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Bom Pastor
DEDICATÓRIA
ÍNDICE
Prefácio 07
Introdução 09
Comentários 13
Referências 413
PREFÁCIO
O Livro dos Salmos é talvez o mais querido de toda a Bíblia. Com efeito, ao
longo dos séculos o povo de Deus tem se deleitado em seus versos de fé e
esperança, tem se emocionado com os lamentos angustiados dos seus
escritores e tem sido desafiado e instruído por suas tocantes declarações
acerca do que é bom, justo e proveitoso aos olhos do Senhor. A verdade é que
dificilmente haverá um cristão em toda a história que não tenha encontrado
no Livro dos Salmos ensino, consolo e encorajamento, o que confere a essa
maravilhosa compilação poética um lugar especial no coração e na história do
povo de Deus.
Esse impacto que o saltério produz na vida dos santos tem uma causa
evidente: trata-se da natureza teológico-devocional de seu conteúdo. De fato,
com o Livro dos Salmos nas mãos, os crentes são instruídos e edificados. Em
suas páginas, os santos recebem suprimento para a mente que precisa de
respostas e para o coração que precisa de descanso. Disso decorre não só o
impacto desse conjunto de poesias sagradas, mas também a sua importância
fundamental para os homens piedosos que vivem em busca de ensino
teológico profundo e enlevo espiritual produtivo e verdadeiro.
Foi por perceber esse grande valor do Livro dos Salmos tanto para a
teologia como para a devoção cristã que o Pastor Thomas Tronco dos Santos
escreveu “O caminho do Bom Pastor”. Nessa obra, ele realça os diversos
elementos doutrinários que emanam dos salmos, mostrando amiúde a forma
como esses elementos, além de outros fatores percebidos em cada poesia em
particular, podem impactar a experiência e moldar as reações do homem de
Deus neste mundo.
Essa dinâmica presente no livro, geralmente se concretiza em etapas que
compõem as exposições sucintas de todos os salmos. É assim que o estudo de
cada poesia em particular se inicia com uma interessante ilustração, através
da qual o Pastor Thomas capta de pronto a atenção do leitor, despertando seu
interesse para a análise sistemática que vem logo a seguir. Feito isso, o autor
conduz o leitor às conclusões práticas e vivenciais que brotam da poesia
sagrada, passando por lições teológicas e destacando eventuais detalhes
semânticos e gramaticais, sem, contudo, entrar nas cansativas e intrincadas
discussões de ordem exegética que entediam o leitor comum e que são tão
comuns em comentários bíblicos de teor mais acadêmico.
O resultado disso tudo é que, lendo “O caminho do Bom Pastor”, o crente
entende com maior facilidade que sua peregrinação neste mundo não abrange
somente a caminhada em veredas planas e ensolaradas. Antes, aprende com
os salmistas de Israel que o caminho de quem segue o Bom Pastor é repleto
de perigos terríveis, de desertos secos, de montanhas íngremes e de vales
sombrios.
Ele vê, assim, que o tempo dessa jornada abrange noites escuras, dias de
solidão e momentos de medo e ameaça. Por outro lado, descobre alegre que,
seja qual for a etapa da viagem, com chuva ou com Sol, o Bom Pastor estará
sempre com ele, acompanhando-o e protegendo-o durante a travessia das
planícies áridas, a escalada das colinas solitárias e o cruzar dos rios
caudalosos. Ademais, aprende também que o Bom Pastor o conduzirá,
mesmo aqui, a muitas paisagens alegres e exuberantes, enquanto o guia no
rumo de seu aprisco glorioso.
Todas essas realidades serão claramente expostas diante dos olhos de quem
ler “O caminho do Bom Pastor”. Vê-se assim que, numa época em que a
literatura devocional evangélica se limita a meros apelos sentimentais
desprovidos de sólida base doutrinária, este livro vem suprir a necessidade
urgente de material de alto nível para as áreas do pensar e do viver, tão
importantes para as ovelhas do Senhor.
Que Deus abençoe a sua leitura!
SALMO 1
A Felicidade e o Fracasso
Quando ainda adolescente, tive uma colega que era uma grande fã do ator
James Dean (1931-1955), apesar de, como eu, ter nascido muito tempo
depois da morte do famoso astro “rebelde”. Por causa dela, passei a conhecer
um pouco da história do ator que, ainda hoje, dá nome e tom a estilos de
roupas e de penteados. James Dean, dentre os filmes que estrelou, foi o ator
principal do filme Juventude transviada (Rebel whitout a cause, 1955),
tornando-se modelo de uma geração de jovens que almejavam a mesma
“liberdade” que ele encenava.
Apesar do estilo marcante imitado por um sem-número de jovens, o que
mais me impressiona a respeito dele é algo que ele dizia fora das telas. Em
sua rebeldia, que extrapolava os filmes, ele disse: “Morra jovem e tenha um
cadáver bonito”. Esse pensamento justificava seu modo irresponsável de
vida. Infelizmente, o fim da sua vida fez jus à sua filosofia: James Dean
morreu com 24 anos em um acidente de carro. Na necrópsia, além da coluna
vertebral partida e da hemorragia interna que lhe levou a vida, o médico
constatou inúmeras cicatrizes no peito feitas ao apagarem nele cigarros a seu
pedido em um bar de Hollywood que costumava frequentar.
Apesar de parecer a muitos que essa foi uma morte “poética” que coroou a
carreira e a fama do ator, acredito que, dificilmente, James Dean pensaria o
mesmo agora. Tenho por certo que seus pensamentos seriam sobre o quanto
ele perdeu da vida ao morrer jovem, sobre a família que teria se estivesse
vivo, sobre outros filmes que viria a tomar parte e coisas desse tipo. Mas,
principalmente, o quanto era tola a “sabedoria” que ele julgava ter e que
transmitiu com orgulho para outros.
O Salmo 1 demonstra que a felicidade perene tem uma fonte certa e que,
fora dela, ainda que haja sucesso momentâneo, o resultado final é tristeza e
dor. Na verdade, o autor do salmo traça uma nítida distinção entre o homem
feliz, ou “bem-aventurado”, e o homem ímpio que vive distante de Deus.
O v.1 estipula três requisitos, na forma negativa, para a felicidade de uma
pessoa. Trata-se de três “nãos”. Tal homem “não anda segundo a proposta
dos ímpios” (lo’ halak ba‘atsat resha‘îm). Os ímpios aconselham-no a agir de
certo modo, provavelmente igual a eles, com injustiça e engano, mas tal
homem não atende seus clamores nem acolhe suas falsas sabedorias. Ele
também “não permanece no caminho dos pecadores” (bederek hatta’îm lo’
‘amad). A companhia de homens que desprezam o Senhor com seus atos não
agrada o homem “bem-aventurado” de modo que não há comunhão entre
eles. Seu contato com pessoas que vivem em pecado é cuidadoso e limitado.
E, finalmente, ele também “não toma lugar na reunião dos cínicos”
(bemoshav letsîm lo’ yashav). A falsidade e a zombaria da verdade e da
justiça não são o ambiente visitado pelo homem que é bem-aventurado. Ele,
cautelosamente, se mantém longe de tais ajuntamentos. Deve-se notar o
poder persuasivo e perigoso do mundo que, quando próximo demais de servo
descuidado, faz com que ele deixe apenas de “andar” ao lado, mas
“permanecer” e, por fim, “tomar lugar” junto com ele. Por isso, os “nãos”.
Esses três cuidados garantem uma parte da felicidade aos homens que
fogem do estilo de vida mundano. A outra parte da felicidade é alcançada
quando tal homem busca conhecer a vontade de Deus para cumpri-la. O v.2
diz que, em detrimento do afastamento dos caminhos que levam a uma
alegria fácil e rápida, o homem que se torna feliz de verdade se aproxima da
“lei do Senhor”. Essa expressão é uma referência ao ensino das Escrituras.
Tal pessoa busca conhecer a vontade de Deus de modo tão sério que “medita
durante o dia e a noite” (yehgeh yômam walaylâ) sobre aquilo que lê na
Bíblia. A ideia expressa pelo salmista é a de alguém que fica recitando para
si, sem se cansar, as verdades que aprendeu a fim de memorizá-las e
compreendê-las. Isso e a consequente obediência às orientações do Senhor
completam a felicidade que o mundo não pode conhecer por seus próprios
meios nem oferecer a qualquer um que seja.
O resultado de se afastar do mal, e de se aproximar das orientações de Deus
para atendê-las, produz no que assim age algo que pode ser expresso por
meio de um símile, uma comparação entre essa pessoa sábia e uma árvore.
Mas não é uma árvore qualquer. Trata-se de uma árvore em condições
privilegiadas. A árvore que serve de comparação com o homem que é feliz
por seguir a Deus (v.3) é plantada “perto de um ribeiro de águas”, recebendo,
em termos de alimento, todos os nutrientes e toda a água de que precisa para
se desenvolver. Assim como o homem cuja fonte de sabedoria é a Palavra de
Deus, tal árvore produz frutos e não é vítima da seca. Essa é uma descrição
figurada, mas muito clara, da segurança e da produtividade da vida daquele
que ama o Senhor e segue seu ensino.
Por sua vez, os ímpios não são assim (v.4). Usando ainda uma linguagem
figurada de natureza agrária, o salmista compara os injustos a “palha que o
vento leva”, conferindo uma dupla ideia de transitoriedade, a saber, de ser
seco e improdutivo como a palha e inaproveitável por ser levado para longe
pelo vento. Não é uma comparação que transmite uma ideia de segurança e
de um futuro feliz. Para que fique bem claro, o salmista abandona a
linguagem figurada e é claro no ponto que defende (v.5). Diz que “os ímpios
não ficarão em pé no juízo” (lô’-yaqumû resha‘îm bammishpat) porque não
têm nada que lhes abone as faltas diante de Deus e que os impeça de serem
condenados. O mesmo se dará com “os pecadores na reunião dos justos”
(wehatta’îm ba‘adat tsadîqîm). Eles não podem permanecer ali, pois não é
seu lugar. Durante toda a sua vida suas reuniões foram outras.
O salmo termina explicando, no v.6, que a razão da felicidade perene dos
que o temem e da desventura dos que agora se alegram na impiedade é que “o
Senhor é quem reconhece o caminho dos justos” (iôdea‘ yehwâ derek
tsadîqîm). Como esse fato é contraposto pela partícula “mas” (we) com o
sentido de que o “caminho dos ímpios fracassará” (we derek resha‘îm to’ved),
a primeira cláusula deve ter uma ideia mais ampla que um simples
conhecimento de Deus a respeito daqueles que o temem. A interpretação mais
apropriada é a de que Deus age bem para com os seus, dando-lhes uma
felicidade eterna, destino este bem diferente do futuro dos pecadores.
Os dois únicos futuros possíveis são “felicidade” para os que buscam a
Deus, por meio da fé no Senhor Jesus Cristo, o Salvador, e “fracasso” para os
que buscam alegria momentânea e a satisfação de todos os seus desejos.
Por tanto, fique alerta! Se você agora defender e seguir um estilo de vida
mundano e longe de Jesus, no qual a falsa felicidade é buscada
desenfreadamente a qualquer custo, seu futuro pode ser bem tenebroso.
Talvez, o melhor que você possa esperar seja um “cadáver bonito”. Fuja
disso crendo e entregando sua vida a Jesus!
SALMO 2
O ‘Irmão Mais Velho’ dos Servos de Deus
Nunca fui uma criança de brigar na escola. Na verdade, nunca troquei socos
com ninguém na minha vida. Minhas demandas sempre foram resolvidas por
meio da boca e não das mãos. Entretanto, vi muitos colegas resolverem suas
diferenças “no braço”, como se diz por aí. Quando a discussão não chegava a
tanto, as ameaças e palavrões eram ouvidos a boa distância. Para piorar,
quase nunca a solução vinha rapidamente. Ninguém queria deixar a última
palavra para o adversário. Isso fazia com que problemas bobos se arrastassem
por um bom tempo em uma discussão inútil e totalmente desrespeitosa.
Contudo, um fator era capaz de amainar os ânimos e até encerrar uma briga
acalorada: a ameaça de recorrer ao irmão mais velho. A discussão se
mantinha em igualdade até que a possibilidade de alguém mais forte e
motivado pela proteção do irmão mais novo tornava o atrito um grande risco
para a outra parte. Esta, temendo ter de enfrentar alguém cuja força e
tamanho fariam com que uma “surra” fosse inevitável, normalmente
mostrava-se desinteressada por continuar a demanda e tratava de por fim ao
embate a tempo de se livrar do pior. No final das contas, a ameaça da
intervenção de um irmão mais velho servia como um agente pacificador.
O escritor do Salmo 2 é um rei de Israel que Atos 4.25,26 identifica como o
rei Davi. A situação que ele vivia, nesse momento, era o risco de uma revolta
de nações (vv.1,2) que estavam sob seu domínio em uma espécie de motim
(v.3). A possibilidade de elas criarem uma liga militar trazia um grande risco
para o rei, chamado aqui de “seu ungido” (desde o início da monarquia em
Israel, esse termo, meshîhô, é usado para se referir a reis ou futuros reis – 1Sm
12.3-5; 16.6; Sl 20.6; 28.8). A revolta dos amonitas e de povos contratados
para combaterem os israelitas (2Sm 10.6) é um possível pano de fundo
histórico para a composição desse salmo.
