacional (v.10): “Todas as nações me cercaram” (kol-
gôyim sevavûnî). O salmista interpretou o aperto pelo qual os israelitas
passaram como um juízo de Deus por pecados que eles tenham cometido
(v.18a): “O Senhor me disciplinou severamente” (yassor yisserannî yyah).
Contudo, essa disciplina parece ter sido para correção, pois ele diz na
sequência (v.18b): “Porém, ele não me entregou à morte” (welammawet lo’
netananî). Isso se deu porque Deus preservou o rei e a nação, motivo pelo
qual o salmo de agradecimento foi composto (v.21): “Eu te renderei graças,
pois me atendeste e te tornaste a minha salvação (’ôdeka kî ‘anîtanî wattehî-lî
lîshû‘â). Dentro desse quadro maior, o salmista oferece cinco verdades sobre
a pessoa de Deus no relacionamento com seus servos.
A primeira verdade é que Deus é amoroso e fiel para com seus servos
(vv.1-4). O salmo começa com um chamado público (v.1): “Rendei graças ao
Senhor, pois ele é bondoso” (hôdû layhwh kî-tôv). É óbvio que uma atuação
benéfica aos israelitas havia sido efetivada por Deus. Entretanto, o escritor
vai além dessa observação superficial dos fatos. Ele, guiado pela recordação
das promessas de Deus, oferece a razão pela qual o Senhor lhes foi bondoso,
repetindo-a cinco vezes (vv.1,2,3,4,29): “Pois sua lealdade permanece para
sempre” (kî le‘ôlam hasdô). A palavra hebraica hesed – aqui traduzida como
lealdade –, tem muitos significados como graça, bondade, misericórdia e
amor. Entretanto, quando dentro do contexto do trato do Senhor com Israel
segundo as alianças que lhes fez, principalmente no que tange às promessas a
Abraão (Gn 12,13,15) e a Davi (1Sm 7), ela assume um significado mais
específico que envolve “amor” pelos servos e “fidelidade” ao que lhes
prometeu. Assim, “amor leal” ou “lealdade” são conceitos a serem destacados
nessa ênfase repetitiva oferecida pelo salmista. Ele agradece a Deus por não
desistir do seu povo, nem das promessas que lhe fez.
A segunda verdade é que Deus é o alvo da confiança dos seus (vv.5-9). O
salmo foi escrito depois de um tempo de perigo. Mas, apesar do aperto, seus
servos não viram razão para desconfiar que o Senhor lhes ouviria a oração
(v.5): “Em meio ao aperto, eu clamei ao Senhor. O Senhor me atendeu com a
largura” (min-hammetsar qara’tî yyah ‘ananî bammerhav yah). Cabe aqui
uma explicação sobre essa “largura” ou “lugar espaçoso” (merhav). Essa
palavra está colocada na frase em anteposição ao “aperto”, ou “perigo”
(metsar) do início da frase, evidenciando que o Senhor reverteu exatamente o
que lhes causava sofrimento. É como se estivessem apertados em um
cubículo e Deus lhes tirasse dali e os colocasse em um lugar onde a última
coisa que sentissem fosse aperto. Por isso, a conclusão é que Deus se faz
próximo dos seus (vv.6a,7a): “O Senhor está a meu favor” (yhwh lî). Isso
gerou no salmista uma confiança verdadeira cujo efeito se fazia sentir de
modo prático em sua vida (v.6b): “Eu não terei medo. O que os homens
poderão fazer a mim?” (lo’ ’îra’ mah-yya‘aseh lî ’adam). Por isso, olhando
para o poder dos exércitos e dos seus príncipes e para sua capacidade de
promover uma proteção e refúgio contra o perigo, conclui-se (vv.8a,9a) que
“é melhor se refugiar no Senhor” (tôv lahasôt bayhwh).
A terceira é que Deus é capaz de reverter as piores situações (vv.10-17).
Uma hipérbole entra em ação para descrever as circunstâncias difíceis
daqueles dias (v.10): “Todas as nações me cercaram” (kol-gôyim sevavûnî).
Não quer dizer que cada nação do mundo tenha se unido para atacar Israel,
mas que “várias” nações se ajuntaram formando um poder considerável. O
termo “todas” cumpre uma figura hiperbólica que visa a enfatizar o drama do
sofrimento que eles atravessaram (v.11a): “Eles me cercaram por todos os
lados” (savvûnî gam-sevavûnî). Os exércitos eram numerosos e perigosos
(v.12a): “Eles me cercaram como abelhas” (savvûnî kidvôrîm). É uma
situação complicada cujo desfecho dificilmente poderia ser favorável. Porém,
contra a lógica humana, o salmista afirma (vv.10b,11b,12b): “Mas em nome
do Senhor eu os eliminei” (beshem yhwh kî ’amîlam). Apesar de a ação de
repelir os inimigos seja creditada ao rei, ao dizer que o fez “em nome do
Senhor” revela-se a fonte verdadeira da vitória: a ação do Deus soberano. O
mesmo é dito de modo mais claro a fim de render ao Senhor o resultado da
vitória (v.13): “Eles me empurraram com força para eu cair, mas o Senhor me
protegeu” (dahoh dehîtanî lifpol wayhwh ‘azaranî). Diante disso, o escritor
enfatiza a razão de Israel ainda estar de pé quando tudo indicava que o
resultado seria outro (vv.15b,16b): “A destra do Senhor faz proezas” (yemîn
yhwh ‘osâ hayil). E essa proeza foi fazer seu servo permanecer na pior
situação que ele já havia atravessado (v.17).
A quarta verdade é que Deus é sábio ao guiar a história (vv.18-24). O
salmista não fala apenas de libertação, mas também de punição. Segundo ele,
o que Israel passou não se devia às vicissitudes da vida, mas à disciplina de
Deus (v.18a): “O Senhor me disciplinou severamente” (yassor yisserannî
yah). Contudo, a sequência do texto expõe o propósito divino sábio de tratar
seu povo sem o deixar perecer. Tais propósitos também se mostram sábios na
promoção da justiça (vv.19,20). Nesse texto – e em diversos outros salmos –,
a palavra “justiça” (tsedeq) não tem apenas caráter moral, mas um sentido
nacional de libertação no qual os inimigos são descritos como injustos e o
fazer justiça significa Deus livrar seus servos das mãos dos adversários.
Entretanto, é claro que o Senhor, ao reverter o quadro duro do v.18, atingiu
seu objetivo e mostrou guiar os rumos da história de modo sábio e justo,
motivo pelo qual é louvado (v.21). Por isso, ainda que Israel estivesse em
uma situação em que fosse considerado uma pedra inútil a ser descartada, ou
seja, prestes a ser destruído (v.22), Deus fez algo maravilhoso ao reconduzi-
los à sua condição original (vv.23,24). O fato de o Novo Testamento aplicar o
v.22 a Jesus (Mt 21.42; At 4.11; Ef 2.20) mostra que Deus é sábio e poderoso
tanto para fazer Israel ser poupado diante de nações maiores como para fazer
aquele que era visto como um simples e pobre carpinteiro ser glorificado
como rei e salvador.
A última verdade é que Deus reserva uma salvação ainda maior (vv.25-
29). Mesmo agradecendo por uma libertação já efetivada, o salmista clama
por uma salvação mais ampla e definitiva (v.25): “Nós te pedimos, ó Senhor:
‘Salva-nos, por favor!’” (’anna’ yhwh hôshî‘â na’) — a palavra “hosana” (Jo
12.13) é a proclamação desse pedido: “Salva-nos, por favor!” (hôshî‘â na’).
Se não fica claro no v.25 que tipo de salvação ele tem em mente, no texto
seguinte surge a figura de uma libertação orquestrada por alguém que virá da
parte de Deus (v.26a): “Bendito é o que vem em nome do Senhor!” (barûk
havva’ beshem yhwh). Parece que tanto o salmista como os judeus em geral
tinham a esperança da chegada de um rei eterno (Mq 5.2) que promoveria
restauração plena para Israel (Mq 5.3,4) e para o mundo (Mq 4.1-4). Por isso,
quando Jesus chegou a Jerusalém, esse foi um dos dizeres bradados pelos
israelitas quando ele passava montado em um jumentinho (Mt 21.9). Isso eles
fizeram enquanto dispunham ramos pelo caminho, cumprindo, assim, outro
chamado do salmista (v.27). Ao olhar para o futuro e vislumbrar a redenção
plena — nacional e espiritual —, o escritor do salmo bendiz a lealdade de
Deus (v.29), mas não sem antes afirmar enfaticamente seu relacionamento
pessoal com seu salvador (v.28): “Tu és meu Deus” (’elî ’attâ) e “ó Deus
meu” (’elohay).
Como não agradecer a Deus por ser tudo que é? Na verdade, por ser tudo
que é especialmente “para nós”, que fomos salvos gratuitamente pelo seu
amor leal por meio da fé no Senhor Jesus. Sendo assim, nos cumpre aprender
as sábias lições de Deus, manter dependência do seu poder por meio da
oração e aguardar com plena gratidão o dia glorioso em que, vindo
novamente Jesus, digamos todos: “Bendito é o que vem em nome do
Senhor!”.

SALMO 119
A Maravilhosa ‘Palavra de Deus’

O escritor e crítico social norte-americano Sinclair Lewis (1885-1951),


prêmio Nobel de Literatura de 1930, contou que, certa vez, cruzando o
Atlântico, viu uma senhora no deque do navio lendo seu último livro. Essa
obra estava causando discussões acaloradas por toda parte. A julgar pelo
número de páginas que a mulher já tinha lido, ele imaginou que ela já
estivesse perto da parte mais chocante da obra, justamente aquela que vinha
causando maior perturbação entre os leitores em geral. Sendo assim, Lewis
ficou aguardando para ver qual seria a reação daquela senhora. Quase na
mesma hora, ela se levantou, andou a passos firmes até o parapeito do convés
e atirou longe o livro para dentro do oceano.
Para dizer a verdade, ao ler essa história me veio à mente a reação das
pessoas de hoje diante das Escrituras. Ainda que nem todos atirem longe
exemplares da Bíblia, na prática é isso que fazem. Ignoram-na por completo,
rejeitando sua fonte, veracidade e aplicação. O escritor do Salmo 119 jamais
faria algo assim. Ele tem uma visão realmente elevada da Palavra de Deus.
Esse é o maior dos salmos em termos de tamanho. Na verdade, é o capítulo
mais longo da Bíblia. Seus 176 versículos estão dispostos em 22 estrofes com
oito versos cada. Em cada uma dessas estrofes, todos os oito versos começam
com a mesma letra, seguindo a ordem alfabética da língua hebraica. Assim,
os vv.1-8 são iniciados com a letra aleph, os vv.9-19 com a letra beit e assim
por diante, até chegar na última letra do alfabeto hebraico, a letra taw
(vv.169-176). Entretanto, apesar de tantos versículos, o assunto central de
todos eles é o mesmo: as Escrituras. Várias palavras com sentidos teológicos
sinônimos são utilizadas como “lei” (tôrâ), “testemunhos” (‘edot), “caminho”
(derek), “preceitos” (piqqûdîm), “mandamentos” (mitswôt), “juízos”
(mishpatîm), “decretos” (huqqîm), “palavra” (davar) “mandato” (’imrâ) e
“condutas” (’orahôt).
Todo esse trabalho se prestou a demonstrar que, para o salmista, as
Escrituras tinham um valor prático enorme. Ao lermos essa longa poesia,
percebemos que pelo menos cinco benefícios são oferecidos àqueles que
aprendem o que o Senhor ensinou por meio da Bíblia. Nossa intenção não é
tratar cada versículo, mas mostrar, em linhas gerais, os pensamentos que
dirigem o salmo e que apontam os benefícios de aprender e atender as
palavras de Deus.
Assim, o primeiro benefício é o conhecimento útil. A Palavra de Deus é
alvo do estudo e da reflexão do salmista (v.15): “Que eu medite nos teus
preceitos e que preste atenção aos teus caminhos” (befiqqudeyka ’asîhâ
we’avvîtâ ’orhoteyka). Parece que, nesse sentido, ele vê a Palavra de Deus
como algo “útil” por meio do que nos faz conhecer, educando-nos diante do
professor divino, assim como também via o apóstolo Paulo: “Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a
correção, para a educação na justiça” (2Tm 3.16). O escritor do salmo
também percebe que o ensino do Senhor ajuda o homem que o aprende a se
afastar do mal (v.104): “Eu obtenho entendimento a partir dos teu preceitos,
de modo que eu odeio toda conduta enganosa” (miffiqqûdeyka ’etbônan ‘al-
ken sane’tî kol-’orah shaqer). A utilidade desse benefício é tão grande que o
salmista fez o conhecimento das Escrituras se tornar alvo das suas orações e
um objetivo a ser perseguido com afinco (v.125): “Eu sou teu servo. Dá-me,
[pois] entendimento para que eu conheça os teus testemunhos” (‘avd‑ka-’anî
havînenî we’ede‘â ‘edoteyka).
O segundo benefício é a santificação da vida. A Palavra de Deus não
transmite um conhecimento inerte e meramente teórico. Ela conduz aquele
que a busca a uma vida diferente. Quando buscada com seriedade, ela produz
pureza no servo ao apontar o que é moralmente correto e o que é injusto
segundo os padrões de Deus (v.9): “Como um jovem purificará a sua
conduta? Por meio da vigilância de acordo a tua palavra” (bammeh yezakkeh-
na‘ar ’et-’orhô lishmor kidvareka). Desse modo, o estudo e a retenção da
mensagem bíblica se revelam ferramentas incomparáveis na busca da
comunhão com Deus pelo afastamento do pecado. Essa era uma ferramenta
que o próprio salmista utilizava (v.11) “Eu armazenei no meu coração o teu
mandato com o objetivo de não pecar contra ti” (belivvî tsafantî ’imrateka
lema‘an lo’ ’eheta’-lak). Essa ideia de “armazenar” ou “entesourar” aponta
para os fatos de que não há conhecimento bíblico que baste e de que há
necessidade de uma busca constante, não apenas para saber mais, mas para
ser diariamente alimentado com ela a fim de que o servo de Deus não se
desvie do bem. Na verdade, quem se apega aos ensinos de Deus passa a
rejeitar as coisas ruins (v.163): “Eu odeio e detesto a mentira, [mas] amo a tua
lei” (sheqer sane’tî wa’ata‘evâ tôrateka ’ahavetî). Conforme ensina o Salmo
1, esse servo começa a se afastar da companhia e da influência dos ímpios
(v.158): “Eu vi os infiéis e senti repugnância, pois eles não seguem o teu
ensino” (ra’îtî bogedîm wa’etqôtatâ ’asher ’imrat eka lo’ shamarû).
O terceiro benefício é a felicidade verdadeira. A justiça de Deus expressa
nas Escrituras era a razão de alegria para o escritor (v.47): “Eu me deleito
nos teus mandamentos, os quais eu amo” (we’eshta‘asha‘ bemitsôteyka ’asher
’ahavetî). Esse deleite se deve aos efeitos positivos que a Palavra de Deus
causava ao guardá-lo dos caminhos destrutivos do pecado. Para esse fim, ela
fornece a verdadeira sabedoria — não aquela enaltecida pelo mundo e que
tem suas fontes no orgulho e no egoísmo, mas aquela da perspectiva de Deus
(v.98a): “O teu mandamento me torna mais sábio que os meus inimigos”
(me’oyevay tehakkemenî mitsôteka). Essa sabedoria é também associada ao
afastamento dos maus caminhos que, obviamente, causam sofrimento
(v.101): “Eu desvio meus pés de todo mal caminho porque guardo a tua
palavra” (mikkol-’orah ra‘ kali’tî raglay lema‘an ’eshmor devareka). Além de
evitar danos que levam à tristeza e à perda da paz, a revelação de Deus
produz verdadeira felicidade ao fornecer ao homem a esperança de um futuro
pleno de alegria junto ao Senhor por meios das suas promessas (v.162): “Eu
exulto por causa da tua promessa como quem acha muitos despojos” (sas
’anokî ‘al-’imrateka kemôtse’ shalal rav).
O quarto é a confiança no Senhor. A situação desse salmista não era fácil.
Ele tinha muitos inimigos que o caluniavam, mesmo sendo ele alguém que
buscava seguir o ensino bíblico (v.69): “Os presunçosos urdem enganos
contra mim, [enquanto] eu guardo de todo coração os teus preceitos” (toflû
‘alay sheqer zedîm ’anî bekol-lev ’etsor piqqûdeyka). Ele passou por um risco
iminente de ser abatido, razão pela qual se viu necessitado de buscar o auxílio
divino (vv.86b,87a): “Eles me perseguem injustamente. Ajuda-me! Eles
quase me aniquilaram na terra” (sheqer redafûnî ‘ozrenî kim‘at killûnî
ba’arets). Entretanto, apesar da ferocidade e periculosidade desses ataques, o
salmista continuou andando firme, guiado pela Palavra de Deus (v.87b):
“Mas eu não abandono os teus preceitos” (wa’anî lo’-‘azavtî piqqudeyka). É
notável ver como ele equilibra o sofrimento com os ensinos do Senhor para
permanecer de pé (v.81): “A minha alma desfalece enquanto espero teu
livramento, [contudo] ponho minha esperança na tua palavra” (koltâ
litshû‘ateka nafshî lidvareka yihaletî). Por fim, as verdades sobre Deus, sobre
seu amor e sobre suas promessas eram o consolo real para quem sofria
duramente (v.50): “O meu conforto na minha angústia é isto: que a tua
palavra me restaura” (zo’t nehamatî be‘onyî kî ’imrateka hîyatenî).
O último benefício é a devoção reverente. O louvor e a adoração ao
Senhor estão diretamente ligados à contemplação de Deus por meio do que
ele revelou ao homem (v.7): “Eu te exaltarei com coração sincero ao aprender
teus retos juízos” (’ôdeka beyosher levav belamedî mishpetê tsidqeka). Isso
acontece porque a perfeição de Deus se deixa ver na perfeição da revelação
(v.96): “Eu vi que para toda perfeição há um fim, [mas] o teu mandamento se
dilata infinitamente” (lekol tiklâ ra’îtî qets rehavâ mitswateka me’od).
Portanto, o salmista se dedica a louvar o Senhor por tudo que aprendeu sobre
ele (v.171): “Meus lábios transbordam de louvor, pois tu me ensinas os teus
decretos” (tavva‘nâ sefatay tehillâ kî telammedenî huqqeyka). Tal
conhecimento é a alavanca indispensável para que o homem cumpra seu
propósito de glorificar o criador eterno e soberano (v.175): “Que a minha
alma viva e te louve; e que os teus juízos me ajudem” (tehî-nafshî ûtehalleleka
ûmishpateka ya‘azerunî).
E então? Vamos nos submeter aos ensinos do Senhor, ou vamos dar
ouvidos ao mundo perdido? Vamos valorizar aquilo que é justo, reto e
verdadeiro, ou vamos nos enamorar dos valores corrompidos da iniquidade?
Vamos investir tempo e esforço na leitura, compreensão e aplicação da
Palavra de Deus, ou perder nosso precioso tempo com literaturas e
programações inúteis e até destrutivas? Que o apreço do salmista pela
revelação santa e justa de Deus nos motive a responder positivamente com
nossas vidas a cada um desses questionamentos. E que, ao final, possamos
dizer a Deus de todo coração e por experiência própria (v.86a): “Todos os
teus mandamentos são verdadeiros” (kol-mitsôteyka ’emûnâ).

SALMO 120
Vivendo em um Mundo Hostil

Em 1894, Alfred Dreyfus (1859-1935), um oficial judeu da artilharia do


Exército Francês, foi julgado injustamente, com base em documentos falsos,
sob a acusação de ser um espião a serviço dos alemães. A real razão para sua
perseguição, o antissemitismo — preconceito e hostilidade contra judeus —,
ficou clara durante uma série de fraudes impetradas por autoridades francesas
para condenar Dreyfus. Na verdade, o antissemitismo se fez sentir ao longo
de toda a história da era cristã, como na perseguição feroz na época da
inquisição espanhola e no holocausto promovido pela Alemanha nazista
durante a Segunda Guerra Mundial. Em vista do antissemitismo patente no
caso Dreyfus, Theodor Herzl (1860-1904) passou a preconizar a reconstrução
de uma soberania nacional judaica, dando origem ao movimento sionista que
resultou, décadas depois, na fundação do Estado de Israel.
A situação dos israelitas nos dias da composição do Salmo 120 não era
muito diferente. O título do salmo significa, literalmente, “cântico dos
degraus” (shîr hamma‘alôt) — esse título, com pequena variação no Salmo
121, inicia quinze salmos dispostos em sequência no saltério (120—134). Por
degraus entende-se uma “subida”, a qual é identificada com a jornada morro
acima até a cidade de Jerusalém. Por isso, essa expressão também pode ser
traduzida como “cântico de romagem”, tendo em mente a viagem que
israelitas de toda parte faziam para ir ao Templo adorar a Deus nas festas
obrigatórias. Quando se nota o contexto de cada salmo, percebe-se que eles
citam localidades distantes — Meseque e Quedar (Sl 120) — e vão se
aproximando na sequência dos salmos até chegar à casa do Senhor (Sl 134).
Por essa razão, supõe-se que esses salmos eram cantados pelos peregrinos
desde a saída de seus lares até a sua chegada ao Templo. Sendo assim, é dos
lugares mais longínquos que esse salmo vê os israelitas iniciando sua
peregrinação anual. Ao fazê-lo, ele não aponta somente a situação dos judeus
exilados, mas também dos cristãos, evidenciando três características da vida
dos servos de Deus que habitam o mundo perdido.
A primeira característica da vida daqueles que pertencem a Deus e habitam
entre quem não teme ao Senhor é que eles são odiados e perseguidos (vv.5-
7). A situação dos judeus que vinham de fora da Palestina para adorar em
Jerusalém era muito difícil (v.5): “Ai de mim, pois vivo exilado em Meseque
e habito junto às tendas de Quedar” (’ôyâ-lî kî-gartî meshek shakantî
‘im-’aholê qedar). Essa não é a realidade de uma só pessoa, mas dos exilados
em geral, já que dois lugares muito distantes são citados. A terra de Meseque
era localizada em uma região montanhosa a sudeste do mar Negro, ao norte
da Síria, muito distante de Israel, e era habitada por gente marcada por
agressividade e paganismo. Quedar ficava bem ao sul da Palestina e era
habitada por pastores nômades que viviam em tendas, cujos guerreiros,
principalmente seus arqueiros, eram famosos e temíveis. Assim, o quadro
pintado pelo salmo vislumbra israelitas exilados desde o Norte até o Sul,
possivelmente depois da destruição de Samaria pela Assíria, em 722 a.C.,
como punição prevista na lei por causa do afastamento e da infidelidade
diante do Senhor.
Essa situação, que já datava de um bom tempo, colocava esses israelitas em
uma condição bem delicada (v.6): “Há muito [tempo] a minha alma ali habita
com os que odeiam a paz” (rabbat shoknâ-lah nafshî ‘im sône’ shalôm).
Dizer que aqueles homens odiavam a paz, além de apontar a índole guerreira
daqueles povos, revela o fato de que eles tratavam os israelitas exilados entre
eles com furor. A exemplo do que aconteceu na França, Espanha e
Alemanha, os israelitas eram odiados e perseguidos por um ânimo
xenofóbico que tendia a ser irracional. Na verdade, a aliança mosaica previa
isso: “O Senhor vos espalhará entre todos os povos, de uma até à outra
extremidade da terra. [...] Nem ainda entre estas nações descansarás, nem a
planta de teu pé terá repouso” (Dt 28.64a,65a). Por isso, não havia acordo,
nem ecumenismo. Quando os israelitas tentavam buscar a paz, eram ainda
mais odiados e perseguidos (v.7): “Eu [amo] a paz, mas quando eu digo
[isso], eles [se inclinam] para a guerra” (’anî-shalôm wekî ’adavver hemmâ
lammilhamâ).
A segunda característica da vida dos servos de Deus que habitam entre os
mundanos é que eles são protegidos pelo Senhor. O salmo inicia com um
tom de gratidão, apesar do rumo sombrio para o qual ele segue
posteriormente (v.1): “Na minha angústia, eu clamei ao Senhor e ele me
atendeu” (’el-yhwh batsaratâ lî qara’tî wayya‘anenî). A circunstância
angustiosa levava os israelitas a clamarem a Deus a fim de serem protegidos
e preservados. O que é maravilhoso notar é que, apesar de estarem no exílio
por causa do pecado e da infidelidade, o Senhor não os abandonou à própria
sorte. Se isso tivesse ocorrido, eles todos teriam perecido, como aconteceu a
outros povos do passado, e não haveria nenhuma descendência de Israel
atualmente. Mas, em vez disso, Deus lhes ouviu as preces e lhes atendeu as
súplicas. E a súplica era a seguinte (v.2): “Ó Senhor, protege a minha alma
dos lábios mentirosos, da língua traiçoeira” (yhwh hatsîlâ nafshî missefat-
sheqer millashôn remîyâ). Esse texto parece mostrar que, apesar de serem
recebidos pelas nações em que seu exílio transcorria, as tramas contra eles
estavam sempre presentes. Uma palavra agradável podia esconder planos
terríveis de destruição. Atitudes traiçoeiras como essa são mais perigosas que
guerras declaradas. Mesmo assim, Deus se mostrava presente na preservação
desses israelitas que, nas ocasiões de festas, peregrinavam para Jerusalém
com sincera gratidão e com motivos muito claros e justos de adorarem o
soberano Deus.
A última característica da vida dos servos de Deus nesse contexto
desfavorável diante do mundo é que eles têm esperança de vindicação e
restauração. O aperto passado pelos peregrinos rumo a Jerusalém nas suas
terras de exílio não existia sem que eles meditassem a respeito da retribuição
divina aos maus tratos que vinham recebendo. Por isso, dirigindo-se aos
perseguidores estrangeiros, o salmista pergunta (v.3): “O que será dado a ti e
como [isso] te será retribuído, ó língua traiçoeira?” (mah-yitten leka ûmah-
yosîf lak lashôn remîyâ). O escritor do salmo não está buscando uma resposta,
pois ele demonstra conhecê-la. A pergunta apenas cria ocasião para a réplica
que é imediatamente declarada (v.4): “Flechas afiadas de soldado com brasas
de zimbro” (hitsê givvôr shenûnîm ‘im gahalê retamîm). Essa é uma figura
muito sugestiva de destruição militar. A preposição “com” (‘im) pode agir
aqui de modo duplo: ou ela é usada para fazer referência a um ataque com
flechas por um lado e fogo por outro, ou a uma só ação de se atirar flechas
inflamadas. Independente de qual seja a opção correta, a ideia de uma
destruição militar é vívida e amedrontadora.
Sendo assim, o salmista nutre a esperança de ver o Senhor vindicar seu
remanescente fiel abatendo seus inimigos. Esse, contudo, não é um quadro
isolado. A esperança israelita de punição dos maus vinha no mesmo pacote
que a esperança de restauração futura do povo de Israel que foi espalhado
pelo mundo. O primeiro profeta escritor a expor esse ensino, associando o
juízo das nações à restauração de Israel na terra da promessa, foi Obadias:
“Porque o Dia do Senhor está prestes a vir sobre todas as nações; como tu
fizeste, assim se fará contigo; o teu malfeito tornará sobre a tua cabeça. [...]
Mas, no monte Sião, haverá livramento; o monte será santo; e os da casa de
Jacó possuirão as suas herdades” (Ob 15,17). Portanto, ainda que as
condições fossem contrárias, o povo de Deus exilado por seus pecados
mantinha a esperança de que o Senhor, por sua graça e soberania, inverteria a
situação e lhes daria a paz e o cumprimento das promessas.
Com os cristãos não é diferente. Eles foram feitos cidadãos celestiais pela
fé (Fp 3.20), mas ainda vivem em um mundo em que o diabo é chamado
“deus desse século” (2Co 4.4). Por esse motivo, vivem em terra alheia onde
são odiados, segundo o que disse Jesus: “Eu lhes tenho dado a tua palavra, e
o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como também eu não sou”
(Jo 17.14). Eles também experimentam, em diversas medidas, a hostilidade
do mundo ao povo de Deus. Mas é certo que o Senhor também se rende a
protegê-los, segundo a oração do próprio Jesus por sua igreja: “Não peço que
os tires do mundo, e sim que os guardes do mal” (Jo 17.15). Finalmente, os
cristão também têm uma esperança futura. Eles sabem que o mal será punido
e que aqueles que foram salvos gratuitamente pela fé no Senhor Jesus serão
reunidos de todas as partes e recebidos por Deus por toda eternidade: “Então,
dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai
na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. [...]
Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de
mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos” (Mt
25.34,41).
Como esse conhecimento pode afetar nossa vida hoje? É simples! Em
primeiro lugar, assim como o salmista, continuemos a abrir nossa boca para
anunciar a mensagem da paz, a paz de Cristo produzida por seu sacrifício na
cruz, ainda que o mundo responda com ódio. Mantenhamos a esperança
futura de restauração e de habitação eterna com nosso Senhor. E insistamos
fielmente em peregrinar às nossas igrejas para apresentar, junto aos nossos
irmãos, louvor verdadeiro a Deus em um mundo que se afastou dele.

SALMO 121
O Único e Supremo Protetor

Um artista, certa vez, pintou um quadro muito interessante. Tratava-se de


uma cena noturna na qual um homem solitário remava uma pequena canoa no
meio de um lago. O vento era forte e ondas atingiam a frágil embarcação sem
parcimônia. Não havia nada visível no céu com exceção de uma única estrela
solitária que brilhava em meio à escuridão temível. O viajante mantinha seus
olhos fixos na estrela e continuava seguindo em frente. Ele prosseguia firme,
sem parar, no meio da noite tempestuosa. Abaixo da figura do homem guiado
por uma única estrela estava escrito: “Se eu a perder de vista, estou perdido”.
O Salmo 121 foi escrito por alguém que também olhava fixo para sua única
esperança. Porém, em vez de sua segurança vir de uma estrela, o refúgio
visualizado por ele era o Deus criador de tudo que existe. Esse também é um
“cântico de degraus” ou um “cântico para a romagem” (shîr lamm‘alôt). Se o
salmo anterior vislumbrava os peregrinos em suas habitações no exílio em
meio às hostilidades do mundo, este salmo parece colocá-los no momento da
saída de seus lares a fim de seguir sua jornada até Jerusalém. Em certo
sentido, esse era um momento alegre. Mas também era uma ocasião de
preocupação e aflição, pois esses viajantes teriam de deixar seus lares
desprotegidos e suas preciosas famílias, além do seu patrimônio. O perigo de
sair de casa não era somente para quem ficava, mas também para os
viajantes, pelo que o salmista busca proteção no Senhor e põe nele sua
confiança desde sua saída até seu retorno (v.7), atravessando os muitos
perigos da sua jornada morro acima até Jerusalém (v.1). Não é sem motivo
que Deus é chamado várias vezes de “guarda” ou “protetor” (shomer). Por
isso, o salmo apresenta quatro fontes de esperança do salmista na proteção
efetiva de Deus em uma situação em que ele tinha medo e falta de paz.
A primeira fonte de esperança do salmista é a capacidade do protetor
(vv.1,2). O salmo inicia com a perturbação do escritor ao se ver necessitado
de proteção (v.1): “Eu elevo os meus olhos para os montes [e digo]: ‘De onde
virá o meu socorro?’” (’essa’ ‘ênay ’el-heharîm me’ayin yavo’ ‘ezrî). A
função desses “montes” na frase é um pouco enigmática. Pode ser que o
salmista esteja procurando nos montes quem lhe possa socorrer. Nesse caso,
o conceito do Deus Todo-poderoso (‘el shadday) viria como resposta,
principalmente porque a palavra shadday, de sentido misterioso, tem sido
associada à palavra acadiana sadu, cujo significado é “montanha”. Assim, o
Deus poderoso que vem do alto, de cima dos montes, seria o que o salmista
busca com sua visão para cima.
Entretanto, a preocupação do salmista parece vir justamente em decorrência
do seu olhar para os montes. Nesse caso, isso poderia significar que ele,
preparando-se para seguir a Jerusalém, subindo os montes que levam até lá,
antevia os riscos que enfrentaria, tanto ao deixar seu lar como ao se aventurar
em caminhos perigosos. As estradas por onde ele passaria eram visadas por
ladrões por causa da passagem dos peregrinos e da geografia que lhes
fornecia inúmeros esconderijos e locais para emboscadas. O salmista se vê
impotente para chegar ao seu destino em segurança por seus meios próprios,
de modo que busca por um protetor. A resposta é inequívoca e imediata:
(v.2): “O meu socorro vem do Senhor que fez os céus e a Terra” (‘ezrî me‘im
yhwh ‘oseh shamayim wa’arets). Ele poderia associar Deus, como protetor, a
qualquer de seus feitos. Mas o associa ao ato da criação, relembrando a
capacidade do Senhor de fazer tudo que quiser, sem quaisquer limites ou
dificuldades. Esse era o seu protetor: o Deus onipotente e soberano, o ’el
shadday.
A segunda fonte de esperança do salmista é a constância do protetor
(vv.3,4). Por se tratar de uma viagem longa e cansativa, além de muito
arriscada, o clamor dos peregrinos ao Deus de Israel era (v.3a): “Que ele não
deixe que teus pés tropecem” (’al-yitten lammôt ragleka). A partir desse
momento, o salmista se dirige a alguém usando pronomes da segunda pessoa
singular. Desse modo, ou ele está respondendo a si mesmo, a respeito dos
seus temores, como se a resposta viesse de outro, ou está dizendo as razões
da sua fé a outros viajantes que, como ele, sentiam as mesmas inseguranças.
De qualquer modo, o pedido para que seus pés não tropeçassem não era
suficiente, pois a preocupação preenchia o longo e demorado percurso. A
ideia de perder a proteção divina em algum ponto da estrada era
amedrontadora. Por isso, comparando o Senhor a uma sentinela, o pedido é
que sua proteção fosse constante, não intermitente como acontece a guardas
humanos que têm de repousar (v.3b): “Que não cochile aquele que te guarda”
(’al-yanûm shomreka). Apesar dos temores, a conclusão é oferecida
prontamente, sem qualquer desconfiança a respeito da atenção e cuidado
constantes de Deus pelos seus, em uma afirmação categórica que torna sem
sentido os medos do versículo anterior (v.4): “Por certo o guarda de Israel
não cochila nem dorme” (hinneh lo’-yanûm welo’ yiyshan shômer yisra’el).
A terceira fonte de esperança é o cuidado do protetor (vv.5-7). Outro
temor seria: “Será que Deus me protegerá em tudo com real cuidado ou
apenas me tratará como um dentre milhares?”. A resposta que tranquilizava
tais viajantes era o caráter do protetor (v.5a): “O Senhor é quem te guarda”
(yhwh shomreka). Mesmo sendo uma resposta simples, ela não é simplória,
pois traz à memória tudo que Deus já havia feito por seu povo e com que
cuidado os mantinha. A convicção de uma atuação próxima e personalizada
encorajava os peregrinos. Eles sabiam que o Senhor os acompanharia como
se fosse suas próprias sombras, lado a lado em toda jornada (v.5b): “O Senhor
é a tua sombra junto à tua mão direita” (yhwh tsilleka ‘al-yad yemîneka). O
cuidado se daria em todos os sentidos (v.6): “O Sol não te fará dano durante o
dia, nem a Lua durante a noite” (yômam hashemesh lo’-yakkekkâ weyareah
balloylâ). Os danos do Sol, como insolação e queimaduras, são conhecidos
de nós, mas os danos da Lua não. Algumas pessoas interpretam tais danos
como problemas de ordem psiquiátrica que, no passado, eram associados às
fases da Lua. Mas isso não é provável. É mais plausível que o salmista esteja
citando o Sol e a Lua como figuras do dia e da noite, transmitindo que o
cuidado de Deus era tão intenso que ele os livraria dos perigos do dia e da
noite. Ele diz o mesmo, a seguir, de maneira mais clara (v.7): “O Senhor te
guardará de todo mal. Ele guardará a tua alma” (yhwh yishmorka mikkol-ra‘
yishmor ’et-nafsheka).
A última fonte de esperança do salmista é a companhia do protetor (v.8).
Na era dos carros, trens e aviões, uma preocupação que não conhecemos é a
de fazer uma viagem que dure obrigatoriamente semanas ou até meses. Mas
na época do salmista, essa era uma realidade constante. Além disso, o
paganismo impregnava a mente das pessoas com a ideia de uma geografia
dos deuses, ou seja, o lugar de habitação e de atuação de cada deus. Viajar
para longe podia significar, na mente do homem antigo, ir para longe da
presença e da proteção do seu deus. Mas o salmista, conhecedor das
Escrituras, conhece quem é o Deus único e verdadeiro e sabe que ele não se
limita geograficamente. Por isso, ele podia afirmar com toda a segurança
(v.8a): “O Senhor guardará a tua saída e a tua vinda” (yhwh yishmor-tse’teka
ûvô’eka). Ele está se referindo ao percurso total da sua jornada, desde a
“saída” de casa, até sua “vinda” ao lar, retornando aos seus. Em todo o
percurso Deus o acompanharia e lhe traria de volta a salvo. E essa esperança
não tinha data de validade ou prazo de expiração, pois, segundo diz (v.8b),
Deus faz isso com os seus “desde agora até a eternidade” (me‘attâ
we‘ad-‘ôlam). Com essas certezas em mente, pode-se arrumar as malas e
partir!
Hoje não peregrinamos para adorar a Deus em lugares específicos e
distantes, mesmo porque o cristianismo não tem lugares santos ou templos
especiais para a adoração. Deus está junto a cada crente (Mt 28.20), por meio
da habitação do Espírito Santo (1Co 6.19), e se faz presente em qualquer
ajuntamento santo dos seus filhos (Mt 18.20). Entretanto, as necessidades e
temores do salmista e dos demais peregrinos daqueles dias não estavam
ligados apenas à jornada para adorar no Templo, mas aos perigos do mundo,
os quais também nos afligem. Por isso, nossos temores não são diferentes dos
israelitas do passado, nem nossas razões de esperança ligadas ao Deus
verdadeiro. Por isso, nos momentos de insegurança é para a capacidade,
constância, cuidado e companhia do protetor que temos de olhar, pensando
conosco: “Se eu o perder de vista, estou perdido”.