Porém, enquanto tais povos se uniam e conspiravam contra Davi (vv.1-3),
aquilo que era um risco real para Israel era motivo de risos para Deus (v.4).
Como um “irmão mais velho” mais forte que os outros, Deus “ri” (yishaq) e
“caçoa” (yil‘ag) dos inimigos do seu protegido. Tal reação se deve ao
disparate entre a capacidade dos inimigos de Davi de feri-lo e a capacidade
do Senhor de protegê-lo. A diferença é tão grande que a ousadia dos
ofensores causa risos em lugar de pânico. O próprio Deus demonstra o
motivo de serem inúteis os planos dos povos dizendo: “Eu ungi meu rei sobre
Sião, meu monte santo” (wa’anî nasaktî malkî ‘al-tsîyôn har-qodshî). Desse
modo, levantar-se contra o rei de Israel era se levantar contra Deus que o
colocou lá. Não é possível enfrentar um oponente como Deus.
O Senhor, então, reafirma sua benevolência para com Davi chamando-o de
filho (v.7), prometendo-lhe o domínio sobre outras nações (v.8) e poder
suficiente para regê-las (v.9). O rei, confiado na força do “irmão mais velho”,
alerta os reis adversários a serem cautelosos (v.10) e se colocarem na posição
de servos do Senhor (v.11), desistindo de atacar seu filho (v.12). Esta é,
segundo Davi, a disposição e a atitude que garantirá a “felicidade” desses reis
e de seus súditos.
Apesar da útil e completa lição que temos ao olhar para o texto sob esse
prisma, o Novo Testamento dá uma visão mais ampla do sentido desse salmo.
Vários escritores neotestamentários associam o Salmo 2 a Jesus como um
cumprimento profético do que Davi escreveu. Em At 4.25,26, a igreja cita o
trecho do salmo que diz “por que se enfureceram os gentios e os povos
imaginaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra e as autoridades
ajuntaram-se à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido” e faz uma
aplicação do texto se referindo a Herodes, Pilatos, gentios e israelitas que se
uniram contra Jesus (At 4.27,28). Paulo e o autor de Hebreus relacionam o
texto “tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei” a Jesus (At 13.33; Hb 1.5; 5.5).
Além disso, menções no Salmo 2 sobre o seu reinado em Sião sobre as
nações que são sua herança, seu cetro de ferro, sua ira vindoura e a felicidade
para os que nele se refugiam são referências que se cumprem melhor em
Cristo que no próprio rei Davi, escritor do salmo.
Quando se vê o Salmo 2 desse ângulo, novas lições para hoje nos surgem.
Aprendemos que as maquinações do mundo contra o Messias são tão inúteis
que causam risos no Senhor. Independente dos rumos da História e do poder
dos homens, o Senhor Jesus é aquele que há de reinar e possuir toda a terra.
Apesar de parecer que os maus nunca são punidos, a mão do Rei pesará sobre
os perversos trazendo-lhes condenação. E, mais: não importa o quanto o
mundo é cruel conosco, Jesus, nosso “irmão mais velho”, é nosso refúgio e o
provedor de uma vida “bem-aventurada”.
Portanto, seja sempre pacífico e cordato. Mas, lembre-se bem, se o mundo e
as circunstâncias da vida lhe atacarem e quiserem “sair no braço” com você,
conte sempre com o “irmão mais velho”, o Senhor Jesus, para lhe proteger e
guiar, fazendo cessar as ameaças ou intervindo nelas para proteger seus
“irmãozinhos mais novos” por quem deu sua vida na cruz.
SALMO 3
Uma Multidão Contra Mim
SALMO 4
A Angústia do Servo de Deus e as Escrituras
SALMO 5
A Atitude Correta Diante da Oração
Uma boa maneira de conhecer um cristão é observar sua oração. Por ser
uma exteriorização do que há no íntimo, quando vemos alguém orar
conhecemos um pouco do que há onde somente Deus pode ver.
Assim, se uma pessoa nunca toma a iniciativa de orar diante de dificuldades
e até mesmo de tarefas corriqueiras ou se, a pedido de alguém, ora
mecanicamente, percebe-se não se tratar de alguém muito dado a buscar o
Senhor, seja em oração, seja pela leitura das Escrituras, seja pela meditação e
contrição pessoal. Se alguém ora reivindicando bênçãos ou rejeitando
dificuldades, tal pessoa tem dificuldades em se submeter à vontade e às
orientações de Deus e costuma criar seu próprio modo de segui-lo. Se alguém
tem por hábito orar antes de cada coisa que vai fazer, mesmo que sejam em
momentos corriqueiros, surge diante dos olhos uma pessoa que entende que
Deus é soberano e que sabe que os cristãos são inteiramente dependentes
dele.
Nesse aspecto, há um tipo de pessoa que me intriga. É aquele que ora a
Deus pedindo que cuide de certa situação, que faça sua boa vontade e que
seja presente em cada detalhe. Contudo, apesar da correta oração, passa
imediatamente a atuar como se não tivesse orado e como se Deus nada fosse
fazer no sentido de atender a oração. A pessoa pede ajuda de Deus e, em um
instante, nega a ajuda que pediu tomando a frente, ela mesma, da solução dos
problemas.
Sob esse aspecto, Davi dá um bom exemplo para os discípulos do Senhor.
Basta notar as condições do seu dia a dia expressas no Salmo 5. Ele enaltece,
diante de Deus, os justos (v.12) e os que confiam e amam o Senhor (v.11),
justamente porque eram as pessoas que ele tinha em menor número ao seu
lado. É provável que os vv.4-6 demonstrem as características das pessoas que
causavam problemas e riscos para o rei de Israel. São pessoas iníquas (v.4),
arrogantes (v.5), enganadoras e violentas (v.6). Gente assim causa sofrimento
a todos quantos estão ao seu redor.
Sabendo da presença e do risco que os inimigos representavam, Davi fez o
correto: buscou a Deus em oração. Entretanto, dizer isso é tratar o assunto
vagamente, visto que, em oração, podem-se fazer e falar muitas coisas,
inclusive contraditórias. Temos visto, por exemplo, pessoas que oram
repreendendo os males como se neles mesmos estivesse o poder para tanto;
pessoas que ordenam bênçãos espirituais como se Deus fosse seu servo
pessoal; pessoas que dizem para Deus que não aceitam algum mal que os
acometa; e pessoas que, por incrível que pareça, oram perdoando o Senhor
por ter-lhes infligido alguma provação.
Davi não orou assim, mesmo que estivesse preocupado com a violência e a
maldade dos seus inimigos. Na verdade, ele teve três atitudes necessárias à
oração baseada no ensino bíblico. Em primeiro lugar, ele clama a Deus por
ajuda (v.1). O rei de Israel não repreendeu o problema, nem colocou Deus na
parede, nem tampouco perdoou o Senhor por permitir a presença de inimigos.
Davi, simplesmente, foi a Deus e fez uma petição pela solução do sofrimento.
Com o coração compungido, ele diz “ouça as minhas palavras, ó Senhor,
considera o meu gemido” (’amaray ha’azînâ yehwâ bînâ hagîgî). É como se
dissesse: “Senhor, veja como estou sofrendo e me ajude”.
Em segundo lugar, Davi sabe seu lugar diante de Deus (v.2). Ele, o rei de
Israel, se dirige ao Senhor e o chama de “Rei”. Na verdade, Davi diz “meu
Rei e meu Deus” (malkî we’lohay). Ele não se sente apenas como o grande
rei cheio de súditos, mas sabe que também é um súdito – súdito de Deus. O
orgulho que costuma, infelizmente, acompanhar um cargo como o seu, não
nubla a visão de que há alguém que reina sobre ele. Isso faz com que ele não
busque seus direitos ou seus próprios recursos na solução do sofrimento. Ele,
antes, busca o Rei exatamente com a mesma humildade e dependência que os
seus súditos o buscavam.
Finalmente, em terceiro lugar, ele espera pela atuação de Deus (v.3).
Depois de orar a Deus, Davi conclui com uma observação no mínimo
intrigante. Quando a primeira reação que imaginamos que alguém em
problemas teria, a saber, iniciar rapidamente algumas ações no sentido de dar
fim ao mal, o rei de Israel leva em conta que expôs sua angústia ao Deus
Todo-poderoso e confia na sua sábia resposta. Depois de abrir seu coração a
Deus, Davi diz: “E eu aguardo” (wa’atsapeh). Uma outra tradução possível
seria “e fico observando”. Na verdade, essa palavra demonstra que Davi
confiava tanto no poder, na sabedoria e no amor de Deus que, depois de orar,
ele, realmente esperava pela resposta, qualquer que fosse. Isso não significa
deixar de fazer o que é de sua responsabilidade, mas deixar de fazer o que
não é, além de se abster de atitudes erradas por uma “boa causa”. Apesar de
ser rei, Davi esperava como um servo que seu Senhor – e nosso – agisse.
Que exemplo a ser seguido por todos nós! Afinal, homens iníquos,
arrogantes, enganadores e violentos cercam quase todos os cristãos. Que esse
seja o incentivo e o exemplo para deixarmos de tomar caminhos tortuosos a
fim de fazer o que é da alçada do Deus eterno e nos dediquemos, cada vez
mais, à oração! Mas não uma oração qualquer. A oração e as atitudes dignas
daquilo que Deus nos ensinou nas Escrituras.
SALMO 6
O Papel do Arrependimento dos Pecados
SALMO 8
Uma Profunda Destruição
Quem nunca recebeu, por e-mail, aquelas mensagens que correm a Internet
nos fazendo rir com “pérolas” da educação moderna? Recebi, certa vez, uma
dessas mensagens que sempre me fazem rir quando as releio. Segundo quem
enviou, trata-se de frases retiradas de uma redação, requisitada na prova do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2008, sobre o “aquecimento
global”. Entre as pérolas há frases como estas: “Vamos nos unir juntos de
mãos dadas para salvar o planeta”; “Animais ficam sem comida e sem
dormida por causa das queimadas”; “A Amazônia tem valor ambiental
ilastimável”; “Os dismatamentos é a fonte de inlegalidade e distruição da
froresta amazônia” (sic). Parece até piada...
Absurdos – e risadas – à parte, uma das frases me deixou pensativo: “A
Amazônia está sofrendo um grande, enorme e profundíssimo desmatamento
devastador, intenso e imperdoável”. Esse é um exemplo de redundância em
grau máximo. Entretanto, ele reflete um pouco da realidade das nossas matas
e da nossa fauna. Quando observamos o tamanho da destruição da natureza,
essa frase, uma aberração para a língua portuguesa, não nos parece tão
distante da verdade em termos da geografia e biologia. A destruição tem sido,
sim, profunda, devastadora e intensa.
Isso é muito triste, principalmente quando nos recordamos da fonte da
natureza. Ela não é produto do acaso; não é consequência de uma explosão;
não é efeito colateral de um caos no Universo. Ela é obra das mãos criativas
do Senhor. Um salmista escreveu: “Sede benditos do Senhor, que fez os céus
e a terra” (Sl 115.15). Não obstante, o Criador de tudo colocou o homem à
frente de tudo o que há na terra: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra,
deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 115.16). O verbo “dar”, do hebraico
natan, significa também “entregar” ou “consignar”. Assim, ainda que toda a
terra pertença ao Senhor, ele cedeu aos homens o direito de usufruir dela e o
dever de cuidar da propriedade divina.
Olhando para a relação entre Deus e homens e entre os homens e a
natureza, o Salmo 8 tem coisas interessantes a nos dizer. Em primeiro lugar, o
homem, diante de Deus, nada é. Davi, vendo a criação divina, olha para o
homem e diz: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e
as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho
do homem, que o visites?” (vv.3,4). Parece que Davi considerava a grandeza
da criação de Deus como algo tão maravilhoso a ponto de nublar a própria
existência do homem. Entretanto, de maneira surpreendente, Davi afirma,
sobre a condição do homem: “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do
que Deus e de glória e de honra o coroaste” (v.5). A conjunção adversativa
wa, traduzida aqui por “no entanto”, demonstra a distância entre a dignidade
do homem como criatura e a dignidade conferida por Deus a ele. É a enorme
distância entre o que deveríamos ser e o que somos.
Em lugar de sermos meras criaturas como o restante, fomos revestidos de
dignidade e responsabilidade tal que nos separou do restante da criação.
Quanto a ela, foi-nos dada a fim de termos “domínio”: “Deste-lhe domínio
sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois,
todos, e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar e
tudo o que percorre as sendas dos mares” (vv.6-8). A palavra mashal não
significa apenas “dominar”, mas “reger” e “reinar”. É possível que a tradução
“domínio” nos faça imaginar o uso cruel e egoísta da natureza. Mas esse não
é o caso. O homem não recebeu de Deus o direito de usar a natureza como
bem entender, mas, sim, o dever de, como um rei, reger o que lhe foi posto
como direito de usufruir e dever de zelar. E a história está cheia de bons reis
que chegaram a abrir mão dos seus direitos e até do seu bem-estar pelo bem
do seu reino. Esses foram consagrados como bons reis. Como dominantes da
criação de Deus, temos o dever de cuidar do que pertence ao Senhor e que
nos foi confiado.