SALMO 122
O Ajuntamento que Unifica o Povo de Deus

Certa vez, Plínio, o Moço (61-144), governador da Bitínia, escreveu ao


imperador Trajano (53-117) indagando as razões de os cristãos estarem sendo
perseguidos e mortos. Para aclarar sua questão, ele informou o seguinte ao
imperador romano: “Eu tenho buscado reunir toda informação que posso a
respeito deles. Até contratei espiões para professarem ser cristãos e serem
batizados com o objetivo de se infiltrarem nos seus cultos sem levantar
suspeitas”. Depois de explicar os métodos da investigação, Plínio relatou suas
descobertas: “Ao contrário do que eu havia suposto, descobri que os cristãos
se reúnem tarde da noite ou de manhã bem cedo, que eles cantam um hino a
Cristo como Deus, que leem seus próprios escritos sagrados e que partilham
uma refeição muito simples que consiste de pão, vinho e água (a água é
misturada ao vinho a fim de diluí-lo de modo que haja o suficiente para
todos). Isso é tudo que eu descobri, com exceção de que eles se exortam
mutuamente a se sujeitarem às autoridades e a orarem por todos os homens”.
A verdade é que Plínio percebeu que os cristãos se reuniam sem que nada
maculasse tais encontros. Em vez disso, a paz, o amor, a devoção e a
fidelidade eram as marcas de um ajuntamento singelo, mas ao mesmo tempo,
cheio de esplendor.
O rei Davi, escritor do Salmo 122, conhecia as características santas do
ajuntamento do povo de Deus para prestar adoração. Davi é declaradamente o
autor de quatro “cânticos de romagem” (122, 124, 131, 133), além de ser
citado várias vezes no Salmo 132, não como escritor, mas como receptor de
uma promessa cuja esperança era compartilhada com outros. O Salmo 122,
escrito depois da unificação do reino por Davi (1104 a.C.), da tomada de
Jerusalém para servir de sede do governo nacional (2Sm 5) e da construção de
um tabernáculo para receber o arca trazida da casa de Abinadabe (2Sm 6), foi
composto para encarecer os ajuntamentos oficiais, nas festas religiosas, em
obediência e adoração a Deus. Pela posição em que o salmo foi disposto no
saltério, os estudiosos supõem que ele fosse cantado quando os peregrinos,
depois da sua jornada, chegavam a Jerusalém em meio à alegria não apenas
de ter completado a viagem, mas de estar diante da casa do Senhor, local que
marcava a presença de Deus no meio do povo de Israel. Esse ajuntamento é
extremamente encarecido por Davi, não sem que ele apresente quatro fatores
teológicos e práticos ligados à união cultual do povo de Deus.
O primeiro fator ligado ao ajuntamento do povo de Deus é o sentimento de
se reunir na presença do Senhor (vv.1,2). O rei, ao promover o culto
público em Jerusalém por meio da construção do tabernáculo no qual colocou
a arca da aliança, se alegrou a ponto de liderar a comitiva que conduziu a arca
portas adentro da cidade: “Davi dançava com todas as suas forças diante do
Senhor; e estava cingido de uma estola sacerdotal de linho. Assim, Davi, com
todo o Israel, fez subir a arca do Senhor, com júbilo e ao som de trombetas”
(2Sm 6.14,15). Os peregrinos israelitas sentiam o mesmo e, ao que tudo
indica, entravam em Jerusalém cantando (v.1): “Eu me alegrei quando me
disseram: ‘Nós iremos à casa do Senhor’” (samahtî be’omerîm lî bêt yhwh
nelek). As peregrinações santas eram momentos aguardados durante o ano
todo. Mas o motivo de alegria não vinha apenas de saber que era chegado o
tempo da jornada, mas de participar efetivamente dela junto com outros
israelitas (Sl 55.14), cujo ânimo, mesmo na dura, cansativa e perigosa
viagem, era de louvor e júbilo (Sl 42.4).
Entretanto, é indiscutível que o auge da viagem era a chegada a Jerusalém.
Passar por seus portões, adentrar seus muros e ver o Templo do Senhor
produzia um sentimento que eles almejavam durante toda a jornada, até que
pudessem dizer (v.2): “Os meus pés estão postados nos seus portões, ó
Jerusalém” (‘omedôt hayû raglênû bish‘arayik yerûshalaim). Essa menção à
Jerusalém, dirigindo-lhe as palavras como se a cidade fosse uma pessoa que
pudesse ouvir e responder, é uma demonstração de como esse local era
importante para Israel. Além de ser a sede do reinado, ela significava muito
mais. Era o local da habitação simbólica de Deus, lugar em que se faziam os
sacrifícios contínuos ao Senhor. Além disso, a cidade retinha as esperanças
de Israel no tocante ao futuro. Era uma grande alegria estar ali.
O segundo fator é o benefício de se reunir na presença do Senhor (vv.3-
5). O próximo versículo é muito difícil de ser traduzido e interpretado (v.3):
“Jerusalém está construída como uma cidade que vive estreitamente unida”
(yerûshalaim havvenûyâ ke‘îr shehuvverâ-lah yahdaw). Inegavelmente, essa
pode ser uma menção à arquitetura da cidade, aproveitando a segurança dos
seus montes, mas, ao mesmo tempo, limitada geograficamente por eles
mesmos. Quando isso acontece, o espaço tem de ser bem aproveitado e as
casas são construídas muito próximas umas das outras. Contudo, Davi não
parece se referir às edificações da cidade, mas à sua função de unir as tribos
de Israel. As doze tribos israelitas, apesar de serem territorialmente
independentes umas das outras, assim como os Estados de um país — razão
pela qual não era difícil que houvesse divisões políticas —, uniam-se
religiosamente como um povo apenas, o povo de Deus (v.4): “É para ali que
as tribos sobem, as tribos do Senhor, [segundo] a norma de Israel a fim de se
celebrar o nome do Senhor” (shesham ‘alû shevatîm shivtê-yah ‘edût
leyisra’el lehodôt leshem yhwh). Desse modo, a reunião pública nas festas os
beneficiava também com a estreita união política, social e fraternal. Além
disso, tais ajuntamentos eram ocasiões perfeitas para o povo buscar a justiça
que era promovida pelo regente e por seus ministros (v.5): “Pois ali se
estabeleceram os tronos de juízo, os tronos da casa de Davi” (kî shommâ
yoshvû kis’ôt lemishpat kis’ôt levêt dawîd).
O terceiro fator é o necessário para se reunir na presença do Senhor
(vv.6,7). As festas israelitas que traziam tanta alegria ao povo e o culto a
Deus na casa separada para esse fim podiam perder seu brilho e até cessar
caso se estabelecesse uma situação desfavorável. O reinado de Davi viu esses
desequilíbrios na ordem política e social mais de uma vez. Por isso, o rei se
dirige aos israelitas e os conclama a orar pela cidade por algo que era
realmente necessário (v.6a): “Orai pela paz de Jerusalém” (sha’alû shelôm
yerûshalaim). É claro que a ideia de paz na cidade significa paz para os
moradores da cidade e para aqueles que afluíam para ali a fim de adorar no
Templo. Em outras palavras: paz para todo o Israel. Por isso, a própria oração
do salmista, como exemplo a ser seguido por todo o povo, era pelas pessoas
que tinham seu coração ligado a Jerusalém e a tudo que ela representava
(v.6b): “Que tenham paz aqueles que te amam” (yishlayû ’ohavayik). Em
outras palavras, a paz em Jerusalém representava e produzia paz para os
israelitas. Que motivo melhor do que esse para fazer os beneficiários dessa
paz dobrarem seus joelhos e clamarem a Deus? A oração do salmista vai
além e focaliza, também, a estabilidade não apenas religiosa, mas política e
social, como fonte de segurança e paz para o povo, pelo que clama (v.7):
“Que haja paz na tua muralha e tranquilidade no teu palácio” (yehî-shalôm
behêlek shalwâ be’menôtayik).
O último fator inerente ao ajuntamento do povo de Deus é o motivo de se
reunir na presença do Senhor (vv.8,9). Se alguém perguntasse “por que eu
deveria fazer isso tudo?”, Davi tinha a resposta: por amor (v.8): “Por amor
dos meus irmãos e dos meus amigos eu clamarei: ‘Que haja paz em ti!’”
(lema‘an ’ahay were‘ay ’adavverâ-na’ shalôm bak). O pronome “ti”, nesse
texto, se refere a Jerusalém, de modo que o salmista mais uma vez vê a
importância fundamental da paz na cidade e no ajuntamento santo para que
seus irmãos e amigos fossem também abençoados. E mais (v.9): “Por amor
da casa do Senhor, nosso Deus, eu buscarei o teu bem” (lema‘an bêt-yhwh
’elohênû ’avaqshâ tôv laq). O amor pelo Senhor era razão suficiente não
apenas para que o povo de Deus orasse pela paz, tranquilidade e progresso do
local de reunião, mas para que eles também buscassem ativamente os fatores
que promovessem o benefício da cidade. Segundo tais palavras, parte da
adoração a Deus estava ligada à manutenção da paz e das condições de
desenvolvimento do culto e da unidade, por amor aos irmãos e ao Deus santo.
Tais lições são tão importantes e atuais que quase nos esquecemos de que o
texto foi escrito por Davi para o culto em Israel e não por um compositor
contemporâneo para se dirigir à igreja cristã. Porém, os preceitos da
mensagem do salmo são encarecidos no Novo Testamento e se aplicam
inexoravelmente a nós, igreja de Deus. Portanto, valorize você também esses
ensinos e deixe de arrumar desculpas para não estar presente às reuniões
regulares dos irmãos a fim de adorar a Deus, pretextos para valorizar mais
seus desejos e sentimentos que a paz do corpo de Cristo e motivos para fazer
acepção de pessoas dentro da igreja a fim de formar um grupo dentro do
grupo. Una-se de todo coração àqueles que foram unidos definitivamente
pelo sacrifício remidor de Jesus e dedique-se, junto a eles, a render graças ao
nosso grande Deus!

SALMO 123
Como Lidar com a Decepção

O missionário escocês Robert Moffat (1795-1883) tem seu nome gravado


nos livros de história da igreja por duas razões. A primeira delas é que ele
desenvolveu um ministério pioneiro muito relevante na África do Sul. A
necessidade de missionários naquela região do mundo era tão grande que ele,
em 1840, retornou à terra natal a fim de recrutar mais obreiros. Isso
aconteceu em meio a um inverno extremamente rigoroso. Ao chegar à igreja
em que iria pregar, percebeu que apenas um pequeno grupo de pessoas
resolveu sair de casa e enfrentar a fúria dos elementos climáticos. Além da
decepção de ver pouca gente, Moffat ficou ainda mais desanimado ao
perceber que havia apenas mulheres no grupo e o texto que ele havia
escolhido pregar era Provérbios 8.4: “A vós outros, ó homens, clamo”. Ele
ficou tão chateado que quase não notou a presença de um rapaz que estava lá
para fazer manutenção no órgão da igreja. Pregou sua mensagem sem
esperanças, sabendo que pouquíssimas mulheres seriam capazes de enfrentar
as durezas da selva. Como previu, ninguém atendeu ao seu chamado.
Entretanto, o jovem que dava manutenção no órgão ficou extasiado com o
desafio e decidiu que seguiria os passos daquele pregador. Assim, ele se
dedicou aos estudos, graduou-se em medicina e empregou o resto da sua vida
ministrando a tribos longínquas na África. Seu nome era David Livingstone
(1813-1873) e veio a ser um dos mais famosos missionários da história. Além
de missionário, ele acabou se tornando genro de Robert Moffat — essa é a
segunda razão pela qual o nome do Dr. Moffat figura nos livros de história.
O escritor do Salmo 123 sabia o que era se sentir decepcionado depois de
nutrir planos gloriosos. Segundo a sequência dos “cânticos de romagem”,
este provavelmente era cantado depois que os viajantes já tinham cruzado as
portas de Jerusalém (Sl 122) e agora contemplavam não apenas a cidade, mas
sua real condição. Nesse sentido, houve muitas épocas em que o entusiasmo
durante a viagem e a exultação da chegada rapidamente se transformavam em
decepção e tristeza ao ver as condições de vida da cidade gloriosa de Israel e
local da habitação do Templo do Senhor. O salmo não é assinado por seu
escritor, nem há referências de datação. Porém, trata-se de uma época de
revezes para a cidade, para seus moradores e para todos os israelitas que para
ali afluíam a fim de adorar no Templo.
Em várias ocasiões, durante a história de Israel no Antigo Testamento,
houve circunstâncias de aperto para Jerusalém. Contudo, a descrição de
desprezo e escárnio por parte de inimigos arrogantes, causando vergonha e
sofrimento para Jerusalém e para os peregrinos, cabe quase exclusivamente
ao período entre o retorno dos israelitas do cativeiro babilônico (538 a.C.) e a
reconstrução dos muros da cidade por Neemias (445 a.C.). Nessa época, era
exatamente assim que viviam os moradores da capital: oprimidos e zombados
por seus vizinhos ao norte (Ed 4.4; 5.3; Ne 1.3; 2.19; 4.3; 6.9). Era isso que
viam os peregrinos que chegavam a Jerusalém, cuja alegria de ir à cidade se
tornava rapidamente uma decepção. Segundo aponta o salmo, tal decepção
dava origem ao clamor a Deus. Nesse sentido, o Salmo 123 deixa
transparecer quatro atitudes dos servos de Deus que se veem decepcionados
com as condições de vida que têm de enfrentar em um mundo que serve à
carne a ao diabo.
A primeira atitude do crente diante da decepção é a fé em Deus.
Humanamente falando, as circunstâncias eram terríveis e não podiam ser
evitadas com recursos pessoais dos israelitas. Se a situação era, de fato, o
muro derribado, os moradores da cidade eram presas fáceis de bandos de
salteadores e de opositores à sua reconstrução, as “gentes da terra” (Ed 4.4).
A defesa para isso seriam as muralhas, exatamente o que não possuíam. Por
isso, sem recursos próprios, os israelitas desviavam seus olhos da segurança
de muros altos e os lançavam ao protetor divino (v.1a): “A ti elevo os meus
olhos” (’eleyka nasa’tî ’et-‘ênay). A ação de olhar para o alto como
expressão de confiança em Deus foi utilizada no Salmo 121 e era cantada
pelos peregrinos no início da sua viagem. Porém, enquanto naquele salmo os
olhos se voltavam para o alto dos montes, como busca pelo poder supremo do
Senhor, neste salmo o olhar vai mais alto e encontra o Deus eterno habitando
os céus, com um trono acima da Terra e de tudo que existe (v.1b): “Ó tu que
habitas nos céus” (hayyoshevî bashamayim). É com fé verdadeira que o olhar
dos servos de Deus se eleva a ele, pois sabem que somente no seu poder há
solução para problemas que fogem ao nosso controle. Além do mais, é uma
fé baseada na dependência que o servo tem de Deus (v.2). A fé de quem não
apenas conhece o Senhor e sabe do que ele é capaz, mas de quem necessita
dele para a proteção e a provisão.
A segunda atitude diante da decepção é a paciência. Tendo se valido da
ação de olhar a fim de exprimir a fé, o salmista desenvolve a figura (v.2):
“Eis que, como os olhos dos servos atentam para a mão dos seus senhores e
como os olhos da criada atentam para a mão da sua senhora, assim os nossos
olhos atentam para o Senhor, nosso Deus, até que ele se compadeça de nós”
(hinneh ke‘ênê ‘avadîm ’el-yad ’adônêhem ke‘ênê shifhâ ’el-yad gevirtâ ken
‘ênênû ’el-yhwh ’elohênû ‘ad sheyyehonenû). A ilustração dos servos atentos
à mão dos seus senhores providencia um quadro duplo. O primeiro vem do
fato de que os senhores, com gestos de mãos, comandavam seus servos,
motivo pelo qual era essencial observar atenta e continuamente as suas mãos.
Se o salmista chegou a pensar nisso, ele estaria recordando aos seus irmãos
que, mesmo que atravessassem dificuldades, deviam permanecer no serviço
de Deus e não se valer dos problemas como pretexto para serem infiéis.
Entretanto, o final do versículo mostra que a razão do olhar não era receber
ordens, mas aguardar a provisão benéfica. Como os servos recebiam o
sustento dos seus senhores, olhar para suas mãos significa, primariamente
nesse texto, aguardar a mão bondosa conceder o necessário. A ilustração traz
a ideia do servo mantendo constantemente os olhos nas mãos do senhor,
aguardando com paciência por aquilo que ele precisa. É essa a atitude
encarecida pelo salmista em relação a Deus. Eles aguardavam pacientemente
o dia no qual Deus, misericordiosamente, aliviaria seu sofrimento e inverteria
a situação.
A terceira atitude é a esperança. A paciência dos israelitas, ao aguardar a
libertação de Deus, não era mero otimismo infundado. Se a queda do muro,
do Templo e da cidade, em 587 a.C., foi anunciada previamente pelos
profetas (Is 64.10,11; Jr 7.34; 34.2; 38.17,18; Mq 3.12), a reconstrução da
cidade, também (Is 44.26-28; 45.13; Ez 36.36). Além do mais, havia
promessas de um grande ajuntamento futuro dos judeus dispersos pelo
mundo na sua própria terra (Ez 37.14; 39.25-29), a terra que Deus prometeu
perpetuamente a Abraão (Gn 13.14,15; 15.18-21). Pelas Escrituras, eles
sabiam que o Messias, a partir de Jerusalém, reinaria sobre a nação restaurada
e sobre as nações do mundo (Ob 17Is 59.20; Mq 4.1-3). Portanto, não era
apenas com paciência que o salmista e seus pares aguardavam a atuação
graciosa de Deus, mas também com esperança. Uma esperança baseada nas
promessas reveladas pelos profetas de Deus; esperança firme e dirigida pelas
Escrituras.
A última atitude do crente diante da decepção é a inadequação. O termo
inadequação aqui quer dizer a insatisfação com a situação presente e o desejo
de ver se cumprir tudo que Deus preparou para seu povo. Significa que não
buscamos um modo de nos acomodar ao mundo e ao seu sistema perverso de
vida. Ao contrário, nos sentimos inadequados diante dos parâmetros
corrompidos dos rebeldes. Isso, obviamente, causa no mundo oposição e
desprezo a nós, como causou aos israelitas que retornaram do exílio (v.3b):
“Pois estamos completamente fartos do desprezo” (kî-rav sava‘nû bûz). Se
uma marca da inadequação do povo de Deus ao sistema mundano é o
desprezo que recebe, outra marca é o clamor a Deus por sua graça e favor
(v.3a): “Mostra teu favor, ó Senhor, mostra teu favor” (kî-rav sava‘nû bûz).
Essa oração não visa a fazer com que os servos de Deus “dancem conforme a
música”, mas sim ao favor de Deus confirmando suas promessas e firmando
seu povo ao passo que julga o mundo mau. Tal inadequação também é vista
no modo como o salmista enxerga os perdidos, não como pessoas a serem
imitadas, mas reprovadas, pelo que os chama de “arrogantes” e “orgulhosos”
(v.4): “A nossa alma está completamente farta do escárnio dos arrogantes, do
desprezo dos orgulhosos” (ravvat sov‘â-lah nafshenû halla‘ag
hasha’anannîm havvûz liga’ayônîm). Deve-se notar que tal visão não afeta o
testemunho e os bons modos dos servos de Deus, de modo que se tornem,
eles mesmos, arrogantes e orgulhosos. Em vez disso, faz deles homens que
servem fielmente ao Senhor enquanto aguardam sua libertação.
Não é preciso muita argumentação para nos convencer de que vivemos
tempos parecidos, não de ataques militares em uma cidade sem defesas, mas
de oposição, perseguição, zombaria e desprezo por parte daqueles que
rejeitam o Senhor Jesus como Deus e salvador. Por isso, nossos olhos
também devem apontar para os céus, a fim de, pacientemente, esperarmos
que Deus faça tudo que anunciou pelas Escrituras. E, assim como aqueles
israelitas, devemos nos sentir incomodados com o mundanismo e não
tranquilos e à vontade no meio do mal. Mantenhamos a fé verdadeira
sabendo, a exemplo da história de Robert Moffat, que Deus é poderoso para
tornar as decepções presentes em vitórias que ecoarão pelos séculos.

SALMO 124
O Cuidado Sempre Presente de Deus

Em certa ocasião, uma mãe e sua pequena filha de quatro anos preparavam-
se para dormir. A criança tinha medo do escuro. Na verdade, sua mãe, que
nesse dia estava sozinha com a filha, também se sentia amedrontada. Quando
a luz foi apagada, a criança notou o brilho da Lua entrando pela janela.
Imediatamente, perguntou: “Mãe, a Lua é a luz de Deus?”. A mãe respondeu
que sim. A próxima pergunta foi: “Deus acende sua luz e vai dormir?”. A
mãe, então, explicou: “Não, minha filha, Deus nunca vai dormir”. Tendo
ouvido isso, apesar da simplicidade da sua fé infantil, a menina disse algo que
trouxe conforto e coragem à temerosa mãe: “Então, já que Deus está
acordado, não há sentido algum em nós também ficarmos”. E assim,
dormiram em paz, confiantes na proteção do Senhor cuja luz brilhava lá fora
e as recordava de que ele nunca se ausenta.
O rei Davi, autor do Salmo 124, conhecia bem os benefícios de Deus não
dormir ou se ausentar. Afinal, ele havia testemunhado o cuidado presente do
Senhor junto aos seus. Este salmo foi composto para louvar a Deus e lhe
render graças por causa de uma libertação notável que se processou diante da
presença do Senhor com seu povo. Pelo tom emocionado do texto, pelas
figuras fortes e sugestivas da destruição iminente que foi evitada e pela
gratidão rendida a Deus, é bem provável que o salmo tenha sido escrito logo
após a libertação, quando o medo e a alegria que Israel sentiu ainda estavam
na memória. Como conhecemos a autoria do cântico, podemos tentar
identificar o contexto histórico. Davi, como rei, atravessou duas crises
graves: o ataque dos filisteus, assim que ele assumiu o trono de Israel (2Sm
5.17-25), e o golpe de Estado de Absalão (2Sm 15—18). Como o segundo
configurou mais uma crise pessoal de Davi, cujo risco de vida era dele e não
da nação, é mais provável que o ataque filisteu tenha provido o pano de fundo
do salmo, já que, por causa disso, Israel correu o risco de ser extinto. Os
filisteus, que achavam que ao vencerem e matarem Saul haviam
sacramentado seu domínio na Palestina, atacaram os israelitas com toda fúria
ao saber que Davi tomara o lugar do antigo rei. O poderio filisteu e as baixas
israelitas na guerra anterior faziam com que a sobrevivência do povo de Deus
corresse risco em um novo conflito. Olhando para trás, para tudo que
passaram e para o modo como o Senhor os protegeu, Davi chega a três
conclusões do fato de Deus se colocar ao lado dos seus servos.
A primeira conclusão é o que aconteceria sem Deus estar ao lado (vv.1-
5). O salmo começa exibindo emoção e ênfase na gratidão nacional. Essa
emoção se vê em uma digressão que conclama o povo a confirmar a tese do
salmista. Ele introduz a primeira parte da longa frase que irá desenvolver nos
vv.2-5, exclamando (v.1a): “Se não fosse o Senhor, que esteve conosco!”
(lûlê yhwh shehayâ lanû). Mas em vez de dar sequência à frase, o escritor a
interrompe e chama todo Israel a confirmar seu dito e dar suas próprias
versões e contribuições ao relato da libertação (v.1b): “Que Israel o diga!”
(yo’mar-na’ yisra’el). Emoções florescem e o salmista não pode contê-las,
deixando que transpareçam nessa interrupção da frase. A seguir, no
acréscimo veloz de figurações da libertação, umas sobre as outras, produz
uma frase maior e mais rica que o normal. Ele retoma e completa a ideia
inicial lhe dando o contexto (v.2): “Se não fosse o Senhor, que esteve
conosco, quando os homens se levantaram contra nós” (lûlê yhwh shehayâ
lanû beqûm ‘alênû ’adam). Não há dificuldade em notar nessa frase a marcha
de um exército estrangeiro para abater Israel. É sobre isso que o salmista diz:
“Se não fosse o Senhor”. Trata-se de um inimigo poderoso que eles não
podiam conter sem o auxílio divino.
Para dar a entender a questão, Davi expõe os prováveis resultados caso
Deus não estivesse ao lado deles quando foram atacados. Ele o faz por meio
de algumas figuras. A primeira delas é a de um animal ou um monstro
devorador (v.3): “Eles já teriam nos devorado vivos por causa da sua ira
ardente contra nós” (’azay hayyîm bela‘ûnû baharôt ’affam banû). Essa
imagem de um devorador é exposta de modo mais dramático no v.6, ao citar
seus dentes prontos para serem cravados na presa. Em resumo, se alguém
pode imaginar a agonia de ser devorado por uma fera, pode então saber como
os israelitas se sentiram diante do poderoso inimigo. Davi também compara a
força letal dos opressores a uma forte correnteza que arrasta, afunda e afoga
suas vítimas (v.4): “As águas já teriam nos afundado, a correnteza teria
passado sobre a nossa alma” (’azay hammayim shetafûnû nahlâ ‘avar ‘al-
nafshenû). Se a total impossibilidade de sobreviver a essa torrente ainda não
ficou clara aos ouvintes, o salmista repete a ideia de modo mais dramático
(v.5): “Águas revoltas já teriam passado sobre a nossa alma” (’azay ‘avar ‘al-
nafshenû hammayim hazzêdônîm). A palavra traduzida aqui como “revolta”
quer também dizer “espumejante”, descrevendo a aparência que tem a água
que desce corredeiras íngremes em um leito pedregoso — águas mortais!
Com isso, o que o salmista proclama a todos é que a morte do povo e a
destruição de Israel eram certas se o Senhor não tivesse impedido o inimigo.
É isso que aconteceria sem Deus estar ao lado do seu povo.
A segunda conclusão é o que aconteceu por Deus estar ao lado (vv.6,7).
Davi, aqui, para de falar “e se” e passa a relatar os fatos: Israel foi poupado
pela ação libertadora de Deus. Por isso, ele louva seu salvador (v.6): “Bendito
é o Senhor que não nos entregou como presa para os seus dentes” (barûk
yhwh shello’ netananû teref leshinnêhem). É interessante como, nesse texto,
percebemos a noção da soberania de Deus acolhida por Davi. Ele olha para
os inimigos e entende que o sucesso deles só viria se Deus assim o quisesse.
Se Israel caísse era por que o Senhor os teria entregado aos opressores.
Contudo, se nisso a soberania fica patente, tanto mais na libertação pela qual
o salmista agradece a Deus e lhe chama “bendito”. O resultado final é
descrito de uma maneira dramática por meio do quadro de uma preservação
improvável aos olhos humanos (v.7a): “A nossa alma escapou com vida
como um pássaro [escapa] da armadilha dos caçadores” (nafshenû ketsiffôr
nimletâ miffah yôqesîm). A palavra hebraica traduzida como “alma” (nefesh)
nem sempre tem um sentido espiritual e, frequentemente, é utilizada para se
referir à pessoa como todo. Nesse versículo, isso ocorre, de modo que “nossa
alma” deve ser interpretada como “nós”. O salmista está dizendo: “Nós
escapamos com vida”. Para deixar vívida a figura da improvável fuga de um
pássaro já capturado, ele completa (v.7b): “A armadilha se rompeu e nós
escapamos com vida” (haffah nishbar wa’anahnû nimlatnû). Improvável aos
olhos humanos ou não, foi exatamente o que o Senhor fez: protegeu seu povo
de uma derrota iminente e inevitável. Foi isso que aconteceu por Deus estar
ao lado de Israel em uma hora tão difícil.
A última conclusão é o que significa Deus estar ao lado (v.8). O rei Davi
encerra o salmo com uma declaração de confiança que não se restringia à
situação militar dos seus dias. Na verdade, ele pensa em Deus não somente
como quem os preservou do ataque inimigo, mas como aquele que o faz
sempre (v.8a): “A nossa proteção está no nome do Senhor” (‘azrenû beshem
yhwh). Ao falar do “nome do Senhor”, sua intenção não é produzir uma ideia
de que frases que contenham o nome de Deus conferem poder às pessoas,
assim como imaginavam os pagãos. Na verdade, essa expressão aponta para a
glória do Senhor e para sua fama por tudo que ele é e faz. O significado disso
é que a proteção vem do próprio Deus e não do uso do seu nome pelos
homens. E para mostrar isso, Davi descreve quem é o Senhor (v.8b): “O
criador dos céus e da Terra” (‘oseh shamayim wa’arets). Ser criador do
universo é o maior testemunho bíblico do poder e da majestade do Senhor.
Quando Davi lhe chama protetor, ele pensa no portador do maior poder que
existe. E não apenas isso, mas também do conhecimento ilimitado, da
sabedoria para fazer tudo do melhor modo possível e do amor que dá ao
homem uma condição que ele não merece. Portanto, a presença de Deus é o
que determina o final de cada situação. Para o salmista, ter Deus ao lado
significa que seus servos podem descansar em paz, sabendo que ninguém é
mais poderoso que o nosso Senhor e que tudo que acontece vem das mãos do
soberano e sábio criador.
Felizmente, tais conclusões não apenas valem para nós, igreja de Cristo,
como podem até ser observadas a partir da nossa experiência com o Senhor.
Quantas coisas Deus já fez por nós? De quantos males ele nos livrou? De
quantos perigos nos protegeu? E quantas lições já tivemos sobre o que
significa ter Deus ao nosso lado? A primeira conclusão é que não podemos de
modo algum querer andar longe de Deus. O desenvolvimento da vida cristã,
da fidelidade, da santidade, do amor e do testemunho deve ser inerente à
existência de todo crente, em toda parte. A segunda conclusão é que, mesmo
em tempos em que o mundo se arma contra nós, tentando, inclusive, nos calar
e perseguir por meio das leis e dos tribunais, nosso protetor é “o criador dos
céus e da Terra”. Ainda que pareça que o fim da igreja está próximo, é do
nosso Senhor, o fundador da igreja, que ouvimos: “Edificarei a minha igreja,
e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18b). Durmamos
em paz, sob o brilho da luz de Deus!

SALMO 125
Não Onde, mas Quem

Certo turista, indo ao Rio de Janeiro, tinha como prioridade em sua lista de
locais a serem visitados o Estádio Jornalista Mário Filho, mais conhecido
como Maracanã. A expectativa daquele turista em estar nesse templo do
futebol brasileiro era muito grande. Sem demora, tomou um taxi e foi direto
para lá. Ao chegar, ficou extasiado com o tamanho da construção. Adentrar
aqueles portões aumentou sua ansiedade por sentir a emoção de se ver na
famosa arquibancada. Lá do alto, a visão foi fantástica: era bem maior do que
imaginava. O que não foi tão grande assim foi a emoção que sentiu. Ele
gostou da visita, mas percebeu que quando alguém vai a um estádio, não vai
para ver a construção, mas o jogo disputado ali. Ele percebeu que lhe ficou
um vazio por ter ido à casa do seu time do coração e não tê-lo visto jogar.
Voltou ao hotel um pouco decepcionado. Pelo menos, não perdeu a viagem:
as fotos ficaram ótimas.
O Salmo 125 revela o sentimento oposto ao do turista no estádio. Esse é
mais um “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt). Era cantado quando os
peregrinos que empreenderam a viagem a Jerusalém para a festa regular já
tinham chegado à cidade e adentrado suas portas. Estar em Jerusalém era
fantástico! Finalmente, aquela viagem anual terminara e eles chegaram ao
local amado, cheio de recordações históricas e significados para o povo de
Israel. Entretanto, eles não estavam ali pela cidade em si. Vieram por outra
razão: adorar o Senhor criador e soberano, o Deus da casa de Israel. Apesar
de o Senhor estar em toda parte, era ao templo construído em Jerusalém, local
dos utensílios sagrados e dos sacrifícios realizados pelos sacerdotes, que eles
traziam suas ofertas a Deus, cumprindo os estatutos da lei. E mais do que
isso: era ali que a presença divina se mostrava junto ao povo que ele separou
para si. Mesmo que representativamente, era ali que o Senhor habitava entre
eles. Por isso, chegar a Jerusalém era mais que vir a um lugar bonito e
amado. Era se aproximar de Deus, ter comunhão com ele, adorá-lo como que
face a face e manter vivas todas as esperanças na promessa da restauração
plena de Israel sob o reinado do Messias. Jerusalém era mais que um lugar
turístico. Era o local para adorar a Deus, fazer uma autoavaliação seguida de
arrependimento e, com fé, manter viva a esperança futura. Por isso mesmo, o
salmo nos apresenta três lembranças importantes que os servos de Deus
devem ter quando vão adorá-lo.
A primeira lembrança é a razão da confiança dos servos de Deus (vv.1,2).
O salmo inicia comparando os crentes a um ponto geográfico cheio de
significados para os israelitas (v.1a): “Os que confiam no Senhor são como o
Monte Sião” (havvotehîm bayhwh kehar-tsîyôn). O monte chamado Sião
(tsîyôn) é o local, dentro de Jerusalém, em que havia uma fortaleza quando
Davi tomou a cidade dos jebuseus. Ela se chamava “fortaleza de Sião”, mas,
depois da invasão, teve seu nome mudado para “cidade de Davi” (2Sm 5.7).
Não era o monte do Templo, pois Salomão reuniu os cabeças de cada tribo
“para fazerem subir a arca da Aliança do Senhor da Cidade de Davi, que é
Sião, para o templo” (1Rs 8.1). Mais adiante, dado o significado do local
como centro do poder de Jerusalém sobre todo Israel, passou a ser sinônimo
da cidade como um todo. Isso se pode notar quando Sião e Jerusalém são
citados paralelamente de modo a identificá-las como sendo o mesmo lugar
(Am 1.2; Sf 3.14). Para os israelitas, falar de Jerusalém era pensar em um
ponto geográfico e político, mas falar de Sião era se referir a isso tudo
acrescido de um sentimento não apenas nacionalista, mas esperançoso de que
ali novamente se levantaria o poder soberano sobre a nação e sobre os povos
ao redor do mundo (Mq 4.1-3). Por causa dessas promessas, eles tinham
plena confiança que aquele local não pereceria, mas duraria para sempre,
aguardando o reinado do Messias. O salmista concorda com isso ao descrever
a qualidade marcante de Sião (v.1b): “Ele nunca será abalado, [mas]
permanecerá para sempre” (lo’-yimmôt le‘ôlam yeshev).
O monte Sião é assunto do salmo, mas não é seu ponto central. Ele age
como introdução e comparação a algo maior. O assunto do salmo não é
“onde”, mas “quem”. Por isso, o escritor passa da figura de Sião, que é
Jerusalém, para a pessoa do Deus de Israel (v.2a): “[Como] Jerusalém é
cercada por montes, assim é o Senhor” (yerûshalaim harîm savîv lah
wayhwh). Além de ser o local em que, no presente, o Senhor habitava com
seu povo, e onde, no futuro, o Messias reinará, Jerusalém, cercada por outros
montes, guarda semelhança com Deus no sentido em que ele também é
cercado (v.2b), “cercado pelo seu povo, desde agora até a eternidade” (saviv
le‘ammô me‘attâ we‘ad-‘ôlam). Assim como Jerusalém dura para sempre e é
cercada por montes, o domínio e a presença do Senhor também são
permanentes e, por isso, seu povo se achega a ele para sua adoração e
glorificação. Era exatamente isso que aqueles peregrinos de outras terras
estavam fazendo em Jerusalém: reunindo-se para adorar a Deus e lhe trazer
suas ofertas. E tão inabaláveis como o governo de Deus e a durabilidade do
Monte Sião, assim são “os que confiam no Senhor” (v.1). Mesmo em tempos
difíceis, eles são mantidos por aquele que mantém todo o restante.
A segunda lembrança é a razão da retidão dos servos de Deus (v.3). O
salmista aborda uma questão de governo presente nos seus dias, representada
pela palavra “cetro” como figuração de um rei. O que não se sabe é se ele se
refere a um rei estrangeiro, cujo poder se fazia sentir sobre Jerusalém, ou ao
próprio rei israelita (v.3a): “Assim, o cetro do ímpio não se deterá sobre o
destino dos justos” (kî lo’ yanûah shevet haresha‘ ‘al gôral hatsaddîqîm).
Isso coloca tal rei em uma posição de opressor do povo por causa da sua
iniquidade. Sobre isso, o texto garante que tal governo não prevalecerá por
muito tempo pela seguinte razão (v.3b): “Para que os justos não lancem suas
mãos em [direção à] injustiça” (lema‘an lo’-yishlehû hatsaddîqîm be‘awlatâ
yedêhem). Principalmente quando os reis israelitas eram homens perversos, o
povo acabava por se desviar de Deus e dar vazão aos seus impulsos carnais
sem detença. Isso acontece por vários motivos. Um deles é o mau exemplo
dos líderes — o povo pensa: “Se ele que é líder pode, por que eu não
poderia?”. Outro é um sentimento de desforra — “farei o mesmo para que
eles sintam na carne o que me fizeram sentir”. Mais um motivo é a escolha
errada para suprir as necessidades geradas pela injustiça dos governantes —
“tenho de fazer o que sei que é errado, pois é o único meio de me manter”.
Justamente por causa da injustiça que, por vezes, cresce de cima para baixo,
Deus parece interromper tais ciclos perversos e trazer sobriedade e
santificação, principalmente ao seu povo. Isso ele o faz abatendo o “cetro
ímpio”, causando temor em todos. Esse efeito foi visto há alguns anos,
quando a justiça italiana se lançou a uma busca implacável por políticos
corruptos a fim de colocá-los na cadeia. Isso gerou um clima de austeridade
que se instalou no país de tal maneira que até a moda, naquele ano, assumiu
uma postura mais austera e sóbria. Os desfiles exibiram vestidos mais longos,
de cores sérias e com decotes menos chamativos. Dentro de Israel, ainda que
Deus tenha reservado um dia futuro para julgar a nação israelita e o mundo
inteiro por seus pecados, ele agiu com mão punitiva ao longo da sua história a
fim de manifestar sua justiça, santidade, poder e, também, gerar
arrependimento no seu povo e retorno à retidão, à santidade e à comunhão
com o Senhor. Estar em Jerusalém promovia a lembrança dos juízos de Deus
e o temor necessário para os servos buscarem andar retamente.
A última lembrança é a razão da esperança dos servos de Deus (vv.4,5).
O trecho final do salmo é uma oração, cuja primeira parte visa a ver os que
confiam em Deus serem por ele abençoados (v.4): “Ó Senhor, faze o bem
para os bons e retos de coração” (hêtîvâ yhwh lattôvîm welîsharîm
belivvôtam). Apesar de ser um pedido bem genérico — fazer o bem —, o que
se entendia por “bem” tinha um conteúdo específico que envolvia a provisão
e a saúde do dia a dia, mas que também abarcava o futuro da nação, com a
restauração e estabelecimento dos limites da sua terra (Gn 15.18-21), o
reinado glorioso da casa de Davi (2Sm 7.11-16), a perpetuidade de Jerusalém,
sede do trono (Jr 31.38-40) e o arrependimento e retorno dos israelitas
exilados por várias partes do mundo (Ez 36.24-28 cf. Jr 31.31-34). Quanto
aos ímpios, a oração é por juízo e expulsão do seu meio (v.5a): “Mas aqueles
que se desviam em seus caminhos tortuosos, o Senhor os expulsará junto com
os malfeitores” (wehammattîm ‘aqalqallôtam yôlîkem yhwh ’et-po‘alê
ha’awen). A conclusão do clamor, esperança última do povo de Israel e
marca de todo bem divino feito ao povo que escolheu, era (v.5b): “[Que haja]
paz sobre Israel!” (shalôm ‘al-yisra’el). A isso, muita gente devia bradar um
sonoro “amém!”.
Que o mesmo valha para nós. Que deixemos o conforto dos nossos lares
para nos reunir com nossos irmãos em culto a Deus — não pela igreja em si,
mas pelo Senhor. Ao nos reunirmos em culto, que recordemos juntos a razão
da nossa confiança (a salvação concedida pela fé em Jesus), a razão da nossa
retidão (a santidade do Senhor e da sua palavra) e a razão da nossa esperança
(a promessa de que habitaremos para sempre com nosso grandioso Deus).
Que haja paz sobre a igreja de Cristo!

SALMO 126
Uma Alegria Verdadeira e Transbordante

O governador William Bradford fez seu primeiro discurso de ação de


graças três anos após os peregrinos chegarem a Plymouth — local da
primeira colônia americana formada por peregrinos vindos da Inglaterra no
navio Mayflower, em 21 de dezembro de 1620. Ele disse: “Considerando que
o grande Pai nos deu neste ano uma abundante colheita de milho, trigo,
ervilhas, feijões, abóboras e hortaliças, que fez as florestas abundantes de
caças e o mar, de peixes e mariscos, e considerando que ele nos protegeu dos
danos dos selvagens, que nos poupou de pestes e de doenças e que nos
concedeu a liberdade de adorar a Deus de acordo com os ditames de nossa
própria consciência, agora eu, o magistrado, proclamo que todos os
peregrinos, com suas esposas e seus pequeninos, devem se reuinir na casa da
congregação, sobre a colina, entre 9 e 12 horas do dia, na quinta-feira, 29 de
novembro de 1623, o terceiro ano desde que vós peregrinos desembarcaram
em Pilgrim Rock, a fim de ouvir o pastor e render graças ao Deus Todo-
poderoso por todas as suas bênçãos”.
A gratidão e moção dos peregrinos por causa da provisão divina eram
semelhantes às dos israelitas dos dias em que o Salmo 126 foi composto. O
tom de gratidão a Deus só se compara à alegria transbordante e difícil de
expressar em palavras. Esse “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt) não
parece ter sido apenas entoado em uma festa, mas também composto na
ocasião de uma delas, possivelmente aquela que comemorava a colheita. A
alegria coletiva do salmo se dá após um período muito duro de sofrimento.
Suas circunstâncias são difíceis de definir e sugestões como exílio, cerco
militar, peste e seca são sugeridos. Independente de qual tenha sido o fator
que produziu dor em Israel, parte dessa dor certamente veio por meio da
escassez de alimentos e da fome. Há quem proponha se tratar da infertilidade
agrícola dos dias de Ageu e Zacarias devido à infidelidade do povo em
reconstruir o Templo (Ag 1.5,6).
Apesar desse sofrimento, o salmo está comemorando exatamente o oposto,
o que ocorreu depois da fome: a fartura da colheita. Se essa era uma razão
anual de alegria para os israelitas, já que dependiam da agricultura para
sobreviver, nessa ocasião, quando se deu a mudança de estado de carência
para o de abastança, era ainda maior. Assim, não só os homens daqueles dias,
mas também os peregrinos de tempos posteriores cantavam e agradeciam a
Deus pelo sustento concedido por sua bondade. O salmista, ao escrever seu
cântico, sente uma alegria intensa que tem duas motivações, as quais marcam
as motivações da alegria verdadeira de todos aqueles que conhecem e
esperam no Senhor.
A primeira motivação da alegria dos crentes é a generosidade de Deus que
já foi desfrutada (vv.1-3). Aqui, o olhar está apontado para o passado. A
situação inicial, antes da alegria, era extremamente dura. Dura a ponto de eles
não verem mais saída para o problema. Por isso, quando Deus agiu
beneficamente para com eles e transformou a situação, era como se o que era
inacreditável, algo como um “sonho”, tivesse ocorrido (v.1): “Quando o
Senhor restaurou a sorte de Sião, nós ficamos como aqueles que sonham”
(beshûv yhwh ’et-shîvat tsîyôn hayînû keholemîm). Ao dizer que a “sorte de
Sião” foi restaurada, ele não diz de que modo isso foi feito, mas, a julgar pelo
desenvolvimento do salmo, Deus lhes restaurou as tão necessárias colheitas
(vv.5,6). Seja trazendo de volta do cativeiro, afastando um inimigo que os
impedia de trabalhar na lavoura ou produzindo chuva e fertilidade que
estavam ausentes, o fato é que Deus agiu e eles finalmente tinham o que
comer e o que oferecer como gratidão em Jerusalém — e por isso cantavam.
O canto que erguiam, longe de ter acordes e entonações lúgubres, era
rejubilante, pois eles mesmos rejubilavam por sua condição (v.2a): “Então,
nossa boca se encheu de riso e a nossa língua, de júbilo” (’az yimmale’ sehôq
pînû ûleshônenû rinnâ). Essa alegria levou pessoas de toda parte a reconhecer
a bondade do Senhor para com seu povo. As nações reconheceram isso
(v.2b): “Desse modo, é dito entre as nações: o Senhor agiu generosamente
com eles” (’az yo’merû baggôyim higdîl yhwh la‘asôt ‘im-’elleh). E os
próprios israelitas o reconheceram (v.3a): “O Senhor agiu generosamente
conosco” (higdîl yhwh la‘asôt ‘immanû). Assim, olhando para o passado, era
fácil para aqueles homens se alegrarem de modo real com base na graça de
Deus que cuidou deles e lhes proveu o necessário. Eles nem tinham como
esquecer que Deus, ao agir generosamente, lhes concedeu uma alegria
transbordante (v.3b): “Nós ficamos felizes” (hayînû semehîm).
A segunda motivação da alegria dos crentes é a generosidade de Deus que
ainda será desfrutada (vv.4-6). Aqui, o olhar está apontado para o futuro.
Essa seção não está desatrelada daquilo que Deus havia feito por eles no
passado recente, nem da condição presente de fartura e alegria — os vv.5,6
são ditos como máximas que se aplicam a qualquer ocasião e que refletem o
que eles haviam experimentado. Entretanto, o trecho é introduzido por uma
oração, o que certamente aponta nossos olhos para o futuro na esperança de
ver o clamor atendido por Deus. Assim, diz o salmista (v.4): “Restaura a
nosso sorte, ó Senhor, como os leitos de rios no Neguebe” (shûvâ yhwh ’et-
shevûtenû ka’afîqîm bannegev). A sorte deles já havia sido restaurada (v.1),
mas de nada adiantava isso ocorrer apenas uma vez. A cada ano seria
necessária a bênção de Deus para que novas colheitas enchessem seus
celeiros e alimentassem suas famílias. Por isso, o pedido é para que o Senhor
continue sendo generoso. Quanto aos israelitas, eram como os leitos secos
dos rios do Neguebe — região montanhosa ao sul de Israel marcada pela
seca. As chuvas naquela terra são pouco frequentes e seus rios intermitentes
passam a maior parte do tempo secos. Entretanto, quando a chuva cai,
torrentes de águas correm velozmente pelos leitos antes secos dos seus rios.
Do mesmo modo, Israel era completamente dependente do Senhor para ter
alimento: se Deus generosamente continuasse a lhes dar chuva e fertilidade,
eles seriam renovados e fartos, assim como o deserto, quando lhe cai a chuva.
A bondade de Deus não era vista de forma isolada da responsabilidade que
eles mesmos tinham de trabalhar pelo sustento. Entretanto, com a ajuda do
Senhor eles não apenas teriam forças para fazê-lo, como obteriam o resultado
que almejavam (v.5): “Aqueles que semeiam com lágrimas, colherão com
júbilo” (hazzore‘îm bedim‘â berinnâ yiqtsorû). O trabalho era árduo e os
receios de insucesso, preocupantes, tudo isso a ponto de lhes fazer chorar.
Mas a esperança que tinham na bondade de Deus e na fidelidade de suas
promessas os fazia antever o resultado na forma de uma colheita que
certamente lhes traria júbilo. A última frase do salmo diz a mesma coisa de
maneira mais vívida (v.6): “Aquele que vai andando e chorando, carregando
uma sacola de sementes, tornará a vir com júbilo, carregando os seus feixes”
(halôk yelek ûvakoh nose’ meshek-hazzara‘ bo’-yavô’ berinnâ nose’
’alummotayw). Aqui, o trabalho é destacado na ação de “carregar”. Em
agonia, eles carregavam pelo campo pesados fardos de sementes a fim de
lançá-las à terra. O uso do gerúndio — “andando”, “chorando”, “carregando”
— serve para demonstrar que o trabalho era longo e cansativo. Porém, eles
estavam certos de que trariam sua colheita, seus feixes amarrados, para casa e
também para as festas em Jerusalém. Se isso já foi motivo de alegria, ainda o
seria muitas vezes — essa era a confiança deles em Deus. E a generosidade
que aguardavam do Senhor, no futuro, era razão mais que suficiente para se
alegrarem de modo real no presente.
A igreja de Deus está, hoje, espalhada por todo o mundo, incluindo áreas
rurais cujo sustento vem da lavoura e depende da chuva e da fertilidade da
produção. Entretanto, não são apenas tais irmãos que têm condições de
conhecer a alegria que o escritor expressa nesse salmo. Todos os crentes têm
motivos para rejubilar do mesmo modo. Primeiro, porque todos nós já
experimentamos a generosidade de Deus, seja na salvação gratuita de
pecados, na conversão de familiares e amigos, na provisão das necessidades
diárias, na proteção de perigos diversos e na atuação do Espírito Santo
conduzindo, ensinando e consolando. Ao olharmos para trás, como não nos
alegrar por sermos filhos amados do Pai celestial? Por outro lado, a nós
foram feitas promessas que elevam nossos olhos para os céus e para o futuro,
antevendo a glorificação dos nossos corpos, o encontro com o Senhor e com
todos os irmãos que já partiram e os que jamais conhecemos, o alívio de
todas as tristezas e dores e a vida eterna na presença do nosso Deus. Isso é
razão não apenas para sentirmos alegria, mas para exultarmos com uma
felicidade verdadeira e transbordante. Por isso mesmo, como os peregrinos de
Plymouth, devemos nos reunir e celebrar com ações de graças toda a
generosidade de Deus para conosco!

SALMO 127
A Preocupação do Servo de Deus

Conta-se o caso de um jovem, na Nova Inglaterra (EUA), que buscou um


emprego em certa fábrica. Indo até lá, solicitou uma entrevista com o
proprietário. Ao ser levado até o presidente da firma, percebeu se tratar de um
homem nervoso e impaciente, aparentemente desesperado por causa das
muitas preocupações. Esse homem disse ao jovem: “A única vaga que tenho
é uma vice-presidência. Quem preencher essa vaga terá de tomar sobre seus
ombros ‘todas’ as minha preocupações”. Ouvindo isso, o rapaz objetou:
“Esse é um trabalho muito duro. Qual é o salário?”. O presidente da fábrica
respondeu: “Eu pagarei a você 10 mil dólares por ano se você realmente me
livrar de todas as preocupações”. Como na época o montante de 10 mil por
ano era realmente muito dinheiro, o rapaz perguntou: “E de onde virão esses
10 mil?”. O presidente, então, lhe explicou: “Essa, meu amigo, deve ser sua
primeira preocupação”.
Como as preocupações afetam os homens! Em alguns casos, elas são tão
grandes que até causam doenças. Pior ainda quando alguém carrega, além das
preocupações com as coisas primordiais, ansiedades decorrentes de
trivialidades. Mas esse não era o caso do escritor do Salmo 127. Ele estava,
sim, preocupado com certas coisas. Entretanto, suas preocupações não eram
com coisas supérfluas, mas fundamentais para a vida de todo homem. Esse
“cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt) vem com a designação autoral “de
Salomão” (lishlomoh). Por ser Salomão autor de Eclesiastes e da maior parte
de Provérbios, o salmo também apresenta características da literatura de
sabedoria, tendo um forte caráter didático. Esse tipo de literatura tem como
recurso comum a observação de certas realidades da vida para, a partir delas,
oferecer princípios de sabedoria e uma linha sábia de ação dos servos de
Deus.
Nesse caso, a sabedoria oferecida por Salomão tem relação com as
preocupações ligadas às necessidades mais básicas das pessoas. Não é de
surpreender que os adoradores que iam a Jerusalém cantassem esse salmo,
pois não iam até lá somente para adorar, mas para levar a Deus seus clamores
ligados às ansiedades e sua gratidão pelo auxílio já prestado. Nesse contexto,
as três preocupações básicas dos homens contidas no salmo são moradia,
suprimento e família. O salmista não apresenta tais temas como metas a
serem alcançadas pelas pessoas, mas como necessidade nas quais os servos
de Deus dependem diretamente do Senhor. Como no livro de Provérbios,
Salomão coloca a questão sob duas perspectivas, antepondo o que é “ruim”
ao que é “bom”.
Assim, a primeira perspectiva apresentada pelo salmista é o que seria viver
sem a bênção de Deus (vv.1,2). Para fazer os adoradores refletirem sobre seu
relacionamento e sua dependência de Deus, Salomão introduz a primeira
necessidade que gera preocupações: a casa. Esse conceito tem sido muito
debatido dentro do salmo em questão, já que Salomão edificou a “casa de
Deus”, ou seja, o Templo. Contudo, o assunto não parece ser o Templo, mas
a casa particular das pessoas. A próxima dúvida é se é uma referência à casa
como “local de habitação” ou como “família” — a primeira opção é
preferível dada a citação de “construtores” e do paralelismo com uma a ideia
de uma “cidade”. Além disso, o texto trata, a seu tempo, a questão familiar
(vv.3-5). Assim, afirma Salomão (v.1a): “Se o Senhor não edificar a casa, em
vão trabalham nela os seus construtores” (’im-yhwh lo’-yivneh bayit shaw’
‘omlû bônayw bô). O que ele aponta é que, sem Deus, não importava quais
seriam os esforços e habilidades dos homens: o trabalho não seria bem
sucedido. A seguir, ele passa da visão de uma casa em particular para o
agrupamento de muitas casas que formam uma cidade e diz (v.1b): “Se o
Senhor não guardar a cidade, em vão vigia o guarda” (im-yhwh lo’-
yishmar-‘îr shaw’ shaqar shômer). Isso valia para qualquer cidade, incluindo
Jerusalém. Não importava que ele mesmo tivesse reforçado a segurança da
cidade investindo na expansão da muralha (1Rs 9.15). Ainda era Deus o
responsável pela segurança da cidade e viver sem ele significava a falência de
todas as edificações.
Outro vislumbre amargo do que seria viver sem Deus foi apresentado em
conexão com outra necessidade que gerava preocupação nas pessoas: o
alimento (v.2a): “Inútil para vós é levantar cedo, repousar tarde e comer pão
obtido com cansaço” (shaw’ lakem mashkîmê qûm me’aharê-shevet ’okelê
lehem ha‘atsavîm). Salomão olha para o trabalho árduo de muitos homens
que começava cedinho e só terminava com a escuridão da noite a fim de
suprir as necessidades de alimento da família. É claro que o próprio rei de
Israel condenou a preguiça (Pv 6.6-11) e instruiu os homens a trabalharem
para ter o que comer (Pv 10.4,5; 20.13). Ainda assim, isso não bastava, pois,
se Deus não abençoasse o trabalho, o resultado seria negativo. Afinal, os
homens podiam se esforçar ao trabalhar na terra, mas a chuva e a fertilidade
vinham de Deus, sem o qual todo trabalho seria vão. Por isso, a segunda parte
do versículo é contrastada à primeira. Enquanto na primeira parte os homens
trabalham, na segunda parte a ação tem como agente uma pessoa apenas, já
que o verbo se encontra no singular. Dado o versículo anterior, o agente em
questão é o próprio Senhor, o qual providencia para seus servos aquilo que
eles não podem garantir com seu esforço próprio (v.2b): “Ele faz provisão aos
seus amados enquanto dormem” (ken yitten lîdîdô shena’). Apesar de ser
óbvio que, mesmo à noite, Deus comanda tudo que acontece na Terra,
incluindo a mudança das estações, a chuva e o desenvolvimento dos produtos
agrícolas, a ideia de agir enquanto os homens dormem visa a apontar a
efetivação de resultados que o homem não pode produzir, seja dormindo, seja
acordado. É Deus quem cuida o tempo todo dos servos, sem descanso nem
intervalo, e viver sem suas bênçãos seria sofrer carência das necessidade mais
básicas.
A segunda perspectiva é o que é viver com a bênção de Deus (vv.3-5). Se
viver sem Deus seria terrível, viver com ele é o oposto. Para exemplificar
essa verdade, o escritor lança mão de outra preocupação dos homens,
principalmente dos homens do passado: a descendência familiar. Visto que
especialmente no passado a infertilidade era vista como um tipo de maldição
e motivo de vergonha e tristeza, a concessão de filhos era a demonstração da
bênção divina (v.3): “Eis que herança do Senhor são os filhos. O fruto do
ventre é uma recompensa” (hinneh nahalat yhwh banîm sakar perî havvaten).
A bênção de Deus por meio dos filhos é um assunto tão destacado nesse
salmo que a tradição judaica o utilizava nas ocasiões de nascimentos.
As razões para que a paternidade fértil fosse considerada bênção de Deus
são apresentadas a seguir. A primeira é que os filhos eram o orgulho e a
expansão de uma família (v.4): “Como flechas na mão de um guerreiro, assim
são os filhos da juventude” (kehitsîm beyad-givvôr ken benê hanne‘ûrîm). A
ideia parece ser dupla: as flechas são o poder de um guerreiro e promovem o
alcance do seu ataque — assim, os filhos engrandeciam um lar e expandiam o
nome do seu pai. A segunda razão é que eles traziam alegria (v.5a): “Feliz é o
homem que encheu deles a sua aljava” (’ashrê haggever ’asher mille’
’et-’ashpatô mehem). Finalmente, os filhos eram auxiliadores dos seus
progenitores (v.5b): “Ele não se acovardará quando debater com os inimigos
na porta [da cidade]” (lo’-yevoshû kî-yedavverû ’et-’ôyevîm basha‘ar). Se o
pai precisasse de apoio, mesmo diante de outros homens, seus filhos o
apoiariam. Quando o tempo chegasse e o pai não pudesse mais trabalhar, os
filhos o sustentariam. Assim, a bênção de Deus exemplificada na concessão
da família devia ser notada por cada servo do Senhor. A conclusão era clara:
viver sem Deus significava não poder garantir seu bem-estar ao passo que
viver sob suas bênçãos era ser suprido bondosamente por ele.
Se a lição do salmo é a dependência que o servo tem de Deus, as aplicações
práticas no culto eram duas: a oração e a gratidão, ambas desenvolvidas pelos
adoradores peregrinos que iam a Jerusalém. Eis a razão de esse ser um
“cântico de romagem”. Mas quem disse que isso é exclusividade do culto
israelita? A igreja de Cristo compartilha a mesma realidade. Do mesmo modo
que os judeus, somos completamente dependentes de Deus em nossas
necessidades mais básicas. É Deus quem nos dá o que necessitamos no dia a
dia (Mt 6.25-32) e é o Senhor quem concede bênçãos por meio de filhos que
alegram, honram e suprem seus pais na velhice (Ef 6.1,2; 1Tm 5.4). Portanto,
nós também temos de desenvolver não apenas a dependência de Deus, mas a
oração (Mt 7.7-11; Fp 4.6) e a gratidão (Ef 5.20; Cl 3.17; 1Ts 5.18).
Portanto, ouça! Nas lutas diárias contra as necessidades e preocupações,
lembre-se de como Pedro nos orientou a andar: “Lançando sobre ele toda a
vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pe 5.7). E no modo de
viver diante de um Deus que tanto abençoa seus filhos, seja preocupado em
obedecer e honrar àquele que nos ama, que morreu por nós e ensinou:
“Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33). Essa, meu amigo, deve ser sua
única preocupação!

SALMO 128
Bênçãos de Dentro para Fora

O rio Amazonas, o segundo maior do mundo em extensão e o primeiro em


fluxo hídrico, nasce na cordilheira dos Andes na forma de um modesto filete
d’água. Ao vê-lo em seus primeiros metros, ninguém jamais poderia imaginar
até onde ele chegaria, nem o volume de água que ele deslocaria. Contudo, à
medida que ele avança, outros pequenos filetes d’água despejam nele suas
porções líquidas. Por causa das chuvas e de outras nascentes, o Amazonas vai
se tornando mais profundo e caudaloso e, ao adentrar pelo território
brasileiro, já é um rio de um porte considerável. Mas não para por aí: ele
recebe água de mais e mais afluentes a ponto de, chegando à capital
amazonense, ter profundidade e largura suficiente para que grandes navios de
cruzeiro naveguem e aportem ali. Quando o Amazonas deságua no mar, a
força das suas águas é tão grande que o rio se nega a morrer e continua
correndo, com sua água doce e turva, cerca de 150 km mar adentro. É
impressionante como algo que começa tão pequeno possa se tornar tão
grande e poderoso!
O Salmo 128, tradicionalmente utilizado como uma canção nupcial, tem
uma aplicação bem mais ampla que um casamento e nos lembra o
crescimento do próprio rio Amazonas. Trata-se de um “cântico de romagem”
(shîr hamma‘alôt) que era entoado por adoradores peregrinos em Jerusalém
que, depois de iniciarem sua jornada com canções que revelavam seus medos,
necessidades e lamentos, passavam posteriormente a entoar salmos mais
encorpados de esperança e das bênçãos divinas, seguidas de grato louvor.
Nesse sentido, não há nenhuma dúvida de que o Salmo 128 está colocado no
saltério exatamente onde deveria estar. Apesar de ter sido composto depois
dos dias de Salomão — nos dias desse rei, Jerusalém não sofria com a falta
da paz almejada no v.6 —, é muito grande a conexão entre esse salmo e o 127
em termos de “causa e efeito”. O Salmo 127, escrito por Salomão, aponta
Deus como causador de todo bem que ocorre aos seus servos, enquanto o
salmo seguinte aponta diretamente para os efeitos da sua ação bondosa e
soberana. Se no primeiro há a orientação de confiar em Deus, no segundo há
o resultado dessa confiança: bênçãos sobre bênçãos. O curioso é notar o
sentido em que essas bênçãos são administradas pelo Senhor, fazendo-o do
menor para o maior, de dentro para fora, em três esferas sucessivas.
A primeira delas é a esfera pessoal (vv.1,2). O início do salmo tem uma
mensagem que, mesmo sendo dirigida à comunidade israelita, guarda
características de um chamado pessoal e individual (v.1): “Feliz é todo aquele
que teme a Deus, o que anda nos seus caminhos” (’ashrê kol-yere’ yhwh
haholek bidrakayw). Algumas vezes, a ausência da conjunção “e” cumpre
meramente uma questão de estilo literário, mas, nesse caso, ela parece ser
bem sugestiva. O texto não trata de dois grupos, um que teme a Deus e outro
que anda nos seus caminhos. A ausência da conjunção demonstra que as duas
descrições tratam do mesmo indivíduo, de modo que temer a Deus significa
andar nos seus caminhos. Não há temor sem obediência e vice-versa. Essa
qualidade, o temor obediente, não é apenas o objeto do chamado pessoal, mas
a razão da bênção pessoal de Deus: a felicidade. Por isso, o salmo proclama:
“Feliz é todo aquele que teme a Deus”. Dito assim, percebe-se que o salmo
não ignora a aliança entre Deus e Israel, na qual a bênção estava
condicionada à obediência: “Se ouvires a voz do Senhor, teu Deus, virão
sobre ti e te alcançarão todas estas bênçãos” (Dt 28.2).
As listas de bênçãos e castigos decorrentes do procedimento de Israel diante
da lei de Deus (Lv 26; Dt 28) têm um caráter amplo dentro de tudo que
envolve ser uma nação, como produção agropecuária, economia, saúde,
política internacional, comércio exterior, defesa militar e soberania territorial.
Ainda que essas sejam sempre as preocupações de uma nação, no âmbito
pessoal as necessidades são mais específicas, especialmente nas condições
dos israelitas dos dias desse salmo. A julgar pelo versículo seguinte, a
felicidade do v.1 tinha relação com a condição econômica e com a produção
de alimentos para a própria subsistência (v.2): “Tu comerás do trabalho das
tuas mãos. Haverá para ti bênçãos e prosperidade” (yegîa‘ kaffeyka kî to’kel
’ashreyka wetôv lak). O quadro que se desenrola diante dos nossos olhos é a
carestia decorrente de trabalho agrícola infrutífero. Entretanto, Deus teria
bênçãos pessoais atreladas ao temor e à obediência na forma de sucesso no
labor da terra. Mesmo que o quadro geral fosse complicado, Deus abençoaria
os seus tementes.
A segunda é a esfera familiar (vv.3,4). A bênção de Deus, que começa pela
transformação pessoal do servo que o busca, passa por uma expansão e atinge
a esfera que circunda o fiel: sua própria família. Além de os familiares serem
abençoados, agiriam como bênçãos na vida do homem que teme o Senhor.
Por isso, a esposa do fiel receberia a ação benéfica de Deus (v.3a): “A tua
esposa será como uma videira carregada de frutos no interior da tua casa”
(’eshteka kegefen porîyâ beyarketê bêteka). Essa é a imagem de uma esposa
que é fonte de prazer a alegria ao seu marido, sendo-lhe fiel e dedicada. É
também uma esposa que dá filhos à família, ao que se faz uma menção
especial na continuidade do versículo (v.3b): “Os teus filhos serão como
galhos de oliveiras ao redor da tua mesa” (baneyka kishtilê zêtîm saviv
leshulhaneka). Assim como no salmo anterior, a descendência é fruto da
bênção de Deus e fonte de felicidade ao agraciado servo do Senhor. Ao tema
da fertilidade, o texto acrescenta a ideia da comunhão pintando o quadro de
uma mesa com toda a família unida ao redor dela. É claro que essa bênção
depende diretamente da anterior — a de âmbito pessoal —, na qual Deus
provê alimento não apenas para que o temente se sustente, mas para que
possa nutrir toda sua família sem que perca seus filhos pela desnutrição dos
dias de fome. A conclusão do salmista a respeito da condição desse homem é
enfática (v.4): “Eis que, de fato, o homem que teme ao Senhor será
abençoado” (hinneh kî-ken yevorak gaver yere’ yhwh).
A terceira é a esfera nacional (vv.5,6). Dizem que “a família é a base de
um país”. Nenhuma outra frase caberia melhor nesse ponto do salmo, pois a
transformação, que começou no chamado pessoal de servos tementes e que
abarcou suas famílias, agora se expande nacionalmente. A fonte dessa
bênção, então, recebe uma designação tanto geográfica como teológica. A
partir da sua capital nacional, local da presença de Deus entre seu povo, a
bênção se espalharia (v.5a): “Que, de Sião, o Senhor te abençoe” (yevarekka
yhwh mitsîyôn). Em sentido geográfico, Sião — ou Jerusalém — representa a
restauração nacional que beneficiaria todo o país. Em sentido teológico, Sião
abrigava as esperanças não apenas de um rei libertador, mas de um Messias
salvador e purificador do remanescente fiel israelita e das nações ao redor do
mundo. Dita a fonte da bênção, sua descrição é a seguinte (v.5b): “E que tu
vejas Jerusalém em meio à prosperidade [durante] todos os dias da tua vida”
(ûre’eh betûv yerûshalaim kol yemê hayyeyka). Apesar de a palavra “durante”
não estar no texto, ela é necessária para a compreensão de que a ideia não é
estar presente dentro de Jerusalém, vendo-a todos os dias. A bênção aqui
prevista é a elevação e a permanência de Jerusalém, como sede nacional e
religiosa, ao longo da vida dos tementes e das suas descendências (v.6a): “E
que vejas os filhos dos teus filhos” (ûre’eh-banîm levaneyka). Um modo mais
simples de dizer o mesmo é (v.6b): “[Que haja] paz sobre Israel!” (shalôm
‘al-yisra’el).
Do menor para o maior, as bênçãos de Deus se espalharão e tomarão o
mundo. Mas esse não é um processo que possa ser interrompido no meio ou
que possa ser obtido em módulos. A mensagem oferecida pelo salmo, razão
do chamado ao temor obediente, é que Deus realizará sua ampla obra
redentora a partir de indivíduos. Na verdade, assim é a salvação do povo de
Deus, a igreja de Cristo: um a um. Como o Amazonas, o Senhor chama uma
pessoa dentro de uma família, depois outras; depois, um grupo de amigos, de
vizinhos. E sua ação redentora se expande até formar igrejas por toda parte. O
mesmo ele fará a Israel no futuro a fim de restaurar a descendência de Jacó.
Ele mudará, pela fé, o coração de cada um (Ez 36.22), espalhará sua ação até
que as pessoas ao redor também conheçam o Senhor (Jr 31.34) e reunirá todo
o remanescente israelita espalhado pelo mundo para que, transformado,
integre a nação segundo a promessa (Ez 36.24,28).
Portanto, se a partir de indivíduos Deus transformará o mundo, por que os
crentes têm menosprezado sua importância dentro do corpo de Cristo e
desprezado o chamado ao temor obediente? E se Deus usará as famílias como
fonte de bênção para os tementes e para as pessoas de toda parte, que loucura
é faltar com a educação bíblica dos familiares e não ensiná-los, pela fé em
Cristo, a temer a Deus e dedicar suas vidas para seu louvor! Por fim,
lembrando que a graça do nosso Senhor atingirá dimensões nacionais,
tremenda falha é deixar de anunciar o evangelho da salvação em Cristo às
pessoas que estão ao nosso redor e que fazem parte do nosso País. Muitos
crentes deixam de cumprir sua responsabilidade diante de Deus por acharem
que o que eles podem fazer é pequeno demais para causar alguma diferença.
Eles se esquecem que o grande Amazonas começa em um modesto filete
d’água. Esquecem-se que o poderoso Deus realiza sua obra de dentro para
fora, salvando pessoas, para salvar famílias, para redimir as nações.

SALMO 129
Gratidão do Passado, Confiança do Presente

Quando penso no Salmo 129, lembro-me de uma história que li. Dizem que
Frederico o Grande (1712-1786), rei da Prússia, era um escarnecedor,
enquanto seu principal general, um senhor chamado Von Zealand, era cristão.
Em certo encontro, o rei estava fazendo piadas grosseiras e ofensivas sobre
Jesus Cristo, tirando ruidosas gargalhadas dos muitos homens que estavam ao
seu redor. Diante disso, o general Von Zealand se levantou com certa
dificuldade, dada sua idade avançada, e disse: “Meu senhor, você sabe que eu
nunca temi a morte. Lutei e venci 38 batalhas por você. Sou um homem
velho e em breve partirei para a presença daquele que é maior que você, o
poderoso Deus que me salvou do meu pecado: o Senhor Jesus Cristo, contra
quem você está blasfemando. Eu o saúdo, meu senhor, como um homem
velho que ama o seu salvador, à beira da eternidade”. Com voz trêmula,
Frederico lhe respondeu: “General Von Zealand: peço seu perdão! Peço seu
perdão! Peço seu perdão!”. Depois disso, todos os presentes foram partindo
em silêncio.
O interessante nessa história é que a grande coragem de enfrentar um rei
veio de certas recordações gratas: a salvação que o general recebeu de Cristo,
as bênçãos em termos de sucesso militar e a promessa bíblica de viver com
Deus. Diante disso, prontamente a gratidão do passado se transformou na
coragem do presente na forma de um testemunho que ficou gravado na
história. Nesse sentido, há semelhanças entre esse relato e o Salmo 129. Esse
“cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt), entoado pelos que iam ao Templo
adorar a Deus, foi, provavelmente, composto em dias nos quais Israel sofria
com ataques de inimigos e em que o perigo estava literalmente ao redor. Na
ocasião, ele serviu como oração por libertação e fonte de coragem e
esperança para o povo. Para os peregrinos que entoavam o salmo, ele servia
para lembrar que havia promessas a Israel a serem cumpridas, para as quais a
história do seu povo fornecia razões de sobra para que confiassem nelas.
Desse modo, apesar de narrar um pouco da sofrida história dos judeus e de
pronunciar imprecações desconfortáveis para o leitor, trata-se de um salmo
tremendamente prático com duas lições muito importantes.
A primeira lição, tanto para Israel como para a igreja de Cristo, é que o
servo de Deus deve sempre lembrar as bênçãos que Deus lhe concedeu no
passado (vv.1-4). Se Israel estava sob o ataque quando o salmo foi composto,
o salmista lembra que isso não era novidade para seu povo. Na verdade,
Israel tinha uma história de sofrimento e de perseguição por parte de quase
todas as nações ao seu redor, pelo que o escritor em nada exagera os fatos ao
dizer (v.1a): “Muito me atacaram desde a minha juventude” (ravvat tserarûnî
minne‘ûray). Apesar de o escritor falar como se fossem dele, suas palavras
são ditas por toda a nação. Isso fica claro quando, na sequência, assim como
no Salmo 124, o escritor abre parêntese para chamar o povo a confirmar sua
afirmação e tomarem para si as suas palavras (v.1b): “Que Israel o diga!”
(yo’mar-na’ yisra’el). Dito isso, ele volta à afirmação inicial, mas a completa
com uma virada surpreendente (v.2): “Muito me atacaram desde a minha
juventude, porém, não puderam me vencer” (ravvat tserarûnî minne‘ûray gam
lo’-yoklû lî). Agora é possível entender o porquê da recordação. Não se trata
de nostalgia, mas de perceber, pelos eventos passados, que Deus vinha
trabalhando positivamente em favor do povo em um passado que não foi
nada fácil. Os ataques numerosos que enfrentaram foram também violentos,
ao que ele se refere usando a figura de lavradores que ferem a terra com o
arado. Porém, nesse caso, a terra era a nação de Israel (v.3a): “Os lavradores
passaram o arado sobre as minhas costas” (‘al-gavvî horshû horshîm). Não
satisfeito, ele estende a figura de modo a ficar claro que foram muitas vezes
alvo de extrema violência (v.3b): “Fizeram longos sulcos sobre elas”
(he’erîkû lema‘anôtam).
Apesar da figura eloquente sobre a opressão de Israel por parte dos
exércitos inimigos, o próximo texto apresenta uma realidade tão oposta que a
frase bem poderia começar com a palavra “mas”, não obstante ela não constar
no texto hebraico (v.4): “[Mas] o Senhor é justo: ele cortou as correias dos
ímpios” (yhwh tsaddîq qitsets ‘avôt resha‘îm). A figura de “cordas” ou
“correias” parece estar diretamente ligada à figura do arado. Se os ataques
sobre Israel eram como passar o arado sobre suas costas, esse texto está
dizendo que o Senhor impediu que o inimigo obtivesse seu objetivo final
cortando as correias do arado, aquelas cordas amarradas ao boi de um lado e
ao arado de outro, permitindo que o movimento do boi arrastasse o arado à
medida que este abria a terra. Algo interessante é notar o atributo divino
destacado nessa ação. Enquanto esperaríamos ler que a “bondade” ou a
“misericórdia” de Deus o levaram a deter a crueldade do inimigo, é sua
“justiça” que leva o crédito da ação. Por isso, deve-se adicionar ao quadro da
ação libertadora, a mão punitiva de Deus contra os atacantes. O Senhor, não
apenas deteve os inimigos do passado, mas os puniu por sua maldade. Assim,
a frase “porém, não puderam me vencer” (v.2b) assume um significado
especial a respeito do cuidado de Deus.
A segunda lição é que o servo de Deus deve crer firmemente no seu
cuidado presente e nas promessas futuras (vv.5-8). Essa seção traz ao
exegeta uma dificuldade logo de início. A maioria das formas verbais aponta
para o futuro. Interpretadas assim, o autor estaria demonstrando confiança de
que os inimigos seriam abatidos adiante. Contudo, a mesma forma verbal
costuma assumir um sentido volitivo. Nesse caso, em lugar de uma ação
futura expressa nas palavras “eles serão envergonhados”, a tradução seria o
desejo de “que eles sejam envergonhados”. O autor estaria se dividindo entre
a oração a Deus por libertação e a imprecação contra os inimigos de Israel.
Não é fácil definir gramaticalmente o que o salmista estava pensando, mas,
levando em conta o uso dos salmos, o sentido volitivo é preferível.
Assim, a partir das gratas lembranças do passado, o salmista olha para o
presente como ocasião de depender de Deus em oração e de crer que ele, que
está no controle de tudo, tratará a maldade do inimigo como ela merece ser
tratada. Além do mais, ser inimigo de Israel era ser inimigo de Sião não
apenas como capital, mas como centro da esperança israelita de redenção. Por
isso, o resultado, mais cedo ou mais tarde, seria a derrota dos opressores
(v.5): “Que todos os inimigos de Sião sejam envergonhados e batam em
retirada” (yevoshû weyissogû ’ahôr kol sone’ê tsîyôn).
Frequentemente, as metáforas produzem uma compreensão mais vívida das
grandes vitórias ou das grandes derrotas. Nesse caso não é diferente. A
grande derrota antevista nessa oração imprecatória é comparada a pequenas
plantas que germinavam no telhado das casas sobre a poeira que ali se
acumulava. Como a semente em solo rochoso da parábola do semeador (Mt
13.5,6), essas plantas não tinham raiz e secavam antes de se desenvolver. Era
assim que aconteceria aos inimigos de Israel (v.6): “Que sejam como a erva
do telhado que seca antes de florescer” (yihyû kahatsîr gaggôt sheqqadmat
shalaf yavesh). Seu abatimento seria tal que, caso fossem aquelas ervas secas,
sua quantidade seria ínfima, pelo que o salmista prossegue (v.7): “Com a qual
o ceifeiro não enche sua mão, nem o colhedor [enche] seus braços” (shello’
mille’ kaffô qôtser wehitsnô me‘ammer). Além disso, as alianças entre os
ímpios se desfariam e eles não seriam alvo nem da simpatia nem da
misericórdia de ninguém (v.8): “E que aqueles que passam não digam: ‘A
bênção do Senhor esteja convosco! Nós vos abençoamos em nome do
Senhor!’” (welo’ ’omrû ha‘overîm birkat-yhwh ’alêkem beraknû ’etkem
beshem yhwh). Vê-se que os israelitas tomaram a história da ação de Deus
como um padrão para sua atuação no presente e no futuro. A gratidão pela
proteção divina no passado se tornou, para eles, oração confiante no presente
e esperança corajosa a respeito do futuro.
Como igreja de Deus redimida por Cristo, devemos aprender essas lições
que, apesar de provirem da teologia, têm valor e aplicações tremendamente
práticas. Principalmente porque o mundo dos nossos dias tem sido palco de
uma oposição cada vez mais decidida e feroz do mundo em relação a Deus, à
mensagem do evangelho e à igreja cristã verdadeira. Não é difícil notar o
surgimento de situações que preocupem os cristãos: leis que defendem a
liberdade das pessoas tolhendo a liberdade dos cristãos; perseguição e
martírio de crentes pelo mundo; ameaças de fechar igrejas e proibir a
pregação do evangelho; a tentativa de obrigar a igreja a assumir posturas
mundanas e a receber em seu meio pecadores não arrependidos; a aprovação
e admiração na sociedade dos pecados mais abomináveis previstos nas
Escrituras. Os dias não são fáceis! Mais do que nunca, precisamos lembrar o
que Deus fez por nós no passado: enviou seu Filho para morrer por nossos
pecados, salvou-nos gratuitamente pela fé em Cristo, deu-nos uma família
espiritual e uma pátria celestial, supriu-nos ao longo de muitas crises e
dificuldades, tem nos protegido dos perigos crescentes do mundo, tem nos
confortado nos piores momentos por meio do Espírito Santo, tem nos dado
crescimento pela sua palavra. Sendo assim, porque ele iria mudar agora e nos
abandonar? Isso nunca vai acontecer! Por isso, olhemos para o passado com
gratidão e nos curvemos em oração a respeito do presente, em plena
confiança de que, no futuro, cearemos à mesa do nosso amado Senhor, justo e
santo anfitrião de um povo que redimiu para si.

SALMO 130
A Jornada em Busca do Perdão

Há muito tempo, os esquimós foram o alvo evangelístico dos morávios.


Uma das dificuldades que os missionários encontraram para pregar a
mensagem do evangelho aos esquimós foi a inexistência de uma palavra na
língua deles para a ideia de “perdão”. Ao que parece, nem o conceito existia
entre eles. Foi preciso criar uma palavra para tanto:
issumagijoujungnainermik. Quando tentei lê-la pela primeira vez, tudo que
saiu foi uma risada seguida da interrogação: “Para que criar uma palavra tão
grande?”. Depois, fiquei sabendo que essas 24 letras expressavam
corretamente o sentido de perdoar. Se a traduzíssemos para o português,
ficaria mais ou menos assim: “Não-pensar-sobre-isso-nunca-mais”. A ideia
não é não ter recordações da ofensa, mas não levá-la mais em conta. Ao
entender seu significado, tive de concordar que os missionários foram
extremamente felizes e sábios na composição do termo.
O Salmo 130 trata exatamente desse conceito. Esse “cântico de romagem”
(shîr hamma‘alôt) é também um dentre os sete “salmos penitenciais” (6, 32,
38, 51, 102, 130, 143). Sua posição no saltério demonstra que ele era cantado
pelos adoradores peregrinos quando a jornada já era avançada e eles já
adentravam o Templo, contemplando não apenas o tamanho da construção,
mas meditando sobre a glória e a santidade do Senhor. Ao mesmo tempo que
era uma ocasião alegre, para todo servo de Deus a proximidade do seu
Senhor produzia uma grande sensação de inadequação. Afinal, trata-se do
Deus santo que é separado de tudo que é falho e pecaminoso. Não é de
admirar a reação de Isaías ao ter a visão do trono de Deus: “Então, disse eu:
ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no
meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor
dos Exércitos!” (Is 6.5). O salmo também aponta o fato de que a busca por
Deus não vem apenas do desejo de adorá-lo, de pedir bênçãos e de agradecer
por elas, mas também para rogar por “perdão de pecados”. Já no Templo,
esse era o impulso dos adoradores. Eles não se sentiam capazes de
comparecer diante de Deus e lhe prestar o devido louvor sem antes serem
tratados por aquele que é perfeito e puro, o único perdoador de pecados.
Sendo assim, o salmista apresenta quatro noções sobre o perdão divino
essencial aos servos de Deus.
A primeira noção do salmista sobre o tema é que o perdão divino tira o
homem do mais profundo abismo (vv.1,2). O salmista não ora a Deus como
quem está em uma posição vantajosa. Ao contrário, ele clama a Deus da parte
mais inacessível do poço mais profundo (v.1): “Das profundezas eu clamo a
ti, ó Senhor” (mimma‘amaqqîm qera’tîka yhwh). Essa imagem de um abismo,
seja dentro da terra, seja no mais profundo mar, tem como intenção
comunicar a total incapacidade de o homem alçar uma condição favorável e
aceitável diante de Deus. Ele não está falando de problemas do dia a dia, mas
do seu afastamento de Deus por causa do pecado (v.3). Nesse sentido, ele se
vê inutilizado para fazer algo que reverta o quadro e torne Deus favorável a
si. Seus méritos não são suficientes. Por isso, ele se dirige a Deus da
profundidade inatingível de um abismo. Não é sem razão que ele se lança ao
clamor (v.2a): “Ó meu Senhor, ouve a minha voz” (’adonay shim‘â beqôlî).
Olhando para si, o autor adquire uma noção tão grande da sua condição de
pecador que apenas clamar não é suficiente. Ele insiste em sua oração, feita
com outras palavras, a fim de enfatizar sua necessidade devido à profunda
perdição em que se encontra (v.2a): “Que os teus ouvidos estejam atentos à
minha voz suplicante” (tihyeynâ ’ozneyka qashuvôt leqôl tahanûnay). É dessa
condição que Deus tem de resgatá-lo pelo perdão. Não é o caso de colocar
um band-aid sobre um arranhão, mas de ressuscitar um morto.
A segunda noção é que o perdão divino provém exclusivamente da graça
de Deus (vv.3,4). Se a impossibilidade de o homem reatar sua comunhão com
Deus por suas obras já ficou em destaque no início do salmo, o escritor
apresenta a seguir a razão desse abismo entre o pecador e o Deus santo: a
culpa gerada pelos pecados (v.3): “Se tu, ó Senhor, levares em conta as
culpas, quem permanecerá, ó Senhor? (’im-‘aônôt tishmor-yah ’adonay mî
ya‘amor). O salmista se imagina, junto aos demais pecadores, diante de um
tribunal no qual o Senhor examina os atos das pessoas. Ao considerar sobre
as iniquidades dos homens e a culpa gerada por elas, o Senhor aplica a devida
condenação de modo que ninguém pode resistir ao julgamento. É como se o
escritor dissesse a Deus: “Se o Senhor nos julgar pelos nossos atos, qual de
nós restará em pé diante de ti? Todos seremos abatidos”. A pergunta, então,
é: “O que o salmista quer de Deus: que ele não se importe com os pecados?”.
De modo algum! Se o Senhor não se importasse com os pecados e ignorasse
nossa culpa, ele nem seria Deus. Assim, o que o salmista deseja não é
condescendência, mas “perdão” (v.4): “Porém, contigo está o perdão a fim de
que sejas temido” (kî-‘immeka hasselîhâ lema‘an tiwware’). E ao ser
perdoado, ele quer ser transformado em um servo. Isso se vê na relação
surpreendente que ele faz entre o perdão e o temor. Enquanto esperaríamos
ouvir que o temente é perdoado, o que ele afirma é que o homem a quem
Deus perdoa se torna alguém que o teme. De modo algum a graça de Deus
poderia ficar em maior relevo: o homem incapaz e sem merecimento é
perdoado e tornado um servo temente. Enfim, é o perdão de Deus que produz
temor no homem e não o contrário. A visão é de que, apesar de os adoradores
viajarem a Jerusalém para buscar o perdão de Deus, era o Senhor quem de
fato empreendia uma jornada para perdoar o pecador e resgatá-lo do seu
abismo — assim como quando Deus chamou o fugitivo Adão e prometeu
redenção futura (Gn 3.8-10,15), ou quando enviou seu Filho ao mundo para
salvar os que estavam perdidos (Lc 19.10; Jo 3.16,17).
A terceira noção é que o perdão divino se baseia nas promessas que Deus
fez (vv.5,6). Para o escritor do salmo, ser perdoado é uma realidade que
provém diretamente da fé, pelo que diz (v.5a): “Eu confio no Senhor, minha
alma confia” (qiwwîtî yhwh qiwwetâ nafshî). Aqui, a expressão “minha alma”
não tem como intenção apontar a parte espiritual do homem, mas enfatizar
seu ser como um todo — uma possibilidade de tradução seria “todo o meu ser
confia”. Diante disso, poder-se-ia questionar as razões de uma confiança tão
firme: “Será que ele não é um tolo por aguardar algo do qual ele não tem
certeza?”. A resposta é não! O salmista demonstra não ser apenas um
otimista. Ele tem razões reais, ligadas ao caráter do Senhor, que lhe
asseguram sobre a disposição de Deus em perdoar. A razão principal, advinda
da fidelidade de Deus em cumprir tudo que diz e tudo a que se compromete, é
sua própria revelação a respeito de si, da sua vontade e dos seus planos
(v.5b): “Eu espero na sua palavra” (welidbarô hôholtî). O ensino bíblico sobre
o perdão e a salvação de perdidos é a base da confiança do salmista. Ele
completa essa ideia com uma frase que, apesar de não conter nenhum verbo,
não está desprovida de uma ação. Ela está implícita, sendo a sequência da
ideia de “esperar” ou “confiar” (v.5). Assim, o salmista diz (v.6a): “A minha
alma [espera] pelo Senhor mais do que os guardas [esperam] pela manhã”
(nafshî la’donay mishomerîm lavvoqer). Se um vigia noturno, cujo trabalho se
torna especialmente difícil por causa do perigo da escuridão e do cansaço da
noite, aguardava o amanhecer com ansiedade, muito mais o pecador aguarda
pelo perdão de Deus. A repetição do final da frase tem como intenção frisar o
fato de que a espera do salmista é tão grande que está bem acima da
comparação que ele mesmo propôs (v.6b): “[Sim, bem] mais do que os
guardas [esperam] pela manhã” (shomerîm lavvoqer).
A última noção que o salmista abriga sobre o tema é que o perdão divino é
poderoso para salvar e restaurar totalmente (vv.7,8). Confiando em Deus
como seu redentor pessoal, o salmista se dirige a Israel e o chama a confiar,
também, nas promessas de redenção (v.7): “Ó Israel, espera no Senhor, pois
com o Senhor está a lealdade e a abundante redenção” (yahel yisra’el ’el-
yhwh kî-‘im-yhwh hahesed weharbeh ‘immô pedût). A “lealdade de Deus” às
próprias palavras (v.5) garantia não apenas redenção, mas “abundante
redenção”. Apesar da dureza e rebeldia do povo israelita no Antigo
Testamento, o Senhor prometeu redimi-los de modo amplo (Jr 31.31-34).
Quando Deus efetuar o que prometeu, todos eles serão reunidos, restaurados
e regidos pelo Messias. Mas não sem antes o Senhor lhes perdoar todas as
faltas, lançando, pela fé, suas culpas sobre a cruz do salvador (v.8): “De
modo que redimirá a Israel de todas as suas culpas” (wehû’ yifdeh ’et-yisra’el
mikkol ‘aônôtayw). O perdão de Deus deve ser aguardado por israelitas e por
gentios que creem. Porém, não como algo que apenas amenize suas faltas,
mas sim como razão de serem totalmente perdoados, redimidos e
transformados.
Diante da mensagem do salmo, a conclusão prática é que devemos levar
muito a sério tanto o nosso pecado como a necessidade que temos de buscar o
perdão de Deus a fim de mantermos plena comunhão com nosso Pai celestial.
Temos também de anunciar o evangelho de Cristo aos perdidos para que,
crendo, eles também encontrem o perdão de Deus e temam o seu nome. Além
disso, nossa vida deve se transformar positivamente (Rm 12.1,2), motivada
pela pura gratidão a Deus por nos perdoar em Cristo e, apesar da terrível
culpa provinda dos nossos pecados, “não-pensar-sobre-isso-nunca-mais”.
SALMO 131
Igual a uma Criança de Colo