Portanto, o desvio do comportamento humano no sentido de destruir a
natureza, em lugar de conservá-la, se deve ao fato de ser pecador. Somente
quando o homem é transformado da sua condição de pecador para a condição
de filho da Luz é que, também, pode haver mudança nos seus atos em relação
ao restante da criação de Deus. Assim, em última instância, não é do Green
Peace ou do Sea Shepherd que precisamos a fim de proteger o planeta, mas
de missionários e evangelistas comprometidos em causar transformação, por
meio da pregação do Evangelho, nos corações dos pecadores. Desse modo,
por meio da atuação do Espírito Santo, pode haver, de modo completo e
abrangente, a formação de novos seres, cujas vidas darão frutos dignos das
mais belas árvores criadas por Deus.
SALMO 9
A Quem Recorrer no Dia Mau?
Nessa semana, furei meu pé em uma haste de ferro que sustenta uma tenda
de nylon instalada no gramado de casa. Depois de ensanguentar minha
cozinha, sala, quarto e banheiro, procurei o hospital que atende meu convênio
a fim de tomar uma vacina contra tétano. Ouvi, lá, da atendente, que eu
deveria procurar tal medicamento na rede pública de saúde. Dirigi-me para a
um hospital público e aguardei um bom tempo até ser chamado junto com
outras quatro pessoas. Para minha surpresa, os cinco pacientes foram
atendidos em apenas 3 minutos. Minha consulta não demorou mais do que o
tempo de eu contar para o médico que havia perfurado meu pé em um ferro,
ele me perguntar se era o pé direito ou esquerdo – não sei para quê – e, sem
nem sequer olhar o ferimento, me receitar duas injeções, a vacina e um
antibiótico de largo espectro. Para ser bem sincero, me senti completamente
desamparado e sem ter a quem recorrer que pudesse me dar conforto e
segurança.
Nesse sentido, toda vez que leio a história da mulher usada por Joabe a fim
de fazer Davi receber Absalão de volta em Jerusalém (2Sm 14.1-24), fico
abismado com um aspecto em particular: uma mulher desconhecida
conseguiu facilmente uma audiência com o rei. Que diferença da realidade
atual! Multidões, por vezes, aguardam horas e horas, debaixo de Sol e chuva,
para ver de longe uma autoridade famosa como presidentes, reis e primeiros-
ministros. Falar pessoalmente com eles? Impossível! Encontrar neles
compaixão? Só se outros milhares estiverem sob as mesmas circunstâncias e
se a solução do problema tiver repercussão na mídia. Ver tais líderes
tomarem decisões justas? A justiça, muitas vezes, é interpretada conforme os
interesses dos poderosos.
Concordo que não é uma visão animadora, nem o que nos espera, muito
promissor. Entretanto, não perco as esperanças quanto ao futuro, pois me
lembro que, após os desmandos dos governantes humanos, haverá quem
governe de modo especial. O Salmo 9, cântico no qual o rei Davi louva a
Deus por livrá-lo dos inimigos maus e roga que o livra da fúria deles, traz
alguns aspectos da função do Senhor como governante.
Em primeiro lugar, ele julga com retidão inabalável. Davi diz que Deus
“permanece no seu trono eternamente, trono que erigiu para julgar. Ele
mesmo julga o mundo com justiça;” (vv.7,8a). A segunda parte do v.7 diz que
Deus “se assentou no trono para o julgamento” (tradução literal). Entretanto,
o início do versículo demonstra que essa não é uma realidade momentânea ou
dependente das circunstâncias ou dos humores. Trata-se de uma disposição
permanente de Deus, pois, para julgar, ele se assenta “eternamente”, le`olam.
Nada pode demovê-lo desse intento ou retirá-lo desse trono. Ele é um justo
juiz todo o tempo e para sempre.
Em segundo lugar, ele governa soberanamente as nações. O salmista
afirma que o Senhor “administra os povos com retidão” (v.8b). O verbo dyn
significa, em sentido restrito, “julgar”, o que condiz com a figura do juiz
apresentado no início da frase. Mas, em sentido amplo, significa “reinar,
governar”. Dado o caráter judicial dos reis da época, os atos de julgar e de
reinar vinham da mesma fonte. Por isso, o texto revela que Deus, não apenas
pune os maus, mas “dirige” as pessoas. Seu poder faz valer suas decisões.
Com Deus não existe aquela máxima tão triste de quem depende da justiça
humana: “Ganhou, mas não levou”. A soberania do Senhor se faz sentir
quando ele traz uma questão a julgamento.
Em terceiro, ele alivia os oprimidos. O texto diz que Deus é “alto refúgio
para o oprimido, refúgio nas horas de tribulação” (v.9). A ausência de justiça
por parte dos homens sempre trouxe sofrimento aos fracos. O próprio Deus
acusou os israelitas, certa vez, de não promoverem a justiça que ele ordenou:
“Este [o Senhor] desejou que exercessem juízo, e eis aí quebrantamento da
lei; justiça, e eis aí clamor” (Is 5.7). A injustiça de uns é o clamor de outros.
Para ambos, Deus tem um tipo de tratamento: juízo para os injustos e alívio
para os que clamam. Ele é um “refúgio”, diz o v.9, nas “horas de fome ou de
seca”, le`ittot batzarah, o que, figuradamente, lembra da opressão e da
necessidade que passa quem procura a justiça e não a encontra.
Em quarto lugar, ele é acessível aos que o buscam. Davi também diz: “Em
ti, pois, confiam os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, não
desamparas os que te buscam” (v.10). Com uma atitude justa e inabalável, é
óbvio que Deus é o alvo da confiança dos que dele necessitam e que nele
buscam amparo. Contudo, algo notável surge de uma observação atenta do
texto. Davi nos conta quem tem esses benefícios por parte de Deus. Diferente
do mundo, onde quem é beneficiado são os poderosos e influentes em
detrimento dos fracos, o alvo da benevolência e do julgamento reto do Senhor
são os que o “buscam”. Enquanto, em Israel, muitas vezes a situação era de
príncipes que vendiam sentenças contra os pobres que buscavam seus
direitos, com Deus, aqueles que buscam nele amparo, de fato o encontram. O
verbo darash reflete a atitude de um servo que, reconhecendo em outro o
poder, a capacidade e a justiça, busca-o para sanar seu anseio.
Essa visão é reconfortante para o cristão quando percebe que não há, entre
os homens, a quem recorrer. O Senhor é completamente diferente. Ele ama a
justiça, odeia o pecado, ama os que o buscam e efetua, poderosamente, a sua
vontade. E o melhor de tudo: quando Deus age, nunca é necessário recorrer a
outra instância. Com Deus assentado em seu trono, não há comissão de ética,
nem tribunal de apelação. Busque-o e recorra a ele!
SALMO 10
O Retrato do Ímpio
Acho incrível como os policiais são treinados para descreverem suspeitos e
reconhecerem tais características nas pessoas. Enquanto certos indivíduos são
maus fisionomistas, alguns homens da lei conseguem, ao olhar para uma
pessoa, saber sua altura, peso, cor dos olhos e notar marcas como cicatrizes e
tatuagens. Muitas vezes, a descrição física de um suspeito, para alguns
policiais, equivale a um retrato. É uma qualidade admirável – e útil – que não
compartilho com os agentes da segurança pública. Apesar de eu nunca me
esquecer de um rosto, eu não sei descrever ninguém.
Ao que me parece, um dos salmistas soube fazer muito bem uma descrição.
Na verdade, o escritor do Salmo 10 soube descrever o “perverso” tão bem
que é como se tivéssemos um retrato dele.
O v.2 diz que o perverso age “com arrogância” (bega’awat), que também
pode significar “com orgulho” ou “com majestade”. É o sentimento de quem
se julga um tipo de rei. Para ele, seu valor pessoal supera o de todos ao redor.
Ele deve ser servido e sua vontade atendida. Esse sentimento maligno,
segundo o texto, o leva a perseguir o pobre, tramando contra ele. Nenhum
sentimento de injustiça o dissuade de agir mal contra alguém, pois ele se acha
no direito de fazer o que quiser.
Enquanto a cobiça é apontada pelas Escrituras como pecado e é vista com
desprezo até pelo mundo, o perverso “se gloria da cobiça da sua alma” ou nos
“desejos da sua alma” (v.3). A ideia de gloriar-se está expressa no verbo halal
que, no grau em que se apresenta no texto, tem o sentido de “louvar, elogiar,
exaltar”. É isso que o perverso faz: ele rende a si mesmo louvor e exaltação
ao observar o “apetite da sua alma” (ta’awat naphshô). Apesar de essa
expressão poder ter um sentido positivo, como em Isaías 26.8, o próprio v.3
dá pistas de quais são os “desejos” e “apetites” do perverso ao chamá-lo de
“avarento”. Na verdade, o salmista usou um verbo para descrever a ação do
perverso (botsea‘) que aponta para “aquele que arranca para si o lucro”.
Nessa disposição, tal homem, diz o texto, “maldiz o Senhor”. Os anseios de
tal homem são, portanto, diametralmente opostos ao desejo e ao caráter de
Deus.
O fato de o perverso ser tão contrário a tudo que Deus é e ensina, não o
preocupa. Na verdade, ele sequer se detém para avaliar sua vida. O v.4 diz
que, por causa do seu orgulho, ele “não investiga” o fato de Deus não fazer
parte de todas as suas cogitações. Darash é uma “busca” que o perverso não
realiza. Afinal, que erros podem ser encontrados pelo soberbo em si mesmo?
Confiado na sua perfeição e no seu valor que excede o valor dos outros, ele
“desafia” (yaphyah) todos quantos se opõem a ele (v.5). Sua confiança de
jamais ser abalado e de não ser alvo de nenhum mal, conforme o v.6, é algo
que ele repete para si mesmo “em seu coração” (belibô). Seu mal, sua soberba
e sua confiança enganosa são algo nutrido no seu íntimo. Tais sentimentos
estão enraizados nele.
Não são apenas os atos do perverso que são maus. Aquilo que ele fala é
“cheio” de maldade. Ele pronuncia “maldição” (’alah) por meio da sua boca.
Sua língua é suficiente para causar destruição e sofrimento. O v.7 nos diz que
naquilo que o injusto profere há “mentira” (mirmah), “engano” (tok),
“opressão” (‘amal) e “maldade” (’awen). Não há como minimizar o mal e a
violência capazes de ser exercidos pela boca do ímpio. Sua língua deve ser
mais temida que suas mãos.
Munido de tamanha maldade, o perverso olha para o desamparado e fica de
“tocaia” (v.8), e prepara-lhe uma “emboscada” (v.9). Seu objetivo, segundo o
v.8, é “exterminar os inocentes” (yaharog naqy) e, conforme o v.9, “arrastar
com sua rede” (bemoshkô berishtô). Como um predador esperando a vítima,
diz o v.10, ele “se abaixa e fica encurvado” (wadakah yashoah), preparando,
assim, um ataque mortal. Essas três expressões transmitem ideias de caça: um
animal matando uma presa para devorá-la, um pescador puxando sua rede
com o peixe desavisado e um leão se ocultando na savana para atacar de
surpresa. São três modos contundentes de avisar-nos sobre o perigo que
representam os perversos para aqueles que não são como eles.
Finalmente, o v.11 mostra que o perverso, como muitos criminosos e
corruptos no nosso país, tem a certeza da sua impunidade. Quando olha para
sua maldade e suas ações traiçoeiras, diz para si mesmo que “Deus se
esqueceu” (shakah ’el) no sentido de não se importar com o que acontece.
Para o perverso, não há um juiz superior que o possa punir pelo que faz
simplesmente porque tal juiz não atua. Por isso, ele se convence de que seu
mal Deus “não vê nunca” (bal-ra‘ah lanetzah). Tal convicção não vem
apenas da arrogância, mas também do desprezo por Deus e pela sua justiça e
santidade.
Esse é um retrato terrível de alguém com quem devemos nos preocupar. O
homem perverso é um risco para os servos do Senhor. Aquele que despreza
Deus e a sua salvação é inimigo dos que amam o Senhor Jesus, ainda que não
lhe tenham feito nada de mal. Portanto, na convivência com eles e até na
pregação do Evangelho a eles, o cristão deve manter cautela a fim de não ser
ferido, seja por meio da oposição aberta, seja por meio do desvio velado em
um contato mais íntimo com o ímpio. Muitos servos do Senhor têm sido
perseguidos pelo ódio dos ímpios, enquanto outros têm se desviado da
santidade por meio do “amor” dos incrédulos. As táticas para abater a presa
são muitas.
Com o retrato do perverso em mãos, devemos ficar atentos como os
policiais a fim de reconhecer o perigo e nos prevenir dos seus males. Afinal,
depois de a casa ser roubada, pouco sobra para a polícia fazer.
SALMO 11
O Pessimista e Aquele que Confia em Deus
SALMO 12
O Perigo Por Trás da Língua Bajuladora
Certa vez, ouvi uma espécie de piada que frisava diferenças entre homens e
mulheres. Segundo a piada, as mulheres se cumprimentam dizendo “nossa,
você está linda, magrinha”; mas quando vão embora, dizem: “Como ela está
gorda!”. Por sua vez, os homens se encontram e dizem: “Fala, seu gordo,
careca”; ao partirem, o homem comenta: “Esse cara é gente fina”.