Em 1886, a New England Society realizou um jantar em Nova York. Entre


os palestrantes estava Henry Woodfin Grady (1850-1889), da equipe do
jornal Atlanta Constitution e testemunha ocular de uma das mais ferozes
batalhas da guerra civil americana (1861-1965). Em seu discurso, Grady,
descrevendo os soldados confederados ao retornarem aos seus lares
arruinados, falou de seus uniformes cinzas desbotados em meio à desolação
do Sul. Na manhã seguinte, o jornalista percebeu que se tornara uma
celebridade nacional. Todos queriam conversar com ele e o bajular. Certo dia,
deixou o escritório do Constitution e desapareceu por vários dias. Na
verdade, ele se refugiou na fazenda onde vivia sua mãe, na Geórgia.
Chegando lá, disse à mãe: “Vim passar algum tempo com você, pois tenho
perdido meus ideais no mundo em que estou vivendo. Estou esquecendo das
coisas que aprendi aqui na velha casa e Deus está ficando cada vez mais
distante de mim. Eu voltei, mãe, para viver um pouco mais”. É como se
Grady voltasse a ser um menino junto à mãe, os dois andando pelos campos,
conversando, orando e cantando juntos. Deixou para trás toda a bajulação
com seu imenso potencial de torná-lo soberbo. Quando retornou à cidade,
Grady estava revigorado e fortalecido, pronto para enfrentar as tentações da
vida.
O Salmo 131 tem uma dupla designação. Quanto ao tipo, ele é um “cântico
de romagem” (shîr hamma‘alôt). Quanto à autoria, ele é “de Davi” (ledawid).
Apesar de ter sido composto por alguém que ocupou o mais alto cargo
político de Israel e que se notabilizou por feitos memoráveis, esse é um salmo
que parece vir de alguém modesto, calmo e satisfeito com uma posição
inferior e sem qualquer destaque. Por isso, alguns comentaristas atribuem a
composição do salmo ao período em que Davi servia ao rei Saul e era por ele
injustamente perseguido. Nesse sentido, o próprio caráter de Davi fica patente
e serve de chave de interpretação para seus bons exemplos de atuação quando
perseguido e como base para lidar com as pressões e tentações do encargo
real assumido mais adiante. No final das contas, se Davi é avaliado como um
bom servo de Deus, tanto na sua juventude — sendo fiel, corajoso,
moderado, benevolente e não vingativo — como no seu reinado — sendo
justo, dedicado, honrado, paciente e corrigível —, é porque tinha certos
atributos que o acompanharam ao longo da vida e marcaram seu caráter. Ao
deixar transparecer no salmo esses atributos, Davi não se mostra como um
grande líder, mas como uma simples criança de colo, apresentando os
benefícios de uma postura como essa conforme enaltecida pelo próprio
Senhor Jesus: “E disse: em verdade vos digo que, se não vos converterdes e
não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos
céus. Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no
reino dos céus” (Mt 18.3,4). Sob esse ponto de vista, o salmo identifica três
qualidades essenciais ao servo de Deus.
A primeira qualidade essencial àquele que serve ao Senhor é a humildade.
Provavelmente dirigindo-se a Deus com a intenção de se antepor aos seus
perseguidores e clamar pelo seu socorro, Davi afirma sobre si (v.1a): “Ó
Senhor, o meu coração não é orgulhoso e o meu olhar não é altivo” (yhwh
lo’-gavah livvî welo’-ramû). Ele cita dois órgãos associados à atitude soberba:
o coração e o olho. Ao citar o coração, sua declaração é que ele não acolhe
sentimentos de orgulho, como se achar melhor do que os outros ou mais
capaz. Ao contrário, ele tem uma visão modesta de si e seu coração está bem
acomodado a uma condição humilde. Ao citar seu olhar, ele aponta sua
atitude externa diante das pessoas. Nesse caso, o autor não se comportava
com uma pessoa arrogante que olha os outros com desdém e se apresenta de
modo pomposo. Quem o via, não notava um olhar como de cima para baixo,
nem uma postura que fazia com que as pessoas ao redor se sentissem
intimidadas e desconfortáveis. Ao contrário, Davi mantinha a postura
humilde de um servo de Deus e dos homens. Quanto às suas aspirações, ele
não buscava grandeza, nem queria ser admirado pelos outros por atingir
objetivos que ninguém mais podia (v.1b): “Eu não persigo grandezas, nem
feitos maravilhosos da minha parte” (welo’-hillaktî bigdolôt ûvenifla’ôt
mimennî). Apesar dessa intenção modesta, durante sua vida Davi de fato
alcançou grandezas e fez coisas espetaculares que ficaram registradas para
sempre. Contudo, quando isso ocorreu, a disposição humilde foi o pano de
fundo de uma atitude grata a Deus pelas vitórias e não soberba diante dos
homens como se ele sozinho tivesse feito grandes maravilhas. Esta,
certamente, era uma das maiores características de Davi: a humildade.
A segunda qualidade é o domínio próprio. Antepondo a humildade ao
impulso natural ao qual vinha sendo chamado pela carne, ele diz (v.2a): “Ao
contrário, eu moderei e calei as paixões da minha alma” (’im-lo’ shiwwîtî
wedômamtî nafshî). As paixões da alma, nesse contexto, estavam ligadas
principalmente ao orgulho e à altivez citados no versículo anterior. Se Davi
era humilde, não era sem esforço. Sua natureza carnal o chamava não apenas
a ser arrogante, mas a agir como tal. Se isso ocorre em uma situação em que
há uma perseguição injusta, a tentação é agir com vingança lançando mão dos
mesmos expedientes traiçoeiros que lhe estavam sendo apontados. Mas Davi
não sucumbiu a esse chamado, ao qual ele “moderou” para que não crescesse
e “calou” para que não o convencesse. Essa é a descrição do “domínio
próprio”, ou seja, não atender aos impulsos da carne, mas sim aos parâmetros
da justiça e à Palavra de Deus. É claro que, para tanto, ele precisou
desenvolver uma boa dose de contentamento, já que sua situação não era a
mais confortável. Entretanto, (v.2b), ele se acalmou “como uma criança no
colo da sua mãe” (kegamul ‘alê ’immô). A palavra aqui traduzida como
criança tem o significado de “desmamado”, mostrando que o sentimento não
era de desejo por suprimento, como ocorre a um lactente no colo da mãe, mas
de conforto — basta uma mãe tomar nos braços o filho em prantos que ele se
acalma e, às vezes, até dorme. O interessante, nesse caso, é que Davi mesmo,
pensando na justiça de Deus e buscando conforto nisso, se achega ao
contentamento por meio do domínio próprio, pois ele é descrito como a mãe
(v.2c): “A minha alma é como a tal criança no meu colo” (kagamul ‘alay
nafshî). Ele dominava seus impulsos e buscava viver satisfeito na situação em
que Deus o colocou.
A terceira qualidade é a confiança. No último versículo do salmo, Davi
conclama a nação de Israel a manter em Deus suas esperanças (v.3a): “Ó
Israel, espera no Senhor” (yahel yisra’el ’el-yhwh) — essa frase é idêntica à
primeira parte de Sl 130.7. A princípio, o chamado geral a Israel parece
destoar da descrição íntima do salmista até o v.2. Contudo, esse chamado
revela uma decisão que o próprio salmista já tinha tomado: confiar em Deus.
Se sua situação era difícil e ele não tinha aceitado a proposta da carne de
“pagar na mesma moeda”, era preciso recorrer ao Senhor para se proteger e
consolar e apontar seu rumo futuro. Já desfrutando dos benefícios dessa
confiança do Deus onipotente, o salmista, então, convida seus compatriotas a
fazerem o mesmo e conhecerem melhor o Deus a quem serviam. Segundo
Davi, os benefícios da confiança, baseados na atuação fiel e perene de Deus,
tinham valor constante, pelo que a própria confiança devia ser perene e
inabalável. Por isso, ao chamar o povo a fazer o que ele mesmo fez ao confiar
em Deus, orienta-os (v.3b) a terem fé “agora e para sempre” (me‘attâ
we‘ad-‘ôlam), mostrando que a confiança no Senhor não depende das
circunstâncias e se torna ainda mais visível e valorosa quando a situação é
difícil.
Tão importantes para o rei Davi e para todos os servos de Deus dos tempos
bíblicos, essas mesmas qualidades são requisitos fundamentais para o
desenvolvimento da vida cristã na atualidade. Em uma época de
personalidades e de famosos, a humildade é quem impede que os cristãos
busquem glória para si mesmos em vez de glorificarem o único que é digno
de todo louvor. Em tempos em que somos ensinados por todos os meios de
comunicação que devemos dar vazão aos impulsos e perseguir todos os
desejos do coração, é o domínio próprio que aquieta os servos do Senhor e
lhes faz buscar a Palavra de Deus e não a satisfação pessoal. Quando tudo é
feito para que o homem tenha completa autonomia e capacidade de realizar o
que quiser, seja em casa, no trabalho ou nos momentos de lazer, é a confiança
em Deus quem traz a correta consciência da incapacidade humana e da
dependência que os crentes têm do seu Senhor. Se Davi vivesse hoje e tivesse
escrito o mesmo salmo no nosso contexto, este seria tão relevante e aplicável
como foi no passado. Por isso mesmo, temos o que aprender da história
contada no início do comentário. Na verdade, devemos nos voltar a Deus a
fim de buscar nele o desenvolvimento dessas qualidades e lhe dizer: “Vim
passar mais tempo com você, pois tenho perdido meus ideais no mundo em
que estou vivendo. Estou esquecendo das coisas que aprendi na velha igreja e
Deus está ficando cada vez mais distante de mim. Eu voltei, Pai, para viver
um pouco mais”.

SALMO 132
A Durabilidade da Promessa de Deus

Acho interessante os testes de cidadania feitos com a finalidade de saber


como andam a moral e a ética das pessoas. Um deles ocorreu em 1924,
promovido pela revista norte-americana Liberty. Seus editores escolheram, ao
acaso, cem assinantes por todos os Estados Unidos e lhes enviou uma
correspondência com a quantia de um dólar e uma carta explicando se tratar
da devolução do valor excedente em seus pagamentos — erro este que, na
verdade, nunca existiu. A intenção do teste era ver como as pessoas reagiriam
ao receber um dinheiro que sabiam que não lhes pertencia. O resultado foi
que, das cem pessoas que receberam a falsa “devolução”, apenas vinte e sete
retornaram o montante à revista informando tratar-se de um engano. Passados
quase cinquenta anos, em 1971, a revista fez novamente o mesmo teste. A
diferença foi que, dessa vez, somente treze pessoas devolveram o dinheiro. A
conclusão que podemos tirar é que o mundo está se tornando cada vez mais
desonesto e menos confiável.
O Salmo 132 apresenta Deus com o caráter oposto ao da maioria dos
homens da pesquisa acima em dois sentidos: ele não é desonesto e sua
palavra não perde o valor com o passar do tempo. Esse salmo é um “cântico
de romagem” (shîr hamma‘alôt) e foi composto quando Israel ainda tinha um
rei (v.10). Alguns defendem que o salmo foi escrito depois do retorno dos
judeus do cativeiro babilônico, mas, ao identificarem o “ungido” do v.10
como sendo o Messias prometido, têm dificuldades em explicar o clamor no
sentido de que Deus não viesse a rejeitá-lo. A citação livre das palavras de
Salomão na consagração do Templo (vv.8-10 cf. 2Cr 6.41,42), a ênfase no
tema da arca de Deus trazida ao seu lugar devido, a relevância da figura de
Davi e a apropriação da aliança davídica a fim de beneficiar seu descendente
real apontam os dias de Salomão, após a inauguração do Templo, como a
data provável da composição do salmo.
Nesse contexto, tanto a presença de Deus marcada pela presença da arca
como o estabelecimento da linhagem de Davi eram realidades vivas para os
israelitas, pelo que oram pela manutenção de tais bênçãos. Assim, o Salmo
132 demonstra a iniciativa do povo de Israel de orar e colocar em Deus sua
esperança tanto de que o Senhor permanecesse em sua habitação no Templo
de Jerusalém, baseado em sua escolha da cidade para isso (2Cr 6.6), como de
que mantivesse a linhagem davídica (2Sm 7.16). Mas não se trata de uma
oração jogada ao vento. O salmista lança mão das promessas de Deus feitas
no passado associadas ao seu caráter fiel que torna todas as suas palavras
duradouras e verazes. Confiados na durabilidade de tais promessas, a oração
do salmista e dos peregrinos tinha cinco aspectos.
O primeiro aspecto é, em si, o ato da oração (vv.1-5). Sem delongas, o
salmista inicia seu cântico com um pedido claro e objetivo (v.1): “Ó Senhor,
lembra-te de Davi e de toda a sua aflição” (zekôr-yhwh ledawid ’et
kol-‘unnôtô). O pedido “lembra-te” não supõe que Deus se esquece das
pessoas, mas se trata de um pedido por intervenção e auxílio. O alvo da
atuação solicitada é Davi, mas o contexto, contendo a recordação da aliança
que Deus fez com ele em relação à sua descendência, demonstra que o
beneficiário não seria Davi em pessoa, mas sua linhagem no trono de Israel.
Ao mesmo tempo, recorda a ação dedicada e prioritária do rei (vv.2-4) que
prometeu não se satisfazer até que trouxesse a Jerusalém a arca de Deus (v.5):
“Até que eu ache um lugar para o Senhor, santuário para o poderoso de Jacó”
(‘ad-’emtsa’ maqôm layhwh mishkanôt la’avîr ya‘aqov). O que estava por
trás disso é o fato de que a arca fora tomada pelos filisteus nos dias finais do
sumo sacerdote Eli e devolvida aos israelitas, permanecendo longo tempo na
casa do levita Abinadabe (1Sm 6). Ao que tudo indica, esse evento é citado
na esperança da continuidade do que Davi iniciou e de ressaltar que a jornada
chegou ao fim com a introdução da arca no majestoso Templo construído
para esse fim.
O segundo aspecto é a motivação da oração (vv.6,7). Eles sabiam o que
era ficar sem a arca e sentir que estava vago o lugar representativo da
presença de Deus entre eles. Por isso, a iniciativa de Davi para trazê-la de
volta é pintada como uma busca ansiosa por algo perdido e desejado (v.6):
“Eis que ouvimos que ela estava em Efrata. Nós a encontramos nos campos
de Jaar” (hinneh-shema‘anûha be’efratâ metsa’nûha bisdê-ya‘ar). Textos
paralelos (1Cr 2.24,50) indicam que Efrata não era apenas outro nome de
Belém (cf. Mq 5.2), mas também a designação de toda aquela região,
incluindo Quiriate-Jearim, citada aqui como Jaar — essa é a forma singular
de Jearim e significa floresta ou bosque. Com isso, o salmista relembra a
busca pela arca a fim de conduzi-la a Jerusalém, capital de Israel depois de
Davi assumir o trono unificado do País. Dessa forma, a adoração a Deus em
um tabernáculo voltou a ser completa, motivo pelo qual as pessoas podiam
dizer umas às outras (v.7): “Entremos no seu santuário, adoremos diante do
estrado dos seus pés” (navô’â lemishkenôtayw nishtahaweh lahadom
raglayw). A motivação da oração era o desejo de jamais passar privação da
presença de Deus.
O terceiro é o objetivo da oração (vv.8-10). A menção às palavras de
Salomão (2Cr 6.41,42) evidencia o objetivo duplo da oração dos israelitas. A
primeira parte do pedido tem a ver com o Templo como local de habitação de
Deus entre os israelitas (v.8): “Ó Senhor, levanta-te para adentrar ao teu lugar
de descanso, tu e tua arca poderosa” (qûmâ yhwh limnûhateka ’attâ wa’arôn
‘uzzeka). A arca já estava no Templo desde que tais palavras foram ditas pela
primeira vez, mas o povo canta sua intenção de ver isso se manter e seu
agradecimento por finalmente poder honrar a Deus como ele merecia. Esse
quadro, então, recebe a emolduração do devido serviço prestado ao Senhor no
seu santuário, lembrando a responsabilidade que eles mesmos tinham (v.9):
“Que os teus sacerdotes se vistam de justiça e que os teus fiéis se alegrem”
(kohaneyka yilbeshû-tsedeq wahasîdeyka yerannenû). A segunda parte do
pedido tem a ver com o rei da nação (v.10): “Por causa de Davi, teu servo,
não rejeite a face do teu ungido” (ba‘avûr dawid ‘avdeka ’al-tashev penê
meshîheka). Esse pedido, feito primeiramente por Salomão em favor de si, é
repetido pelo povo dos seus dias e pelos peregrinos de outras épocas em favor
da linhagem davídica. Essa oração visava à manutenção do reinado.
O quarto é a base da oração (vv.11,12). O escritor do salmo não toma
como base o merecimento do rei em questão, mas a promessa de Deus feita
ao rei Davi quanto à sua linhagem (2Sm 7.11-16). Ele relembra que a
promessa de Deus é permanente e inevitavelmente será cumprida (v.11): “O
Senhor fez uma promessa confiável a Davi e ele não desistirá dela: ‘Colocarei
no teu trono um dos teus descendentes’” (nishba‘-yhwh ledawid ’emet lo’-
yashûv mimmennâ mifferî bitneka ’ashît lekisse’-lak). O que foi traduzido
como “um dos teus descendentes” quer dizer literalmente “um dentre o fruto
da tua carne”, ou seja, de entre os filhos de Davi o Senhor escolheria um e o
elevaria ao trono. Entretanto, se a perpetuidade da linhagem davídica no
trono de Israel estava garantida pela promessa (2Sm 7.16), a obediência de
cada rei era requerida para que não fossem temporalmente disciplinados (2Sm
7.14,15), nem houvesse ruptura na continuidade do reinado de geração em
geração (v.12): “Se os teus filhos guardarem a minha aliança e eu lhes ensinar
este meu estatuto, os filhos deles também se assentarão no teu trono
perpetuamente” (’im-yismerû baneyka berîtî we‘edotî zô ’alammedem gam-
benêhem ‘adê-‘ad yeshvû lekisse’-lak). Infelizmente, por não atender a isso, a
linhagem de Davi deixou de se assentar no trono desde que Zedequias foi
deposto e ferido (Mq 5.1 cf. 2Rs 25.7) e apenas retornará quando Jesus for
elevado ao trono de Davi (Mq 5.2 cf. Lc 1.32).
O último aspecto é a esperança da oração (vv.13,18). Nem o escritor do
salmo, nem os peregrinos que cantavam esse hino enquanto adoravam no
Templo tinham suas esperanças restritas aos seus dias. Para eles, a predileção
soberana de Deus por aquela cidade (v.13) era algo permanente dentro dos
seus planos (v.14). Ainda que atravessassem períodos difíceis por causa da
infidelidade do povo à aliança do Sinai, o final da história seria que Deus
traria prosperidade a Israel (v.15), promoveria restauração à fidelidade e à
alegria (v.16), enviaria seu ungido — o Messias prometido — que restauraria
a casa de Davi (v.17) e traria julgamento das nações confirmando o trono sob
a autoridade do rei divino (v.18). Ainda que tais bênçãos estivessem no
futuro, eram motivos de alegria e esperança no presente.
Esse é o modelo da própria oração da igreja de Cristo. Somos chamados a
orar (Fp 4.6; Cl 4.2), a tomar como motivação o desejo de não viver
afastados de Deus (1Jo 2.15,16), a focar nossos clamores na manutenção do
culto e no ministério dos líderes (Mt 18.20; Cl 4.3; Hb 13.7), a confiar nas
promessas verdadeiras do Senhor (2Co 3.4; 2Tm 2.11) e a manter nossa
esperança sempre apontada para o glorioso futuro prometido (2Tm 4.8; 2Pe
3.13). Se o mundo está se deteriorando e se tornando cada vez mais
desonesto, a fidelidade do nosso Deus deve nos levar ao caminho oposto ao
dos perdidos, criando em nós devoção, fidelidade, oração dependente e
verdadeira confiança de ver todas as bênçãos prometidas por aquele que não
mente, não morre e não muda.

SALMO 133
A Maravilhosa União dos Irmãos

Uma história de origem judaica conta que dois irmãos, um solteiro e um


casado, compraram uma terra e se tornaram sócios na produção agrícola.
Combinaram que dividiriam a colheita meio a meio. Porém, um dia, o irmão
solteiro pensou: “Não é justo que meu irmão e eu dividamos igualmente os
frutos, porque sua família é numerosa. Todas as noites levarei escondido um
saco de grãos do meu celeiro para o dele”. O curioso foi que o irmão casado
pensou algo parecido: “Não é justo que meu irmão solteiro receba a mesma
quantia de grãos que eu, pois um dia meus filhos me sustentarão, ao passo
que ele não terá ninguém que o ajude. Vou levar parte dos meus grãos em
segredo para o celeiro dele”. Com o passar do tempo, ambos ficaram
admirados ao notar que, apesar das suas doações diárias secretas, seus
estoques não diminuíam. Mas, certa noite, o mistério acabou, pois os dois se
encontraram carregando os grãos para o celeiro um do outro. Ao entenderem
o que estava ocorrendo, deixaram os sacos de mantimento cair ao chão e se
abraçaram emocionada e demoradamente. Perceberam quão felizes eram por
viver em uma união fraternal tão profunda.
O Salmo 133 trata do mesmo tema dessa história. Como “cântico de
romagem” (shîr hamma‘alôt), é fácil entender porque os peregrinos cantavam
esse hino enquanto adoravam a Deus em união, como o povo esperançoso da
promessa. Outra informação importante contida no título do salmo é a autoria
“de Davi” (ledawid). Conhecendo o autor, sabemos que o salmo foi composto
cerca de mil anos antes de Cristo. Contudo, não é tão fácil detectar que
ocasião da vida do rei de Israel constitui o pano de fundo do seu texto. Há
quem acredite se tratar de uma ocasião de festa, quando todo o povo estava
reunido para adorar. Entretanto, a ênfase na união de irmãos e não na
adoração torna essa proposta um pouco vazia.
Levando em conta que o salmo não contém traços de sofrimento,
perseguição e divisão — dificuldades sentidas por Davi na sua vida pré-
monárquica e na parte final do seu reinado —, parece que uma boa ocasião
para a composição do salmo seja aquela em que se deu a união dos dois
reinos, Judá e Israel, sob seu comando (1004 a.C.). Assim que Saul morreu
(1011 a.C.), Davi foi coroado rei da tribo de Judá, a qual se tornou rival do
restante do reino de Israel. Porém, sete anos depois, Davi foi elevado ao
status de monarca do reino unido de Israel, instituindo Jerusalém como
capital nacional e centro religioso, já que levou para lá a arca do Senhor.
Após muitos anos de ruptura, o povo estava novamente unido e adorando a
Deus lado a lado, mas, principalmente, coexistindo como um país e um povo
único. Diante do sentimento exultante de ver o povo coeso, o salmista
apresenta a união dos irmãos sob dois enfoques.
O primeiro enfoque é o que é a união fraternal (v.1): “Quão bom e quão
prazeroso é os irmãos viverem unidos!” (hinneh mah-tôv ûmah-na‘îm shevet
’ahîm gam-yahad). A primeira coisa que se deve notar é que a união de que o
salmista fala não é simplesmente o encontro numeroso de israelitas durante
uma festa — razão pela qual a proposta de um contexto meramente festivo
perde sua força. O que ele tem em mente é os irmãos “viverem” em união.
Não é algo passageiro como um encontro social encerrado com um aperto de
mão e votos de “boa viagem”. Ele fala de algo perene. Não uma
circunstância, mas um estado. É por isso que o texto respinga alegria e tem
figuras tão marcantes.
Essa unidade é descrita com dois adjetivos. O primeiro deles é “bom” (tôv).
A mesma palavra pode assumir sentidos mais intensos que cabem bem na
intenção do salmista de valorizar sobremaneira a união fraternal, como
“formoso”, “magnífico” e “precioso”. Isso quer dizer que há benefícios
coletivos e individuais no vínculo fraternal. Em outras palavras, há valor
prático positivo nessa unidade comunitária. O segundo adjetivo que qualifica
a união entre os irmãos é “prazeroso” (na‘îm). Sendo assim, a união não é
apenas matéria de cálculo para se saber quanto vantajosa é. Aspectos íntimos
como alegria, segurança, completude e comunhão fazem parte do pacote.
Outros sentidos da palavra, bem encaixados no contexto, são “agradável”,
“deleitoso” e “harmonioso”. A conclusão é que não se pode dispensar a
bênção da união entre irmãos, sejam eles sanguíneos, compatriotas ou
espirituais.
O segundo enfoque é a que se compara a união fraternal (vv.2,3). Após
uma declaração clara sobre o valor da união entre os irmãos, o salmista
introduz dois símiles, ou comparações, a fim de expressar melhor não apenas
seu pensamento, mas também seu sentimento — as figuras de linguagem são
hábeis para cumprir tal propósito. O primeiro símile é o “óleo perfumado”
(v.2a): “É como o óleo aromático [derramado] sobre a cabeça” (kashemen
hattôv ‘al-haro’sh). Aprendemos no Novo Testamento que o óleo era valioso
(Mc 14.5) e útil na apresentação das pessoas, dando-lhes aparência limpa (Lc
7.37,38) e saudável (Mt 6.17,18), além de ser usado como medicamento (Tg
5.14). Nos dias do Antigo Testamento não era diferente, pois ele era usado
como produto fino de beleza nas cortes (Et 2.12), cosmético propício ao amor
(Pv 7.17; Ct 5.5), remédio para ferimentos (Is 1.6) e elemento para a
consagração de sacerdotes e reis (Ex 30.30; 1Sm 10.1).
Apesar de a comparação ser maravilhosa até aqui, ela ainda assume um
caráter mais significativo com a sequência da frase (v.2b): “O qual escorre
sobre a barba, a barba de Arão, caindo sobre a gola das vestes dele” (yored
‘al-hazzaqan zeqan-’aharon sheyyored ‘al-pî middôtayw). Além dos
benefícios naturais do óleo, Davi associa sua imagem à consagração de Arão,
no qual o óleo representava não apenas a separação dele e de seus filhos para
o serviço do Senhor, como também a perpetuidade do chamado (Êx 40.13-
15). Desse modo, Davi quer transmitir aos israelitas o valor e a durabilidade
da união fraternal promovida por Deus. Mesmo não sendo descrita nenhuma
ação de Deus, a ocorrência tripla do verbo hebraico yarad (descer) no
derramamento do óleo da cabeça para a barba, da barba para as vestes e, no
versículo seguinte, a água descendo a montanha, produz a ideia de que é do
alto que a união é promovida na forma de uma bênção.
O segundo símile é o “orvalho” (v.3a): “É como o orvalho do Hermom que
desce sobre os montes de Sião” (ketal-hermôn sheyyored ‘al-harrê tsîyôn).
Geograficamente, essa descrição é impossível de ocorrer já que o monte
Hermom fica no Extremo Norte de Israel, local de onde brota o rio Jordão, e
o monte Sião é localizado em Jerusalém, cerca de duzentos quilômetros ao
sul. Além disso, a água que desce do Hermom corre pelo Jordão, mas não
pode subir morro acima até Jerusalém. Contudo, o salmista não está pensando
em termos geográficos, mas, sim, em termos teológicos.
Nesse sentido, as águas abundantes que descem do Hermom, atravessando
Israel de norte a sul, produzem a ideia do suprimento e do refrigério
necessário ao povo, à vegetação e aos animais, sendo providos por Deus. Já
Sião, como receptora do orvalho que vem do Hermom, surge como a cidade
abençoada pelo Senhor e sede das esperanças israelitas de redenção e de um
futuro glorioso. Sobre essa última, o salmista completa (v.3b): “Pois ali o
Senhor decretou a bênção e a vida eterna” (kî sham tsiwwâ yhwh ’et-
havverakâ hayyîm ‘ad-ha‘ôlam). Desse modo, Jerusalém, além de alvo das
bênçãos de Deus, é também o local de onde o Senhor promoveria redenção
espiritual e política para Israel e para as nações. Essa comparação tem valor
no contexto do salmo, pois, assim como a esperança de que Deus promoveria
em Sião as maiores bênçãos enchia os israelitas de força, alegria e coragem,
do mesmo modo tais benefícios eram manifestos diante da união fraternal. A
comunhão entre os irmãos trazia a cada um alegria, refrigério, socorro e
vigor.
É uma pena que uma lição tão encarecida no passado tenha sido relegada a
segundo plano na atualidade. Nossos dias testemunham indiferença uns pelos
outros dentro das igrejas, contatos superficiais, falta de envolvimento,
substituição da comunidade eclesiástica por pequenos grupos domésticos e
participações intermitentes nos trabalhos coletivos de culto a Deus. A
consequência disso tudo — obviamente não anunciada, nem computada pelos
proponentes desse sistema moderno e corrompido de ajuntamento — é o
enfraquecimento tanto das igrejas, como dos crentes individualmente. Mas
não é isso que a Bíblia nos ensina. Ela conclama a nos reunirmos
regularmente (Hb 10.25), nos envolvermos uns com os outros (1Ts 5.11), nos
alegrarmos na comunhão (Rm 15.32; 2Tm 1.4), praticarmos o amor
verdadeiro (Ef 4.2; 1Ts 4.9) e a, juntos, batalharmos pela edificação do corpo
de Cristo (1Co 12.7; 1Pe 4.10) e pela expansão da mensagem do evangelho
entre os perdidos (1Pe 2.9). Que saibamos valorizar a vida de união que
temos uns com os outros por meio do sangue do Cordeiro e da habitação do
Espírito Santo, de modo que nossos celeiros nunca se esvaziem do amor
fraternal que começa aqui e que continuará no céu por toda a eternidade!

SALMO 134
A Bendição do Servo e a Bênção de Deus

Encontrei, certa vez, uma moça que estava afastada da igreja por haver
deliberadamente escolhido viver em situação de pecado. Apesar da
possibilidade que havia de aquela triste condição ser revertida, a moça se
mostrava bastante decidida em mantê-la. Então, como modo de, ao mesmo
tempo, apontar sua situação irregular e a disposição da igreja de perdoar e
receber de volta o arrependido, eu disse a ela: “Estou orando por você!”. A
resposta dela me deixou aturdido! Ela disse: “Ore mesmo por mim, pois vou
prestar um concurso em tal dia e preciso da ajuda de Deus”. Eu não sabia se
ria ou lamentava. Pensei comigo: “Será que ela entendeu que eu estava
orando para que ela fosse feliz e abençoada em suas ações e não para que se
arrependesse do pecado?”. E como eu poderia pedir ao Senhor que
abençoasse alguém que, deliberadamente, se afastou dele e que cuspia na
comunhão obtida pelo sacrifício de Jesus na cruz? Apesar de Deus ser capaz
de fazer qualquer coisa, a comunhão com ele filtra que tipo de ações ele
rende aos seus, pelo que diz Isaías: “Eis que a mão do Senhor não está
encolhida, para que não possa salvar; nem surdo o seu ouvido, para não poder
ouvir. Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e
os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is
59.1,2). Por isso, realmente não orei a Deus para que a abençoasse no tal
concurso, mas continuei a clamar por arrependimento e retorno à comunhão
dos santos, mesmo que, para isso, o Senhor tivesse de discipliná-la.
O ato de demonstrar gratidão pelas grandezas divinas ou de clamar por
alguém pelas bênçãos do Senhor se chama “bendizer”. A palavra hebraica
para tal ação é barak, a mesma usada para descrever a ação de Deus de
conceder bênçãos. Então, quando Deus efetua tal ação, o sentido da palavra é
“abençoar”. Porém, como o homem não tem a mesma capacidade de efetivar
bênçãos, ao ser o autor da ação do verbo barak, o significado passa a ser
“bendizer” — a visão supersticiosa dessa atividade, a qual acredita que o
homem tem poder em si, é retratada pela palavra “benzer”. Assim, é no
sentido de “bendizer” que as pessoas descritas no Salmo 134 atuam. Esse é o
último dos salmos nomeados como “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt).
Ele era cantado pelos peregrinos quando sua viagem havia chegado ao fim,
seu propósito fora completamente atingido e eles estavam em pleno curso da
adoração comunitária a Deus no Templo. No decurso do culto, o salmo
expressa um chamado aos adoradores (vv.1,2), chamado esse feito por um
homem, o próprio salmista ou, possivelmente, o sumo sacerdote, e a resposta
que é a ele dirigida (v.3) — essas pessoas são identificadas pelos pronomes
masculinos plurais dos vv.1,2 e pelo pronome masculino singular do v.3.
Assim, o chamado do salmista ou do sacerdote é que o povo pratique a
bendição a Deus, ou seja, a oração de uns em favor dos outros. Por isso, o
salmo serve para assentar três pontos cardeais na prática da bendição pelos
servos do Senhor.
O primeiro ponto cardeal do salmo é que as bendições pressupõem
ligação do abençoado com Deus (v.1). O homem que se dirige ao povo diz
em alta voz (v.1a): “Atenção! Bendizei vós ao Senhor, todos os servos do
Senhor” (hinneh barakû ’et-yhwh kol-‘avdê yhwh). Apesar da segunda parte
do versículo dizer que esses serviam a Deus “de noite” — o que faz com que
alguns comentaristas associem tais servos com os levitas que trabalhavam no
Templo —, o tom do salmo e sua ocasião de execução parecem descrever
como servos do Senhor todos os adoradores ali presentes. A ordem de
bendizer a Deus tem aqui o sentido de orar por bênçãos — esse sentido é
compreendido pelo modo como o povo reage ao chamado, não louvando a
Deus, mas clamando por sua ação abençoadora em favor do dirigente do
culto (v.3).
Uma dificuldade na compreensão de tal chamado é que não se oferece o
alvo das orações do povo. Entretanto, a falta de especificidade do pedido
sugere que bendição deveria ser em favor de todos, como se dissesse:
“Clamem a Deus por todos nós, ó servos do Senhor”. Contudo, mesmo que o
chamado visasse à oração pelo povo em geral, ele é feito às pessoas ali
presentes, àqueles (v.1b) “que permaneceis na casa do Senhor durante as
noites” (ha‘omedîm bevêt-yhwh ballêlôt). Trata-se dos adoradores que,
comprometidamente, deixaram seus lares e seus interesses econômicos para
estar diante de Deus e lhe prestar todas as homenagens e louvores, de manhã
até a noite, por vários dias. Essa ligação com Deus era pressuposta para que
buscassem a Deus em oração uns pelos outros. Afinal, que vantagem haveria
na oração dependente de quem orgulhosamente se mantinha longe do Senhor
e da obediência a ele?
O segundo ponto cardeal é que as bendições requerem a busca por
santidade de vida (v.2). Se o orgulho, a rebeldia e a independência de Deus
não eram os solos para serem plantadas as bendições em favor dos irmãos, a
impureza e o pecado também não. Por isso, o dirigente do culto diz em alta
voz (v.2): “Levantai vossa mão santa e bendizei ao Senhor” (se’û-yedekem
qodesh ûbarakû ’et-yhwh). A segunda parte do versículo repete o que foi dito
no texto anterior, mas o início do v.2 introduz a maneira como a bendição
deveria ser realizada. Apesar de a maioria das traduções trazer algo do tipo
“levantai vossas mãos ao santuário”, o texto hebraico não traz nenhuma
preposição locativa ou artigo ligados à palavra qodesh (santo/santuário) —
como ocorre em Sl 28.2 —, demonstrando se tratar de um adjetivo e não de
um substantivo, o qual combina em número com a expressão “vossa mão”
(yedekem). Assim, parece que os dizeres de Paulo a Timóteo refletem
exatamente a ideia em questão: “Quero, portanto, que os varões orem em
todo lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem animosidade” (1Tm 2.8).
Levantar as mãos é um gesto que expressa oração e adoração. Era
exatamente isso que Israel fazia diante de Deus no Templo. Entretanto, a
atenção não recai tanto sobre a ação quanto sobre o modo de realizá-la: em
santidade. Para os israelitas, a expressão “mão santa” podia ter relação com a
observância dos mandamentos relativos à impureza cultual, de modo que
ninguém que não havia sido purificado ritualmente poderia prestar tal
adoração no Templo. Entretanto, o sentido primário certamente era a própria
santidade e pureza de vida, já que Deus se importava menos com o rito em si
que com o coração e a devoção dos adoradores (1Sm 15.22; Os 6.6). Por isso,
tanto na epístola paulina como nesse salmo, a orientação é manter a pureza
por meio da obediência, do arrependimento e do perdão para que, sem
qualquer impedimento, se possa elevar a voz a Deus suplicando por si e por
outros.
O último ponto cardeal é que as bendições necessitam da ação
abençoadora do Senhor (v.3). O final do salmo condena ao esquecimento a
ideia supersticiosa do benzimento. Longe de realizar um ritual como que
mágico a fim de promover o benefício do homem que dirigiu as palavras dos
vv.1,2, o povo responde as orientações dos versículos precedentes, dizendo
(v.3): “Que o Senhor, o criador dos céus e da Terra, te abençoe de Sião”
(yevarekka yhwh mitsîyôn ‘oseh shamayim wa’arets). Dois fatores notáveis
merecem atenção nesse texto. O primeiro é o autor da bênção. Se é o povo
quem promove a bendição, o responsável pela bênção é o Senhor em pessoa.
Ao agir, seu poder soberano é o lastro para que as bênçãos aos seus servos
sejam efetivadas, motivo pelo qual o seu poder criador é mencionado aqui. O
mesmo Deus que criou tudo que existe, sejam os céus, seja a Terra, seria o
responsável por abençoar seus servos. Por isso mesmo, a ele se dirigiam as
orações. Ao homem cabe a função de ser o receptor dependente de tais
benesses.
O segundo fator notável é a menção de Sião como local de onde partem as
bênçãos aqui preditas. A ideia do escritor não parece ser simplesmente o local
em que os clamores eram apresentados. Sião não é apenas o local da
manifestação das benevolências de Deus, mas a fonte delas. Trata-se de uma
referência ao local em que Deus, representativamente, habitava entre o povo
e de onde atuava em seu favor. É também referência às esperanças que Israel
tinha de redenção e restauração escatológica pelo que viria a acontecer em
Jerusalém com a vinda do rei Messias para reinar sobre eles e sobre as
nações. Esses homens pareciam saber que, sem a ação abençoadora de Deus,
não existiria uma bênção sequer — nem para Israel, nem para os povos, tanto
no presente como no futuro.
Quantas lições preciosas e práticas aprendemos com esse salmo! Em
primeiro lugar, também somos chamados a orar por nós mesmos, por nossas
famílias, por nossa igreja e por todos os crentes ao redor do mundo. Também
aprendemos que é necessária a manutenção da comunhão com o Senhor, por
meio da santificação de vida, a fim de termos as condições ideais para buscá-
lo em oração sem que nosso pecado nos torne antes dignos de disciplina que
de bênçãos. Finalmente, somos lembrados de algo que a cristandade tem se
esquecido — ou que tem trabalhado duro para esquecer — a respeito de
quem Deus é: o Senhor soberano sobre a Terra e o determinador dos rumos
da história, quer mundial, quer pessoal. Olhar com respeito e valor para tais
princípios evidencia nossa própria identidade como “servos do Senhor”.

SALMO 135
A Íntima Relação entre a Memória e o Louvor

Conta-se que Louis Mountbatten (1900-1979), membro da nobreza e


almirante da marinha britânica, esteve em visita a Toronto, no Canadá. Tão
logo tenha lá chegado, pediu uma lista de nomes de todos os garçons,
motoristas e outras pessoas que o serviriam durante sua estadia naquele país.
A lista deveria especificar, também, os feitos de cada um deles na guerra e
eventuais condecorações que tivessem recebido. Apesar de parecer algo
exagerado e difícil de fazer em tão pouco tempo, um dos seus assistentes se
empenhou em reunir toda a informação requerida, datilografou-a e entregou
ao lorde Mountbatten. O almirante, então, pediu que o assistente lesse para
ele tudo que havia anotado e passou a ouvir atentamente a leitura. Nos
próximos dias até o final da sua estadia, Mountbatten chamou pelo nome
todos que o serviam e conversou com eles, com grande facilidade, sobre suas
experiências de vida. É muito interessante, a partir dessa história, perceber
como a memória é importante para tratar alguém com o devido respeito e
honra que seu caráter e seus feitos merecem.
O Salmo 135 compartilha da mesma lição, com a diferença de que não são
os servos que recebem a devida honra, mas o Senhor. Trata-se de um salmo
provavelmente composto para uma das grandes festas judaicas no Templo, já
que conclama os adoradores que ocupam (v.2) a “casa do nosso Deus” (bêt
’elohênû). O salmo mostra sua utilidade ao trazer à memória do povo quem é
Deus para que, de modo adequado, pudessem exaltá-lo e servi-lo. Isso
confere ao texto uma característica exultante típica do louvor do Deus
supremo de todo universo. Nesse contexto, cinco atributos louváveis do
Senhor são oferecidos pelo salmista como razão para que todo o povo
reunido em Jerusalém se curvasse em sincera adoração.
O primeiro atributo de Deus enfatizado no salmo é a bondade (vv.1-4). O
chamado ao louvor triunfante a todos (v.1) os “servos do Senhor” (‘avdê
yhwh) tem muitas razões ligadas ao caráter de Deus. Em primeiro lugar, é
dito (v.3a): “Exaltai ao Senhor, pois o Senhor é bom!” (hallû-yah kî-tôv
yhwh). Apesar de parecer uma declaração mais ou menos genérica, a
coloração histórica do salmo associa a bondade de Deus a tudo que ele já
havia feito em favor de Israel, de modo que vários atributos subsequentes
nascem ou fluem para a bondade divina. Desse modo, a reação das pessoas
era louvar (v.3b): “Cantai ao seu nome” (zammerû lishmô). Junto ao
chamado, há um benefício (v.3c): “Pois é prazeroso”. A bondade de Deus é
tão grande que faz com que seu louvor seja bom e agradável aos adoradores,
em contradição com a adoração dos falsos deuses daqueles dias que envolvia
degradação, imoralidade, sofrimento e até sacrifícios humanos. Se o louvor
era bom, boa também era a razão para adorar a Deus (v.4): “Pois o Senhor
escolheu Jacó para si e Israel para sua possessão” (kî-ya‘aqov bahar lô yah
yisra’el lisgullatô). A eleição, as alianças e as promessas de Deus ao seu
povo eram provas vivas da sua bondade e o tornavam mais que digno de todo
louvor.
O segundo atributo de Deus é o poder (vv.5-7). O escritor diz (v.5): “Pois
eu sei que o Senhor é grande e que o nosso Deus é maior que todos os
deuses” (kî ’anî yada‘tî kî-gadôl yhwh wa’adonênû mikkol-’elohîm).
Normalmente, o agente de uma ação é determinado na conjugação do verbo
hebraico sem a necessidade de um pronome. Mas, nesse caso, o pronome
pessoal “eu” (’anî) surge antes do verbo, dando peso não só ao conhecimento
do salmista, mas à convicção que ele sustenta a respeito do Senhor. Longe de
afirmar a existência de outros deuses, o que o texto exalta é que até mesmo os
conceitos a respeito dos falsos deuses perdiam para o que Deus já havia
provado poder fazer. O que salmista sabia de Deus, a exemplo do que Jó
aprendeu em sua experiência marcante (Jó 42.2), era que sempre que o
Senhor planejou e desejou fazer algo, em qualquer lugar que fosse, ele
simplesmente o fez, sem qualquer dificuldade ou impedimento (v.6). Seu
próprio controle sobre as forças da natureza (v.7) mostra que ele é poderoso
para dirigir a vida e os destinos dos povos, principalmente dos seus servos,
pelo que estes devem louvá-lo pela grandeza do seu poder.
O terceiro atributo é a justiça (vv.8-12). A ação divina destacada nesse
trecho é a de “golpear” ou “ferir” (nakâ). O Senhor abateu os egípcios, seus
primogênitos e seus rebanhos quando libertou os israelitas da escravidão
(v.8), fazendo-o por meio das dez pragas e da destruição do poderio militar de
Faraó no Mar Vermelho (v.9). Esse mesmo tratamento foi rendido a diversos
povos, tanto no percurso dos israelitas até a terra da promessa como na
tomada de Canaã diante de muitos reinos ali estabelecidos (vv.10,11), de
modo que a terra fosse transferida aos seus herdeiros da promessa (v.12).
Entretanto, essa não foi uma injusta ação de tirar a terra de inocentes para dar
ao povo favorecido. Ao contrário, foi a justiça de Deus que entrou em ação
para, enquanto abençoava os seus, punir o pecado das perversas nações
cananitas. Isso foi predito muito tempo antes a Abraão, ao lhe falar sobre o
cativeiro dos seus descendentes: “Na quarta geração, tornarão para aqui;
porque não se encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus” (Gn
15.16). Por isso, a ação de “golpear” e “ferir” tais povos reflete a justiça
punitiva do Deus justo e santo.
O quarto atributo divino é a misericórdia (vv.13,14). O salmista passa a
falar da enorme fama de Deus ao longo das eras (v.13): “Ó Senhor, o teu
nome permanece para sempre. Ó Senhor, a tua memória é transmitida de
geração em geração” (yhwh shimka le‘ôlam yhwh tikreka ledôr-wadôr). A
ideia produzida por essa frase é a de um povo que tem motivos para contar
permanentemente os feitos de Deus. Os pais se assentavam com os filhos, à
luz do fogo, e contavam as coisas que o Senhor havia feito por Israel. Mas
não apenas isso: contavam também das falhas dos seus antepassados em se
submeter às ordens divinas e como foram disciplinados por isso (v.14a):
“Pois o Senhor julga o seu povo” (kî-yadîn yhwh ‘ammô). Mesmo assim,
ainda estavam ali para contar tais histórias, simplesmente porque Deus, ao
efetuar seu julgamento, não se esqueceu de render ao povo de Israel suas
misericórdias (v.14b): “Entretanto, ele se compadece dos seus servos”
(we‘al-‘avadayw yitneham). A indignidade dos servos não impede a bondade
de Deus quando ele usa de misericórdia, conforme percebeu Jacó: “Sou
indigno de todas as misericórdias e de toda a fidelidade que tens usado para
com teu servo” (Gn 32.10a). Mesmo quando Israel cometeu loucuras e foi
punido, o juízo não foi para destruição do povo por causa da misericórdia
divina, pelo que, em meio aos lamentos, o profeta Jeremias afirmou: “As
misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as
suas misericórdias não têm fim” (Lm 3.22).
O último atributo do Senhor apontado no texto é a vida (vv.15-18). Hoje
em dia, muita gente incrédula pensa que Deus não passa de um mero conceito
ou de um mito criado para dar segurança e esperança no sofrimento.
Contudo, Deus é existente e pessoal, um ser verdadeiramente vivo. Isso é dito
pelo salmista por meio da contraposição que faz do Senhor com os falsos
deuses dos seus dias (v.15). Apesar de mencionar os falsos deuses, eles não
são o assunto do salmo. O assunto é o Senhor e o escritor apresenta sua
existência e vida o antepondo à falsidade dos ídolos, os quais (vv.16,17) “têm
boca, mas não falam; têm olhos mas não enxergam; têm ouvidos, mas não
escutam, pois não há respiração em suas bocas” (peh-lahem welo’ yedavverû
‘ênayim lahem welo’ yir’û ’oznayim lahem welo’ ya’azînû ’af ’ên-yesh-rûah
befîhem). Dizer que eles não respiram é equivalente a dizer que não têm vida.
A insensatez de crer em objetos mortos como se fossem deuses invade a vida
de tais incrédulos a ponto de torná-los insensatos como sua própria fé (v.18).
Olhar para todos esses maravilhosos atributos do nosso Deus não é uma
atividade meramente contemplativa. Junto a isso, vem a aplicação prática que
transborda do início ao fim do salmo: a adoração ao grandioso Senhor. Por
isso (vv.19,20), são chamados ao louvor de Deus todo o povo da “casa de
Israel” (bêt yisra’el), os sacerdotes, chamados aqui de “casa de Arão” (bêt
’aharon), todos aqueles que serviam no templo, nomeados como “casa dos
levitas” (bêt hallewî), e todos “os que temem ao Senhor” (yir’ê yhwh),
expressão essa que denota respeito, devoção, serviço, adoração e dependência
de Deus. O salmo termina com uma aplicação bem tangível ao ajuntamento
israelita no Templo para adorar a Deus (v.21): “De Sião seja bendito o
Senhor, o qual habita em Jerusalém. Exaltai ao Senhor!” (barûk yhwh
mitsîyôn shoken yerûshalaim hallû-yah).
Daqueles dias até hoje, em nada o Senhor mudou. Ele ainda é bondoso,
soberano, justo, misericordioso e vivo. E seus servos, apesar de não terem
mais um Templo, um código legal a seguir e sacrifícios de animais a prestar,
ainda são chamados ao seu louvor em tremenda admiração e devoção. Que
para nós, o templo seja o corpo de Cristo, a igreja do Senhor (1Co 12.27; Ef
4.12). Que o código legal seja a lei da liberdade que nos afasta do mundo e
nos faz viver para Deus (Gl 5.1,13; Tg 1.25). E que o sacrifício seja nossa
própria vida, transformada e oferecida para o louvor do nosso redentor (Rm
12.1-2; Hb 13.15,16). Desse modo, recordando quem Deus é, não apenas
nossa boca, mas também toda a nossa vida bradem: “Exaltai ao Senhor!”
(hallû-yah).

SALMO 136
Razões para Ser Grato a Deus

Uma senhora alemã, certa vez, procurou seu pastor com uma oferta para a
igreja, o equivalente a dez dólares na época, dizendo: “Nos anos anteriores eu
tive de gastar com a compra de remédios, mas neste ano ninguém da minha
família ficou doente e não tive de comprar remédio algum, de modo que
quero demonstrar minha gratidão a Deus dessa maneira”. Algum tempo
depois, a mesma mulher veio ao seu pastor com outra oferta explicando que
muitos dos seus vizinhos haviam sofrido perdas em uma recente tempestade,
mas que sua fazenda tinha sido completamente poupada. “Eu trouxe essa
doação à igreja como oferta de gratidão”, disse ela ao pastor.
Essa demonstração de gratidão pelos feitos bondosos de Deus é uma dentre
várias maneiras de ser grato. Outras pessoas podem fazer o mesmo se
esforçando para desenvolver santidade e obediência às palavras do Senhor,
dedicando tempo à pregação do evangelho, comparecendo aos cultos de
adoração a Deus e trabalhando pela edificação do corpo de Cristo. O escritor
do Salmo 136 também encontrou uma maneira de evidenciar sua gratidão a
Deus de um modo bastante enfático. O seu chamado ao povo, no início dos
três primeiros versículos, é “rendei graças ao Senhor” (hôdû layhwh), “rendei
graças ao Deus dos deuses” (hôdû le’lohê ha’elohîm) e “rendei graças ao
Senhor dos senhores” (hôdû la’adonê ha’adonîm). O tema e o chamado são
exatamente a “gratidão”. E, nesse caso, a gratidão tem uma razão não só
específica, mas enfática: “O amor divino”. Algo notável em todo o salmo é a
recorrência da frase “pois o seu amor dura para sempre” (kî lê‘ôlam hasdô).
Isso ocorre rigorosamente na parte final de todos os 26 versículos — no v.3
há uma pequena variação na palavra traduzida como “para sempre” (lê‘ôlam),
a qual surge em sua forma defectiva (lê‘olam) que não muda seu sentido em
absolutamente nada. Para destacar o amor do Senhor pelo qual o crente deve
ser grato, o salmista alista cinco evidências desse amor que beneficia a
humanidade de um modo geral, mas principalmente os servos de Deus.
A primeira evidência do amor constante do Senhor é o caráter divino
(vv.1-3). O primeiro chamado à gratidão tem como explicação a declaração
(v.1): “Pois ele é bom” (kî-tôv). Há muitos modos de alguém ser bom, mas,
no caso de Deus, trata-se tanto de um traço íntimo do seu caráter como uma
virtude ativa que pode ser testemunhada por olhos atentos. Alguém pode ser
bom, mas ter sua atuação bondosa suprimida pela força dos maus ou pela
incapacidade pessoal de externar o bem interior. Esse não é o caso de Deus,
visto ser chamado de (v.2) “Deus dos deuses” (le’lohê ha’elohîm) e de (v.3)
“Senhor dos senhores” (la’adonê ha’adonîm). Essa é a garantia de que sua
bondade não é limitada por circunstâncias adversas ou pela oposição dos
inimigos. Por isso, ao ser bondoso para com seus servos, seu amor é
retribuído com gratidão e louvor, conforme expressos nesse cântico. Ao que
tudo indica, principalmente pela ênfase na gratidão e pelo tom exultante do
salmo, o povo de Israel havia testemunhado recentemente o amor bondoso de
Deus em sua vida.
A segunda evidência é a obra maravilhosa de Deus (vv.4-9). O segundo
chamado à gratidão é direcionado (v.4) “àquele que faz grandes maravilhas
por si mesmo” (le‘oseh nifla’ôt gedolôt levaddô). O termo “maravilhas”, que
expressa as ações poderosas de Deus, normalmente surge em conexão com
uma das duas maiores demonstrações do seu poder: a criação ou a libertação
de Israel da escravidão no Egito. Nesse caso, apesar de o êxodo ser um
assunto tratado pelo salmista (vv.10-15), a conexão primária se dá com a obra
da criação (vv.5-9). Tal obra não dependeu de mais ninguém além de Deus e,
tudo que ele criou, o fez “por si mesmo”, ou seja, com seus próprios recursos.
Tais recursos envolvem seu maravilhoso conhecimento, pelo que o louvor se
dirige (v.5) “àquele que fez os céus com entendimento” (le‘oseh hashamayim
bitvûnâ). A capacidade divina de criar com uma habilidade magistral se deve
ao fato de que seu conhecimento é ilimitado. Até aqui fica claro que a criação
envolveu o poder e o conhecimento de Deus. Mas, quando se percebe que,
podendo fazer tudo da maneira que quisesse, ele escolheu fazê-lo de modo
benéfico para o homem, como separar a terra em que o homem habitaria (v.6)
e criar os astros para nos servirem de luz, de guias e de promotores de
estações climáticas (vv.7-9), então, seu amor fica bastante evidente e convida
seus servos à gratidão.
A terceira evidência do amor de Deus é a libertação recebida (vv.10-15).
O assunto desse parágrafo é o êxodo, de modo que o louvor agora se dirige
(v.10) “àquele que desferiu golpes no Egito, em seus primogênitos”
(lemakkeh mitsrayim bivkôrêhem). Essa menção da décima praga age tanto
como resumo de todas as dez, como na qualidade do golpe mais duro dado à
sociedade egípcia da época. Porém, a ênfase não está sobre a justiça de Deus
contra o Egito, mas sobre o amor de Deus por Israel revelado na forma da
libertação do povo (v.11): “E fez Israel sair do meio deles” (wayyôtse’
yisra’el mittôkam). Para mostrar seu amor pelo povo que escolheu, o Senhor
não poupou nenhuma atuação poderosa que fosse necessária (v.12). Por isso,
quando o povo se viu entre o mar e os perseguidores, Deus fez o que jamais
se ouvira dizer, pelo que o povo rendeu louvor (v.13) “àquele que dividiu o
Mar Vermelho em [duas] partes” (legozer yam-sûf ligzarîm). Tendo feito
Israel passar no meio do mar em seco (v.14), Deus finalizou sua libertação
afundando todo o poderio militar inimigo (v.15): “Mas lançou o Faraó e seu
exército no Mar Vermelho” (weni‘er par‘oh wehêlô beyam-sûf). O povo de
Israel jamais se esqueceu dessa demonstração amorosa, razão pela qual Deus
passou a ser conhecido como “Senhor, vosso Deus, que vos tirou da terra do
Egito” (Dt 13.5).
A quarta evidência é a proteção constante (vv.16-20). A viagem no deserto
durou quarenta anos por causa da incredulidade e rebeldia do povo, apesar de
ter testemunhado o grande poder de Deus no êxodo. Ainda assim, o Senhor
não deixou que eles perecessem por completo no deserto. Em lugar disso, sua
atuação amorosa fez com que a gratidão do povo fosse rendida (v.16) “àquele
que conduziu seu povo pelo deserto” (lemôlîk ‘ammô bammidbar). A ação de
Deus de conduzir Israel foi bem mais que apontar o rumo certo, como se
fosse uma espécie de mapa ou de bússola. A ideia presente é a de fazê-los
chegar ao destino e de, no caminho, lhes sustentar com o que fosse
necessário. Por isso, além de lhes apontar o rumo a seguir (Ex 13.21,22), o
Senhor lhes forneceu diariamente o alimento que, em meio ao deserto, caía
do céu na forma de maná (Dt 8.16). Não somente isso, mas também lhes deu
água mesmo onde não havia mananciais visíveis ou acessíveis, e o fez
miraculosamente (Ne 9.15,20). Se eles foram protegidos dos perigos diários
de fome e sede, Deus também lhes protegeu de inimigos pontuais
aterrorizantes como exércitos inimigos liderados por reis que não lhes foram
favoráveis, abatendo, com isso, (v.19) “a Seom, rei dos amorreus” (lesîhôn
melek ha’emorî) e também (v.20) “a Ogue, rei de Basã” (ûle‘ôg melek
havvashan). A conta final é que, em meio a muitas ações protetoras como
essas, Deus agiu amorosamente em benefício de Israel (v.18) “e matou
poderosos reis” (wayyaharog melakîm ’addîrîm).
A última evidência do amor do Senhor é a misericórdia imerecida (vv.21-
26). A dureza de Israel no deserto lhe rendou a alcunha de “povo de dura
cerviz” (Êx 32.9; 33.3; 34.9; Dt 9.6,13), ou seja, um povo cuja rebeldia e
orgulho lhe impediam de dobrar seu pescoço diante de Deus em humildade e
sujeição. Apesar de merecerem castigo e rejeição por isso, o Senhor tomou os
reinos que abateu diante de Israel (vv.21,22) “e deu suas terras por herança”
(wenatan ’artsam lenahalâ), “herança para Israel, seu servo” (nahalâ
leyisra’el ‘avdô). Ao falar da herança da terra de Canaã, o salmista adentra
seu pensamento nos dias da conquista e dos juízes de Israel. Novamente por
causa de pecado, os israelitas foram acossados por inimigos, seis povos
daquela região — arameus, moabitas, filisteus, cananeus, midianitas e
amonitas. Em meio aos juízos, o povo se arrependeu e clamou a Deus, o qual
não tinha obrigação de lhes perdoar, nem de lhes socorrer. Mas, devido à
fidelidade plena de misericórdia, o Senhor os acudiu e o povo se tornou
muito grato àquele (v.23) “que, no nosso abatimento, se lembrou de nós”
(shevveshiflenû zakar lanû), conforme declarou o salmista. “Lembrar-se” do
povo não significa que tivesse se esquecido deles, mas que lhes atendeu as
orações e lhes socorreu. Assim, o Senhor foi misericordioso (v.24) “e nos
livrou de nossos inimigos” (wayyifreqenû mitsarênû). Se a misericórdia de
Deus, como evidência do seu amor, foi vista na proteção, também o foi na
provisão (v.25): “Ele concede pão à toda carne” (noten lehem lekol-basar).
Deus realmente é o responsável pela manutenção de toda vida na Terra, mas
o salmista se sente ainda mais grato ao saber que ele e seu povo são alvos
desse trato. Assim, o salmo encerra com o chamado inicial (v.26): “Rendei
graças ao Deus dos céus” (hôdû le’el hashamayim).
Que nós demonstremos a mesma gratidão pelas mesmas razões: as
demonstrações do amor divino por nós ao agir nos salvando, sustentando,
conduzindo, provendo e abençoando, apesar de nada merecermos! E que,
devido a tal gratidão, nossa demonstração também seja vista e honre ao Deus
digno de toda adoração e gratidão!

SALMO 137
Resistindo às Pressões do Mundo

Um experimento laboratorial constatou algo impressionante sobre os sapos.


Como eles não têm uma temperatura corporal definida, mas sim flutuante,
conforme o ambiente, eles correm um grande risco. Descobriu-se que um
sapo imerso em uma água sendo aquecida a 36 milésimos de grau por
segundo, na escala Fahrenheit, não é capaz de notar esse aumento de
temperatura. Nessa taxa de aquecimento, o sapo estará em uma água
perigosamente quente sem perceber o risco que corre. Quando chega a
perceber, já é tarde demais para tentar escapar e ele, inevitavelmente, morre
na água fervente. Essa experiência científica há muito serve de ilustração
sobre o modo como a tentação e as pressões do mundo atingem os crentes.
Longe de sucumbirem às grandes tentações logo de cara, os servos de Deus
passam a se acostumar com pequenos desvios, um de cada vez, e vão se
tornando insensíveis até o ponto de cometerem loucuras das quais fugiram a
princípio.
O Salmo 137 mostra que o povo de Israel foi submetido a uma situação
assim quando estava exilado de suas terras. Cativos na Babilônia (v.1), eles
foram tentados a esquecer e desprezar sua pátria e as esperanças de vê-la
restaurada e reabilitada pela fidelidade de Deus no cumprimento das suas
promessas. O tom saudosista do salmo (vv.4,5) indica que ele foi escrito um
bom tempo depois do início do exílio (605 a.C.) — alguns comentaristas
sugerem que sua composição se deu próximo do final do cativeiro babilônico
(539 a.C.). A fim de preservar a fidelidade a Deus, sua identidade nacional e
as esperanças de retornar à terra da promessa, vendo se cumprir tudo que o
Senhor anteviu, o salmista assume uma postura de resistência às pressões.
Para isso, ele leva adiante três ações que o tornaram constante diante da
tristeza e da decepção do momento.
A primeira ação foi lamentar a condição adversa (vv.1-3). Em situações
ruins, um mecanismo de defesa que as pessoas possuem é a aceitação.
Normalmente, é preciso se conformar com as contingências da vida e esperar
um futuro melhor. Entretanto, quando as contingências são frutos de erro,
aceitar e se conformar com as consequências é o mesmo que aceitar o próprio
erro. Esse era o caso dos israelitas, pois estavam exilados por causa do
próprio pecado. Eles não podiam culpar ninguém, além deles mesmos. Por
isso, olhar para o exílio e não lamentar significava relevar o pecado que
cometeram e deixar de buscar a restauração. Mas o salmista e seus pares não
agiram desse modo. Eles lamentaram sua condição olhando para a pátria com
saudades (v.1): “Ali, ao lado dos rios da Babilônia, nós nos sentamos e
choramos ao lembrar de Sião” (‘al naharôt babel sham yashavnû gam-bakînû
bezokrenû ’et-tsîyôn). Diante disso, vê-se que para tais judeus a ideia de se
tornarem babilônicos não era aceitável, nem aprazível. Seu desejo era nunca
ter deixado Israel e o fato de ter acontecido exatamente isso era, para eles,
motivo de tristeza.
Surpreendentemente, a iniciativa do povo da Babilônia era no sentido
oposto. Em vez de fazerem os judeus sofrer como escravos indesejados em
sua terra, os babilônicos os convidavam a se alegrar (v.3): “Pois ali os nossos
captores nos pediram para entoar canções e os nossos opressões, para sermos
alegres, dizendo: ‘Cantai para nós um dos cânticos de Sião’” (kî sham
she’elûnû shôvênû divrê-shir wetôlalênû simhâ lanû mishîr tsîyôn). Isso,
obviamente, pode ser visto como uma afronta humilhante da parte dos
opressores. Entretanto, a negativa dos israelitas e suas razões (vv.2,4)
demonstram que eles não estavam sendo obrigados a isso, mas, sim,
incentivados. Parece que a ideia era que eles aceitassem sua condição e se
alegrassem nela. “Adaptação” seria a palavra chave nessa situação,
principalmente depois de tanto tempo de cativeiro. É como se os babilônicos
lhes dissessem: “Não está na hora de se conformar e de tocar a vida? Não está
na hora de ser feliz longe da sua terra?”. A sugestão era bastante tentadora,
mas o salmista e seus irmãos a rejeitaram. Em vez de cantarem alegremente,
eles deixaram de lado seus instrumentos musicais para manter seu lamento
(v.2): “Nós penduramos nossas harpas nos salgueiros que há entre eles”
(‘al-‘aravîm betôkah talînû kinnorôtênû). Essa ação expressa não apenas o
desejo de não se satisfazer com o fruto do erro e do pecado, como também de
demonstrar publicamente o lamento e o anseio de retornar à situação original.
A segunda ação foi resistir às pressões do mundo (vv.4-6). Diante das
sugestões que, aos olhos humanos, pareciam boas e agradáveis, o salmista
mantém os princípios da separação do mundo e da santidade do nome do
Senhor (v.4): “Como entoaríamos o cântico do Senhor sobre solo
estrangeiro?” (‘êk nashîr ’et-shîr-yhwh ‘al ’admat nokar). Assim, os cantos
que serviam para cultuar a Deus no Templo, em Jerusalém, jamais seriam
tratados com descaso, nem serviriam para promover a desonra do nome do
Senhor. É claro que a vida seria bem mais fácil para eles se sucumbissem à
pressão de aceitar sua condição e de tirar proveito dela. Mas tal ideia é tão
inaceitável que o salmista roga uma maldição sobre si caso se deixe levar
pelo mundo colocando de lado a esperança de retornar a Jerusalém (v.5):
“Que minha mão direita fique esquecida se eu me esquecer de ti, ó
Jerusalém” (’im-’eshkahek yerûshalaim tishkah yemînî). A mão ficar
esquecida é o mesmo que ficar aleijada, sem movimentos, inútil. Não
satisfeito, o escritor afirma que sua alegria só poderia vir de Jerusalém e de
tudo que a cidade representava em termos de adoração a Deus e de esperança
futura (v.6): “Que a minha língua fique presa no céu da boca se eu não me
lembrar de ti e se eu não elevar Jerusalém ao patamar de ‘minha alegria
suprema’” (tidbaq-leshônî lehikkî ’im-lo’ ’ezkerekî ’im-lo’ ’a‘aleh ’et-
yerûshalaim ‘al ro’sh simhatî). Não importa quanto tempo tenha se passado,
nem quanto o mundo o tenha convidado a se acomodar em seu meio: os
valores do Deus eterno prevalecem para seus servos.
A última ação foi esperar a justiça de Deus (vv.7-9). A última seção do
salmo é bastante dura e de natureza imprecatória (para mais informações e
aplicações desse tipo de linguagem, consultar o comentário do Salmo 109).
O salmista clama por punição para seus captores e para quem os auxiliou e se
alegrou com a queda de Jerusalém e da nação. Entretanto, o clamor por
punição dos inimigos é, ao mesmo tempo, o rogo pelo restabelecimento de
Israel. Assim, a ampla justiça de Deus — juízo do pecador e justificação do
servo — é o objetivo do salmista nos versículos finais do salmo. É
perceptível sua confiança em Deus para a reversão da situação e para o
tratamento do mal. O primeiro alvo do julgamento divino, nas palavras do
escritor, é Edom. Os edomitas, descendentes de Esaú e, por isso, aparentados
dos israelitas, rebelaram-se e se alegraram com os sofrimentos dos seus
parentes desde os dias do profeta Obadias e do rei Jeorão (2Rs 8.20-22; Ob
10). Nos dias da queda de Jerusalém, não foi diferente (v.7): “Lembra-te, ó
Senhor, dos filhos de Edom no dia [em que caiu] Jerusalém, quando
disseram: ‘Desnudai-a, desnudai-a até [chegar] aos seus fundamentos” (zekor
yhwh livnê ’edôm ’et yôm yerûshalaim ha’omrîm ‘arû ‘arû ‘ad haysôd bah).
O outro alvo é a própria Babilônia, cuja queda o salmista considera
garantida e iminente (v.8): “Ó filha da Babilônia que está prestes a ser
destruída: feliz aquele que retribuir a ti o que tu mereces pelo que fizeste a
nós” (bat-babel hashdûdâ ’ashrê sheyshallem-lak ’et-gemûlek sheggamalt
lanû). A linguagem usada nesse texto é interessante e traz a ideia de que a
Babilônia foi instrumento da punição do pecado de Israel e que, de modo
semelhante, provaria do mesmo remédio. Entretanto, sobre ela o escritor
prevê cair a mão punitiva do Senhor em um grau avassalador que não
pouparia ninguém (v.9): “Feliz aquele que segurar e despedaçar as tuas
crianças contra a rocha” (’ashrê sheyyo’hez weniffets ’et-‘olalayik ’el-
hassala‘). Apesar das palavras duras, o salmista certamente tem em mente a
associação profética entre a punição das nações e a restauração de Israel (Ob
15-17; Jl 3.1-3; Zc 14.1-8), pondo sua esperança no dia da justiça de Deus.
Não é coincidência a grande semelhança entre o clamor da Babilônia aos
israelitas cativos e o clamor do mundo àqueles que creem em Cristo. O
mundo perdido também convida cada servo de Deus a se adaptar ao
mundanismo, a trivializar a adoração divina e a buscar alegria nos caminhos
distantes do Senhor. E o pior de tudo é que isso muitas vezes acontece,
tornando os servos de Deus muito parecidos com os perdidos. Por isso, nós
também temos de lamentar o fato de sermos pecadores e de nos afastarmos
dos santos caminhos do Senhor (1Co 5.2; 1Tm 1.15). Somos encorajados a
resistir bravamente ao mundo e ao diabo para não tomarmos a forma do que é
mau e perverso (Rm 12.1,2; Hb 12.4; Tg 4.7). E somos ensinados, pelas
Escrituras, a aguardar a vinda do Senhor para julgar o mundo e nos dar a
vida eterna (Dn 12.2; Mt 25.31-46). Algo do que não restam dúvidas é quanto
à tristeza presente e ao lamento pelo pecado: eles se tornam alegria na
presença do nosso Senhor, o salvador Jesus Cristo: “Afligi-vos, lamentai e
chorai. Converta-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria, em
tristeza. Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará” (Tg 4.8-10).

SALMO 138
Proteção Contra Tudo e Contra Todos

Nos dias da Guerra Fria, um grande medo pairava sobre o planeta: uma
guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética destruiria, de um
modo ou de outro, o mundo todo. Se essa era uma preocupação constante de
nações distantes das duas superpotências, imagine como era a insegurança
sentida por americanos e soviéticos. Pensando nisso, os Estados Unidos
construíram, na década de 1960, um complexo subterrâneo de 143 milhões de
dólares em Cheyenne Mountain, no Colorado, com a finalidade de abrigar o
Comando Norte Americano de Defesa Aeroespacial (Norad) e o controle do
sistema de mísseis antibalísticos (ABM). Com um sistema de radar de 1
bilhão de dólares conectado a catorze computadores, toda a informação do
mundo exterior se fazia presente no interior da montanha. Assim, abrigado
por quinhentos metros de granito, esse complexo foi projetado para, a partir
dele, o presidente norte-americano ter a capacidade de liderar uma guerra
nuclear protegido de tudo e de todos. Graças a Deus, essa guerra nunca
aconteceu!
O Salmo 138 trata de uma proteção muito maior que aquela promovida
pelas rochas de Cheyenne Mountain. Esse é um salmo “de Davi” (ledawid),
iniciando uma seção de salmos da mesma autoria que vai do 138 até o 145.
Sobre a designação “de Davi” no salmo em questão, há manuscritos da
Septuaginta (tradução grega do AT feita há cerca de 200 a.C.) que
acrescentam as palavras “de Ageu e Zacarias”. Apesar de não termos razões
para duvidar da autoria davídica, essa menção nos indica o tempo em que tais
salmos foram colecionados no saltério e assumiram um significado especial
para o povo — todos os oito salmos dessa seção tratam de temas relevantes
ao povo que voltou do exílio como a fidelidade de Deus, a necessidade de
auxílio e a gratidão pela libertação. Assim como Israel foi preservado por
Deus no exílio e no seu difícil restabelecimento na Palestina, o rei Davi
também sentiu a ação protetora do Senhor. Foi protegido de Saul e de seus
servos, dos povos vizinhos e dos inimigos internos durante seu reinado. Esse
salmo parece ter sido composto quando Davi obteve vitória, pela graça
divina, sobre um povo estrangeiro que adorava outros “deuses” (v.1). Ainda
que Davi soubesse que o poder dos “reis da Terra” (v.4) fosse muito superior
ao do rei israelita, Deus o protegeu de todos e fez-lhe vencedor, mesmo tendo
corrido sério risco de morte (vv.3,7). Com isso, o Senhor se mostra grandioso
e faz certas revelações a respeito das fraquezas daquilo que é considerado
forte e inabalável nesse mundo.
A primeira revelação exposta no salmo é a inutilidade dos deuses (vv.1-3).
O tom do salmo, claro desde a primeira palavra, é de gratidão (v.1a):
“Renderei graças a ti com todo meu coração” (’ôdeka bekol-livvî). Apesar de
essa disposição ser apropriada em qualquer situação, ela geralmente surge
nos salmos em circunstâncias em que a gratidão tem uma razão específica e
definida em termos de atuação benéfica de Deus. Nesse caso, a providência
divina parece ter vindo diante de uma ameaça estrangeira, pelo que Davi,
contrariando a esperança dos inimigos em seus falsos deuses, proclama de
modo zombeteiro e desafiador (v.1b): “Cantarei a ti diante dos deuses”
(neged ’elohîm ’azammereka). Esse canto diante dos falsos deuses das nações
certamente lembra o desafio e a zombaria de Elias aos profetas de Baal e ao
seu falso deus (1Rs 18.20-40). Desse modo, a gratidão de Davi tem relação
com a vitória que o Senhor lhe concedeu sobre inimigos cujos deuses não
lhes puderam socorrer. Não apenas a supremacia de Deus fica patente, como
também a inutilidade dos falsos deuses — em tempos de politeísmo, a prova
da inutilidade dos deuses devia preceder a prova da sua inexistência (Dn
2.47; 4.34,35).
Adorando e agradecendo ao Deus verdadeiro e existente, Davi se
compromete a cultuá-lo publicamente no lugar apropriado (v.2a): “Eu me
prostrarei no teu santo Templo e renderei graças ao teu nome” (’eshtahaweh
’el-hêcal qodsheka we’ôdeh ’et-shemeka). A razão para isso foi que, ao
envergonhar os deuses, o Senhor comprovou não apenas o seu amor leal, mas
também a fidelidade da sua palavra empenhada diante dos seus servos (v.2b):
“Por causa do teu amor e da tua fidelidade, pois tu engrandeceste acima de
tudo o teu nome e a tua promessa” (‘al-hasdeka we‘al-’amitteka kî-higdaleta
‘al-kol-shimka ’imrateka). Desse modo, a grandeza do nome do Senhor se
antepõe à inutilidade dos deuses. Por fim, Davi explica como Deus lhe fez tão
grande benefício. Em primeiro lugar, o Senhor ouviu e atendeu sua oração:
(v.3a): “No dia em que eu clamei [por socorro], tu me respondeste” (beyôm
qara’tî watta‘anenî). Em segundo, ele encorajou e capacitou Davi a vencer o
inimigo (v.3b): “Provocaste força em minha alma” (tarhivenî benafshî ‘oz).
A segunda revelação é a subordinação dos reis (vv.4-6). Davi lidou com
muitos reis: fugiu de alguns, fez alianças comerciais com outros e abateu
muitos deles. Ele sabia o poder que tinha um rei e, principalmente, um
conglomerado de reis. Entretanto, em seu agradecimento pelo socorro
poderoso do Deus fiel, ele enumera a totalidade dos reis se submetendo ao
Senhor ao serem impactados com suas palavras e ações (v.4): “Todos os reis
da Terra renderão graças a ti, ó Senhor, quando ouvirem as palavras da tua
boca” (yôdûka yhwh kol-malkê-’arets kî shom‘û ’imrê-pîka). Isso significa
que as palavras do Senhor são maravilhosas e louváveis, mas também que são
gloriosas e temíveis, razão pela qual os reis, mesmo em sua costumeira
arrogância, são forçados a se curvar diante do soberano.
A atuação de Deus na história comprova todo o caráter e os atributos do
monarca eterno (v.5): “E cantarão sobre os caminhos do Senhor, pois grande
é a glória do Senhor” (weyashîrû bedarkê yhwh kî gadôl kevôd yhwh). Aqui, a
expressão “caminhos do Senhor” aponta para seus feitos e para o seu modo
de agir segundo seu caráter, objetos dos cânticos dos reis de acordo com o
que Davi previu. Onipotência, onipresença e onisciência também formam o
pano de fundo da razão de os reis temeram a Deus (v.6): “Pois exaltado está o
Senhor, mas, [apesar disso], olha para o humilde e de longe reconhece o
soberbo” (kî-ram yhwh weshafal yir’eh wegavoah mimmerhaq yeyeda‘).
Mesmo estando muito acima dos homens, ele conhece e dá atenção a todos,
conhecendo-lhes o caráter e sabendo exatamente como tratar a cada um. Isso
inclui reis, príncipes, governadores, trabalhadores, escravos e mendigos.
A última revelação do salmo é a ineficácia dos inimigos (vv.7,8). Davi
enfrentou duras batalhas e teve muitos inimigos poderosos. E ele realmente
não era como os “heróis” das histórias de ficção de hoje que não morrem nem
podem ser feridos. Cada batalha era um perigo real para o salmista, mas a
presença protetora de Deus fazia toda a diferença nos resultados dos seus
embates militares (v.7a): “Se eu ando em meio ao perigo, tu me fazes viver”
(’im-’elek beqerev tsarâ tehayyenî). O grau do verbo hebraico traduzido como
“fazer viver” mostra que o responsável por Davi sair com vida dos perigos
que enfrentava não era ele mesmo, ou o acaso, mas tratava-se de uma ação
deliberada do Senhor concedendo vida ao servo.
O modo de fazê-lo revela que os inimigos, ainda que armados e perigosos,
nada eram diante do Senhor (v.7b): “Estendes a tua mão contra a ira dos meus
inimigos e tua destra me preserva” (‘al ’af ’oyevay tishlah yadeka wetôshî‘enî
yemîneka). Apesar de a palavra “mão” aparecer no plural no versículo
seguinte, sua ocorrência no singular no v.7 aponta a facilidade que Deus tem
de lidar com os inimigos do seu povo, mesmo que sejam numerosos e
valentes. A verdade é que, quando o Senhor lhes estende sua mão, eles se
mostram inúteis e inertes para combatê-lo. Por isso, o salmista tem plena
confiança de que Deus, que é fiel e leal, agiria do mesmo modo no futuro e
cumpriria suas promessas para com seu servo (v.8a): “O Senhor completará
[sua obra] em meu benefício” (yhwh yigmor ba‘adî). Assim, em vez de
buscar apoio político questionável e alianças espúrias, Davi busca a Deus em
oração para que seja sempre bem sucedido (v.8b): “Ó Senhor, o teu amor
dura para sempre. Não cesses as obras das tuas mãos!” (yhwh yigmor ba‘adî
yhwh hasdeka le‘ôlam ma‘ashê yadeyka ’al-teref).
Está aí uma lição que a igreja de Cristo precisa aprender. Com a crescente
admiração e dependência das modernas técnicas de administração de igrejas e
de crescimento explosivo, os crentes estão se tornando cada vez menos
dependentes de Deus e cada vez mais confiantes em sua própria capacidade.
É claro que, quando essa capacidade se mostra ineficaz, a falta de comunhão
com o Senhor e a falta de costume de orar e depender dele para tudo lançam
essas igrejas no desespero ou na utilização de expedientes reprováveis e
vergonhosos para conseguir lidar com os problemas. O que é necessário
aprender em momentos assim é que Deus sempre protegeu seus servos no
momento e do modo como planejou, independente de quais fossem as
dificuldades. Ainda que tudo e todos se levantem contra o povo do Senhor, o
salvador eterno tem poder mais que suficiente para preservar-lhes a vida e
usá-los como instrumentos da sua vontade. Que nossa confiança em seu
poder, sabedoria, fidelidade e amor nos guie nos momentos de crise e nos
torne mais fortes que muitas montanhas feitas de granito e de duras rochas!