Piadas à parte, algo que realmente acontece é pessoas usarem palavras que
não refletem o que pensam. E, pior: palavras que depois são contraditas por
declarações pejorativas e destrutivas. Em resumo, trata-se de pessoas que pela
frente dizem uma coisa e, por trás, outra.
Olhando para esse problema, Davi, no Salmo 12.1, pede “libertação”
(yasha‘) ao Senhor, pois, segundo ele, “acabaram-se os leais” (gamar hasîd),
ou seja, os homens que agem com lealdade e veracidade. Junto com tais
pessoas, também “desapareceram os confiáveis” (cassû ’emûnîm). A situação
descrita por Davi é a de um covil de mentirosos. Mas, note bem: não se trata
de inimigos abertos. Pela frente, tais homens são agradáveis, pois moldam
sua imagem com o cinzel da mentira. Dizem coisas que seus corações não
sentem e que são agradáveis aos ouvidos. Entretanto, pelas costas, destilam
um veneno destruidor.
O v.2 expande essa idéia ao dizer que tais pessoas falavam “falsidades uns
com os outros”. A mentira era uma atividade tão difundida e comum naquele
meio que aqueles que mentiam eram também alvo da mentira de outros. Uns
querendo levar vantagem sobre os outros fingindo ser o que não eram de
verdade. Ao observá-los, Davi percebeu duas táticas desses homens para
alcançar o fim que almejavam. O primeiro era usar “lábios bajuladores” (sefat
halaqôt) que lisonjeiam os ouvintes com a intenção de manipular suas
reações. A segunda era esconder os verdadeiros sentimentos e planos atrás de
um “coração fingido” (lev yedabberû).
Apesar da falsidade, os desleais não temiam ser desmascarados e punidos.
Além de a soberba (v.3) ser o combustível de suas línguas, o v.4 relata que,
mesmo diante de Deus, sua arrogância era sentida, visto julgarem não haver
ninguém que os pudesse deter ou reprovar. De forma desafiadora, Davi os vê
agir como quem diz “quem é senhor para nós?” (mî ’adôn lanû), ou seja,
“quem é que pode nos dizer o que fazer, ou nos punir se não o fizermos?”.
Não é de surpreender que Davi tenha pedido a Deus para libertá-lo de
homens assim. Na verdade, eles são mais perigosos que os homens perversos
e violentos, pois desses nos afastamos, enquanto, dos bajuladores falsos e
desleais, acabamos mantendo o contato e pondo neles a confiança.
Mas Davi, ao mesmo tempo que observa a deslealdade dos homens, vê
também a repulsa de Deus sobre essa atividade e a punição consequente,
dizendo que “o Senhor corta” (yakret yehwah) todos os lábios bajuladores.
Diante da opressão causada por esses egoístas lisonjeiros e mentirosos (Rm
16.18), o Senhor diz que intercede pelos que anseiam por libertação dos tais
(v.5).
Assim, a confiança do rei está em Deus. Mesmo que os ímpios estejam por
toda parte (v.8), o Senhor, que não é como eles e cujas palavras são “puras”
(tehorôt) como a prata purificada várias vezes (v.6), é aquele que “guarda”
(shamar) e “cuida” (natsar) dos que nele esperam.
Confesso que nessa época de eleições e de políticos agindo como esses
homens descritos por Davi, talvez presentes até na sua corte, senti-me
confortado e confiante em Deus, que vê e controla todas as coisas. Lembrei-
me que, por mais que tais homens e mulheres desejem a ascensão, mesmo
que isso signifique nossa ruína, o Senhor, ao mesmo tempo, olha com dureza
para a arrogância e a maldade dos desleais e se levanta para socorrer os que
não têm como se defender dos seus ardis.
Por fim, lembrei-me, também, da responsabilidade de não agir como
aqueles que tememos e cujas ações nós reprovamos, seja no campo da
política, da economia, do direito e até naquelas conversas informais quando
encontramos conhecidos pela rua. Com todos, tenhamos apenas “uma cara” e
“um discurso” Que o nosso “sim” sempre queira dizer “sim” e o nosso “não”
queira, realmente, sempre dizer “não” (Mt 5.37)! Assim, no falar e no agir,
sejamos nós mesmos “gente fina”.
SALMO 13
Quando o Socorro Parece Atrasar
SALMO 14
O Verdadeiro Órgão de Defesa do Consumidor
SALMO 15
Quem Luta por Mim?
Sempre gostei de história e ainda gosto. Quando tenho algum tempo livre
ou quando preciso desligar minha mente da rotina e das dificuldades do
cotidiano, gosto de ler sobre história. Recentemente, dediquei-me a conhecer
um pouco de uma época triste da história brasileira: a ditadura militar.
Quando digo triste, não penso unilateralmente. Refiro-me, por um lado, a
assaltos, assassinatos e atitudes terroristas em nome de uma liberdade negada
pelos próprios atos dos seus reclamantes e, por outro lado, os maus tratos e
morte de centenas de pessoas em nome da ordem nacional até que a tortura,
meio de extrair informações, passasse a uma finalidade sádica sem qualquer
outra razão.
No meio dessa luta entre resistência e repressão, muitas foram as pessoas
que tiveram de sair do País sem poder voltar até que ocorresse a famosa
anistia, muito comentada ainda hoje. É dessa época a frase “Brasil, ame-o ou
deixe-o”. Em resumo, a presença em território nacional não era realmente um
direito de todos, mas daqueles que se enquadrassem nos interesses da
liderança ditatorial do País. Assim, se alguém fosse um questionador do
governo e das leis autoritárias, um líder de alguma entidade pró liberdade
política e de expressão, um artista engajado na resistência ao governo ou até
um intelectual contestador, esse era um franco candidato a perder o direito de
habitar no seu país natal, o Brasil.
Davi também teve experiências de exílio, tanto no último terço do reinado
de Saul como nos dias do golpe de Estado de Absalão. O Salmo 15 parece ter
sido escrito exatamente durante um exílio. Não um exílio qualquer, mas sim
da cidade de Jerusalém – o que coloca o golpe de Estado de Absalão como a
época de escolha para a composição do salmo. O motivo para tal suposição é
a pergunta que Davi faz: “Senhor, quem residirá com o teu tabernáculo?
Quem habitará no teu santo monte?” (yehwâ mî-yagûr be’ahaleka mî-yishkon
behar qadsheka).
Apesar de eu já ter ouvido várias vezes se tratar a expressão de uma
“habitação celestial”, é muito provável que Davi fizesse referência a algo
bem mais específico e próprio da sua experiência: a habitação em Jerusalém.
Nessa cidade, conquistada e tornada sede do reino pelo próprio rei Davi (2Sm
5), estava o “tabernáculo” que ele erigiu para trazer a arca da aliança de seu
exílio desde os dias do sumo sacerdote Eli (1Sm 4) e estava, também, o
monte Sião, frequentemente denominado “monte santo” (Sl 2.6; 48.2; Jl 2.1;
3.17; Ob 17; Zc 8.3). O problema de Davi, no Salmo 15, parece ser: quem
tem direito a habitar em Jerusalém, no monte santo de Deus e próximo ao
tabernáculo do Senhor? As duas respostas naturais envolvem o próprio Davi
e seus servos leais em contraposição a usurpadores dos seus direitos,
possivelmente Absalão e os conspiradores que o acompanhavam.
De modo muito interessante, Davi não perde tempo defendendo seu direito
real, mas oferece o caráter de Deus como fator de separação entre os homens
bons e os maus e como causa da habitação daqueles a quem ele escolhe
segundo sua vontade santa, a qual defende os que lhe pertencem. O que o
salmista afirma é que, nessa disputa por Jerusalém e pelos fatores ligados a
essa habitação, Deus faria vencer aquele cujo caráter se adequasse ao
daqueles que o servem e o buscam. Desse modo, Davi oferece cinco
características do verdadeiro servo do Senhor, todas elas ligadas ao seu
caráter.
Assim, aquele que é beneficiário do Senhor é “o que anda honradamente”
(hôlek tamîm). Uma outra designação para o próprio termo que traz um
sentido mais amplo do que Davi quer transmitir é “aquele que anda
irrepreensivelmente”. Isso faz com que ele “aja com justiça” e “fale a verdade
em seu coração”. É uma pessoa de bem que não deixa que a malícia o
conduza.
Ele também “não difama com sua língua” (lo’-ragal ‘al-leshonô) no
sentido de não ser como aquelas pessoas que, por meio de fofocas, mentiras e
afirmações dúbias, mancham a reputação de outras pessoas. É como alguém
dizer: “Tal pessoa me preocupa muito” e, interrogado pelos ouvintes sobre o
motivo da preocupação, responder: “Não pergunte, pois não quero dizer nada
que falte com a ética”, como se ética fosse levantar nuvens injustificadas
sobre a reputação de alguém.
A terceira característica do beneficiário de Deus é dupla: Ele “despreza
com seus olhos o réprobo e honra os que temem ao Senhor” (nivzeh
be‘ênayw nim’as we’et-yir’ê yehwâ yekavved). Ele não bajula os que agem
mal, mesmo que outros interesses estejam em jogo. O relacionamento das
pessoas com Deus é o que define o seu relacionamento com elas. Enquanto
ele se afasta dos iníquos, suas palavras a respeito dos justos são de aprovação
e apoio. Em resumo, ele está do lado dos que seguem a Deus e não dos
pecadores, bajuladores e hipócritas.
Tal homem também “jura para o seu próximo e não muda” (nishba‘
l hara‘ welo’ yamir). Sua palavra é confiável e não depende das
e
SALMO 16
A Rica Herança dos Servos de Deus
SALMO 17
A Busca de uma Justiça Superior
SALMO 18
O Dia da Libertação Que Vem do Senhor
SALMO 19
A Grandeza da Revelação de Deus
SALMO 20
Tempo de Oração em Tempos de Crise
SALMO 21
Ações que nos Levam a Agradecer
SALMO 22
Quando o Rei se Faz Servo
Recentemente, assisti ao filme 300, que conta a história real de uma parte
da resistência grega à invasão medo-persa na Segunda Guerra Médica (século
5 a.C.). Por mais que o filme contenha cenas exageradas, a história é real. Em
meados do ano 480 a.C., Leônidas I, rei de Esparta, liderou cerca de 7 mil
soldados gregos, dos quais apenas trezentos eram espartanos, contra o
inumerável exército de Xerxes I, também conhecido como Artaxerxes no
livro de Esdras – apesar de alguns estudiosos o identificarem com o Assuero
do livro de Ester. Não obstante o sucesso em repelir os ataques iniciais dos
persas, a descoberta de um caminho que possibilitou ao exército de Xerxes
cercar os gregos fez restar, na resistência final, apenas o rei Leônidas, seus
trezentos soldados espartanos e alguns tebanos e tespienses que se recusaram
a se retirar. O morticínio, obviamente, foi completo.
Mesmo com a derrota, essa história é um marco inspirador na história
grega e – por que não? – na história da humanidade. O compromisso
daqueles homens com seu país e sua obediência às leis foram tão
impressionantes que fizeram jus aos dizeres do poeta Simônides de Ceos
grafados em um monumento em homenagem aos trezentos: “Estrangeiro, vá
contar aos espartanos que jazemos aqui em obediência às suas normas”.
Entretanto, o que mais me impressiona é o fato de um rei, sem quaisquer
chances reais de vitória, ter lutado e se sacrificado como um soldado comum.
Não é sempre que vemos reis à frente dos seus soldados. Não é sempre que
vemos reis servindo seu povo até o último suspiro de vida.
Felizmente, esse não é o único exemplo de um rei que se fez servo e deu a
vida para defender seu povo. O Salmo 22 prenunciou atitudes reais de outro
rei que se fez servo. Não me refiro a Davi, autor do salmo. É certo que ele
escreveu a respeito da sua realidade no salmo em questão. Assim como em
outros cânticos que compôs, ele apresenta a Deus sua situação de desespero
(vv.1,2), sua confiança no Senhor (vv.3-5), a consciência da sua condição
humana limitada (vv.6-8), sua dependência de Deus (vv.9-11), sua queixa
contra a perseguição dos inimigos (vv.12-18), o clamor a Deus por livramento
(vv.19-21) e a exaltação do Libertador (vv.22-31). Contudo, o Espírito Santo
de Deus, autor último das Escrituras (2Tm 3.16; 2Pe 1.21), parece ter
revelado, por meio de Davi, no seu salmo de clamor por socorro, realidades
da vida e da obra de outro rei. O Novo Testamento mostra que tal rei, o
Messias, mais ainda que o rei de Esparta, agiria como um servo para seu
povo.
O salmo inicia com o primeiro traço da obra do Messias contido no texto
que é o fato de que ele foi alvo do juízo divino em lugar dos pecadores. O
v.1 diz: “Meu Deus, meu Deus, por que tu me abandonaste?” (’elî ’elî lamâ
‘azavtanî). Essas palavras foram ditas na cruz por Jesus, o Messias, por volta
das três horas da tarde, ou seja, poucos minutos antes de morrer (Mt 27.46;
Mc 15.34). A Bíblia explica que sua morte não foi um acidente de percurso
ou um efeito colateral de um plano maltraçado. Jesus deliberadamente deu
sua vida (Jo 10.18). O motivo foi salvar aqueles que creem em seu nome (Jo
3.16; 1Jo 3.16). Para isso, teve de trocar de lugar com aqueles que ia salvar
assumindo sua condenação (1Pe 3.18 cf. Gl 3.13,14). Ele serviu seus amados
dando a vida por eles e se tornando o objeto do juízo de Deus sobre os
pecados dos eleitos. O v.16 completa: “Como faz um leão, perfuraram
minhas mãos e meus pés” (ka’arî yaday weraglay). Diante de uma frase como
essa, não é possível esquecer do que disse Isaías: “Mas ele foi traspassado
pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades” (Is 53.5).
O segundo traço da obra servil do Messias é que ele foi um homem de
condição humilde e destituída de glória. O v.6 pinta um quadro nada
glamoroso ao dizer: “Vergonha da humanidade e desprezado do povo”
(herpat ’adam ûbezûy ‘am). O profeta Isaías, ao falar do Messias, a quem
costuma chamar de “servo de Deus”, escreve, em um dos capítulos mais
conhecidos do seu livro: “Não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo,
mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais
rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e,
como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não
fizemos caso” (Is 53.2,3). Ao contrário do que todos poderiam esperar, Jesus
não exibiu externamente em seu corpo a glória da sua divindade. Foi um
trabalhador braçal – um carpinteiro – até o início do seu ministério. As
pessoas o olhavam e viam apenas uma pessoa simples, sem nada a ser
honrado ou admirado.
Em terceiro lugar, ele foi zombado e tratado com desprezo. O v.7 traz
uma cena que entristece nosso coração ao lembrar o que Jesus passou
enquanto, pregado à cruz, aguardava a morte. O salmista escreveu: “Todos
aqueles que me veem caçoam de mim” (kol-ro‘ay yali‘gû lî). É o retrato de
uma turba zombando e se mostrando ao desprezado. O texto continua: “Eles
meneiam a cabeça” (yanî‘û ro’sh). Trata-se não apenas de uma atitude
irreverente e desrespeitosa, mas de uma demonstração maldosa de desprezo
com a intenção de causar sofrimento e vergonha. O v.8 completa o quadro:
“Recorra ao Senhor! Ele o livrará! Ele o salvará, pois se compraz nele!” (gol
’el-yehwâ yepalletehû yattsîlehû kî hapets bô). Longe de serem palavras de
encorajamento, trata-se de pura zombaria contra alguém aparentemente
indefeso. O que foi dito nos vv.7,8 se cumpriu literalmente, em meio a
gargalhadas, durante a permanência de Jesus na cruz (Mt 27.39,43).
Em quarto lugar, Jesus foi perseguido na sua infância. Herodes, rei de
Israel, ao saber do nascimento de Jesus, ordenou a morte de todas as crianças
com menos de dois anos que viviam na cidade de Belém (Mt 2.1-12,16-18).
Jesus teria sido vítima de tamanha crueldade se Deus, por meio de um anjo
que apareceu a José, não tivesse tirado Jesus de Belém a tempo, enviando-o
para a terra do Egito (Mt 2.13-15), o que o fez sofrer, ainda infante, o exílio
da sua terra natal. Tal acontecimento se deixa prever nas palavras do salmista
(v.9): “Conduziu-me em segurança no colo da minha mãe” (mavtîhî ‘al-shedê
’immî).
O quinto traço da obra de Jesus é que ele foi espoliado e seus bens foram
repartidos. No v.18, escreve o salmista: “Eles repartem as minhas vestes
entre si e jogam pela a minha túnica” (yehalleqû begaday lahem we‘al-lebûshî
yaffîlû gôral), mais uma peculiaridade cumprida perfeitamente na
crucificação por meio dos soldados romanos que, tomando as roupas de Jesus
– os condenados eram crucificados nus –, fizeram exatamente o que o Salmo
22, escrito mais de mil anos antes, descreveu (Jo 19.23,24).
Jesus, Deus eterno (Jo 1.1), sabia que cada um desses fatores era necessário
para o cumprimento do propósito de salvar seu povo, sua igreja. E assim o
fez, com a atitude real de um servo – ou, com a atitude servil de um rei. Um
rei que assumiu uma carga que não exigiu de seus súditos. Um rei que, apesar
da glória, morreu para salvar e proteger seu povo de quem, mesmo ultrajado
na cruz, não se envergonhou. Um rei que, em lugar de ser servido, serviu aos
que ama.
Diante de tão grande desprendimento do rei Jesus, cabe agora à igreja,
beneficiada por sua morte, manter viva a proclamação da mensagem do rei
eterno, salvador dos que nele creem e confiam. Cabe também a ela manter o
testemunho de vida compatível com a grandeza e a santidade do seu
soberano, sem nunca se envergonhar dele ou do seu evangelho. E se o
mundo, com sua falsa sabedoria e tola arrogância, quiser tirar da igreja suas
convicções e responsabilidades, os súditos daquele que os salvou devem se
unir e, com a coragem e a ousadia dadas pelo Espírito Santo, devem bradar o
mesmo que está escrito sob uma estátua de Leônidas I, na Grécia, que é o
registro em pedra do que respondeu ele à ordem persa de entregar suas armas:
“Venham tomá-las!”.
SALMO 23
O Pastor e Suas Ovelhas
Lembro-me, em meio a risos, de certa vez que fui a uma pizzaria de uma
cidade pequena. Olhei o cardápio enquanto a atendente me observava.
Decidi, finalmente, e pedi uma pizza portuguesa. A atendente me respondeu
que seria impossível atender ao meu pedido porque eles não tinham ovo.
Então, pedi sem ovo. Mas, segundo ela, também não tinham presunto. Corri,
novamente, os olhos pelo cardápio e escolhi uma pizza de calabresa, a qual, a
ouvi dizer, estava em falta. Sem olhar o cardápio, daí para frente, fui pedindo
outros sabores: pedi frango com Catupiry – não tinha frango –, champignon –
também não – e muzarela – só tinham queijo prato.
Numa iniciativa pra lá de prática, perguntei, então, que tipo de pizza eles
poderiam fazer, disposto a pedir qualquer uma cujo pedido pudesse ser
atendido. A surpreendente resposta foi: “Nenhuma! Hoje não temos massa”.
Fiquei olhando para a moça, calado, sem saber como reagir a essa
informação. As perguntas que corriam por minha mente eram, em primeiro
lugar, “por que ela não me disse isso logo no início, em vez de me deixar
pedir sabor após sabor?”; e: “Como pode uma pizzaria que está aberta não ter
nenhum ingrediente para fazer pizzas?”. Bem, não comi pizza naquela noite,
mas ganhei uma história curiosa para contar.
Em contraposição a essa incabível falta de ingredientes, o rei Davi falou
sobre uma fonte onde nada falta. O Salmo 23 é uma declaração da confiança
irrestrita do salmista no Deus eterno a quem nada pode limitar. Trata-se de
um Senhor que nunca age com infidelidade ou indiferença para com os que
lhe pertencem.
Se o salmo inteiro não é conhecido de todos, o trecho “o Senhor é meu
pastor e nada me faltará” é um dos versículos mais conhecidos do Antigo
Testamento e de toda a Bíblia. Mesmo muito conhecido, o salmo nem sempre
é corretamente compreendido. Para tanto, é preciso entender o seu contexto,
ou seja, o momento pelo qual Davi estava passando. Se o início do salmo é
um tipo de metáfora na qual Deus é descrito como um pastor e o salmista
como uma ovelha, o v.5 deixa escapar um pedacinho da realidade do escritor:
“Tu preparas uma mesa diante da minha face à vista dos meus inimigos;
unges com perfume a minha cabeça; minha taça está cheia” (ta‘arok lefanay
shulhan neged tsoreray disshanta basshemen ro’shî kôsî rewayâ). Dois fatores
nos são acessíveis diante desses dizeres. Em primeiro lugar, Davi sofria com
a perseguição dos inimigos e com os riscos advindos dela. Depois, ele
confiava plenamente no fato de que o Senhor o livraria dos inimigos e
tornaria pública sua atuação favorável ao servo. Deus, a seu tempo, também o
honraria como rei diante do povo com todos os privilégios que acompanham
o cargo.
Compreendendo o contexto, é possível, então, perceber a confiança de
Davi por meio da comparação do cuidado de Deus em relação ao seu povo
com o cuidado de um pastor em relação às suas ovelhas. Nesse sentido, cinco
ações de um pastor representam as próprias bondade e proteção divinas que
Davi esperava receber, motivo pelo qual declara (v.1): “O Senhor é meu
pastor, não terei necessidades” (yehwâ ro‘î lo’ ’ehsar).
A primeira ação é alimentar as ovelhas. Falando de Deus como pastor
(v.2), diz o salmista que “ele me faz deitar em pastagens de erva verde”
(bin’ôt deshe’ yarbîtsenî). Essa é uma figura muito representativa do trato de
ovelhas. Elas se alimentando de ervas nutritivas e gostosas, fáceis de serem
arrancadas e deglutidas. Podemos até brincar dizendo que é o sonho de toda
ovelha. Representa muito bem o alimento dado por Deus aos crentes por
meio da sua Palavra (Hb 5.12-14), a qual nos fortalece para a jornada cristã e
nos dá o prazer de conhecer melhor nosso redentor e sua vontade para seu
povo.
A segunda ação é conduzir com segurança. Ainda no v.2, Davi escreve:
“Ele me leva a fontes tranquilas” (‘al-mê menûhot yenahalenî). Considerando
que algumas regiões de Israel são montanhosas, onde há rios cujas águas
correm mais rápido que as águas de rios de planície, uma das
responsabilidades do bom pastor era levar suas ovelhas aonde as águas não
fossem do tipo “corredeiras”. Essa necessidade vem do fato de as ovelhas
terem uma pelagem densa e farta que, quando molhada, aumenta o seu peso
até ao ponto em que ela não possa se sustentar na correnteza e afunde para a
morte. Assim, essa tarefa pastoril é relativa ao cuidado do Senhor com suas
ovelhas ao lhes alertar sobre o pecado e suas consequências (Tg 1.15) a fim
de que fujam daquilo que certamente lhes causará mal.
A terceira é produzir descanso. O v.3, em uma das duas possíveis
traduções, diz: “Ele devolve as forças à minha alma” (nafshî yeshôvev). Uma
segunda tradução possível, cujo sentido é também verdadeiro, é: “Ele
reconduz minha alma” – no sentido de produzir arrependimento no pecador.
Essa tradução se encaixaria na figura do pastor buscando a ovelha
desgarrada, mas, dada a sequência natural do texto, o sentido mais provável
parece recair sobre o descanso, ou o refrigério. De qualquer modo, as duas
possibilidades são verdadeiras. Deus tanto dá descanso ao filho cansado,
sobrecarregado e oprimido (Mt 11.28), como corrige o filho que se desviou
(Hb 12.5-11).
A quarta é guiar por caminhos corretos. Ainda no v.3, o salmista declara:
“Ele me guia no trilho da justiça por causa do seu nome” (yanhenî bema‘gelê-
tsedeq lema‘an shemô). Fica claro que o sentido figurado do pastor e das
ovelhas começa a perder um pouco seu enfoque para dar lugar às ações, de
fato, de Deus para com seus filhos. Os servos de Deus, como suas ovelhas,
têm, diante de si, um caminho moralmente justo e compatível com o santo
nome de Deus. Sua preocupação, diferente da das ovelhas, não é apenas ir
para onde haja comida e água, mas fazer o que é moralmente correto. E nesse
sentido, Deus, o bom pastor dos que creem, não apenas aponta o caminho da
justiça, mas guia o seu rebanho para lá (Mt 2.6).
A quinta ação é dar verdadeiro consolo. Diz o v.4, texto também muito
conhecido e citado: “Até mesmo quando eu andar no vale da escuridão, não
temerei mal algum, pois tu estás junto a mim” (gam kî-’elek begê’ tsalmawet
lo’-’îra’ ra‘ kî-’attâ ‘immadî). Essa é uma declaração muito encorajadora.
Entretanto, podemos nos perguntar o porquê de ele não ter medo. Será que a
presença de Deus o livraria de todo mal? Bem, essa esperança, por parte do
salmista, está presente no Salmo 23, mas não no v.4. Nesse caso, o motivo
dado pelo escritor para sua ausência de temor é baseada em mais algumas
figuras pastoris: “O teu bordão e o teu cajado, ambos, me consolam” (shivteka
ûmish‘anteka hemmâ yenahamunî). Deus, em lugar de livrar total e
imediatamente, trabalha com seus servos “tranqüilizando-os”, enquanto os
guia e protege. É uma ação maravilhosa e surpreendente que não se aplica na
situação, mas acima dela (Jo 14.27; 16.33). Não é de surpreender que Davi
termine o salmo dizendo: “Bondade e misericórdia me seguirão todos os dias
da minha vida” (’k tov wahesed yirdefûnî kol-yemê hayyay).
Se o Senhor era o pastor de Davi, é também o pastor de todos aqueles que
creem em Jesus. Nosso salvador disse certa vez: “Eu sou o bom pastor” (Jo
10.11). Como tal, disse que deu sua vida pelas ovelhas. É um pastor
verdadeiro que ama como ninguém as suas ovelhas. Foi esse pastor que nos
redimiu e nos libertou do pecado por sua morte. A partir de então, ele
promove todo bem, proteção e direção que precisamos. Ele não se esquece de
nada, nem fica ocupado demais para cuidar de nós. Assim, podemos repetir,
com toda certeza, a famosa frase que até criancinhas sabem de cor: “O
Senhor é meu pastor e nada me faltará”.