SALMO 139
O Deus que não Conhece Limites

No funeral de Luís XIV, rei da França (1643-1715) também conhecido


como “Luís, o Grande”, a catedral estava repleta de súditos enlutados
prestando suas últimas homenagens. O salão achava-se bastante escuro, pois
apenas uma única vela iluminava o caixão que continha os restos mortais do
monarca. No momento devido, Jean Baptiste Massillon (1663-1742), bispo
de Clermont, responsável por trazer a palavra durante o funeral, levantou-se,
subiu ao púlpito e, para a surpresa de todos, apagou a única vela acesa no
recinto, a qual tinha por propósito simbolizar a grandeza do rei. Então, do
meio da escuridão romperam quatro palavras pronunciadas pelo pregador:
“Somente Deus é grande!”. Apesar de certamente haver quem discordasse da
ação do clérigo e quisesse render ao rei francês uma grandeza acima da
humanidade, um fato diante de todos era inegável: a grandeza de Luis XIV
fora limitada pela morte! Que grandeza haveria agora em um monte de restos
putrefatos? Mesmo o homem chamado “o Grande” fora detido e reduzido
diante dos limites impostos pela morte.
Davi, o escritor do Salmo 139, concordaria enfaticamente com Massillon.
Ele escreveu o salmo quando era perseguido injustamente por inimigos
ferozes (vv.19,20), razão pela qual nos parece que Davi estava em fuga,
buscando lugares distantes para se esconder (cf. vv.7-10). Diante da injustiça
que o levou à fuga, ele recorre a Deus para que seja o juiz da questão e puna
seus perseguidores iníquos. Longe de ser um clamor desesperançado, a
confiança de Davi, a despeito da sua condição tremendamente adversa, vinha
do fato de saber que Deus não tinha limites. O poder dos seus perseguidores
era nada diante do poder do soberano. As tramas secretas dos seus oponentes
eram todas conhecidas pelo Deus que sonda os corações. E o alcance das
lanças inimigas não era maior que o alcance da presença e da proteção do
Senhor eterno. Por isso, é com convicção e confiança que ele lança a Deus
seu rogo por livramento e justiça. Ao fazê-lo, Davi acaba por revelar o caráter
ilimitado de certos atributos de Deus pelos quais ele é realmente o único a ser
reconhecido como “grande”.
Em primeiro lugar, o salmista, em sua oração, se dirige ao Deus que tudo
conhece (vv.1-6). A fim de concretizar seu pedido por auxílio vindo de um
julgamento divino justo, Davi recorre ao conhecimento que Deus tem daquilo
que é oculto aos homens (v.1): “Ó Senhor, tu me esquadrinhas e me sabes
[como sou]” (yhwh haqartanî watteda‘). A sequência do texto mostra que
Davi não se refere apenas a Deus saber quem ele é, mas a tudo aquilo que ele
fazia e que estava ligado à sua existência. É claro que ele não se julgava
perfeito como Deus e sem pecado, mas sua menção ao fato de Deus conhecer
(v.3) “todos os meus caminhos” (kol-derakay), conforme diz, serve ao
propósito de apontar o tratamento injusto e imerecido por parte dos seus
perseguidores. O Senhor seria um juiz mais do que apropriado a essa
circunstância porque, além de conhecer as ações de Davi (v.2a), conhecia
também suas intenções (v.2b): “De longe tu distingues os meus propósitos”
(bantâ lere‘î merahôq). Na verdade, o conhecimento de Deus não vem
durante seu convívio com os homens, mas desde antes de as coisas
acontecerem (v.4): “Mesmo quando a palavra ainda não está na minha língua,
eis que tu, ó Senhor, conhece-a completamente” (kî ’ên millâ bilshônî hen
yhwh yada‘ta kullah). Assim, não é possível ocultar nada de Deus, visto que
seu conhecimento não tem limites. Todo nosso ser está diante dos olhos de
Deus (v.5). Esse vislumbre é tão surpreendente e acima de tudo que
conhecemos que concordamos com a reação estupefata de Davi (v.6): “Esse
conhecimento é maravilhoso demais para mim!” (pil’îyâ da‘at mimmennî).
Em segundo lugar, Davi se dirige ao Deus que está em toda parte (vv.7-
12). Sem manter o sentimento supersticioso de que longe do tabernáculo
Davi estava também longe do Senhor, ele sabe que a presença divina o
acompanhava a todo lugar para onde fugisse (v.7): “Onde me distanciarei do
teu Espírito? E para onde fugirei da tua presença?” (’anâ ’elek merûheka
we’anâ miffaneyka ’evrâ). Essas perguntas retóricas, cuja resposta obrigatória
é “lugar algum”, são seguidas por suposições de locais em que, mesmo que o
salmista pudesse chegar, ali também estaria o Senhor (vv.8,9). Entretanto, a
ausência de limites de Deus faria não apenas com que ele estivesse presente
nesses lugares longínquos, mas que continuasse a agir do mesmo modo para
com seu servo (v.10): “Também ali a tua mão me conduzirá e a tua destra me
segurará [com firmeza]” (gam-sham yodka tanhenî weto’hazenî yemîneka).
“Conduzir” e “segurar” promovem uma ideia mais ampla de proteção e
provisão por parte de Deus. Assim, para o Senhor, não existe “perto e longe”
do mesmo modo como também não há “claro e escuro” (vv.11,12). O Senhor
não tem limites espaciais e está em toda parte.
Em terceiro, o salmista se dirige ao Deus que tudo pode (vv.13-18). A
terceira estrofe do salmo — o texto é dividido em quatro estrofes de seis
versículos cada —, apesar de também tratar do conhecimento do Senhor,
coloca em perspectiva aquilo que ele faz. Para exemplificar o poder divino
perfeito e sem limites, Davi aponta a obra da geração de um ser humano
(v.13): “Pois tu formaste as minhas entranhas. Tu me teceste no ventre da
minha mãe” (kî-’attâ qanîta kilyotay tesukkenî bevetel ’immî). Apesar de
haver quem entenda a palavra hebraica aqui traduzida como “entranhas”
(kilyâ) como uma referência aos sentimentos e pensamentos íntimos do
salmista, o contexto enaltece a obra de formar o corpo humano com perfeição
nos seus mínimos detalhes, fazendo preferível a tradução “entranhas”, ou
seja, os órgãos internos, como uma referência a todo o corpo. Se essa menção
não faz jus ao processo espetacular e maravilhoso de trazer à existência uma
pessoa, o salmista continua (v.14): “Rendo-te graças porque os teus prodígios
são maravilhosos. Eu sei muito bem que portentosos são os teus feitos”
(’ôdeka ‘al kî nôra’ôt niflêtî nifla’îm ma‘aseyka wenafshî yoda‘at me’od). O
poder estonteante de Deus é a efetivação ilimitada das perfeições que ele
conhece (vv.15,16a). Entretanto, o poder do soberano é também visto no fato
de, além de formar o corpo de um homem, decretar-lhe o futuro sem que
alguém ou circunstância alguma o possam impedir ou alterar seus decretos
(v.16b): “Todos os meus dias foram planejados e escritos no teu livro quando
nem um deles existia” (al-sifreka cullam yikkatevû yamîm yutsarû welo’ ’ehad
bahem). A exaltação do salmista em relação aos pensamentos de Deus, aos
decretos divinos que guiavam sua vida e à sabedoria do Senhor só tinham
sentido diante do poder ilimitado que Deus tem de fazer tudo que
previamente planejou e determinou (vv.17,18).
Por último, o salmista se dirige ao Deus que a todos julga (vv.19-24). Na
última seção do salmo fica clara a razão de ele citar e enaltecer as
capacidades ilimitadas de Deus em termos de conhecimento, presença e
poder. Davi está sendo perseguido por inimigos que não temiam a Deus e que
agiam hipocritamente falando falsidades diante do Senhor (v.20): “Eles falam
contigo com má intenção. Teus inimigos se levantam para falar mentira”
(’asher yo’meruka limzimmâ nasu’ lashawe’ ‘areyka). Por isso, o salmista
expressa seu desejo de que, pelo uso das capacidades ilimitadas de Deus, os
ímpios fossem trazidos a julgamento (v.19a): “Se tu, ó Deus, tão somente
acabasses com o ímpio!” (’im-tiqtol ’elôah rasha‘). Entretanto, o escritor
sabe que Deus é imparcial no seu juízo e que todos estão diante dos seus
olhos, de modo que ele apresenta ao Senhor sua inocência nessa questão e
seu antagonismo ao modo de agir dos inimigos de Deus (v.21): “Acaso eu
não odeio os que te odeiam, ó Senhor, e não sinto repugnância dos teus
rivais?” (halô’-mesan’eyka yhwh ’esna’ ûbitqômemeyka ’etqôtat). A
inimizade entre Davi e os homens que agiam perversamente era tão grande
que ele se coloca diante de Deus para ser também por ele avaliado e
vindicado (vv.23,24): “Sonda-me, ó Deus, e observa o meu coração.
Examina-me e observa as minhas afeições. Vê se há em mim algum
comportamento [que produza] sofrimento e guia-me no caminho que
permanece para sempre” (hoqrenî ’el weda‘ levavî behanenî weda‘ sar‘affay
ûre’eh ’im-derek-‘otsev bî ûnehenî bederek ‘ôlam). O fato de Deus não ter
limites em sua ação de julgar, unido aos seus atributos ilimitados, garantia
que o salmista seria protegido e conduzido, ao passo que os homens que
injustamente o perseguiam seriam punidos.
Que revelação grandiosa de Deus por meio do Salmo 139! Ele conhece
perfeitamente tudo que existe e tudo que virá a existir, sem qualquer
dificuldade, incompreensão ou desatenção. Ele está em toda parte e para ele
não existe lugar algum em que sua atuação seja menor ou menos frequente.
Ele tem poder para fazer todas as coisas e não apenas isso, mas fazê-las de
modo maravilhoso, minucioso, perfeito, inteligente e admirável, sem que,
para tanto, tenha de se esforçar ou se contentar com menos do que deveria
fazer. Por causa disso, ele vê tudo que fazemos e conhece cada intenção no
mais profundo do coração de cada um. Com base nesse conhecimento, ele
tem pleno poder e autoridade para julgar e punir os rebeldes e também para
proteger e guiar seus servos. Que realidade maravilhosa! Ela deve se tornar
um terror para os ímpios, mas, para os crentes, confiança, alento e adoração.
Conhecer Deus desse modo deve encurvar em louvor, sujeição e obediência
todos que creem no seu nome. Não sei quanto a você, mas “esse
conhecimento é maravilhoso demais para mim!”.

SALMO 140
O Aprimoramento que Começa na Tribulação

Um renomado pintor ministrava uma aula a um grupo de aspirantes a


artistas e lhes falava sobre composição artística. Entre as composições
inapropriadas para uma obra de arte, ele tomou como exemplo a pintura de
paisagens. Afirmou ser errado retratar locais como florestas sem pintar no
meio da paisagem um caminho para fora das árvores: “Quando um artista
pinta uma paisagem desse tipo, deve sempre inserir uma saída. Caso
contrário, a densa mistura das árvores e a falta de espaços entre elas
deprimem e causam ansiedade nos observadores”. Resumindo, para esse
pintor toda obra de arte deve produzir um sentimento de esperança de
maneira que o desamparo e o sofrimento sejam retratados.
Davi nunca visitou museus de arte, mas conhecia muito bem as paisagens
da agonia e sabia o valor de um caminho para fora delas. Nesse sentido, sua
vida poderia ser colocada em um quadro. Ele sofreu várias perseguições
injustas, principalmente nos dias de Saul, nos quais os assessores reais faziam
intrigas contra o salmista e acirravam o ódio do rei contra ele. Por isso, certa
vez, Davi questionou Saul: “Por que dás tu ouvidos às palavras dos homens
que dizem: ‘Davi procura fazer-te mal’?” (1Sm 24.9). Infelizmente, a
perseguição prosseguiu até a morte do rei, mas, ainda assim, Davi seguiu em
frente até que ele mesmo assumiu o trono de Israel. O fato de ele não ter
entrado em desespero e desânimo diante de tamanha tirania e sofrimento,
mantendo-se fiel a Deus, faz com que sua vida deva ser analisada e imitada
por nós. Se ele tivesse buscado vingança ou, afobado, tomasse decisões
erradas e impensadas, sua história seria uma dentre milhares que terminam
mal. Porém, ao final de tudo, depois de ver o Senhor como o caminho para
fora da tribulação, Davi saiu fortalecido, confirmado como rei e descrito
como um homem segundo o coração de Deus. Isso ocorreu porque as
provações que atravessou não o destruíram, mas serviram de instrumentos
divinos para o seu aprimoramento. Nesse processo, três momentos sucessivos
tornam o servo de Deus apto à vida de serviço e edificado para enfrentar
outras batalhas, alcançando vitórias na causa do nosso Senhor.
O primeiro momento desse processo de aprimoramento é justamente a
tribulação (vv.1-5). Ela é vista logo no início do salmo na oração de Davi
(v.1): “Ó Senhor, protege-me do homem mau, defende-me do homem
violento” (halletsenî yhwh me’adam ra‘ me’îsh hamasîm tintserenî). Esse
pedido é muito revelador no que tange à situação do salmista, que, pela ação
dos perseguidores, corria risco real de morrer. O risco vinha da determinação
que seus inimigos tinham de fazer o que fosse preciso para destruí-lo. Seu
empenho em causar o mal era tão grande que o escritor descreve partes do
corpo dos seus perseguidores empenhadas na ação cruel. Em primeiro lugar,
o “coração” (v.2a): “No coração eles tramam maldades” (’asher hoshvû ra‘ôt
belev). Em seu íntimo, os inimigos de Davi acalentavam sentimentos
negativos contra ele e maquinavam planos perversos a fim de abatê-lo. A
cada dia renovavam não apenas sua inimizade, mas seus intentos de
perseguição (v.2b) “Todos os dias eles declaram guerras” (kol-yôm yagûrû
milhamôt).
Se o íntimo dos homens violentos abrigava ódio e planos maus, o restante
do corpo trabalhava ativamente para cumprir os desejos do coração. Assim, a
segunda parte do corpo comprometida com a caçada do salmista era a “boca”
(v.3): “Eles aguçam sua língua como uma serpente. Sob seus lábios há
veneno de víbora” (shananû leshônam kemô-nahash hamat ‘akshûv tahat
sefatêmô). Usando a figura de uma cobra peçonhenta, Davi se refere às coisas
que seus inimigos falavam a seu respeito a fim de torná-lo odioso aos outros
e reunir um grande grupo contra ele. O fato de serem comparados a serpentes
aclara suas ações traiçoeiras, perigosas e mantidas por meio de palavras
mentirosas que incitavam outros homens a ter o mesmo ódio. Essa ação
maligna se unia às ações de outra parte do corpo, a “mão” (v.4a): “Ó Senhor,
guarda-me das mãos do ímpio, defende-me do homem violento, os quais
pretendem me lançar tropeços” (shomrenî yhwh mîdê rasha‘ me’îsh hamasîm
tintserenî ’asher hoshvû lidhôt pe‘amay). Se a boca promovia ações em outras
pessoas, com as próprias mãos os inimigos de Davi se envolviam
pessoalmente na busca do seu fim. Não havia preguiça, nem cansaço, mas
determinação em armar ciladas injustas para o servo de Deus (v.5): “Os
orgulhosos esconderam armadilhas para mim e estenderam as cordas de uma
rede ao longo do caminho. Eles armaram ciladas para mim” (tomnû-ge’îm
pah lî wahavalîm porsû reshet leyad-ma‘gal moqeshim shatû-lî).
O segundo momento é a oração (vv.6-11). Se no primeiro momento o servo
de Deus é colocado sob enorme pressão, da qual não pode se livrar sozinho, a
sequência é a derrocada ou a dependência de Deus. Davi escolheu a segunda
opção e recorreu ao Senhor em oração. Essa tem dois enfoques. O primeiro
deles é o “livramento pessoal” (v.6): “Eu disse ao Senhor: ‘Tu és o meu
Deus. Ouve as minhas súplicas, ó Senhor’” (’amartî layhwh ’elî ’attâ
ha’azînâ yhwh qôl tahanûnay). O relacionamento com Deus é o que leva o
salmista a pedir que o Senhor não apenas ouça seus pedidos, mas os atenda. E
Davi tem razões para buscar a Deus, já que, no passado, ele fora protegido
pelo Senhor (v.7): “Ó Senhor, Senhor meu, força da minha salvação: tu
cobriste a minha cabeça no dia da batalha” (yhwh ’adonay ‘oz yeshû‘atî
sakkotâ lero’shî beyôm nasheq). A palavra aqui traduzida como “batalha”
(nasheq) tem o significado de “armamentos” ou “equipamentos militares”.
Desse modo, quando os exércitos se armaram para a batalha, Deus protegeu
Davi como se fosse um capacete, preservando-lhe a vida. Por isso, teve
ânimo de orar a respeito da presente situação que sofria (v.8): “Ó Senhor, não
permita [que se cumpram] os desejos dos ímpios. Ao se levantarem, não
deixe que o plano deles tenha êxito” (’al-titten yhwh ma’awayyê rasha‘
zemamû ’al-tafeq yarûmû). Apesar de a oração citar os ímpios, até aqui o
beneficiado pela resposta à oração é o próprio salmista.
Na sequência, Davi fala sobre a ação perversa dos inimigos, de modo que o
segundo enfoque da sua oração é a “punição da injustiça” (v.9): “Que a
cabeça dos que me cercam seja coberta [pela] maldade dos lábios deles”
(ro’sh mesivvay ‘amal sefatêmô yekassûmô). Em primeira instância, o desejo
de Davi por justiça envolve uma ação reversa dos planos malignos dos
perseguidores, de modo que eles mesmos caiam nas armadilhas que armaram,
assim como aconteceu com os perseguidores de Daniel (Dn 6.24). Sua oração
imprecatória demonstra o tamanho da maldade dos perseguidores e,
consequentemente, o grau da devida punição (v.10): “Que chovam brasas
sobre eles. Sejam eles lançados no fogo. Que eles não se levantem [de dentro]
das armadilhas” (yamîtû ‘alêhem gehalîm ba’esh yaffilem bemahamorôt bal-
yaqûmû). A segunda instância da oração por justiça envolve a condição
futura de abatimento pleno dos ímpios (v.11): “O homem de língua [perversa]
não permanecerá na Terra. O mal perseguirá o homem violento causando-lhe
destruição repentina” (’îsh lashôn bal-yikkôn ba’arets ’îsh-hamas ra‘
yetsûdenû lemadhefot). Esse duro clamor revela que Davi não desejou tomar a
justiça em suas próprias mãos, mas, assim como Jesus (1Pe 2.23), entregou
sua causa a Deus para que ele julgue corretamente e no momento devido.
O terceiro momento é a confiança (vv.12,13). Apesar de muitos crentes
orarem no meio das aflições, mais por hábito que pela esperança de serem
atendidos, Davi espera, sim, ter sua oração respondida. Mais que isso: ele
sabe que Deus promove justiça não apenas para ele, mas para aqueles que são
injustiçados (v.12): “Eu sei que o Senhor defenderá a causa do aflito e fará
justiça ao necessitado” (yada‘tî kî-ya‘aseh yhwh dîn ‘anî mishpat ‘evyonîm).
É claro que ele não tem em mente cada pessoa que sofre perseguição, mas os
que as sofrem enquanto são justos, ou seja, servos verdadeiros de Deus
(v.13a): “Certamente, os justos renderão graças ao teu nome” (’ak tsaddîqîm
yôdû lishmeka). Na verdade, Davi vislumbra o desenrolar dessa ação não
apenas no tempo presente, mas na eternidade (v.13b): “Os retos habitarão na
tua presença” (yeshvû yesharîm ’et-ganeyka). Assim, a confiança na bondade
e na justiça de Deus fez o salmista sair do fundo de uma cova aberta para ele
e se ver prostrado alegre e reverentemente diante do trono do Senhor. Aqui
termina o processo de aprimoramento que foi iniciado nas chamas da agonia
e do sofrimento.
Felizmente, a maioria de nós não tem de fugir de inimigos audazes,
traiçoeiros, manipuladores, violentos e ferozes que querem nos tirar a vida.
Entretanto, sofremos muitas perseguições brandas, mas destrutivas, que
nascem em corações invejosos, despeitados e falazes. Sofremos com intrigas,
com mentiras, com falsidades e com armações que nos tiram a paz e, muitas
vezes, até a alegria de viver. É uma pena que muitos crentes se deixam abater
nessas circunstâncias e até deixam de frequentar a igreja. Como Davi, cada
um de nós, em situações assim, deve confiar no Senhor e buscá-lo em oração,
abstendo-se de agir mal para com os outros e com descaso diante de Deus.
Esse é, muitas vezes, o processo que inicia no fogo da tristeza e da desilusão
e termina no nosso crescimento e edificação e na adoração àquele que sempre
é para nós o caminho para fora da densa floresta da tribulação.

SALMO 141
Como Agir Longe de Casa

Durante a época de Napoleão, quando a fronteira entre a França e a Suíça


era constantemente mudada, um suíço astuto previu com precisão a fronteira
final e construiu um hotel, agora conhecido como o Hotel Franco-Suisse. Ele
está situado exatamente na fronteira, de modo que metade do hotel fica na
França e a outra metade, na Suíça. Subindo as escadas para o seu quarto, o
hóspede vai da Suíça para a França e vice-versa, podendo, até mesmo, ficar
ao mesmo tempo com cada pé em um país diferente. O hotel dispõe de um
duplo sistema de telefonia, um suíço e outro francês. O custo de uma
chamada depende de qual telefone é utilizado. Se um cliente deixar o hotel
sem pagar a conta, a polícia pode ser acionada, mas qual delas — suíça ou
francesa —, depende se ele sair pela porta dianteira ou traseira.
Esse é um caso curioso que, quando imitado por frequentadores de igreja
sem compromisso, os quais querem ter um pé dentro da igreja e outro fora,
traz sérias consequências. O Salmo 141, um “salmo de Davi” (mizmor
ledawid), é o oposto dessa atitude esquizofrênica de pessoas que atualmente
se dizem crentes. Foi escrito em dias em que o salmista estava fugindo de
inimigos poderosos com cargos de liderança nacional (v.6), cuja perseguição
era ardilosa e determinada (v.9), razão pela qual Davi clamava e dependia
inteiramente de Deus para sobreviver (v.1). Esse é justamente o quadro da
fuga de Davi diante de Saul e dos seus assessores mentirosos e astutos.
Durante todo o tempo de fuga, em que Davi ficou longe de casa, da família,
do tabernáculo e do culto a Deus, ele conviveu com seiscentos soldados a seu
serviço (1Sm 23.13; 30.9), homens renegados de Israel assim como ele, e
com pessoas de outras nações, como os filisteus de Gate e seu rei, Aquis
(1Sm 21.10; 27.2-6). Diante dessa realidade, havia um risco muito grande de
Davi abandonar sua devoção a Deus, juntar-se a homens maus, seguir o
conselho perverso de pessoas que ignoravam o Senhor, habituar-se aos
costumes e à adoração de outros povos e se sentir desimpedido para fazer
todas as coisas que nunca faria se estivesse em seu lugar de origem. Como
Davi fez exatamente o oposto disso tudo, esse é um salmo que ensina pelo
menos quatro cuidados que deve ter o servo que Deus que está próximo do
mundo e longe de casa e do seu povo eclesiástico.
O primeiro cuidado do servo de Deus que está longe de casa e da sua igreja
é manter as atividades cultuais (vv.1,2). Estar longe do seu lugar
costumeiro de culto frequentemente faz com que as pessoas percam o ânimo
de dar sequência aos seus hábitos de adoração. No caso de Davi era pior, pois
sua situação adversa lhe fornecia uma desculpa bem convincente para cessar
toda atividade cultual. Longe de agir assim, ele permanece em oração a Deus
(v.1): “A ti eu clamo, ó Senhor: ‘Apressa-te [a vir] a mim. Dá ouvidos à
minha voz quando clamo a ti” (yhwh qera’tîka hûshâ lî ha’azînâ qôlî beqor’î-
lak). Em situações de crise, algumas pessoas dizem: “Não estou com cabeça
para orar”. Davi fez o oposto e a situação de crise o levou a orar mais ainda,
clamando pela intervenção de Deus em seu socorro.
Entretanto, outras atividades, como oferecer sacrifícios e queimar incenso
no tabernáculo, ficaram impedidas pela distância. O incenso era oferecido
diariamente a Deus: “Arão queimará sobre ele o incenso aromático; cada
manhã, quando preparar as lâmpadas, o queimará. Quando, ao crepúsculo da
tarde, acender as lâmpadas, o queimará; será incenso contínuo perante o
Senhor, pelas vossas gerações (Êx 30.7,8). Para suprir essa ausência, Davi
eleva a Deus sua oração em lugar do incenso, demonstrando sua preocupação
de servir ao Senhor e cumprir seus deveres perante ele (v.2a): “Que a minha
oração seja um incenso posto diante de ti” (tikkôn tefillatî qetoret lefaneyka).
Quanto aos sacrifícios diários, uma das orientações bíblicas era sobre o
sacrifício do entardecer: “O outro cordeiro oferecerás ao pôr-do-sol, como
oferta de manjares, e a libação como de manhã, de aroma agradável, oferta
queimada ao Senhor” (ÊX 29.41). Na impossibilidade de executar tal ato, ele
oferece sacrifícios de louvor (v.2b): “Que o levantar das minhas mãos seja
uma oferta do entardecer” (mas’at kaffay minhat-‘arev). O interesse e busca
por Deus não foi interrompido pela distância de casa.
O segundo cuidado é manter a santidade de vida (vv.3-5). Davi também
não queria se desviar dos ensinos do Senhor para sua vida, pecando com
palavras, atitudes ou ações. Sua primeira preocupação é com respeito à
conversação, provavelmente sabendo que os maus hábitos nascem de
conversas inapropriadas (1Co 15.33), pelo que pede a Deus (v.3): “Ó Senhor,
ponha uma sentinela em minha boca. Guarda a porta dos meus lábios” (shîtâ
yhwh shomrâ lefî nisterâ ‘al-dal sefatay). Essa foi uma decisão sábia, pois o
primeiro sinal do desvio de quem se aproxima demais do mundo é seu modo
de falar, o qual não apenas revela o afastamento, como também torna o
coração do servo de Deus cada vez mais acostumado com a podridão
mundana. Mas a boca não era a única preocupação de Davi.
Ele também se preocupava com os afetos do seu coração e com as ações
que viriam do apego ao mal (v.4a): “Não deixa que meu coração se incline
para as coisas más, para a prática de perversões [junto] com os ímpios, os
homens que praticam a iniquidade” (’al-tat-livvî ledavar ra‘ lehit‘ôlel ‘alilôt
beresha‘ ’et-’îshîm po‘alê-’awen). Essa é uma preocupação dupla, pois ele
atenta para os atos de pecado e, também, para a companhia nociva dos
pecadores. Na verdade, ele toma a decisão de não se unir aos homens maus
nem nos momentos de descontração e alegria (v.4b): “Eu não comerei dos
manjares deles” (ûbal-’elham beman‘ammêhem). Ele poderia dizer que os
homens maus eram seus únicos amigos no momento, mas não o fez. Na
verdade, ele preferia uma dura repreensão de homens justos a receber a
adulação e a hospitalidade dos pecadores (v.5): “Que o justo me repreenda
[com] amor e me admoeste, mas o azeite do ímpio não ungirá a minha
cabeça, pois minha oração continuará sendo contra sua perversidade”
(yehelmenî-tsaddîq hesed weyôkîhenî shemen rasha‘ ’al-yanî ro’shî kî-‘ôd
ûtefillatî bera‘ôtêhem). Para Davi, não é verdade que “a ocasião faz o ladrão”.
Sua separação do mundo era uma busca a ser impetrada em qualquer
situação.
O terceiro cuidado é manter a pregação da justiça (vv.6,7). Samuel ungiu
Davi rei de Israel e lhe informou que um dia ele seria elevado ao trono (1Sm
16.12,13). Entretanto, seus futuros súditos ainda seguiam um rei mau e se
desviavam com ele. O salmista poderia pensar, dadas as circunstâncias, em
assumir um discurso conciliador, “politicamente correto”, a fim de agradar
quem agora reprovava seu estilo de vida. Mas ele não fez isso, pois sabia que
quando Deus abatesse o rei Saul e seus assessores, a pregação da justiça seria
ouvida pela nação (v.6): “Seus líderes serão lançados [abaixo] da beirada do
precipício e, assim, eles ouvirão as minhas palavras que são formosas”
(nishmetû bîdê-sela‘ shofetêhem weshom‘û ’amaray kî na‘emû) — o trecho
“eles ouvirão” deve se referir ao povo e não aos líderes precipitados morro
abaixo. Essa persistência em pregar a justiça de Deus e um modo de vida
agradável a ele traria benefícios inúmeros a Israel. O contrário disso seria
sentido pelos líderes maus quando fossem abatidos por Deus (v.7): “[Eles
dirão:] ‘Assim como se abrem valas na terra, nossos ossos ficaram
espalhados na boca da sepultura’” (kemô poleah ûboqea‘ ba’arets nifzerû
‘atsamênû lefî she’ôl).
O último cuidado do servo que está muito próximo do mundo é manter a
dependência cautelosa (vv.8-10). Um ditado popular diz: “Quem brinca com
fogo, sai queimado”. A proximidade do mundo produz o mesmo perigo, pelo
que Davi, impossibilitado de se afastar geograficamente dos ímpios, mantém
sua cautela e sua oração a Deus por proteção (v.8): “Pois em ti estão os meus
olhos, ó Senhor, Senhor meu. Eu me refugio em ti. Não me deixe ficar
desprotegido” (kî ’eleyka yhwh ’adonay ‘ênay bekâ hasîtî ’al-te‘ar nafshî).
Houve até ocasiões em que o risco do mundo “aparentemente” se dissipou
(1Sm 26.21), entretanto, mesmo nessas ocasiões, Davi identificou as
armadilhas ardilosas e continuou sua fuga do mal (1Sm 26.25b) em
dependência de Deus (v.9): “Protege-me do laço que armaram para mim e da
armadilha dos que praticam a iniquidade” (shomrenî mîdê pah yoqshû lî
ûmoqshût po‘alê ’awen). No final das contas, o cuidado do salmista sob a
orientação das palavras do Senhor o pôs a salvo, enquanto seus inimigos
pereceram conforme foi previsto por Davi em sua oração (v.10): “Que os
ímpios sem exceção caiam nas suas [próprias] redes enquanto eu escapo”
(yiffelû bemakmorayw resha‘îm yahad ’anokî ‘ad-’e‘evôr).
Poucos de nós têm de fugir de assassinos perversos. Porém, temos de
conviver com pessoas que não temem a Deus no trabalho, na escola, na
vizinhança, nos momentos de lazer e, muitas vezes, até na própria família.
Em todas essas ocasiões temos nossa fé questionada e menosprezada
enquanto convites à maldade nos são feitos como alternativa ao temor do
Senhor. Bom seria se pudéssemos conviver com nossos irmãos em todo o
tempo, pois, assim, seríamos edificados e exortados constantemente. Como
isso não é sempre possível, devemos seguir o exemplo de Davi e manter
nossa identidade cristã, a devoção ao nosso Deus, as atividades diárias de
culto e adoração, a santidade e o testemunho de vida e a pregação da verdade.
Isso será uma medida infalível para que mantenhamos nossos dois pés na
igreja e na presença santa do Senhor.

SALMO 142
O Remédio para a Depressão

Ouvi contar a história de um pastor que passava por uma fase de grande
desânimo. Certa noite, ele sonhou que estava em pé no topo de uma grande
rocha de granito tentando quebrá-la com uma picareta. Ele trabalhou por
horas a fio sem que obtivesse qualquer resultado. Por fim, disse: “É inútil,
vou parar”. De repente, um homem parou junto a ele e perguntou: “Essa
tarefa não foi dada a você? Por que, então, você vai abandoná-la?”. O pastor
respondeu: “Estou trabalhando em vão. Não consigo nem arranhar o
granito”. O estranho replicou: “Seu dever é bater com a picareta, quebrando
a rocha ou não. O trabalho é seu; os resultados estão em outras mãos.
Trabalhe!”. O pastor, então, reanimou-se e voltou ao trabalho. Em seu
primeiro golpe voaram centenas de pedaços da rocha.
Davi também passou por momentos de desalento, desencorajamento e até
uma pontinha de depressão. Uma dessas ocasiões foi quando se escondeu de
Saul em uma caverna, circunstância em que escreveu o Salmo 142: “Salmo
didático de Davi quando ele estava na caverna. Uma oração” (maskîl ledawid
bihyôtô bamme‘arâ tefillâ). Esse não foi o único salmo composto nessa
ocasião. Entretanto, enquanto no Salmo 57 ele afirma a firmeza do seu
coração (Sl 57.7), no Salmo 142 ele revela sua fraqueza (v.6), seu lamento
(v.2) e seu desânimo típico de quem está cansado e abatido (v.3). Contudo,
esse salmo não é uma declaração de derrota ou de desistência, mas um
esperançoso clamor a Deus de um servo que quer se levantar e seguir seus
altos objetivos. Por isso, o salmo age como um remédio ministrado em
quatro porções que ajudaram o salmista a atravessar o duríssimo momento
que viveu.
A primeira porção do seu remédio foi o acesso a Deus na oração (vv.1,2).
Muita gente fica depressiva quando as pessoas ao redor não lhe dão a devida
atenção, nem escutam suas queixas. Muitas vezes, a sensação de solidão é
pior que a própria solidão. Davi teria todas as razões para se sentir assim, já
que as pessoas que precisavam ouvir da sua boca sobre sua inocência não
queriam ouvi-lo. Entretanto, ele recorre a alguém que certamente ouvia sua
voz com clareza e atenção (v.1): “[Com] minha voz eu clamo ao Senhor.
[Com] minha voz eu suplico ao Senhor” (qôlî ’el-yhwh ’ez‘aq qôlî ’el-yhwh
’ethannan). Davi roga a Deus por sua vida na situação complicada que
atravessava, pois, se descoberto na caverna onde estava, seria um alvo fácil
— era um ótimo esconderijo, mas um péssimo lugar para quem tivesse de
fugir dali. É interessante notar que uma das vantagens de um lugar como
aquele é que, além de os fugitivos não serem vistos, também não são ouvidos.
Mesmo assim, ele podia dali clamar a Deus, pois tinha acesso a ele.
Esse acesso era baseado em um relacionamento pessoal, pelo que Davi
podia, inclusive, lamentar-se com o Senhor como um filho preocupado e
inseguro o faz com seu pai (v.2a): “Diante dele eu desabafo o meu lamento”
(’eshpok lefanayw sîhî). E o Senhor está atento ao sofrimento dos seus servos.
Por isso, Davi, em suas orações, abria seu coração diante de Deus e lhe
narrava seus sofrimentos (v.2b): “Diante dele eu relato o meu momento
crítico” (tsaratî lefanayw ’aggîd). Não que Deus não soubesse o que estava
ocorrendo, mas, sim, porque é da sua vontade que o busquemos nas aflições,
conforme explica o apóstolo: “Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo,
porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e
pela súplica, com ações de graças” (Fp 4.6). Fazer isso foi a primeira dose do
remédio para a depressão do salmista.
A segunda porção foi a certeza do cuidado de Deus (vv.3,4). Não se
engane: a situação era extremamente crítica. O risco que Davi corria com
seus homens dentro daquela caverna era comparado ao risco de um animal
desavisado que anda entre armadilhas invisíveis e mortais (v.3b): “No
caminho por onde eu passo eles esconderam uma armadilha para mim”
(be’orah-zû ’ahallek tomnû pah lî). Para piorar, ninguém se levantava contra
Saul para acusar-lhe o crime e a injustiça para com seu bom servo Davi. Seus
antigos amigos, temerosos de que o rei se voltasse contra eles também, se
calavam e demonstravam um desinteresse egoísta em relação ao salmista
(v.4): “Olha à minha direita e vê: Não há quem se importe comigo; não tenho
para onde escapar; não há quem se interesse por mim” (habbêt yamîn ûre’eh
we’ên-lî makkîr ’avad manôs mimmennî ’ên dôresh lenafshî). Olhando para
isso, dá para perceber que Davi não se sentia acuado apenas pela falta de
esconderijos geográficos, mas pela falta de amigos que lhe abrigassem. Não é
sem razão que o início do v.3 expressa o grande desânimo que ele estava
sentindo naquele momento. Como uma pessoa desanimada tende a tornar-se
descuidada — muitos até desistem de tudo —, Davi mantinha seu ânimo
baseado no fato de que Deus não apenas escuta seus servos, mas os protege
quando estão nessas circunstâncias (v.3a): “Ao desanimar em mim o meu
espírito, tu cuidas do meu caminho” (behit‘attef ‘alay rûhî we’attâ yada‘ta
netîvatî). Saber disso foi uma dose fundamental para ele resistir ao desespero.
A terceira porção foi a noção do poder de Deus (vv.5,6). Vários pacientes
ficam curados simplesmente por acreditar no efeito de um remédio, mesmo
que ele apenas pareça uma medicação — os médicos chamam isso de “efeito
placebo”. Se isso vale para um tratamento aparente, imagine como age a
noção do poder que tem o Senhor soberano. É claro que isso só serve para
quem conhece a Deus de fato, mas o salmista, sendo um servo de Deus de
verdade, era uma dessas pessoas. Por isso, ainda que estivesse no melhor
refúgio que pode encontrar, sua confiança última estava apontada para Deus e
não para as entranhas de uma montanha (v.5a): “Ó Senhor, eu clamo a ti,
dizendo: ‘Tu és o meu refúgio’” (za‘aqtî ’eleyka yhwh ’amartî ’attâ mahsî).
Não importava qual fosse o tamanho do exército de Saul: Deus era forte o
suficiente para proteger o servo. E não somente isso: era poderoso para
devolver a Davi tudo que havia perdido, de modo que a garantia de que
voltaria às suas posses estava no poder que há no soberano Deus, pelo que
assim se refere ao Senhor (v.5a): “És a minha herança na terra dos viventes’”
(helqî be’erets hahayyîm).
Muitos métodos de autoajuda buscam fazer com que seus pacientes olhem
para dentro de si e busquem sua força interior. Fazem com que eles acreditem
em si, recordando de coisas boas que fizeram no passado, levando-os a crer
que podem atingir tudo que quiserem. Fazem com que repitam para si: “Sim,
eu posso!”. Contudo, suas forças e habilidades continuam iguais, assim como
as lutas e sofrimentos. Davi seguiu outro caminho. Em lugar de buscar forças
em si e de acreditar que podia superar o inimigo, ele reconheceu sua fraqueza
e, reconhecendo-a, foi em busca daquele a quem sabia ser onipotente e mais
forte que qualquer circunstância (v.6): “Atende o meu clamor, pois estou
muito desfalecido. Livra-me dos meus perseguidores, pois eles são mais
fortes que eu” (haqshîvâ ’el-rinnatî kî-dallôtî me’od hatsîlenî merodefay kî
’omtsû mimmennî). A frase “estou muito desfalecido” também pode ser
traduzida como “estou extremamente esgotado”. Esse reconhecimento fez
com que ele se lançasse nos braços do Senhor, com plena confiança de que
seu poder é ilimitado e que ele o usa no benefício dos seus. Apenas saber
disso faz com que, pela fé, qualquer esgotamento comece a ceder.
A última porção do remédio que o ajudou a atravessar o momento
duríssimo foi a intenção de servir a Deus (v.7). Davi não entregou os
pontos, nem ficou culpando o Senhor por suas desventuras, usando isso por
pretexto de se descomprometer de seguir o caminho de Deus e de lhe cumprir
a vontade. Ao contrário, um fator que o ajudou foi manter acesa a chama do
seu desejo de lutar na causa divina. Assim, seu desejo era sair dali vivo e
anunciar as grandezas do Senhor, tornando a desventura em ocasião de
testemunho (v.7a): “Faze com que eu saia da prisão para que eu [possa]
proclamar o teu nome” (hôtsî’â mimmasger nafshî lehôdôt ’et-shemeka). Se
seu primeiro objetivo é anunciar a Palavra de Deus, seu segundo intento é
buscar santificação. Por isso, ele declara ao Senhor que, livre da caverna e da
perseguição — ao que ele chamou de “prisão” —, ele faria todo o necessário
para conviver com pessoas tementes a Deus, os “justos”, diferente de Saul
que, assessorado por homens maus, agia plenamente conforme sua própria
maldade (v.7b): “Os justos me rodearão quando tu me beneficiares” (bî
yaktirû tsaddîqîm kî tigmor). Deve-se observar que Davi não fala disso como
uma simples contingência na sua história, mas como um objetivo a ser
perseguido e produzido em zelo perante o Senhor. Desse modo, a
manutenção desses objetivos de vida agiram como a dose final para o
desespero que sentiu na escuridão de uma caverna.
Muitos crentes hoje em dia vivem desesperados e depressivos. Muitas
vezes, isso ocorre por razões egoístas, orgulhosas, mesquinhas e de incrível
falta de contentamento e gratidão. Mas, em outras, tudo se deve à dureza
dessa vida e aos ataques dos inimigos dos servos do Senhor. Infelizmente,
enquanto consultórios se enchem de crentes sem esperança, poucos olhos se
voltam para as verdades de Deus em sua Palavra e para o amor e comunhão
que há por meio de Jesus. Quem dera os crentes confiassem e buscassem
mais a Deus! Quem dera mantivessem vivos seus objetivos e
responsabilidades no corpo de Cristo! Seu desânimo se esmigalharia em
centenas de pedaços.
SALMO 143
A Lealdade de Deus em Favor do Servo