SALMO 24
Quem Tem Direito de Estar com Deus?
SALMO 25
Pedidos a Serem Feitos ao Senhor
SALMO 26
Como Deve o Justo Andar
SALMO 27
Escondido nos Braços do Pai
SALMO 28
Um Tratamento Especial
SALMO 29
O Poder das Palavras de Deus
SALMO 31
Os Olhos Atentos de quem Ora
SALMO 32
A Restauração que Vem do Perdão
SALMO 33
As Credenciais do Senhor Todo-poderoso
Sempre gostei muito de bichos. Durante toda minha vida convivi com as
mais diversas espécies de animais. Apesar do meu gosto especial por gatos,
pássaros e peixes, nenhum deles se compara ao meu gosto pelos cães. Tenho
dois cães da raça rottweiller, o macho chamado Tímios e a fêmea, Malcah.
Apesar do terror que os cães dessa raça causam nos visitantes e nas pessoas
que passam na rua – esse é um dos propósitos deles –, essa não é toda a
verdade sobre os rottweillers. Trata-se de cães extremamente obedientes,
inteligentes e, acredite, dóceis – pelo menos com os donos. Não costumam
ser traiçoeiros e, a meu ver, são os cães mais bonitos que eu já vi, com um
porte inigualável.
Apesar dessas qualidades, há algo que me surpreende todas as vezes em
que penso nisso: a amizade que os cães mantêm com seus donos. Meus cães,
principalmente o macho, por ser mais velho, age com extrema fidelidade e
carinho para comigo. Faz de tudo para me agradar e para estar sempre por
perto. Mesmo quando estou dentro de casa, ele procura, ao redor da casa, o
lugar mais próximo de mim e só se levanta dali quando vou para outro
cômodo. Ele me protege e me faz companhia o tempo todo. Por outro lado,
eu o alimento, dou banho, zelo pela sua saúde e procuro passar tempo com
ele. Nesses momentos, tenho a impressão de fazê-lo muito feliz. No final das
contas, é um ótimo relacionamento, bom para ambas as partes. Eu chamaria
tal convivência de “relacionamento de duas vias”, pois cada um supre
necessidades do outro.
Há um outro tipo de relacionamento bilateral que supera qualquer outro e é,
de fato, inigualável: o relacionamento entre Deus e seus servos. Uma
diferença marcante desse relacionamento é que Deus não tem qualquer
necessidade a ser suprida pelos homens. Se ele se relaciona conosco, não é
porque precise de nós, mas porque decidiu fazê-lo. Apesar disso, como um
relacionamento bilateral, está presente a atuação de cada parte conforme suas
responsabilidades e capacidades. O que não pode – ou não deve – ser
realizado de um lado, encontra no outro alguém que faz o que lhe cabe no
convívio mútuo. O Salmo 34, escrito por Davi, apresenta atividades
realizadas tanto por Deus como por seus servos no relacionamento que
mantêm mediante a graça divina.
Pelo lado de Deus, a primeira das atividades voltadas aos servos é atender
as orações. Ao notar que o início do salmo o situa depois de uma libertação
do escritor em uma circunstância em que fica clara a atuação de Deus,
compreende-se melhor o ponto em questão. Quando era provável e quase
inevitável que Davi morresse nas mãos dos filisteus, ele diz (v.4): “Busquei o
Senhor e ele me atendeu” (darashtî ’et-yehwâ we‘ananî). Enquanto os filisteus
mantinham uma posição de cautela em relação a Davi, o rei acreditou
realmente, contra as expectativas, que se tratava de um homem louco e
poupou-lhe a vida. Diante do histórico guerreiro e vitorioso do salmista, a
credulidade do rei filisteu ou nos parece tolice, ou nos convence da atuação
divina na proteção do servo. Em outras palavras, a resposta de oração
garantiu a vida do salmista quando o máximo que ele podia fazer era fingir
ser doido diante dos inimigos.
A segunda atividade é proteger os servos. O v.7, muito conhecido e pouco
compreendido pelos cristãos, diz: “O anjo do Senhor acampa ao redor dos
que o temem” (honeh mal’ak- yehwâ saviv lîre’ayw). Não se trata de “anjos”,
mas do próprio Senhor em pessoa protegendo os servos como uma sentinela
que marcha em volta daquilo que está a proteger. A expressão “anjo do
Senhor” frequentemente se refere à pessoa de Deus (Gn 16.10; Ex 3.2).
Ainda que os anjos sirvam, sob as ordens do Senhor, aos homens que temem
a Deus (Sl 91.11; Hb 1.14), o soberano não se tolhe de guardá-los
pessoalmente.
A terceira atividade é opor-se aos injustos. Boa parte do sofrimento dos
servos de Deus tem como fonte homens que, em sua injustiça, os exploram e
oprimem. Ainda que o julgamento definitivo da maldade venha a ocorrer
somente no final da história terrena, Deus costuma intervir a favor dos seus
filhos quando sofrem diante dos maus. Enquanto protege os seus, o v.16
revela que “a face do Senhor está contra os que praticam o mal” (penê yehwâ
be‘osê ra‘). O Senhor toma as dores dos servos e se posta contra os ímpios.
A última é manter comunhão. Diferente do pensamento agnóstico que
postula que Deus se afastou da criação, Davi afirma que Deus permanece
junto aos seus (v.18): “O Senhor é próximo dos quebrantados de coração”
(qarov yehwâ lenishberê-lev). Tal proximidade é o que mantém a comunhão
entre eles. Deus não apenas se deixa encontrar como se faz sentir ao redor
dos que, arrependidos dos pecados e dependentes da graça e misericórdia do
Senhor, entregam-lhe o coração.
Já, pelo lado dos servos, a primeira das atividades visando ao bom
relacionamento com o Senhor é louvar a Deus. Em agradecimento a tamanha
bondade, Davi – que havia sido poupado milagrosamente dos inimigos – diz
(v.1): “Com a minha boca continuamente o louvarei” (tamîd tehillatô bepî).
Ele se propõe não apenas a adorar a Deus, mas fazê-lo publicamente. Esse é o
sentido de dizer que “com a boca” louvaria a Deus. Ele testemunharia todo o
tempo, em dias bons e ruins, que o Senhor é digno de ser adorado pelos
homens que o amam. Essa não é apenas uma atitude dos servos para com
Deus, mas o sentido da sua existência (1Pe 2.9).
A segunda atividade humana é desfrutar da bondade divina. O v.8
contém uma ordem aos homens: “Provem e vejam que o Senhor é bom”
(ta‘amû ûre’û kî-tov yehwâ). A palavra hebraica usada por Davi traduzida por
“provar” não é a mesma usada pelo profeta Malaquias em um texto muito
conhecido (Ml 3.10). Enquanto Malaquias propõe um “teste”, a palavra que
Davi utiliza propõe o ato de “experimentar” algo, assim como “provar” uma
comida ou “degustar” um vinho. Desse modo, o servo de Deus se “deleita”
no Senhor aceitando as bênçãos que, pela graça, lhe são oferecidas. Ele não
mendiga um pouco de alegria no meio do pecado. Ele se deleita nas palavras,
na companhia e na bondade do seu Senhor.
A terceira atividade é a exortação dos irmãos. Como testemunha dos atos
misericordiosos de Deus, Davi age também como transmissor dessa verdade
e doutrinador de outras pessoas. Ele se propõe a fazer o seguinte (v.11): “Eu
ensinarei a vocês o temor do Senhor” (yir’at yehwâ ’alammedkem). Temer a
Deus não é ter medo dele. É certo que o servo de Deus deve temer, sim,
desrespeitar o Senhor e ser por ele disciplinado. Mas o conceito presente no
temor do Senhor é maior que isso. Envolve reverência, obediência, respeito e
adoração. Davi, como homem temente a Deus, exorta seus conservos a terem
a mesma disposição e se oferece para ensiná-los e encorajá-los nesse sentido.
A última atividade é a santificação de vida. Lutar contra o pecado e se
deixar dirigir pelo Espírito de Deus é fundamental no convívio diário com o
Senhor. Por isso, o salmista ainda orienta (v.14): “Aparte-se do mal e faça o
bem” (sûr mera‘ wa‘aseh-tôv). A santificação é um esforço em dois sentidos.
Em primeiro lugar, lutar para abandonar o pecado em forma de pensamentos,
disposições e, obviamente, ações. Significa se empenhar para não fazer as
coisas que ofendem a santidade do Senhor. E, na sequência, manter o esforço
para fazer o que é correto obedecendo as instruções de Deus expostas nas
Escrituras. Nenhum desses aspectos se perfaz sem o outro. Não existe vitória
contra o pecado quando não há obediência; nem há santificação sem negação
pessoal a fim de sujeitar os impulsos pecaminosos. O servo de Deus, mesmo
diante de toda a dificuldade dessa batalha, luta para ser cada dia mais santo.
Com esse relacionamento de duas vias em ação, tanto a bondade de Deus
como a submissão voluntária do servo se completam e produzem um clima
de amizade, interação e união. Esse, sim, é um bom relacionamento cheio de
bênçãos para os homens e repleto de honras ao Senhor. Pela graça de Jesus e
seu sacrifício da cruz, podemos ser considerados, agora, por meio da fé,
amigos de Deus. E não há nada mais magnífico que isso na vida de um
cristão. Ou você, depois de refletir sobre tudo isso, ainda acha que é o cão o
melhor amigo do homem?
SALMO 35
A Dor de quem Espera
SALMO 36
O Maior de Todos os Contrastes
Em minha família, somos três irmãos: dois homens e uma mulher. Meu
irmão mais novo é alguém muito alegre e animado, assim como eu mesmo
costumo ser. Mas há um fator interessante entre nós: somos, no geral,
extremamente diferentes. Nossos gostos são diferentes. Nossos hábitos nem
sequer se parecem. Nossas habilidades são distintas. Fizemos cursos
superiores de áreas opostas. Nossas amizades nunca se dariam bem entre si.
Até nossa aparência difere, de modo que as pessoas que nos conhecem há
pouco tempo nem imaginam que somos irmãos. É difícil acreditar que fomos
gerados no mesmo ventre e educados no mesmo lar. Apesar de tanta
diferença, nos damos bem porque ainda guardamos muitas semelhanças e
compartilhamos de muitos valores.
Por maiores que sejam os contrastes entre meu irmão e mim, há um muito
maior. No Salmo 36, o rei Davi evidencia os contrastes entre o homem ímpio
e o Deus santo. Muitos são os contrastes nesse texto e eles podem ser
identificados sob diversas ópticas. Um deles é o disparate entre a ausência de
bem no injusto e a fartura das qualidades divinas e das bênçãos vindas de
Deus. Se precisássemos traduzir isso em termos de metragem, mediríamos o
pecador na escala de milímetros, enquanto o Senhor seria representado na
escala dos quilômetros.
O primeiro desses contrastes se dá no campo da confiabilidade. O homem
que não segue Deus não é alguém em quem se possa confiar. Seus padrões
morais e éticos não são guiados pela verdade e pela retidão. Há nele ausência
de um caráter justo (v.1), pois “não há temor de Deus diante dos seus olhos”
(’ên-pahad ’elohîm leneged ‘ênayw). Assim, não há limites nem escrúpulos
naquilo que faz, visto não ter medo de ser julgado por alguém superior aos
homens. Diante de tal ausência, Deus superabunda em termos de confiança
para os que o seguem (v.6), pois “aos céus chegam a tua fidelidade, ó Senhor;
a tua confiabilidade chega até as estrelas” (yehwâ behashamayim hasdeka
’emûnateka ‘ad-shehaqîm). Se pensarmos bem, não há como medir os
atributos do Deus ilimitado. Assim, quando o salmista cita os céus e as
estrelas, não é para oferecer uma medida ou um alcance exato, mas para
exaltar a “fartura” de tais atributos. É a comparação entre a ausência de
veracidade no homem amigo do pecado e a abundância da confiabilidade do
Senhor. É uma imagem que vislumbra a pequena estatura de um homem
comparado à distância entre o chão e as estrelas. É um contraste e tanto!
O segundo contraste está na área da justiça. O ímpio se sente bem com
seus procedimentos injustos. O v.2 diz que “ele lisonjeia a si mesmo aos seus
olhos” (hehelîq ’elayw be‘ênayw). Significa que ele se parabeniza ao
contemplar o seu pecado, a sua culpa e a sua ausência de justiça. Destilar sua
maldade sobre os outros não lhe causa rubor nem lhe afeta a consciência.
Antes, faz com que se vanglorie disso. Por outro lado, Deus transborda de
justiça (v.6): “A tua justiça é como as montanhas de Deus; o teu juízo é como
um oceano muito profundo” (tsidqateka keharrê-’el mishpateka tehôm ravvâ).
Mais uma vez, a grande dimensão das montanhas e a profundidade e tamanho
dos mares representam o proceder justo do Senhor. Aliás, não há ninguém
mais justo que ele. Sua justiça nem sequer pode ser mensurada.
O terceiro se dá no relacionamento. Relacionar-se com os injustos é difícil
e perigoso pela ausência da benignidade, ou seja, a disposição de promover o
bem alheio. Falando do homem ímpio, Davi afirma que (v.3) “as palavras da
sua boca são falsidade e traição” (divrê-pîn ’awen ûmirmâ). Conviver com
pessoas assim é um grande risco, pois, não somente não são confiáveis, como
também tramam males contra o próximo. Enquanto apertam as mãos das
pessoas, pensam em como causar-lhes dano para promover o benefício
pessoal. Suas palavras são boas aos ouvidos, mas suas tramas abrem uma
cova para quem os acolhe. Os homens ao redor devem se afastar dos injustos
a fim de se protegerem. De modo diametralmente oposto, a proximidade do
Senhor é o que protege seus filhos. Sobre Deus, diz o salmista (v.7): “Os
filhos do homem se protegem à sombra das tuas asas” (benê adam betsel
kenafeika yehesayûn). Como um grande pássaro, mais forte e poderoso que os
predadores, o Senhor protege aqueles que o buscam. Essa proteção é efetiva e
tem como razão a “benignidade” do Senhor. Ele não vira o rosto para quem o
busca. Antes, se relaciona com eles em meio à bondade. Ele oferece um
relacionamento extremamente saudável para seus servos, assim como um pai
ao se relacionar com os filhos ou como uma ave que abraça e protege seus
filhotes.
O quarto contraste surge na área do auxílio. Se pensarmos em termos de
ações positivas e benéficas em relação a outras pessoas, nosso modelo nunca
pode ser o homem injusto, pois (v.3) “ele renunciou ao entendimento e à
prática do bem” (hadal lehaskîl lehêtîv). O senso comum do bem não está
nesse homem. Ele age como se ignorasse os conceitos relacionados a fazer o
bem aos outros. Ninguém pode esperar dele um auxílio verdadeiro e
desinteressado, pois tais atos são desconhecidos para ele. Por outro lado, se
os servos do Senhor necessitam do auxílio divino (v.8), “eles se saciam de
gordura da tua casa” (yirweyun middeshen). Essa é a imagem de um homem
faminto sendo alimentado por um anfitrião generoso. O benfeitor oferece
comida em abundância; nada falta. Além disso, trata-se de uma comida
nutritiva que sustenta o faminto – deve-se levar em consideração que, nos
dias do salmista, a gordura, diferente de hoje, não era vista sob uma óptica
negativa, como produtora de doenças, mas como uma parte importante da
alimentação. Assim, Deus age como um benfeitor que supre as necessidades
dos aflitos de modo generoso e abundante. Esse fato é corroborado na
sequência do texto: “Tu lhes dá de beber da torrente das tuas delícias” (nahal
‘adaneyka tashqem). O auxílio divino é farto e fruto da sua bondade.
O último contraste está no caráter. O v.4 diz que o perverso “trama o mal”
(’awen yahshov). Entretanto, essa não é a causa do seu caráter perverso, mas
o efeito dele. O motivo de esse homem agir assim é que “ele não recusa a
maldade” (ra‘ lo’ yim’am). A perversidade faz parte dele. Seu caráter é assim
e, por isso, ele nunca se tolhe das más ações, nem se refreia. Tal homem vive
escravizado nas trevas do pecado. Deus é o oposto disso, pois, segundo o
salmista (v.9), “em ti está a fonte da vida; na tua luz nós vemos a luz”
(‘immeka meqôr hayyiym be’ôreka nir’eh-’ôr). O caráter de Deus é santo, justo
e amoroso, o que é representado, pelo salmista, por meio da ideia de “luz”.
Pela observação da natureza divina relevada nas Escrituras, o servo do
Senhor tem seu caminho iluminado e sabe por onde andar com segurança.
Ele, mirando no Deus santo e vivo, é preenchido com a verdadeira vida. Tudo
isso com sobra e abundância.
A aplicação desses tão grandes contrastes vem na forma de uma oração do
salmista ao Senhor. Ele, que parece ter desistido de confiar na força e na
sabedoria humana, talvez cansado de sofrer tantas decepções, roga a Deus
(v.10): “Alongue a tua bondade aos que te conhecem e a tua justiça aos que
são retos de coração” (meshok hasdeka leyode‘eyka wetsidqotka leyishrê-lev).
A confiança de Davi está na manutenção diária e abundante da bondade do
Senhor para com seus servos. Não poderia haver um contraste mais vantajoso
para os que creem em Deus e lhe são seguidores. Se o homem não é
confiável, o Senhor é a fonte de toda a confiança. Se o homem trama
armadilhas, Deus protege seus filhos delas. Se os pecadores são maus, Deus é
o exemplo máximo da bondade. A pergunta que fica é: “O que você quer?
Seguir os caminhos secos e tortos dos incrédulos, ou saborear a vida e a
santidade que vem de Deus a da sua Palavra?”
SALMO 37
Pequenas Brechas que Crescem
SALMO 38
Há Esperança para Mim?
SALMO 39
Como Agir no Meio da Crise?
SALMO 40
Atividades que Marcam a Verdadeira Religião
SALMO 41
Quando Alguém Parece Descartável
SALMO 42
Os Altos e Baixos da Vida
SALMO 43
O Desejo de Retornar ao Lar
SALMO 44
O Conhecimento que Passa de Pai para Filho
Meu avô era um homem interessante. Seu mau humor nos últimos anos de
vida, devido à sua debilitada condição de saúde, não conseguiu apagar as
memórias que tenho de vê-lo trabalhando em hortas que sempre produziam
uma quantidade impressionante de alimentos com qualidade tal que nunca vi
em outro lugar. Contudo, algo de que recordo atônito, ainda hoje, é de ele me
contar a história da Europa, do mundo antigo e das colonizações como se
fosse um professor. As histórias não eram apenas interessantes, mas
verdadeiras, visto que as confirmava nas minhas aulas de História. Meu pai,
mais que meu avô, me ensinou muita coisa. Mas ele era um homem estudado,
aprendeu na escola o que me ensinou. Já, meu avô, sabia apenas ler. Isso é o
que me deixava atônito.
Diante de tal espanto, certa vez lhe perguntei como é que ele sabia todas
aquelas coisas. Ele me contou que seu pai lhe havia ensinado tudo aquilo.
Dizia que se sentava com ele e o ouvia falar por horas. Em parte, essa
resposta me satisfez. Contudo, a dúvida que nunca tirei é: “Como meu bisavô
sabia tudo aquilo?”. O fato é que o ensino de pai para filho e de uma pessoa
experiente para alguém que está começando a vida é algo marcante e
produtivo. Quem dera tivéssemos mais tempo, no meio da pressa dos nossos
dias, para exercitarmos essas aulas informais ao redor da mesa da cozinha e
da garrafa de café!
O Salmo 44 dá mostras da validade e da importância desse ensino de uma
geração para a outra. O salmista, descendente de Corá e membro de uma
família dedicada ao serviço do Senhor no Templo, se vê em uma situação
complicada que parece envolver uma derrota militar (vv.9,10) e suas naturais
consequências como exílio (vv.11,12) e desprezo das nações vizinhas
(vv.13,14). O próprio salmista pode ser um dos que estão exilados, conforme
demonstram os salmos 42 e 43. Nesse contexto de sofrimento e desânimo,
percebe-se a importância do ensino passado pela geração anterior. O salmo
começa com a seguinte declaração (v.1): “Ó Deus, com os nossos ouvidos
ouvimos nossos pais nos relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias
remotos” (’elohîm be’oznênû shama‘nû ’avôtênû sifferû-lanû po‘al pa‘alta
bîmêhem bîmê qedem). Com esse conhecimento em mãos, o salmista obtém
quatro benefícios para sua vida.
O primeiro benefício é conhecer o caráter de Deus. As gerações passadas
de israelitas se esmeraram em guardar e transmitir as memórias dos atos de
Deus em seu benefício. Por isso, o salmista podia falar a Deus (v.2): “Por tuas
mãos tu expulsaste as nações e os [pais] assentaste; trouxeste dano aos povos
e os [pais] enviaste no lugar” (’attâ yadka gôyim horashta wattitta‘em tara‘
le’ummîm watteshalehem). Quando o salmista diz “os assentaste” e “os
enviaste” está se referindo aos pais que lhe contaram a história (v.1), apesar
de não aparecer a palavra “pais”, mas sim, um sufixo que aponta para eles.
Em resumo, trata-se da conquista de Canaã promovida por Deus para dar a
terra aos israelitas conforme a promessa feita a Abraão (Gn 13.14-17; 15.18-
20). Com isso, o salmista aprendeu que Deus é poderoso e, acima de tudo,
fiel para cumprir o prometido. Essa lição produziu no autor dois sentimentos:
confiança e gratidão. A confiança é expressa no v.6: “Não confio no meu arco
e não é minha espada quem me salva” (lo’ beqashtî ’evtah weharbî lo’
hôshî‘enî). A gratidão, no v.8: “Nós louvamos a Deus todos os dias e
celebraremos o teu nome para sempre” (be’lohîm hillalnû kol-hayyôm
weshimka le‘ôlam nôdeh). Que aprendizado melhor que esse para se obter por
meio da história daquilo que Deus fez por meio do seu caráter santo?
O segundo benefício é reconhecer a provação divina. Acontecimentos
ruins sobrevieram ao exército de Judá. Perderam batalhas e fugiram
derrotados pelos inimigos. Alguém poderia dizer “que má sorte!” ou “a culpa
é do general!”. Entretanto, o salmista parece conhecer o procedimento de
Deus pelo que ouviu dos antepassados. Com base nisso, soube que se tratava
de uma atuação deliberada de Deus (v.9): “Mas tu nos rejeitaste, nos
humilhaste e não sais com nossos exércitos” (’af-zenahtanû wataklîmenû
welo’a-tetse’ betsiv’ôteynû). Há nesse versículo uma mudança muito grande
no tipo de atuação de Deus. Antes (vv.1-8) o Senhor se mostrou um Deus
guerreiro ao lado de Israel e protetor do seu povo, enquanto, agora, deixa-o
marchar sozinho e não lhe favorece com a vitória. Aliás, Deus foi o autor da
desgraça militar de Judá nessa ocasião, já que o salmista diz, entre os vv.10-
14, “tu nos fizeste voltar atrás fugindo do inimigo” (teshîvenû ’ahôd minnî-
tsar), “tu nos entregaste como ovelhas de corte” (tittenenû ketso’n ma’akal),
“tu vendeste o teu povo por preço barato” (timkor-‘ammeka belo’-hôn), “tu
nos transformaste em objeto de escárnio para os nossos vizinhos” (tesîmenû
herpâ lishkenênû) e “tu nos transformaste em um provérbio entre as nações”
(tesîmenû mashal baggôyim). Para o salmista, é muita clara a participação de
Deus nos eventos que os assolam. O que esse salmo tem de diferente dos
vistos até aqui é que, diferente de Davi que via em tais situações uma
disciplina de Deus, esse salmista vê a mão do Senhor trazendo-lhes uma
provação apesar da fidelidade que ele e um remanescente fiel mantinham
(vv.17-22), apesar de o restante do povo ser possivelmente merecedor da
disciplina – e, talvez, para eles o fosse mesmo. Entretanto, o remanescente,
mesmo diante da provação, não se rebela contra Deus, nem desiste de servi-
lo.
O terceiro é manter-se fiel a Deus. Como dito acima, o escritor do salmo
olha para sua vida e se vê fiel a Deus (v.17): “Tudo isso veio a nós, mas não
nos esquecemos de ti, nem violamos a tua aliança” (kol-zo’t ba’atnû welo’
shekahanûka welo’-shiqqarnû bibrîteka). É uma frase realmente encorajadora
quando olhamo-la diante da situação em que vive o salmista. O conhecimento
que ele e seus pares receberam dos antepassados os ensinaram o suficiente
sobre o modo de Deus agir com suas ordens e com as circunstâncias para que
soubessem não se tratar de uma punição injusta (vv.18-21). Eles, certamente,
não conheciam os detalhes dos propósitos de Deus, mas sabiam quem Deus
era. Por isso, o escritor do salmo termina esse trecho afirmando sua
desventura, mas não com amargura. Na verdade, o faz em um tom que
glorifica a Deus e encoraja o leitor a ser fiel nos revezes e nas perseguições
que sofre por amor e fidelidade a Deus (v.22): “Assim, por ti somos mortos
todos os dias; somos tidos como ovelhas a serem executadas” (kî-‘aleyka
horagnû kol-hayyôm nehshavnû ketso’n tivhâ). É claro que o salmista não
fora morto até então, de modo que a figuração “ser morto todos os dias”
expõe as condições deploráveis em que eles viviam sob reais ameaças de
morte. E tudo isso eles passavam, segundo diz o texto, “por ti”, ou seja, por
amor a Deus e por se manterem fiéis a ele.
O quarto benefício é manter a esperança na provação. Uma lição
importantíssima que o conhecimento que veio das gerações anteriores
certamente transmitiu foi o valor e a importância da oração. Por isso, esse
salmo não poderia, depois de expor tanto sofrimento, terminar sem uma
oração esperançosa por socorro (v.23): “Desperta! Por que estás dormindo,
Senhor? Acorda! Não nos rejeite perpetuamente!” (‘ûrâ lammâ tîshan
’adonay haqîtsâ ’al-tiznah lanetsah). Dificilmente o salmista quer dizer, por
meio da figura do “sono de Deus”, que o Senhor está alheio à situação, ou
incapacitado, já que afirmou que ele é o responsável pela provação. Assim, o
salmista, figuradamente, refere-se à espera de Deus até o momento de libertá-
los. Apesar do silêncio divino em tal ação, o salmista aprendeu com os
antepassados que Deus é misericordioso e tem prazer em restaurar os seus –
vide o livro de Juízes, por exemplo. Portanto, é cheia de esperança a frase que
encerra a oração e o salmo (v.26): “Faça surgir socorro para nós e resgata-nos
por causa da tua fidelidade” (qûmâ ‘ezratâ lanû ûpedenû lema‘an hasdeka).