Quando o famoso explorador anglo-irlandês Ernest Henry Shackleton


(1874-1922) estava prestes a partir em uma expedição aos mares árticos,
alguém lhe disse estar surpreso com a publicidade que ele vinha fazendo a
respeito da viagem. Shackleton respondeu: “Estou fazendo isso de propósito.
Quero que meu colega, o Sr. Wild, ouça a respeito. Ele se meteu no coração
da África sem deixar o endereço. Eu acredito que, se a notícia da viagem
chegar ao centro da África e Wild souber da minha partida, ele virá”. Ele
dizia isso quando viu seu amigo, John Robert Francis Wild (1873-1939), em
pé na porta do seu escritório. Os dois, em um momento marcante, apertaram
as mãos calorosamente enquanto Wild dizia: “Ouvi falar que você está
partindo. Assim que eu soube, deixei meu rifle de lado, fiz as malas e corri
para casa. Aqui estou. Quais são suas ordens?”. Diz-se daquele cumprimento
que foi o “aperto de mãos da lealdade”. Não é sem razão que, em 27 de
novembro de 2011, as cinzas de Frank Wild foram enterradas ao lado direito
da sepultura de Ernest Shackleton, na ilha chamada Geórgia do Sul.
A lealdade é um conceito muito nobre que envolve tanto a fidelidade no
cumprimento da responsabilidade pessoal como o amor típico de um amigo
verdadeiro. Essa é a qualidade divina enaltecida no Salmo 143, mais um
“salmo de Davi” (mizmôr ledawid). Ela é manifesta na palavra hebraica
hesed, a qual costuma ser associada, inclusive nesse salmo, às palavras
fidelidade (’emûnâ) e justiça (tsedaqâ). O contexto do salmo parece encontrar
Davi em sua vida pré-monárquica, justamente nos dias em que fugia de Saul
e se escondia em cavernas, em rochedos e em locais desérticos. Ele menciona
no salmo “lugares escuros” (v.3), possível menção a cavernas, e “terras
exauridas” (v.6), provável referência a lugares áridos como o deserto. Seu
desejo de andar por um “caminho plano” (v.10), além do óbvio significado de
agir corretamente, pode também revelar seu anseio por não mais ter de se
esconder em locais acidentados, próprios para esconderijos (v.9). Diante do
quadro desfavorável que vivia, cujo risco de morte era sempre presente (v.7),
o salmista recorre à lealdade de Deus, baseada na fidelidade para com suas
promessas, no amor ao servo e ao seu próprio nome, na graça que justifica os
crentes e no caráter justo que não suporta o mal. Com isso, quatro lições
ficam registradas para amoldarem nossas próprias atitudes diante do
sofrimento e do desalento.
A primeira lição é que a lealdade de Deus é a razão da oração do servo
(vv.1-4). O quadro era de grande sofrimento por causa da ferocidade dos seus
perseguidores (v.3): “Pois um inimigo me persegue [a fim de] macetar na
terra a minha vida. Ele tem me obrigado a habitar em lugares escuros como
[acontece] àqueles que há muito morreram” (kî radaf ’ôyev nafshî dikka’
la’arets hayyatî hôshîvanî bemahashakîm kemetê ‘ôlam). Ao dizer “um
inimigo”, ele pode estar se referindo ao inimigo principal, o rei Saul, ou,
figuradamente, a todos os inimigos (vv.9,12) como se fossem um, tamanha a
união em torno do intento de persegui-lo. O resultado foi o abatimento de
Davi, pois, por mais que fosse corajoso e crente no Senhor, o cansaço e o
desânimo começou a tomar conta dele até ao ponto de dizer (v.4): “De modo
que falta o fôlego dentro de mim [e] o meu coração está assolado”
(wattit‘attef ‘alay rûhî betôkî yishtômem livvî).
Apesar do impulso natural de desistir de tudo em uma situação assim, Davi
não abandona a fé e busca a Deus em oração com uma postura humilde e
dependente (v.1): “Ó Senhor, ouve a minha oração e dá ouvidos às minhas
súplicas. Responde-me por meio da tua fidelidade e da tua justiça” (yhwh
shema‘ tefillatî ha’azînâ ’el-tahanûnay be’emunateka ‘anenî betsidqateka). Ao
dizer “fidelidade” e “justiça”, Davi não quer dizer que Deus lhe devesse
alguma coisa. Ao contrário, ele sabe que é pecador e merecedor de juízo,
permanecendo diante de Deus simplesmente por seu perdão concedido aos
seus servos (v.2): “E não entres em juízo com o teu servo, pois não há, entre
todos os viventes, quem seja justo perante ti” (we’al-tavô’ bemishpat
’et-‘avdeka kî lo’-yitsdaq lefaneyka kol-hay). Sendo assim, a lealdade de Deus
para com os servos vem da fidelidade das suas promessas — no caso de Davi,
a promessa de que seria rei — e na justiça contra o mal — a rejeição de Saul
como rei.
A segunda lição é que a lealdade de Deus é a razão da resistência do
servo (vv.5-7). Não há como superestimar o sofrimento de Davi depois de
observar sua oração e seu estado (v.6): “Estendo a ti as minhas mãos. Minha
alma é como uma terra exaurida diante de ti” (perastî yaday ’eleyka nafshî
ke’erets-‘ayefâ leka). A expressão “terra exaurida” serve, ao mesmo tempo,
para evidenciar seu sentimento de cansaço extremo e revelar sua carência de
Deus assim como a terra seca carece de água — por isso, muitas traduções
optam por dizer algo como “minha alma anseia por ti como uma terra
exaurida”. Se ele se sentia como uma terra sedenta por água — é também
provável que ele tenha passado sede em sua fuga —, também se sentia como
alguém sufocado, sem poder respirar (v.7a): “Apressa-te a responder [minha
oração], ó Senhor, [pois] me falta o fôlego” (maher ‘anenî yhwh coltâ rûhî).
Se o Senhor lhe virasse as costas e a situação piorasse, seria certamente seu
fim (v.7b): “Não desvies de mim a tua face de modo que eu seja como os que
descem à cova” (’al-taster paneyka mimmennî wenimshaltî ‘im-yoredê bôr).
Colocando em outras palavras, Davi pede que o Senhor não o rejeite para que
ele não venha a morrer nas mãos dos seus inimigos.
É em meio a essa circunstância tão difícil que a lealdade de Deus faz com
que o servo cansado resista e continue em frente. Por isso, para seguir em
frente, Davi olha para trás (v.5): “Eu recordo os dias passados, medito em
todos os teus feitos [e] pondero a respeito da obra das tuas mãos” (zakartî
yamîm miqqedem hagîtî bekol-pa‘oleka bema‘aseh yadeyka ’asôheah). Ele
não se refere em que feitos de Deus ele meditava, mas duas obras recebem
especial atenção dos escritores bíblicos: a criação e o êxodo. A julgar por sua
condição contrária e sua necessidade de libertação e vindicação, talvez o
êxodo — a libertação de Israel do Egito como evidência da lealdade de Deus
à promessa feita ao patriarca (cf. Gn 15.13,14) —, fosse aquilo que ajudava o
salmista a resistir à angústia e a prosseguir.
A terceira lição é que a lealdade de Deus é a razão da confiança do servo
(vv.8-10). O fato de Deus cumprir seus compromissos e de amar seus servos
era um ponto básico da fé de Davi (v.8a): “Pela manhã, faze-me ouvir a tua
lealdade, pois eu confio em ti” (hashmî‘enî bavvoqer hasdeka kî-beka
batahetî). A expressão “pela manhã” talvez indique que tal oração fizesse
parte das noites do salmista, além da afirmação da sua fé em Deus. Mas não
se tratava de uma confiança qualquer, nem de uma declaração interesseira
como se fosse uma barganha. Logo após dizer que confiava em Deus, Davi
revela uma vida transformada típica não apenas de uma pessoa religiosa, mas
de um servo verdadeiro do Senhor, o qual, pela fé, fez uma entrega pessoal e
foi justificado por seu Senhor. Esse é o motivo pelo qual, mesmo em
condições adversas, Davi se preocupa em agir segundo o ensino de Deus
(v.8b): “Mostra-me o caminho pelo qual [devo] seguir, pois a ti elevo a minha
alma” (hôdî‘enî derek-zô ’elek kî-’eleyka nasa’tî nafshî). Sua crença envolve
aspectos práticos como confiar que Deus o levaria por caminhos seguros na
fuga dos inimigos (v.9): “Livra-me dos meus inimigos, ó Senhor. Em ti eu me
escondo” (hatsîlenî me’oyevay yhwh ’eleyka kissitî). Entretanto, o caminho
principal que ele tem em mente é o da justiça, cujo guia é o próprio Espírito
do Senhor (v.10): “Ensina-me a fazer a tua vontade, pois tu és o meu Deus.
Que o teu Espírito bondoso me guie por um caminho plano” (lammedenî
la‘asôt retsôneka kî-’attâ ’elôhay rûhaka tôvâ tanhenî be’erets mîshôr).
A última lição é que a lealdade de Deus é a razão da esperança do servo
(vv.11,12). Esse salmo não é a oração resignada de quem espera morrer. Na
verdade, bem longe disso, Davi mantinha plena esperança de sobreviver
porque sabia que o santo nome de Deus era o avalista perfeito do
cumprimento das promessas que fez (v.11): “Ó Senhor, conserva-me a vida
por amor do teu nome. Tira-me do perigo mediante a tua justiça” (lema‘an-
shimka yhwh tehayyenî betsidqotka tôtsî’ mitsarâ nafshî). Dizer “por amor do
teu nome” constitui um apelo à fidelidade do Senhor que nunca falta com sua
palavra, nem com a honra que seu nome possui. Por sua vez, a justiça divina
trata duramente os pecados dos ímpios a tal ponto que Davi sabia que seus
inimigos não sairiam incólumes de todo mal que se empenhavam para lançar
sobre o servo de Deus (v.12): “Destrói os meus inimigos por tua lealdade e
aniquila todos os meus inimigos, pois sou teu servo” (ûvehasdeka tatsmît
’oyevay weha’avadka kol-tsorarê nafshî kî ’anî ‘avdeka). Se Davi não
conhecesse o caráter fiel, justo e leal de Deus talvez não conhecesse também
a esperança que de fato tinha do cuidado do seu Senhor.
A boa notícia é que a lealdade de Deus não ficou restrita aos dias do Antigo
Testamento. Apesar de a igreja não estar debaixo de todas as promessas e
exigências feitas a Israel, ela desfruta da certeza das palavras divinas quanto à
salvação pela fé (Jo 3.16,36; At 2.21; Rm 1.16,17), ao perdão de pecados
(1Jo 1.9), ao consolo no sofrimento (Jo 14.16; 16.33), à presença constante
de Cristo (Mt 28.20), ao direcionamento espiritual (Jo 14.26) e ao futuro
glorioso na vida eterna (1Jo 2.25; 5.13). Glórias ao Deus cuja lealdade dura
para sempre!
SALMO 144
A Razão da Vitória do Servo de Deus

Gilbert Lothair Dodds (1918-1977) é o filho de um pastor que saiu do


Nebraska para correr a milha mais rápida dos seus dias. Ao final de uma
corrida, no Madison Square Garden, a multidão se maravilhou quando pegou
o microfone a fim de agradecer os aplausos. Ele disse: “Eu agradeço a Deus
por me guiar através da corrida e por me permitir vencer. Eu o agradeço por
ser um guia sempre presente. Eu não venci essas corridas” — continuou —,
“Deus as venceu. Deus me deu tudo que tenho. Eu tenho uma grande
deficiência: Não tenho uma qualidade sequer que os treinadores dizem que
um corredor de longa distância deve ter. Eu não consigo dar o sprint no final
da corrida. Mas Deus cuidou disso. No lugar do sprint, ele me deu força”.
Essa avaliação foi correta, pois, para Dodds, toda a corrida era um sprint, ou
seja, aquela arrancada típica apenas do final das corridas. Ele estabelecia um
ritmo avassalador durante todo o percurso e rendia a Deus a capacidade de
fazê-lo.
O Salmo 144 foi composto na fase monárquica da vida de Davi, justamente
na ocasião de um embate militar. É difícil definir se o embate já havia sido
travado de modo que o salmista estaria agradecendo ao Senhor ou se,
esperançoso da vitória, ele ora a Deus antevendo o socorro e a capacitação
divina. De qualquer modo, Davi revela que suas batalhas não eram vencidas
por sua força e capacidade de comando, mas pela intervenção benéfica de
Deus, assim como declarou Dodds a respeito dos seus triunfos atléticos. Por
isso, esse salmo “de Davi” (ledawid) serve de agradecimento e louvor a Deus
por cinco benefícios dirigidos aos seus servos.
O primeiro benefício é a capacitação (vv.1,2). O início do salmo é uma
declaração enfática do caráter protetor do Senhor. Davi o chama de “minha
rocha” (tsûrî), “meu benfeitor” (hasdî), “meu castelo” (metsûdatî), “minha
cidade alta” (misgavvî), “meu libertador” (mefaltî lî) e diz “nele eu me
refugio” (bô hasîtî). Ao chamá-lo “minha rocha”, Davi o compara a locais
altos nas montanhas que fornecem proteção por seus esconderijos e pela
posição elevada propícia para a defesa de inimigos que vêm de um nível
inferior. Ao chamá-lo “meu benfeitor”, ele dá ênfase ao produto de uma ação
amorosa e misericordiosa de Deus em benefício dos servos. Ao chamá-lo
“meu castelo”, Davi compara Deus a uma cidade cercada com fortes e altos
muros que visam a defender os moradores de inimigos invasores. Essa
descrição é melhorada quando o salmista o chama “minha cidade alta”, ou
seja, a cidadela de um castelo, um palácio fortificado dentro da fortaleza,
cujas muralhas são ainda mais altas que as da cidade em si. Ao chamá-lo
“meu libertador”, ele se refere a “alguém que promove libertação para mim”
de uma maneira ativa e não passiva. Ao dizer “nele eu me refugio”, o
salmista talvez se lembre daquilo que as cavernas eram para ele nos seus dias
de fuga diante de Saul.
Todas essas descrições têm razões apontadas no próprio texto. Em primeiro
lugar, Davi o descreve assim por ser (v.1) “aquele que treina as minhas mãos
para a guerra [e] os meus dedos para a batalha” (hamlammed yaday laqrav
’etsbe‘ôtay lammilhamâ). Com isso, o salmista se abstém de clamar para si a
responsabilidade e o louvor das vitórias, rendendo a Deus a ação de capacitá-
lo para obter as vitórias. Em segundo lugar, ele explica que Deus é (v.2)
“aquele que submete nações sob o meu comando” (harôded ‘ammîm tahtay).
Em outras palavras, os grandes feitos do rei no campo militar, dando a Israel
um caráter imperial, se deviam à capacitação divina.
O segundo benefício é a graça (vv.3,4). A ação capacitadora de Deus e o
sucesso militar não advinham do merecimento de Davi ou dos israelitas. Na
verdade, a fim de dar o tom correto da adoração ao Senhor, o salmista deixa
claro que o homem nada é diante de Deus nem merece nada de suas mãos
(v.3): “Ó Senhor, o que é o homem para que o notes e o filho do homem para
que o tenhas em conta?” (yhwh mâ-’adam watteda‘ehû ben-’enôsh
wattehashevehû). Essas perguntas retóricas devem obrigatoriamente ser
respondidas com um sonoro “nada!”. Entretanto, Davi não diz isso porque
Deus não note seus servos ou porque não os tenha em conta, mas justamente
por notá-los e valorizá-los. Deus realmente se importa com os seus e cuida de
cada um com atenção e amor — o Salmo 143 é um agradecimento por esse
fato. Porém, o homem, ainda que sirva ao Senhor, está muitíssimo abaixo
dele e do merecimento de receber seu afeto (v.4): “O homem é semelhante a
um sopro. Os seus dias são como uma sombra que passa” (’adam lahevel
damâ yamayw ketsel ‘ôver). Essa disparidade entre a existência daquele que
cuida e daquele que é cuidado pinta o quadro em que é exposta a “graça” de
Deus, ou seja, sua disposição de nos dar benefícios imerecidos.
O terceiro benefício é o cuidado (vv.5-8). Se o homem é como um sopro e
uma sombra passageira, o Deus eterno é autoexistente e autossuficiente.
Ainda assim, ele se importa com o seus servos a age, não segundo
necessidades pessoais dele, mas de acordo com a necessidade dos seus servos
(v.5a): “Ó Senhor, inclina os teus céus e desce” (yhwh hat-shameyka
wetered). Essa é uma oração por socorro dirigida a quem está acima dos
homens. A disparidade não é apenas de dignidade e existência, mas também
de poder (v.5b): “Atinge os montes e eles fumegarão” (ga‘ beharîm
weye‘eshanû). Dita em termos figurados, essa súplica tem seu sentido
desvendado nos versículos seguintes. O salmista não está preocupado com os
montes, mas sim com o poder bélico dos seus inimigos, homens maus (v.8),
pelo que pede que Deus abata o exército inimigo na batalha (v.6): “Atira um
relâmpago e os dispersa. Envia tuas flechas e faze-os fugir” (berôq baraq
ûtefîtsem shelah hitseyka ûtehummem). Abater os inimigos não é um fim, mas
o meio para que o cuidado de Deus pelo servo seja impetrado na forma da
libertação e proteção da morte diante do exército estrangeiro (v.7): “Estende
as tuas mãos do alto, livra-me e resgata-me das muitas águas, [ou seja], das
mãos dos estrangeiros” (shelah yadeyka mimmarôm petsenî wehatsîlenî
mimmayim ravvîm mîyad benê nekar).
O quarto benefício é o controle (vv.9-11). No meio do salmo, Davi se põe a
adorar alegremente ao Senhor (v.9): “Ó Deus, eu entoarei a ti um cântico
novo. Tocarei músicas a ti com uma harpa de dez cordas” (’elohîm shîr
hadash ’ashîrâ lak benevel ‘asôr ’azammerâ-lak). Essa expressão musical de
louvor tem como razão o fato de Deus ser não apenas onipotente, mas
soberano, ou seja, controlar poderosamente as circunstâncias. Nesse caso, o
controle soberano de Deus surge ao dar vitória ao rei Davi, assim como o faz
aos outros reis conforme seu desejo soberano, pelo que o salmista assim o
chama (v.10): “Aquele que concede livramento aos reis, aquele que livra o
seu servo Davi da espada mortal” (hannôten teshû‘â lammelakîm haffôtseh
’et-dawid ‘avdô meherev ra‘â). Fica claro que Davi rende o resultado final
das batalhas ao controle de Deus e não ao poder dos exércitos. Assim, a
oração do rei não é um clamor desesperançado, mas o ato de recorrer
confiantemente ao controle soberano de Deus sobre a história do seu povo
(v.11): “Livra-me e resgata-me das mãos dos estrangeiros cujas bocas falam
mentira e cujas destras são destras de falsidade” (petsenî wehatsîlenî mîyad
benê-nekar ’asher pîhem divver-shawe’ wîmînam yemîn shaqer).
O último benefício é a provisão (vv.12-15). O controle do Deus soberano
não se limita às guerras — a oração de Davi também não. Antevendo ou
testemunhando a vitória sobre os estrangeiros, o salmista olha para frente
coloca sua confiança e dependência em Deus para que os rumos, não apenas
políticos, mas sociais da nação, sejam por ele dispostos. Ele, primeiro, olha
para os jovens israelitas (v.12): “Desse modo, nossos filhos serão como
plantas que crescem na sua juventude. Nossas filhas serão como colunas
entalhadas da estrutura de um palácio” (’asher banênû kinti‘îm meguddalîm
bin‘ûrêhem benôtênû kezawîyot mehuttavôt tavnît hêkal). Davi não tem em
mente apenas a sobrevivência à guerra e o crescimento saudável dos jovens,
mas também sua educação e formação de um caráter honesto e valoroso
dentro de Israel e diante do seu Deus. Ele também considera sobre os
suprimentos necessários para o sustendo do país (vv.13): “Os nossos celeiros
estarão cheios, providos de vários tipos [de alimento]. Nossos rebanhos se
multiplicarão aos milhares e serão incontáveis nos nossos campos”
(mezawênû mele’îm mefîqîm mizzan ’el-zan tso’wnenû ma’alîfôt meruvvavôt
behûtsôtênû). Ele vê nisso a condição de os israelitas terem um tempo de
prosperidade e não de choro, desespero e clamor por causa da fome típica da
derrota na guerra (v.14b): “Não haverá lamento em nossas praças” (we’ên
tsewahâ birhovotênû). Por fim, ele se vê inteiramente dependente, junto com
toda a nação, da ação provedora de Deus como fonte de todo bem e alegria
(v.15): “Feliz é o povo a quem isso acontece. Feliz é o povo a quem o seu
Deus é o Senhor” (’ashrê ha‘am shekkakâ lô ’ashrê ha‘am sheyhwh ’elohîm).
Há quem ache exagero render a Deus todo bem que ocorre a seus filhos,
crendo que o Senhor não cuida de cada detalhe do que acontece a eles. Pois
esse texto derruba por terra tal falácia e encurva-nos ao chão diante daquele
que é o responsável por cada vitória que temos e que, por isso, deve ocupar o
lugar mais alto no pódio da nossa consideração, amor e adoração.

SALMO 145
O Modo de Deus Dirigir seu Reino

Faxineiros do prédio da Assembleia Legislativa do Estado norte-americano


do Nebraska estavam deixando o trabalho por volta de 1 hora da madrugada
quando um dos faxineiros percebeu uma cara nova no grupo. “Que escritórios
você limpa?”, perguntou o zelador veterano ao recém-chegado. “Eu tento
manter todos os departamentos tão limpos quanto eu puder” — respondeu
Victor E. Anderson — “sou o governador”. Essa história é interessante, pois
nos faz imaginar qualidades do governador do Nebraska que devem estar
presentes em todos os líderes. Em primeiro lugar, ele era, segundo quis
transmitir, um homem competente o suficiente para comandar todos os
departamentos da gestão estadual. Em segundo lugar, alguém próximo do
povo, já que dificilmente vemos homens em altos cargos próximo das
pessoas comuns a ponto de travarem uma conversa como essa e até serem
confundidos com alguém subalterno. É claro que essa é uma visão simplista
do governador baseada em uma breve história, mas as qualidades a que nos
remete são bastante nobres para um líder.
“Qualidades de um líder” é o assunto tratado pelo Salmo 145. Mas não de
qualquer líder, mas sim daquele a quem o salmista chama (v.1) “meu Deus, o
rei” (’elôhay hammelek). É o último salmo davídico do livro e o único
denominado “louvor de Davi” (tehillâ ledawid). Trata-se de uma iniciativa
efusiva de louvar a Deus, motivo pelo qual ocupou lugar importante na
adoração no Templo e na igreja cristã ao longo da história — os vv.15,16
foram usados durante séculos durante a ministração da ceia do Senhor e nas
ações de graças pelo alimento. Trata-se de um salmo em acróstico, ou seja,
cada versículo inicia com uma das 22 letras do alfabeto hebraico em
sequência — o v.13 é referente a duas linhas do salmo, pois sua segunda
parte foi perdida no texto hebraico por muito tempo, sendo conservada na
Septuaginta e em manuscritos hebraicos encontrados recentemente. No
salmo, Deus é visto pelo rei de Israel como seu próprio rei e rei do universo.
Suas qualidades são vistas na condução do seu reino, seja em uma esfera
maior que engloba toda a humanidade, seja em uma esfera menor e mais
próxima que abrange seus servos amados. Ao comandar tudo que existe,
Deus exibe, conforme é proclamado no salmo, pelo menos cinco qualidades
pelas quais deve ser louvado.
A primeira qualidade de Deus na administração real é seu poder (vv.1-6). O
salmo inicia com a decisão de Davi de oferecer louvores ao Senhor. O alvo
da exaltação, repetido nos dois primeiros versículos, é bem claro (vv.1,2): “O
teu nome, para todo o sempre” (shimka le‘ôlam wa‘ed). O final do salmo traz
uma variação da mesma ideia (v.21): “Teu santo nome, para todo o sempre”
(shem qodshô le‘ôlam wa‘ed). A expressão “para todo o sempre”, ou,
literalmente, “para sempre e sempre”, tem a dupla função de apontar para a
duração do louvor a Deus e também para o merecimento de ser adorado. Esse
se deve ao fato de que (v.3) “o Senhor é grandioso e muito digno de louvor e
sua grandeza é inquestionável” (gadôl yhwh ûmehullal me’od weligdullatô ’ên
heqer). “Grandioso” é um conceito que requer uma explicação e essa
normalmente é ligada ao seu poder de criar e de comandar tudo que criou.
Aqui não é diferente (v.6): “Eles falarão do poder dos teus feitos temíveis e
eu anunciarei as tuas grandezas” (we‘ezûz nôre’oteyka yo’merû ûgedûlloteyka
’asafferennâ). Tais feitos seriam contados de geração em geração (v.4) e
seriam objeto de meditação e louvor ao Deus majestoso (v.5).
A segunda qualidade é sua bondade (vv.7-10). Diferente de muitos reis
terrenos que reinaram com crueldade e tirania, Deus reina com bondade e
justiça (v.7). Por isso, Davi afirma (v.8): “O Senhor é benigno e compassivo,
paciente e de grande misericórdia” (hannûn werahûm yhwh ’erek ’affayim
ûgedol-hased). A Bíblia afirma muitas e muitas vezes a bondade e
misericórdia de Deus para com seus servos. Entretanto, esse salmo traz uma
declaração um pouco mais ampla ao dizer (v.9): “O Senhor é bom para todos
e os seus atos compassivos estão sobre todas as suas criaturas” (tôv-yhwh
lakkol werahamayw ‘al-kol-ma‘asayw). O autor parece se referir ao que
chamamos de “graça comum”, que consiste em Deus sustentar a vida e ser
paciente com todos: justos e injustos. Não quer dizer que salvará todos
indiscriminadamente, crentes e incrédulos, mas que ambos têm as mesmas
condições para poderem subsistir, como a chuva, ar, Sol e estações do ano,
além de os ímpios não serem imediatamente abatidos por seu pecado.
“Todos”, nesse texto, é uma referência geral aos (v.12) “filhos do homem”
(benê ha’adam), o que inclui (v.20) “todos que o amam” (kol-’ohavayw) e
também “todos os ímpios” (kol-haresha‘îm). Assim, a bondade de Deus é
dispensada a todos, apesar de ser mais sentida, reconhecida e agradecida
pelos seus servos (v.10). Esses são descritos no v.10 como “todas as tuas
criaturas” (kol-ma‘aseyka), o que deve levar os exegetas a considerar se o
versículo anterior tem em mente um grupo tão amplo ou somente os “teus
fiéis” (hasîdeyka). Porém, deve-se levar em conta o pronome possessivo
“tuas” ligado às “criaturas”, possivelmente apontando não para todos (cf.
v.9), mas para os que são de Deus pela fé e amor (cf. v.10).
A terceira qualidade é sua majestade (vv.11-13a). Nessas três linhas do
salmo surge a palavra “teu reino” (malkûteka), apontando para o caráter de
Deus como um rei sobre a criação e, especialmente, sobre aqueles que o
servem (cf. v.1). Três características desse reinado fornecem a qualidade de
majestade ao governo divino. Em primeiro lugar (v.11), “a glória do teu
reino” (kevôd malkûteka), ou (v.12) “a glória da majestade do teu reino”
(kevôd hadar malkûteka). Em segundo (v.12), “o teu poder” (gevûrotka),
suficiente para realizar “os teus feitos poderosos” (gevûrotkayw). Por último,
a durabilidade e permanência do reino, pelo que diz (v.13a): “O teu reino é
um reino que dura por todas as eras e o teu domínio se dá em todas a
gerações, uma após a outra” (malkûteka malkût kol-‘olamîm ûmemshelteka
bekol-dôr wadôr). Essas são as qualidades de um monarca de verdade, um rei
investido de grande majestade.
A quarta qualidade é sua fidelidade (vv.13b-17). O salmista reconhece
(v.13b): “O Senhor é fiel em todas as suas palavras e leal em todos os seus
feitos” (ne’eman yhwh bekol-devayw wehasîd bekol-ma‘asayw). “Suas
palavras” aponta aqui as promessas de Deus. Sob a tutela da aliança mosaica
com suas promessas de bênçãos pela obediência (Lv 26.3-13; Dt 28.1-14),
castigo pela desobediência (Lv 26.14-39; Dt 28.15-68) e perdão pelo
arrependimento (Lv 26.40-46), a fidelidade se mostra no fato de Deus
cumprir tudo que prometeu. Resumindo, significa que Deus age com
veracidade e que suas palavras são duradouras e confiáveis. Por isso, as ações
de Deus descritas nas Escrituras são de acordo com a revelação, de modo que
ele se compadece e sustenta os desamparados (v.14) e trata com bondade suas
criaturas (v.16). Assim, a fidelidade de Deus gera esperança e confiança nos
homens que dependem dele, como servos que esperam o sustento das mãos
dos seus senhores (v.15). Porém, se a fidelidade garante sua disposição
benigna, garante também sua justiça para tratar e punir o mal. Na verdade,
sua justiça age em paralelo com a fidelidade, pelo que o salmista repete a
mesma fórmula do v.13 com uma única alteração (v.17): “O Senhor é justo
em todas as suas palavras e leal em todos os seus feitos” (tsaddîq yhwh bekol-
devayw wehasîd bekol-ma‘asayw). A fidelidade de Deus às suas palavras
garante seu procedimento bondoso e justo.
A última qualidade divina exibida na administração real é seu amor (vv.18-
22). Aqui não se diz que o Senhor ama os seus, entretanto seu amor
transborda de cada linha escrita pelo salmista. Davi conhecia pessoalmente os
efeitos do amor de Deus dirigido a (v.18) “todos que o invocam” (kol-
qore’ayw), os quais são também descritos como (v.19) “seus tementes”
(yere’ayw) e como (v.20) “todos que o amam” (kol-’ohavayw). O afeto e a
dependência dos servos de Deus são produzidos e encorajados pelo amor do
próprio Senhor por eles, o qual se mostra de três maneiras distintas e
marcantes. A primeira é a presença divina em suas vidas (v.18): “O Senhor
está perto de todos que o invocam” (qarôv yhwh lekol-qore’ayw). A segunda é
a resposta às orações ligadas às necessidades dos seus (v.19): “Ele ouve o
clamor deles” (we’et-shav‘atam yishma‘) — nesse texto, “ouvir o clamor” é o
mesmo que “atender ao clamor”. A última é a salvação, já que ele guarda os
seus do juízo que abaterá os ímpios (v.20): “O Senhor guarda todos que o
amam, porém ele exterminará todos os ímpios” (shômer yhwh ’et-
kol-’ohavayw we’et kol-haresha‘îm yashmîd) — a ideia aqui de “guardar” é
ampla e pode ser aplicada tanto à experiência temporal de “libertação” como
à experiência futura de “redenção”. Por causa disso, o escritor encerra o
salmo com uma efusiva declaração de louvor (v.21).
Que razões mais nós precisamos para adorar o Senhor com toda nossa força
e proclamar seus atos poderosos e benignos? Que mais é preciso para que nos
curvemos diante de um rei tão majestoso sobre toda a criação e nosso rei
pessoal por meio da fé em Jesus Cristo? Que mais deve ser dito para que
confiemos em Deus e dependamos inteiramente dele ao passarmos pelas lutas
dessa vida e ao nos depararmos com as difíceis decisões que temos de tomar?
Que outros motivos nós precisaríamos para amar de todo o coração aquele
que primeiro nos amou e enviou seu Filho para nos substituir na cruz a fim de
morarmos para sempre com ele?

SALMO 146
O Rei dos Céus e os Reis dos Homens

O imperador Lúcio Septímio Severo (145-211) foi um poderoso chefe


militar cujos feitos incluíram vencer os partos devolvendo o controle da
Mesopotânia aos romanos e reforçar as fronteiras do império ante aos ataques
bárbaros, principalmente na Britânia — além de perseguir duramente o
cristianismo. Apesar da ditadura que instituiu em seu governo, era muito
querido pelo povo por ter lutado contra o baixo moral e a corrupção dos anos
de Cômodo, filho de Marco Aurélio. Resumindo, Severo foi um imperador ao
mesmo tempo temido e amado. Contudo, apesar da sua grandeza política,
quando percebeu que se aproximava o seu fim, gritou: “Tenho sido tudo e o
tudo é nada”. Então, ordenando que lhe trouxessem a urna em que suas cinzas
seriam postas depois que seu corpo fosse queimado, disse: “Ó pequena urna,
tu irás conter alguém para quem o mundo era muito pouco”. O que essa
história nos lembra é que, apesar do poder e da majestade que alguns homens
possam alcançar em suas vidas, tudo isso é passageiro e limitado. Até o mais
glorioso rei dentre os homens está fadado a virar pó depois da sua morte,
assim como seu reinado.
O Salmo 146 faz uma comparação entre essa realidade humana e o reinado
soberano do Senhor Deus. Os últimos cinco capítulos do saltério foram
claramente produzidos para formar um grupo, já que guardam semelhanças
marcantes como começarem e terminarem todos eles com os dizeres “exaltai
ao Senhor” (hallû-yah), um chamado público à adoração coletiva. Nesse
salmo, o motivo do louvor é o caráter singular do reinado divino, pelo que o
texto serve para chamar os israelitas a confiarem no Senhor e não em alianças
políticas entre os homens, assim como fez o profeta Isaías ao falar àqueles
que buscavam proteção nos egípcios contra a invasão assíria: “Ai dos que
descem ao Egito em busca de socorro e se estribam em cavalos; que confiam
em carros, porque são muitos, e em cavaleiros, porque são mui fortes, mas
não atentam para o Santo de Israel, nem buscam ao Senhor! [...] Pois os
egípcios são homens e não deuses; os seus cavalos, carne e não espírito.
Quando o Senhor estender a mão, cairão por terra tanto o auxiliador como o
ajudado, e ambos juntamente serão consumidos” (Is 31.1,3). Assim, o salmo
faz uma comparação entre os reis dos homens e o rei dos céus, o divino
soberano, a fim de promover dependência no povo ao rei correto e levá-los a
um louvor constante. Para esse fim, o salmista apresenta quatro verdades.
A primeira verdade é que o reinado dos homens é limitado e passageiro
(vv.1-4). O salmo inicia com um louvor efusivo a Deus (v.1): “Exaltai ao
Senhor. Exalta ao Senhor, ó minh’alma” (hallû-yah hallî nafshî ’et-yhwh).
Entretanto, não é apenas o louvor que chama a atenção do leitor, mas a
própria decisão de louvar (v.2): “Eu exaltarei ao Senhor ao longo da minha
vida. Cantarei louvores para o meu Deus enquanto eu existir” (’ahallâ yhwh
behayyay ’azammerâ le’lohay be‘ôdî). As expressões “ao longo da minha
vida” e “enquanto eu existir” apontam para o fato de que a razão para a
adoração era perene e contínua. Porém, ela não é declarada logo na
sequência, mas é contraposta pelo exemplo inverso, ou seja, a transitoriedade
do poderio humano (v.3): “Não confieis em príncipes ou em filhos do homem
nos quais não há salvação” (’al-tivtehû bindîvîm beben-’adam she’ên lô
teshû‘â). Essa salvação não tem caráter espiritual, mas sim nacional. O que o
salmista quer dizer é que a garantia da paz do seu povo não viria de príncipes
humanos, pois eles também eram mortais e sujeitos às vicissitudes da vida,
perecendo como qualquer homem (v.4): “O espírito deles se aparta e eles
retornam à terra. Nesse dia, os planos deles perecem” (tetse’ rûhô yashuv
le’admatô bayyôm hahû’ ’ovdô ‘eshtonotayw). O texto na verdade diz “sua
terra”, talvez tendo em mente a matéria-prima da qual o homem foi formado:
“Até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó
tornarás” (Gn 3.19b). Assim, o louvor a Deus vem do fato de ele ser
exatamente o oposto dos homens mortais e limitados.
A segunda verdade é que o reinado de Deus é poderoso e fiel (vv.5,6). O
versículo começa apontando o efeito de tais características (v.5): “Felizes são
aqueles que têm por protetor o Deus de Jacó, aqueles cuja esperança está no
Senhor, o seu Deus” (’ashrê she’el ya‘aqov be‘ezrô sivrô ‘al-yhwh ’elohayw).
Jeremias concordaria com o salmista, já que, depois de dizer “maldito o
homem que confia no homem” (Jr 17.5), também declara: “Bendito o homem
que confia no Senhor e cuja esperança é o Senhor” (Jr 17.7). O salmista
também aponta a razão para que o servo dependente e esperançoso no Senhor
seja feliz, explicando quem Deus é (v.6): “Aquele que fez céus e terra, o mar
e tudo que há neles. Aquele que mantém a fidelidade para sempre” (‘oseh
shamayim wa’arets ’et-hayyam we’et-kol-’asher-bam hashomer ’emet
le‘ôlam). A primeira parte do versículo aponta para o poder ilimitado do
Senhor demonstrado na criação. Se Deus tivesse alguma limitação ou se seu
poder encontrasse barreiras, certamente viveríamos uma realidade bem
diferente ou nem existiríamos. Por todo o Antigo Testamento a criação é uma
evidência patente da onipotência divina. A parte final do versículo se refere à
fidelidade de Deus pela qual ele sempre cumpre aquilo que se comprometeu a
fazer, garantia de que seu poder não é empregado de forma arbitrária, mas na
efetivação das suas promessas e alianças registradas nas Escrituras,
garantindo tudo que os homens não podem garantir.
A terceira verdade é que o reinado de Deus é bondoso e justo (vv.7-9).
Todo esse poder não é exercido de maneira impessoal. Ao contrário, Deus se
relaciona com as pessoas por meio dos seus atributos morais, fazendo bem
aos necessitados e punindo a injustiça. Por isso, o salmista continua sua
descrição de Deus dizendo: (v.7): “Ele é quem faz justiça aos oprimidos e dá
pão aos famintos. O Senhor é aquele que liberta os aprisionados” (‘oseh
mishpat la‘ashûqîm noten lehem lare‘evîm yhwh mattîr ’asûrîm). Se esse
salmo é mesmo do período pós-exílico — a Septuaginta traz como título os
dizeres “aleluia, um salmo de Ageu e Zacarias” —, então os leitores
conheciam a atuação de Deus de suprir os famintos e libertar os cativos,
trazendo-os de volta do exílio babilônico. A ação bondosa de Deus não se vê
apenas em esferas amplas, mas também no dia a dia dos seu servos, pelo que
o texto oferece novas nuances da graça do Senhor (v.8): “O Senhor é quem
abre os olhos dos cegos. O Senhor é quem levanta os encurvados. O Senhor
ama os justos” (yhwh poqeah ‘iwrîm yhwh zoqef kefûfîm yhwh ’ohev
tsaddîqîm). Esse cuidado de Deus pelos justos é anteposto, logo a seguir, ao
seu tratamento com relação aos injustos. Se levarmos em consideração que a
sociedade pós-exílica de Jerusalém já conhecia a exploração dos desvalidos
(Ne 5), assim como faziam os injustos líderes do período pré-exílico (Hc 1.2-
4), o que o salmista faz é encher o coração dos aflitos de esperança enquanto
enche os injustos de temor (v.9): “O Senhor protege os forasteiros, sustenta o
órfão e a viúva, mas entorta o caminho dos ímpios” (yhwh shomer ’et-gerîm
yatôm we’almanâ ye‘ôded wederek resha‘îm ye‘awwet). Além do mais, os
israelitas, em geral, estavam sofrendo nas mãos dos samaritanos (Ne 4.1-5),
pelo que se tornava imperativo que o povo dependesse da bondade e da
justiça de Deus e o louvasse por isso.
A última verdade é que o reinado de Deus é duradouro e contínuo (v.10).
Os vv.3,4 descrevem de modo dramático a transitoriedade não apenas do
governo humano, mas da própria vida dos líderes. Por isso, o salmo não
poderia terminar sem que o escritor afirmasse a durabilidade do reinado
divino e a continuidade do seu controle sobre a história (v.10): “O Senhor
reinará para sempre. O teu Deus, ó Sião, [o fará] de geração em geração”
(yimlok yhwh le‘ôlam ’elohayik tsîyôn ledor wador). Desse modo, não é
possível que Deus perca o controle dos acontecimentos, nem desista de
comandar o destino dos homens. Independente de seus servos não
conhecerem os detalhes do seu plano eterno, nem o tempo das suas ações e
dos cumprimentos das promessas, algo era sempre verdade: Deus reina por
todas as gerações e o faz segundo seu poder, fidelidade, bondade e justiça.
Aqui está a razão não apenas da esperança dos servos, mas também do seu
louvor, pelo que o salmo termina com o mesmo convite com o qual foi
iniciado: “Exaltai ao Senhor” (hallû-yah).
Nossos dias contemplam um planeta extremamente mais populoso e
complexo no que diz respeito às condições políticas e sociais. Além dos
governos, o nosso mundo é parcialmente dirigido por empresas e
conglomerados financeiros que existem para ter lucro a despeito da condição
de vida da população mundial. E parece que ninguém pode deter a ganância
dos poderosos e seus intentos de uma versão moderna de imperialismo. Se
nós, cristãos, já sofremos bastante com esse tipo de ganância, ainda somos
acossados por um ódio crescente da sociedade incrédula contra a Bíblia, a fé
em Jesus e os padrões de vida requeridos pelo nosso Deus. Sob a desculpa de
garantir os direitos das minorias, temos os nossos direitos negados e somos
perseguidos não por querer que outros vivam como Cristo ensinou, mas por
querer nós mesmos assim viver. Diante de tantos revezes, somos tentados a
nos desesperar e desistir de tudo. Entretanto, trechos importantes da Bíblia,
como esse salmo, nos lembram quem é Deus e que tipo de confiança
devemos ter nele, ao mesmo tempo que precisamos incrementar nossa
disposição de adorá-lo e de proclamar seu nome. Afinal, não servimos a um
rei que irá virar pó, mas a um cujo poder e reinado são eternos e gloriosos.
Portanto, “exaltai ao Senhor”!

SALMO 147
Louvor a quem Faz por Merecer

O ano de 2013 começou agitado para o mundo do esporte. O famoso ex-


ciclista norte-americano Lance Armstrong, vencedor de sete títulos seguidos
(1999-2006) da Volta da França (Tour de France), uma das mais duras provas
da categoria, admitiu ter utilizado substâncias e práticas proibidas a fim de
produzir uma carreira vitoriosa. É certo que ele fez coisas impressionantes.
Entretanto, ele não o fez com a própria capacidade, mas com uma
implementação artificial. Por isso, apesar das vitórias que obteve, os
dirigentes da categoria esportiva concluíram que ele não mereceu os prêmios
que recebeu e lhe confiscaram os sete títulos da Volta da França e a medalha
olímpica de bronze. O reconhecimento da sua falta de méritos extrapolou os
anais esportivos e chegou até o ponto de uma biblioteca, em Sydney, na
Austrália, ter transferido todos os livros do atleta para a seção de “ficção”.
Diferente desse triste caso, o Salmo 147 trata de alguém cujo mérito é
indiscutível. Na verdade, Deus é tão merecedor de receber louvores que o
salmista faz, por três vezes, um chamado público à adoração (vv.1,7,12),
sempre apresentando, a seguir, as razões para que o povo de Israel se
curvasse diante do Senhor eterno. O contexto do salmo é o fim do exílio e o
retorno à terra da promessa, mais precisamente após a reconstrução de
Jerusalém, possivelmente nos dias de Neemias — a Septuaginta associa a
segunda metade do salmo (vv.12-20) aos dias de Ageu e Zacarias, apesar da
menção às portas e ferrolhos da cidade (v.13), os quais somente foram
reinstalados nos dias de Neemias. Mesmo sendo a ocasião da reconstrução da
cidade um momento cujo tema de louvor é completo em si mesmo, o salmo
chama a um olhar amplo do quadro todo da restauração de Judá (v.2). Poucas
nações passaram pelo que atravessaram os israelitas e voltaram a se
restabelecer. Entretanto, o que parecia impossível era realidade e o salmista
chama o povo a reconhecer a mão de Deus em sua história. Assim, três
características divinas ficam em relevo no texto com a finalidade de
direcionar ao Senhor toda a adoração que ele realmente merece.
A primeira característica destacada pelo salmista como motivação ao louvor
é o entendimento de Deus (vv.1-6). O salmo inicia com o seguinte chamado
público (v.1a): “Exaltai ao Senhor, pois é bom cantar louvores ao nosso
Deus” (hallû yah kî-tôv zammerâ ’elohênû). A segunda parte do versículo
aponta o merecimento divino de receber louvor dos seus servos (v.1b): “Pois
o louvor é harmonioso e apropriado” (kî-na‘îm na’wâ tehillâ). Esses dois
adjetivos demonstram que não há nada fora de lugar quando o Senhor recebe
adoração. Ao contrário, a falta dela seria um exemplo perfeito de algo
inapropriado e sem qualquer harmonia com a realidade. Para que um conceito
tão sublime não fique sem sentido claro, o escritor liga o conceito ao fato,
explicando (v.2): “O Senhor reconstrói Jerusalém e reúne os exilados de
Israel” (bôneh yerûshalaim yhwh nidhê yisra’el yekannes). Embora seja
possível interpretar essa frase em sentido figurado e espiritual, como se fosse
uma referência à purificação do povo, outras menções no salmo
(vv.6,10,13,14) apontam os sentidos social e político da realidade pretendida
pelo escritor. Assim, a restauração nacional era também a restauração
completa para cada judeu trazido de volta à terra da promessa e a esperança
de ver cumpridas as alianças de Deus com seus servos (v.3): “Ele cura os de
coração partido e ata suas feridas” (harofe’ lishvûrê lev ûmehavvesh
le‘atsevôtam). E nenhuma ferida era maior, para eles, que o exílio e a
vergonha de ver sua capital em ruínas (cf. Ne 1.3,4; 2.3).
O que é interessante nessa seção é o fato de o salmista associar a ação
restauradora de Deus ao seu entendimento, dizendo (v.4): “Ele conta o
número das estrelas e chama a todas elas pelos seus nomes” (môneh mispar
lakkôkavîm lekullam shemôt yiqra’). Essa não é uma mudança de assunto
como se o escritor estivesse devaneando sobre vários temas. Ele está
rendendo à sabedoria e onisciência de Deus a causa da poderosa restauração
de Jerusalém e do restante do país (v.5): “Nosso Senhor é grande e muito
poderoso. Sem entendimento é imensurável” (gadôl ’adônênû werav-koah
litvûnatô ’ên mispar). Como resultado do entendimento do Senhor, os
israelitas estavam sendo amparados e restabelecidos por ele (v.6): “O Senhor
restaura os aflitos e derruba por terra os ímpios” (me‘ôded ‘anawîm yhwh
mashpîl resha‘îm ‘adê-’arets). Por isso, o salmo nos recorda
consideravelmente a mensagem da parte final de Isaías, principalmente a
partir do capítulo 40, em que o profeta promete restauração a Israel com base
no amor e na fidelidade do Senhor, ao passo que os ímpios seriam julgados e
abatidos. Deus, que conhece tudo, preparou a história para redimir o povo
que elegeu desde o passado, seja Israel politicamente, seja seu povo eleito
espiritualmente.
A segunda característica é a capacidade de Deus (vv.7-11). Um novo
chamado público é feito (v.7): “Cantai ao Senhor com gratidão. Cantai
louvores ao nosso Deus ao som de harpa” (‘enû layhwh betôdâ zammerû
le’lohênû bekinnôr). A motivação para se atender ao chamado é, dessa vez, o
poder de Deus de fazer não apenas tudo que quer, mas tudo de que suas
criaturas precisam. Para exemplificar isso, o salmista, primeiro, aponta a
capacidade que o Senhor tem de fornecer o que os vegetais necessitam (v.8):
“Ele cobre os céus com núvens, prepara a chuva para a terra e faz brotar a
erva nos montes” (hamkasseh shamayim be‘avîm hammekîn la’arets matar
hammatsmîah harîm hatsîr). Em segundo lugar, ele aponta a capacidade
divina de suprir os animais (v.9): “Ele dá alimento aos animais e aos filhotes
de corvo quando eles clamam” (nôten livhemâ lahmah livnê ‘ôrev ’asher
yiqra’û). Assim, nem a chuva molha a terra por acaso, nem os animais se
alimentam da terra por uma contingência qualquer que não seja o poderoso
suprimento do Senhor que a tudo controla.
Entretanto, o salmista não chama os israelitas a agradecer a Deus
primariamente pelo suprimento da fauna e da flora, mas pela libertação que
tiveram das mãos de um inimigo tão poderoso como a Babilônia. Antes desse
império sucumbir, pouca gente poderia acreditar que eles pudessem ser
abatidos. Porém, a capacidade infinita de Deus assim o fez a fim de libertar
seu povo, sem se impressionar com o poderio militar do inimigo (v.10): “Não
é na força do cavalo que ele se deleita, nem da perna do guerreiro que ele se
agrada” (lo’ bigvûrat hassûs yehpats lo’-beshôqê há’îsh yirtseh). O sentido
disso é que o Senhor não se sente obrigado a favorecer os fortes ou se render
ao poder que eles têm. Ao contrário, Deus tem poder suficiente para
contrariar as expectativas humanas e favorecer quem ele quiser, preferindo
aqueles que lhe pertencem (v.11): “O Senhor se agrada dos que o temem e
dos que esperam pelo seu amor leal” (rôtseh yhwh ’et-yere’ayw ’et-
hamyahalîm lehasdô). Mesmo que os inimigos fossem humanamente
imbatíveis, o poder de Deus guiado pelo amor que tem pelos seus e sua
fidelidade às promessas que fez garantiram a restauração da nação.
A última característica é a bondade de Deus (vv.12-20). De nada valeria a
Israel o entendimento de Deus, nem seu poder sem limites, caso eles não
fossem utilizados para fazer bem ao povo do Senhor. Como tal bondade
vinha sendo o motivo das bênçãos usufruídas pelo povo, um novo convite
público é expedido (v.12): “Louva ao Senhor, ó Jerusalém. Exalta ao teu
Deus, ó Sião” (shavehî yerûshalaim ’et-yhwh hallî ’elohayik tsîyôn). A
motivação para que o convite seja atendido, dessa vez, é o benefício que o
Senhor promoveu à cidade anteriormente destruída (v.13): “Pois ele restaurou
os ferrolhos dos teus portões e abençoou os teus filhos no teu interior” (kî-
hizzaq berîhê she‘arayik berak banayik beqirbek). Se dentro de Jerusalém a
bondade de Deus era patente, também o era fora dos seus muros (v.14): “Ele
promove paz em tuas fronteiras e te farta com os melhores grãos” (hassam-
gevûlek shalôm helev hittîm yasbî‘ek). Tanto a paz como a fartura eram fruto
da ordem do Senhor e não da sorte (v.15).
Para exemplificar essa ação, o salmista utiliza outro suprimento
fundamental dado por Deus: a água. Contudo, o ele é meticuloso em
descrever todo o processo da concessão da água pluvial de que necessitavam
os israelitas — e toda a humanidade. O Senhor produz neve e gelo nas mais
altas montanhas (v.16), faz com que a mudança climática desfaça a dureza do
gelo (v.17) e derrete-o a fim de se tornar líquido e correr na forma de rios
para suprir a necessidade das pessoas (v.18). A julgar pelo fato de que Israel,
em seus dias de juízo antes do exílio, muitas vezes se viu diante de uma dura
seca, o fato de terem água para beber era prova do bondoso favor do Senhor.
Porém, apesar do suprimento físico, a bondade de Deus também se
demonstrava no suprimento espiritual (v.19): “Ele anuncia sua palavra a Jacó
e seus preceitos e decretos a Israel” (maggîd devarô leya‘aqov huqqayw
ûmishpatayw leyisra’el). O fato de ter eleito um povo para agir desse modo
(v.20) devia levar seus servos a louvá-lo.
A grande notícia é que essas características louváveis do Senhor não se
restringiram a Israel, nem ao passado, mas se fazem presentes na vida dos
servos de Deus em todas as épocas, incluindo os nossos dias. Assim, Deus é
tão merecedor do nosso louvor hoje como foi no passado, razão pela qual os
mesmos chamados se estendem a nós, seus servos. Que nosso Deus esteja
sempre no lugar mais alto do pódio da nossa adoração, visto que ele
realmente faz por merecê-lo.

SALMO 148
Tudo e Todos Adorando ao Senhor

Certa vez, o seguinte anúncio apareceu em uma publicação inglesa:


“Precisa-se de seis jovens corajosos para irem à China a fim de integrar a
Cooperação Industrial Chinesa para uma China Democratizada e
Industrializada. Eles ocuparão o lugar de George Hogg, jovem brilhante de
31 anos, pós-graduado em Oxford, que morreu de tétano no Noroeste da
China, fora do alcance dos recursos médicos. Se alguém está disposto a
correr o risco de ficar doente, suportar desconforto, comer apenas comida
chinesa e falar chinês, pode se candidatar imediatamente na Sociedade
Anglo-Chinesa de Desenvolvimento. Pessoas não preparadas para assumir
riscos semelhantes não devem se candidatar”. Surpreendente, nisso tudo, são
as qualificações demonstradas pelo jovem George Hogg que, além de
suportar condições tão duras e desfavoráveis, precisava ser substituído por
seis homens. O fato de suas raras qualificações serem bastante elevadas não
permitia que fosse substituído por qualquer pessoa, motivo pelo qual um
chamado de grande alcance foi feito na Inglaterra.
O Salmo 148 também é um chamado em larga escala a fim de se louvar
alguém incomparável. O chamado à adoração do Senhor eterno é feito em
duas esferas: a celestial (vv.1-6) e a terrena (vv.1-14). Entendendo-se que
“céus e terra” é um modo de se ver toda a criação, os seres animados e
inanimados convocados ao louvor servem figuradamente como partes de um
todo, o qual é resultado da criação divina. Há quem entenda que a razão do
efusivo louvor do salmo é a restauração nacional, talvez com base no último
versículo. Apesar de o louvor do salmo caber muito bem em uma situação
como essa — a localização no saltério em que o salmo foi colecionado até
sugere essa circunstância —, o contexto real não fica tão claro assim. O que é
bastante nítido é o fato de Deus estar exaltando seu povo e impedindo que ele
fosse presa de outras nações. Como não poderia deixar de ser, os feitos de
Deus são expostos como razões de se atender ao chamado, assim como os
feitos de George Hogg serviram de padrão e de motivação ao chamado
chinês. Por isso, o salmista aponta três razões para todos os seres adorarem
ao Senhor.
A primeira razão para toda criatura adorar a Deus é a criação de tudo que
existe (vv.1-6). A existência dos seres é motivo de adorarem seu criador. A
primeira esfera do chamado se dirige aos céus (v.1): “Exaltai ao Senhor!
Exaltai dos céus ao Senhor! Exaltai-o nas alturas!” (hallû yah hallû ’et-yhwh
min-hashamayim hallûhû bammerômîm). É claro que o termo “céu” pode
assumir tanto uma conotação espiritual como física e as duas são abarcadas
no chamado. Em primeiro lugar, na esfera espiritual, os anjos, provavelmente
os primeiros seres criados (cf. Jó 38.4-7), são convocados a adorar a Deus
(v.2): “Exaltai-o, todos os seus anjos! Exaltai-o, todo o seu exército!”
(hallûhû kol-mal’akayw hallûhû kol-tseva’ô). Já na esfera física, astros
celestes recebem o chamado ao louvor (v.3): “Exaltai-o, Sol e Lua! Exaltai-o,
todas as estrelas brilhantes!” (hallûhû shemesh weyareah hallûhû kol-kôkevê
’ôr). Quando seres inanimados são chamados ao louvor do criador — como
Sol, Lua e estrelas —, há duas maneiras em que isso pode ser compreendido.
Em primeiro lugar, de modo retórico, já que seres inanimados não podem
exercer uma ação pessoal como essa. Em segundo lugar, não necessariamente
separado do primeiro, de um modo passivo no qual o simples fato de
existirem revela e exalta a grandeza do criador — assim, o próprio Deus
produz louvor ao seu nome revelando quem ele é por meio da criação (Sl
19.1-4).
Seguindo essa linha retórica, o céu físico é chamado em dois planos a
adorar a Deus, primeiro o cosmos, por meio da expressão “céu dos céus”, e,
depois, a atmosfera, por meio da citação da chuva (v.4): “Exaltai-o, céu dos
céus e as águas que estão em cima dos céus” (hallûhû shemê hashamayim
wehammayim ’asher me‘al hashamayim). Nenhuma entidade acima da
superfície terrestre escapa ao chamado. E há uma razão clara para tanto: a
criação (v.5): “Eles devem exaltar o nome do Senhor, pois ele ordenou e eles
foram criados” (yehallû ’et-shem yhwh kî hû’ tsiwwâ wenivra’û). Essa é uma
excelente razão para se adorar ao Senhor, pois, além de envolver a própria
existência dos seres que lhe devem louvor, o fato de Deus ser capaz de dar
uma ordem e ela imediatamente se cumprir, principalmente na escala de uma
criação universal, torna-o digno da admiração e exaltação de todos. Para
qualificar um pouco mais a grandeza da obra criativa do Senhor, o salmista
encerra a seção mostrando que a magnificência da criação não está somente
no ato da sua formação, mas na manutenção da sua existência (v.6): “Ele os
mantém para todo o sempre. Ele deu uma ordem e ela não passará”
(wayya‘amîdem la‘ad le‘ôlam hoq-natan welo’ ya‘avôr).
A segunda razão é a majestade do seu nome (vv.7-13). Se a primeira parte
exigiu louvor a Deus nos céus, a segunda exige que a adoração seja
promovida também na Terra, começando pelos mares (v.7): “Exaltai ao
Senhor na Terra, monstros marinhos e todos os oceanos” (hallû ’et-yhwh
min-ha’arets tannînîm wekol-tehomôt). O chamado dos seres marinhos em
primeiro lugar talvez se deva ao fato de, dentre todos os locais do planeta, os
mares serem os mais distantes e de difícil acesso aos homens, principalmente
no passado, fazendo-se o chamado no sentido do mais distante até o mais
próximo, até chegar ao próprio ser humano. As forças da natureza, temíveis
ao homem, são também convocadas a testemunhar o poder de Deus e lhe
render glórias, já que a força que possuem vem das ordens divinas (v.8):
“Fogo e granizo, neve e fumaça, vento tempestuoso que atende à sua palavra”
(’esh ûvarad sheleg weqîtôr rûah se‘arâ ‘osâ devarô). Os próximos a serem
adicionados na lista dos adoradores são o relevo terrestre e a flora (v.9):
“Montes e todas as colinas, árvores frutíferas e todos os cedros” (heharîm
wekol-geva‘ôt ‘ets perî wekol-’arazîm). Estes são seguidos por todos os tipos
de animal (v.10): “Os animais selvagens e todos os animais domésticos,
répteis e aves que voam” (hahayyâ wekol-behemâ remes wetsiffôr kanaf).
O salmista, então, deixa o campo do chamado a seres impessoais e chega
aos destinatários do texto, os homens, começando pelos de maior posição
social (v.11): “Reis da Terra e todos os povos, príncipes e todos os juízes da
Terra” (malkê-’erets wekol-le’ummîm sarîm wekol-shofetê ’arets). Ao fazer
isso, o escritor transmite a ideia de que a majestade de Deus é, em muito,
superior à majestade dos reis humanos. Se isso vale para os reis, vale também
para cada ser humano, independente de idade, sexo ou posição social (v.12):
“Rapazes e moças, também. Velhos junto com jovens” (bahûrîm wegam-
betûlôt zeqenîm ‘im-ne‘arîm). Feito esse amplo chamado, o salmista apresenta
a majestade de Deus, ou seja, sua dignidade real e autoridade efetiva sobre
tudo que existe, como razão para a adoração coletiva (v.13): “Eles devem
exaltar o nome do Senhor, pois somente o seu nome é excelso. Sua majestade
está acima da Terra e dos céus” (yehallû ’et-shem yhwh kî-nisgav shemô
levaddô hôdô ‘al-’erets weshamayim).
A última razão é a valorização do seu povo (v.14). Apesar do chamado
amplo, poucos são os seres que atendem consciente e voluntariamente ao
chamado. Já dissemos que os seres inanimados e impessoais só o fazem de
modo passivo. Quanto aos anjos, a não ser aqueles que se rebelaram contra o
Senhor, seguindo a Satanás, todos eles, os quais recebem a designação de
“seus anjos” (v.2), de fato existem para exaltar a Deus e assim o fazem (Is
6.3; Hb 1.6; Ap 5.8-13). Entre a humanidade, apesar de o chamado ser amplo,
boa parte resiste ao convite por viver em plena rebeldia contra o Senhor.
Desse modo, o salmista se dirige àqueles que realmente tem as condições de
atenderem ao chamado de exaltar a Deus por serem seus servos (v.14): “Ele
exalta o poder do seu povo, o louvor de todos os seus fiéis, dos filhos de
Israel, povo próximo dele. Exaltai ao Senhor!” (wayyarem qeren le‘ammô
tehillâ lekol-hasîdayw livnê yisra’el ‘am-qerovô hallû-yah). A condição desses
servos diante de Deus é exposta aqui para que se esmerem no louvor. Em
primeiro lugar, Deus os beneficiou sobremaneira dentre todos os homens, o
que, nesse caso particular, parece ocorrer por meio do fortalecimento militar
de Judá diante de um povo inimigo — “ele exalta o poder do seu povo”. Em
segundo, Deus aceita o culto prestado pelos seus servos ainda que eles não
estejam à sua altura — “exalta... o louvor de todos os seus fiéis”. Em terceiro,
o Senhor os aproximou de si, produzindo vantagens temporais e eternas —
“povo próximo dele”. Tal valorização é motivação mais que suficiente para
que seus servos se dediquem de todo coração à exaltação do seu Senhor, pelo
que o salmo termina como começou: “Exaltai ao Senhor!”.
Esse chamado permanece, assim como os decretos de Deus e a existência
da criação. Passiva ou retoricamente, as coisas criadas ainda revelam e
glorificam ao Senhor: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das
coisas que foram criadas” (Rm 1.20). Por isso, mais que nunca é necessário
que aqueles que podem devidamente ser chamados de “servos do Senhor” se
levantem para exaltar seu Deus que os amou, beneficiou e aproximou de si.

SALMO 149
As Armas de Guerra dos Servos de Deus

Foster Walker, um homem de cerca de sessenta anos de idade, certa vez


entrou acidentalmente no meio de um assalto a uma loja, na cidade norte-
americana de Memphis, Tennessee. Imediatamente, o bandido armado lhe
ordenou que entregasse seu dinheiro sob a seguinte ameaça: “Vou atirar em
você!”. “Pois vá em frente e atire!”, respondeu o Sr. Walker. “Já li hoje a
minha Bíblia e fiz minhas orações”. O bandido ficou desconcertado enquanto
o Sr. Walker simplesmente virou as costas e saiu. Imagino que o ladrão deve
ter ficado aturdido e indeciso sobre o significado daquelas palavras. Talvez
ele quisesse dizer que, ao cumprir seus deveres religiosos, estava pronto para
morrer e encontrar o Senhor. Ou então que, sendo ele um leal servo de Deus,
não seria uma vítima muito fácil de se abater por ter o próprio Deus como
protetor. Independente do que tenha pensado aquele ladrão, me parece que
ele achou melhor não arriscar a alvejar o Sr. Walker. Afinal, ele parecia estar
armado com sua fé.
O Salmo 149 também oferece armas espirituais aos servos do Senhor. É
difícil definir a data ou o período de composição do salmo, apesar de haver
quem, analisando a linguagem do texto, sugira ser ele da época pré-
monárquica de Israel — há, também, quem sugira a ocasião da rededicação
do Templo, nos dias dos macabeus (165 a.C.). O que se sabe é que os
israelitas estavam para enfrentar um povo inimigo, ou um conglomerado de
países que buscavam destruí-los. Em lugar de ficarem tristes e desesperados,
o salmo convida os israelitas a se alegrarem em Deus e manterem a confiança
no seu Senhor a respeito da vitória. A convicção do sucesso era tão grande
que o escritor propõe que o povo lute armado com espadas e com o louvor,
como se a alegre adoração ao Senhor fosse uma arma de guerra. Se alguém
achar tal proposta um disparate, deve saber que Judá, nos dias de Josafá, já
partiu em batalha armado praticamente só com o louvor a Deus, ocasião em
que o Senhor abateu três exércitos sem que os israelitas disparassem uma
flecha ou levantassem uma espada (2Cr 20.18-25). Seguindo uma ideia
semelhante, porém prevendo uma batalha a ser travada, o salmista propõe que
os israelitas se armem não apenas de seus equipamentos convencionais, mas
também de quatro armas exclusivas dos verdadeiros servos de Deus.
A primeira arma dos servos de Deus que atravessam problemas sérios como
o dos israelitas é a disposição renovada (v.1). Apesar das preocupações e
preparativos militares necessários a um momento de crise como esse, o
escritor chama o povo à adoração musical (v.1a): “Exaltai ao Senhor! Cantai
ao Senhor um cântico novo” (hallû yah shîrû layhwh shîr hadash). A
pergunta é: “Porque um cântico novo? Os cânticos que eles possuíam não
serviam?”. Claro que serviam! Entretanto, o salmista não está preocupado só
com a música a ser cantada, mas também com a disposição do coração dos
israelitas. O cântico novo é um modo de sugerir a revigoração religiosa e o
fortalecimento da comunhão com Deus. Assim, o preparo para a batalha
começaria pelo retorno à dedicação e compromisso para com o Senhor.
O resultado seria surpreendente, pois, em vez de o povo ficar cabisbaixo e
inerte, eles renovam sua disposição de louvar e servir a Deus. Isso é
extremamente positivo se notarmos como é comum ver pessoas em
momentos de crise abandonarem todos os trabalhos de devoção alegando
“não terem cabeça” para orar, ler a Bíblia ou frequentar os cultos naquele
momento. Outro modo como a disposição renovada se mostraria seria que o
particular passaria ao coletivo e toda a comunidade se dedicaria junto a
exaltar a Deus, ainda que estivessem passando por um momento delicado
(v.1b): “Que o seu louvor esteja no ajuntamento dos fiéis” (tehillatô biqhal
hasîdîm). Seja pela comunhão com Deus, seja pelo encorajamento e
edificação mútuos, essa disposição renovada é uma arma que não se pode
desprezar no meio das crises.
A segunda arma é o louvor grato (vv.2-4). Essa seção parece destoar das
circunstâncias bélicas que o povo tinha diante de si, pois a tristeza e a
preocupação cedem lugar a uma alegria transbordante diante de Deus (v.2):
“Que Israel se alegre em seu criador. Que os filhos de Sião se regozijem no
seu rei” (yismah yisra’el be‘osayw benê-tsîyôn yagîlû bemalkam).
Independente das circunstâncias, isso sugere que Deus deve bastar aos seus
servos, completando-lhes a alegria independente dos acontecimentos.
Entretanto, essa alegria deve gerar — ou ser fruto — da adoração a Deus. Por
isso, o escritor coloca tal alegria como moldura da atividade cultual de exaltar
o Senhor (v.3): “Eles devem exaltar o seu nome com dança e cantar a ele com
tamborim e harpa” (yehallû shemô bemahôl betof wekinnôr yezammerû-lô). A
presença de danças, tamborins e harpas quase obrigatoriamente nos lembram
da entrada exultante da arca da aliança em Jerusalém, quando o próprio rei
Davi, misturado à multidão, se alegrava e dava graças a Deus pela grande
bênção (2Sm 6.12-19).
A alegria era a mesma, conquanto a situação fosse exatamente contrária.
Porém, não se tratava de nenhum tipo de exercício mental como “sorrir
enquanto dói”. O próprio escritor oferece a razão de o povo se alegrar,
adicionando o fator “gratidão” por algo que ele sabia ser verdadeiro a respeito
de Deus (v.4): “Pois o Senhor se compraz com seu povo e enaltece os aflitos
com o livramento” (kî-rôtseh yhwh be‘ammô yefa’er ‘anawîm bîshû‘â).
Assim, a alegria se devia à gratidão expressa no louvor por Deus estar sempre
ao lado do seu povo a fim de livrá-lo e protegê-lo.
A terceira arma é a confiança inabalável (v.5). Dado o fato de que o povo
é chamado a louvar alegremente a Deus pelo modo como ele cuida dos seus,
a aplicação dessa realidade às circunstâncias que estavam enfrentando
acabava por reverter-se em uma firme confiança de que Deus agiria como o
fez no passado e como havia previamente anunciado que faria. Por isso, a
confiança devia ser expressa em um louvor “abundante” (v.5a): “Que os fiéis
exultem em abundância” (ya‘lezû hasîdîm bekavôd).
Não se tratava de uma atitude social e coletiva apenas. Essa confiança era
sentida por cada israelita a ponto de exultarem mesmo quando estavam
sozinhos, até mesmo na escuridão da noite, no interior das suas casas (v.5b):
“Que deem gritos de alegria em seus leitos” (yerannenû ‘al-mishkevôtam).
Qualquer lugar era propício para a demonstração alegre pelo cuidado de
Deus, mas certamente a cama é um local singular nesse sentido. A razão
disso é que, diante de um problema, as pessoas tendem a perder o sono e a se
entristecer durante a noite. Somente a confiança inabalável no Senhor pode
transformar as horas de silêncio e aflição em alegria e tranquilidade, assim
como ocorria com Davi enquanto fugia da morte: “Em paz me deito e logo
pego no sono, porque, Senhor, só tu me fazes repousar seguro” (Sl 4.8).
Finalmente, a última arma dos servos de Deus é a prontidão segura (vv.6-
9). Não bastava confiar em Deus e oferecer louvores alegres. Era necessário
estar de prontidão para cumprir seu papel dentro do plano e da causa do
Senhor. Por isso, o salmista ordena que haja louvor exultante e confiante,
mas, também, preparo militar, expresso pela figura da espada em punhos
(v.6): “Que a exaltação de Deus esteja em suas gargantas e uma espada de
dois gumes em suas mãos” (rômemôt ’el bigrônam weherev pîfîyôt beyadam).
Essa é a mesma providência tomada pelo povo de Jerusalém, nos dias de
Neemias, enquanto reconstruíam a muralha da cidade, pois, apesar de
confiarem no auxílio divino, cada um deles trazia a espada consigo (Ne 4.18).
Isso porque Deus usa seu povo para fazer sua obra que, nesse caso, seria
abater os inimigos de Israel, trazendo sobre eles a punição divina (v.7): “Para
trazer vingança entre as nações e castigo sobre os povos” (la‘asôt neqamâ
baggôyim tôkehot bal-’ummîm).
Eles deviam estar seguros de que Deus faria coisas grandiosas por meio das
suas mãos, inclusive abater reis e nobres das nações inimigas e não apenas se
defenderem precariamente de um inimigo mais poderoso (v.8): “Para prender
seus reis com grilhões e seus nobres com correntes de ferro” (le’esor
malkêhem beziqqîm wenikbedêhem bekavlê barzel). A confiança que tinham
em Deus devia lhes dar a prontidão segura para cumprirem sua vontade e, em
resposta a isso, serem por ele honrados vitoriosamente (v.9): “Para executar a
sentença escrita contra eles. Isso será uma honra para todos os seus fiéis.
Exaltai ao Senhor!” (la‘asôt bahem mishpat katûv hadar hû’ lekol-hasîdayw
hallû-yah).
Não há muitos lugares onde os crentes têm de se defender de inimigos que
querem matá-los. Mas certamente há muitas outras circunstâncias negativas
que preocupam e tiram a alegria dos servos do Senhor. Infelizmente, muitos
têm capitulado, buscado meios desonrosos de solucionar os problemas ou até
mesmo meios de tentar controlar o destino e o próprio Senhor para que se
revertam as dificuldades. Nenhum desses caminhos é o correto. Em vez
disso, o caminho dado pelo nosso salvador passa por uma renovada
disposição de servi-lo e louvá-lo, confiança na sua bondade e poder, gratidão
por tudo que ele já fez e prometeu fazer e também o devido preparo para
fazer o que for necessário para honrar o nosso Senhor. O bom é que não há,
para isso, necessidade de porte de armas. Basta portá-las!

SALMO 150
A Necessidade de se Louvar a Deus

No Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em


Lausanne, em 1974, a preocupação com a pregação do evangelho aos povos
era uma tônica nítida. Entretanto, o Sr. Michael Creen alertou seus pares
sobre algo importante: “O evangelismo é a primeira prioridade da igreja. Mas
não se pode isolar a pregação das boas novas sem destruir em si as próprias
boas novas. O final de Atos 5 — em que se diz que os apóstolos pregavam o
evangelho diariamente — nos leva a reviver aquela situação de Jerusalém.
Mas, então, vem Atos 6 — instituição dos diáconos para socorrer os
necessitados — com o tema da justiça social e do companheirismo”. O que
ele queria dizer é que não se podiam abandonar outras áreas da vida cristã em
função de uma delas somente, o evangelismo. Por isso, completou: “Eles
poderiam facilmente ter dito: ‘Não reclamem por causa das viúvas. Vamos
seguir em frente com a pregação. É isso o que importa!’. Se eles tivessem
agido assim, teriam entristecido o Espírito e arruinado a comunhão”. Isso,
infelizmente, acontece muito. Por gosto das pessoas ou por um impulso
utilitarista e até financeiro, as igrejas tendem a valorizar certas práticas e
atividades em detrimento de outras que fazem parte da própria identidade da
igreja e do cristianismo. Uma delas tem sido a devoção e adoração a Deus —
já que abundância de música não necessariamente quer dizer abundância de
louvor.
Para que não se confunda como deve ser a adoração a Deus, o Salmo 150
pinta um quadro bastante definido dessa que é uma das ações que nos dizem
quem são os servos de Cristo e a igreja de Deus. Não havia um modo melhor
de concluir o saltério que um chamado efusivo e universal como esse salmo.
Se o primeiro salmo nos transmite a responsabilidade de nos afastarmos do
mal e nos aproximarmos de Deus e de sua Palavra, para uma vida realmente
feliz, o último salmo transpira a vitória final de uma vida cheia de altos e
baixos, bons e maus momentos, dificuldades e livramentos — o que também
se vê no decorrer dos salmos —, culminando, ao fim da vida, no louvor
exultante na presença de Deus. Esse é um modo válido de ver essa jornada.
Entretanto, o Salmo 150, além de fechamento do livro, é uma unidade em si
que fez e faz parte do culto a Deus e deve ser avaliado e utilizado nesse
sentido. Como o tema é o louvor a Deus, o escritor nos aponta a necessidade
que temos de adorar o nosso Senhor. E, para que isso não seja uma tarefa
mecânica, ele oferece pelo menos três informações importantes sobre o
louvor que nos cabe oferecer e do qual nosso Deus é plenamente digno de
receber.
A primeira informação importante sobre a adoração a Deus é a causa do
louvor (vv.1,2). O texto inicia, como é de costume em salmos desse tipo, com
um chamado público à adoração (v.1): “Exaltai ao Senhor! Exaltai a Deus no
seu santuário! Exaltai-o no firmamento do seu poder!” (hallû yah hallû-’el
beqodshô hallûhû birqîa‘ ‘uzzô). Essa estranha expressão “firmamento do seu
poder” teria um sentido duplo, significando que o céu foi feito pelo poder de
Deus (Is 45.12) ou que ele pode ser visto por meio da observação dos céus (Sl
19.1) — ou os dois sentidos juntos. É claro que isso, a princípio, nos dá a
entender que o “santuário” aqui descrito seja o próprio firmamento. Ainda
que isso possa ser verdade, é pelo menos uma indicação de que esse cântico
era entoado no culto público no santuário de Deus, entre os israelitas, onde
eles lhe ofereciam louvor.
Assim, para justificar um chamado tão importante, o salmista diz aos seus
pares as razões para que todos se empenhem com ânimo e vigor redobrado na
adoração. Em primeiro lugar, ele diz (v.2a): “Exaltai-o pelos seus feitos
poderosos!” (hallûhû bigvûrotayw). Como “feitos poderosos”, os israelitas
recordavam da criação magnífica do universo e da libertação poderosa de
Israel do Egito. Além disso, a história de libertações, bênçãos e grandes feitos
divinos desse povo dava subsídios suficientes para, recordando tudo que o
Senhor já tinha feito até ali, todos se dobrarem em reverente adoração e se
levantarem para exultar de alegria e louvor diante do seu redentor e benfeitor.
Em segundo lugar, o salmista diz (v.2b): “Exaltai-o conforme sua imensa
grandeza!” (hallûhû kerov gudlô). A semelhança entre as duas cláusulas desse
versículo não deve mascarar a sutil diferença entre elas. Na primeira, os
“feitos” são grandiosos ou “poderosos”. Na segunda, Deus é quem é
“grandioso”. Deus não é grande só pelo que ele faz, mas por quem ele é. Seus
atributos em si, ainda que ele nada fizesse para demonstrar sua grandeza,
seriam suficientes para que ele recebesse toda adoração. Ele é um Deus
grandioso que faz coisas grandiosas e incomparáveis.
A segunda informação importante é o modo do louvor (vv.3-5). Essa seção
traz uma lista de muitos instrumentos e práticas musicais normalmente
fazendo o estudante da Bíblia imaginar que se trata de um trecho sem
utilidade para a teologia e para a vida prática dos servos de Deus. Mas isso
não é verdade. Ele mostra que no louvor a Deus há lugar para todos os tipos
de pessoa, habilidade e talento e, também, que não há nada que se possa
emprenhar na adoração do Senhor que ultrapasse aquilo que Deus merece e
que lhe é próprio ao receber o louvor dos servos. Por isso, o salmista convoca
(v.3): “Exaltai-o com toque de trombeta! Exaltai-o com lira e harpa!”
(hallûhû beteqa‘ shôfar hallûhû benevel wekinnôr). Essa é uma combinação
interessante porque a delicadeza da harpa normalmente não dividiria espaço
com os fortes e envolventes toques das trombetas. Mas, aqui, elas criam uma
bela e apropriada harmonia de louvor a Deus.
O chamado prossegue e um toque de extrema alegria é dado ao citar
instrumentos (v.4): “Exaltai-o com tamborim e dança! Exaltai-o com
instrumentos de corda e flauta!” (hallûhû betof ûmahôl hallûhû beminnîm
we‘ûgav). Assim como no salmo precedente, expressões corporais fazem
parte do louvor a Deus, o que torna a necessária restrição de excessos nessa
área hoje em dia, algo ligado a princípios mais amplos como ordem,
decência, conveniência, edificação e testemunho, já que não se pode atribuir
erro per si ao que a Bíblia se referiu como danças. O que se faz necessário,
logicamente, é o estudo aprofundado do que exatamente vinham a ser as
danças e como elas se enquadravam na cultura israelita antiga, não se
podendo simplesmente transpor o termo para a prática nos moldes presentes.
O que é certo é que elas tinham relação com o ritmo, já que nesse salmo e o
anterior há a associação aos tamborins. Nesse caso, há também a presença de
instrumentos de melodia como instrumentos de cordas e de sopro.
Finalmente, para dar uma pitada de exultação, pratos são utilizados para
expressar estrema alegria durante o louvor (v.5): “Exaltai-o com címbalos
sonoros! Exaltai-o com címbalos ressonantes!” (hallûhû betsiltselê-shama‘
hallûhû betsiltselê terû‘â). Portanto, o modo de se louvar a Deus envolve todo
tipo de recursos, dedicação, habilidade, espontaneidade e uma alegria muito
grande e verdadeira.
Finalmente, a terceira informação importante é sobre quem deve oferecer
o louvor (v.6). O salmo termina chamando os adoradores não pelo nome mas
por sua função vital da respiração (v.6): “Que todo fôlego exalte ao Senhor!
Exaltai ao Senhor!” (kol hanneshamâ tehallel yah hallû-yah). Convocar o
fôlego ou a respiração ao louvor, não é um chamado impessoal à respiração
de alguém, ou a exigência de ser louvado com instrumentos de sopro — visto
que diversos instrumentos de outros tipos foram alistados como aptos à
adoração musical. Trata-se, sim, de uma convocação dos seres que respiram,
ou seja, todos os seres vivos os quais têm fôlego. Apesar de muitos seres
respirarem, o salmista faz do chamado amplo um convite cuja aplicação
aponta para a humanidade. É um modo poético de convocar todos os homens
à adoração, mesmo sabendo que somente os servos verdadeiros de Deus
podem atender ao chamado. Entretanto, parece que ele é feito não
simplesmente pensando no conjunto dos adoradores, mas na dignidade do ser
adorado, merecedor do louvor dos servos, da humanidade inteira e até, se
possível fosse, de toda a fauna. O fato é que todos são chamados, mas dos
servos se requer como obrigatória a adoração ao criador de tudo que existe e
ao redentor dos que creem em Cristo.
O caráter universal do chamado é bastante claro. Contudo, deve-se notar
também o fato de ele ser atemporal, ou seja, válido a todas as épocas, o que
nos inclui. Que este salmo e os demais 149 nos levem a adorar nosso Deus e
proclamar sua glória e grandeza com todos os nosso recursos, habilidades e
oportunidades, fazendo-nos exultar de todo coração diante daquele que nos
criou, amou, salvou e há de nos receber na sua glória, onde salmodiaremos
para todo sempre ao lado de todos os santos!
REFERÊNCIAS

Bíblia Sagrada: Almeida Revista e Atualizada, com números de Strong


(electronic ed.). São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2005.
Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2003.
BRATCHER, R. G.; Reyburn, W. D. A Translator's Handbook on the Book of
Psalms: Helps for Translators. New York: United Bible Societies, 1991.
BROWN, F.; Driver, S. R.; Briggs, C. A. Enhanced Brown-Driver-Briggs
Hebrew and English Lexicon (electronic ed.). Oak Harbor, WA: Logos
Research Systems, 2000.
ELWELL, Walter A. e Philip W. Comfort (Eds.). Tyndale Bible Dictionary.
Wheaton: Tyndale House Publishers, 2001.
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica: Introdução ao
Texto Massorético. São Paulo: Vida Nova, 2003.
GAEBELEIN, Frank E. (Ed.). The Expositor's Bible Commentary. Grand
Rapids: Zondervan, 1979.
GESENIUS, W. e Samuel P. Tregelles. Gesenius' Hebrew and Chaldee
Lexicon to the Old Testament Scriptures. Bellingham: Logos Research
Systems, 2003.
______. Gesenius' Hebrew Grammar (2ª edição em inglês). Oxford: Oxford
University Press, 1910.
HARRIS, R. L.; Archer Jr., G. L.; Waltke, B. K. Dicionário Internacional de
Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2005.
HOLLADAY, W. L. A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old
Testament (electronic ed.). Boston: Brill, 2000.
JONES, G. C. 1000 illustrations for preaching and teaching. Nashville, TN:
Broadman Press, 1986.
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. 8ª edição, traduzido por Vicente
Pedroso. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
KEIL, C. F.; Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament (electronic
ed.). Peabody, MA: Hendrickson, 2002.
KIDNER, Derek. Salmos 1-72: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida
Nova, 2006.
______. Salmos 73-150: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova,
2006.
KIRKPATRICK, A. F. The Book of Psalms with Introduction and Notes: Book I.
Cambridge: University Press, 1897.
______. The Book of Psalms with Introduction and Notes: Books II and III.
Cambridge: University Press, 1895.
______. The Book of Psalms with Introduction and Notes: Books IV and V.
Cambridge: University Press, 1901.
KNOWLES, Andrew. The Bible Guide. Minneapolis: Augsburg, 2001.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo
Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006.
______. Fundamentos para Exegese do Antigo Testamento: Manual de
Sintaxe Hebraica. São Paulo: Vida Nova, 1998.
SCHENKER, A (Ed.). Biblia Hebraica Stuttgartensia: SESB Version
(electronic ed.). Stuttgart: German Bible Society, 2003.
______. Biblia Hebraica Stuttgartensia: Apparatus Criticus (electronic
ed.). Stuttgart: German Bible Society, 2003.
SCHÖKEL, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo:
Paulus, 1997.
SPENCE-JONES, H. D. M., Ed. The Pulpit Commentary: Psalms (3 Vol).
Bellingham, WA: Logos Research Systems, 2004.
STRONG, J. Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong (electronic ed.).
São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2005
SWANSON, J. Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains:
Hebrew (Old Testament) (electronic ed.). Oak Harbor: Logos Research
Systems, 1997.
TAN, Paul Lee. Encylopedia of 7,700 Illustrations: Signs of the Times
(electronic ed.). Bible Communications, 1996.

Você também pode gostar