Depois disso tudo, quem, em sã consciência, ainda pode desprezar o estudo
das Escrituras ou lhe criar nomes que transmitam sentidos pejorativos?
Quem menosprezará a pregação bíblica nos cultos de adoração ao Deus que
nos deu sua palavra de modo tão maravilhoso? Quem poderá,
insensivelmente, desprezar as santas orientações para a vida cristã e para o
serviço de Deus? “Pois tudo”, afirmou o apóstolo, “quanto, outrora, foi
escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela
consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).
E mais: quem se omitirá em transmitir à próxima geração a mensagem que
temos agora aprendido? Afinal, chegará o dia em que será a vez de os nossos
filhos dizerem: “Ó Deus, com os nossos ouvidos ouvimos nossos pais nos
relatarem o que tu fizeste nos dias deles, em dias remotos”.
SALMO 45
O Casamento dos Sonhos
SALMO 46
Segurança no Meio do Caos
SALMO 47
O Monopólio Sobre as Nações
SALMO 48
O Exército de Um Só Soldado
SALMO 49
A Visão do Outro Lado da Vida
SALMO 50
O Culto Verdadeiro e o Culto Inútil
SALMO 51
A Mudança Necessária ao Servo de Deus
SALMO 52
A Obra e o Destino dos Ímpios
Todo o País ficou chocado com o massacre promovido por um atirador que
atingiu e matou várias crianças em uma escola em Realengo, Rio de Janeiro,
tirando sua própria vida após o crime. Além do choque de saber que muitas
crianças inocentes e indefesas foram feridas, enquanto outras foram mortas,
foi tenebroso ver os vídeos gravados pelo próprio assassino falando sobre o
que faria. Pelas gravações, é possível ver claramente a premeditação do ato e
os motivos fúteis dados pelo criminoso para a barbárie. Para mim, contudo,
houve algo mais marcante. Entre as explicações confusas e sem nexo do
assassino e as recomendações de como tratar seu corpo morto – como se
fosse um tipo de herói –, o que me atingiu foi vê-lo desfrutar da ideia do que
viria a fazer. Como não notar a vanglória com que explicava suas intenções?
E como é possível, para nós, não nos enojarmos e não nos revoltarmos vendo
algo desse tipo?
Há, na mídia, muitos outros casos de criminosos maldosos que se
vangloriavam das perversidades que cometeram. Conheço um assassino,
porém, que nunca apareceu na televisão. Seu nome era Doegue e ele é o
assunto do Salmo 52, escrito pela pena de Davi, antes de ser rei em Israel.
Davi, na verdade, estava fugindo de Saul para não ser morto devido ao ciúme
que o rei tinha dele. Nessa fuga, Davi, sem explicar a razão verdadeira, se
hospedou na casa do sumo sacerdote Aimeleque, em Nobe – local do
tabernáculo na época – e, conseguindo provisões, partiu para um tipo de
exílio. Nessa ocasião, um oportunista, empregado como pastor de ovelhas a
serviço de Saul (1Sm 21.7), aproveitou para tentar subir de posto diante do
rei. O que ele fez, descrito em 1Samuel 22.9,10, é também expresso no título
do salmo: “Quando Doegue, o edomita, relatou a Saul dizendo-lhe: Davi
esteve na casa de Aimeleque” (bebô’ dô’eg ha’adomî wayyagged lesha’ûl
wayyo’mer lô ba’ dawid ’el-bêt ’ahîmelek).
O resultado foi que Saul, já enfurecido e fora do bom uso da razão, quis
vingança contra Aimeleque e toda a sua casa. Ordenou que sua guarda os
matasse, mas eles se negaram a fazê-lo. Desse modo, o autor da chacina, sob
as ordens do rei, foi o próprio Doegue (1Sm 22.11-19). O único sobrevivente
da casa de Aimeleque foi Abiatar, o qual fugiu para Davi e foi por ele
acolhido e protegido (1Sm 22.20-23). Por meio dele Davi tomou
conhecimento do ocorrido e, posteriormente, escreveu o salmo em questão.
Nele, temos a oportunidade de notar certas características do homem que se
vangloria do mal que faz.
A primeira delas é a completa falta de temor a Deus. O início do salmo é
endereçado ao próprio Doegue. Davi lhe pergunta (v.1): “Por que te
vanglorias na maldade, ó poderoso?” (mah-tithallel bera‘â haggibôr). A
referência a Doegue como um homem poderoso pode tanto ser uma
referência ao prestígio que ele agora tinha na corte de Saul por causa do seu
ato traiçoeiro, como – o que é mais provável – ser uma acusação da tolice de
Doegue se achar alguém grande por fazer o mal à vista de Deus. Essa
segunda possibilidade fica mais clara quando olhamos a frase pela qual Davi
contrapõe sua pergunta: “A fidelidade de Deus está presente todos os dias”
(hesed ’el kol-hayyôm). O propósito desse contraste é evidenciar a loucura da
ação de Doegue movida pela completa falta de temor ao justo e soberano
Senhor. Em outras palavras, seria Davi perguntando ao malfeitor: “Como é
que você age assim e ainda se orgulha disso, sabendo que Deus é fiel para
sempre e que vai puni-lo por isso?”. Entretanto, tal raciocínio nem sequer
fazia sentido para o ambicioso e maldoso pastor do rei.
A segunda característica é a promoção do prejuízo alheio. Para um
homem assim, ninguém pode ser obstáculo para a concretização dos seus
desejos. Sob esse modo de ver a vida, as pessoas são descartáveis e, assim,
podem ser prejudicadas sem que o homem perverso se sinta constrangido por
suas ações. Por isso, Davi se dirige a Doegue mais uma vez e diz (v.2):
“Como uma navalha afiada, a maldade habita na tua língua, ó mentiroso”
(hawwôt tahshov leshôneka keta‘ar meluttash ‘oseh remiyyâ). Certamente,
Davi tem em mente o mal que Doegue produziu a Aimeleque e à sua família
sem sentir qualquer remorso. O relato do livro de 1Samuel mostra que Davi
não informou Aimeleque as suas reais condições diante de Saul. Para o
sacerdote, Davi estava em uma missão real (1Sm 21.2), de modo que, ajudar
Davi era servir à coroa. Aimeleque realmente não fez conscientemente nada
que fosse contrário a Saul. Entretanto, não foi isso que Doegue fez Saul
saber. Ele, que foi testemunha do que ocorreu em Nobe (1Sm 21.7), escolheu
que verdades contar – ou manipular – a fim de demonstrar ao rei sua
utilidade, mesmo que isso custasse a vida de homens inocentes.
A terceira característica é o apego natural à maldade. A atitude
destruidora de Doegue parece não ter sido apenas um fruto de uma
oportunidade, mas o ato de externar algo que se dava em seu íntimo. Davi
não apenas acusa seu ato pernicioso e assassino; não somente aponta para sua
consciência entorpecida. Davi denuncia o que passa no próprio coração de
Doegue. Utilizando-se do verbo “amar” (’ahav) para se referir às escolhas
feitas pelo traidor, Davi nos desvenda o apego daquele homem ao mal, pelo
qual agiu naturalmente ao fazer suas péssimas escolhas (vv.3,4): “Tu amaste
o mal mais que o bem; a mentira mais que as palavras justas; amaste todas as
palavras de destruição, ó língua enganosa” (’ahavta ra‘ mittôv sheqer
middaber tsedeq selâ ’ahavta kol-divrê-bala‘ leshôn mirmâ). Para Doegue
não foi grande coisa mentir sobre a atuação do sumo sacerdote no episódio
com Davi, nem, tampouco, fazer o que nem mesmo a guarda de Saul quis
fazer, a saber, assassinar os sacerdotes do tabernáculo de Deus. O assassino
naturalmente preferia o que era mal.
Depois de descrever o tipo de homem que Doegue era, Davi passa a falar
sobre as consequências de agir como ele (v.5): “Também Deus te derrubará
para sempre” (gam-’el yittatseka lanetsah). Se o que o traidor queria era
ascender à corte de Saul, o resultado seria o movimento contrário. A ascensão
temporária se tornaria uma queda permanente. E mais: “[Deus] te arrastará e
te arrancará da [tua] tenda e te desarraigará da terra dos vivos” (yahteka
weyissahaka me’ohel weshereshka me’erets hayyiym). Deus faz recair sobre o
malfeitor seus próprios atos, pois, assim como os sacerdotes foram tirados da
“tenda” do Senhor – o tabernáculo em que serviam – e foram mortos, o
mesmo aconteceria com Doegue. E, finalmente, o desejo de ser respeitado
pelas pessoas por causa dos favores do rei seria também frustrado pelo
resultado diametralmente oposto (v.6): “E os justos verão e temerão e dele
zombarão” (weyir’û tsadîqîm weyiyra’û we‘alayw yishaqû). Na verdade, o
texto não diz apenas que os justos zombarão, mas que também dirão dele na
sua queda (v.7): “Eis o homem que não faz de Deus seu protetor, mas que
confia nas suas muitas riquezas e que é forte na sua maldade” (hinneh
haggever lo’ yashîm ’elohîm ma‘ûzzô wayyivtah berov ‘oshrô ya‘oz
behawwatô).
Antes de encerrar o salmo, Davi se apresenta como um contraste em
relação à Doegue. Enquanto este é como uma planta que será “desarraigada
da terra dos vivos” (v.7), Davi diz de si mesmo (v.8): “Mas eu sou como uma
oliveira vigorosa na casa de Deus” (wa’anî kezayit ra‘anan bebêt ’elohîm).
Além de se comparar a uma planta em plena produção de frutos, Davi se
refere a uma planta que pertence a Deus e que, desse modo, é cuidada por ele
e dá fruto para ele. Esse é o modo de o salmista se distanciar da figura
horrenda do homem mal e de demonstrar que é um servo de Deus pela graça
que dele recebe. Tal sentido de dependência do Senhor em seu benefício se
vê nas palavras subsequentes: “Eu confio na fidelidade de Deus para todo o
sempre” (batahtî behesed-’elohîm ‘ôlam wa‘ed). Por isso, diferente do
malfeitor que buscava a alegria em uma busca inescrupulosa, Davi se mostra
agradecido a Deus, mesmo na situação de fuga em que vivia, confiado no
caráter divino (v.9): “Eu confiarei no teu nome, pois és bondoso perante os
teus fiéis” (’aqawweh shimka kî-tôv neged hasîdeyka).
Realmente, os ímpios agem como loucos, sem temor a Deus e sem
escrúpulos na busca do que desejam. Usam sua boca como armas mortais e
não se importam com os prejuízos que causarão nas pessoas ao redor. Quanto
a nós, que fomos retirados desse mundo perdido e desse sistema egoísta,
devemos, tanto quanto pudermos, nos afastar de tudo que nos faça parecer
com homens como Doegue. E, chocados com atuações malévolas como à do
assassino do Rio de Janeiro, devemos espalhar a mensagem do evangelho de
Jesus Cristo, sabendo que somente ele pode transformar pessoas assim em
“oliveiras vigorosas da casa de Deus”. Caso contrário, serão como o próprio
atirador do Rio de Janeiro que tinha o arrogante sonho de ser sepultado como
herói, conduzido, segundo disse, por mãos “puras” e com um lençol branco,
mas que, no final, foi enterrado em uma cova rasa, com autorização judicial,
sem a presença de nenhum parente, amigo ou qualquer outro acompanhante.
SALMO 53
Os Pontos Comuns da Iniquidade e da Justiça
SALMO 54
Como Agir Diante da Traição
SALMO 55
Nos Limites da Angústia
SALMO 56
Entre a Cruz e a Espada
SALMO 57
A Quem Honra, Honra
SALMO 58
O Superior Tribunal de Justiça
Há pouco tempo, li uma história muito interessante. Era sobre um juiz que
abriu uma sessão no seu tribunal dizendo às partes: “Cavalheiros, eu tenho
em mãos dois cheques. Vocês podem chamá-los de propina. Um deles é do
reclamado, no valor de 15 mil dólares. O outro, de 10 mil dólares, é do
requerente. Diante disso, minha decisão é devolver 5 mil dólares ao
reclamado e julgar o caso baseado apenas nos méritos”. Apesar dos risos que
essa história tirou de mim, ela também me deixou pensativo: “Será que há
muitos juízes que aceitam propina para decidir a favor de alguém? Será que
há muitos governantes que vendem vantagens a pessoas e a grupos
empresariais em troca de benefícios financeiros? Será que os escândalos que
vemos nos jornais e na televisão são apenas a ponta de um grande iceberg?
Não sei a resposta exata para essas perguntas, apesar de ter bons palpites.
Mas uma certeza eu tenho: essa prática não é nova. Davi sofreu com pessoas
que, vendo a verdade e tendo plenas condições de agir com justiça,
resolveram, por interesse próprio, favorecer a parte forte e promover a
injustiça ao fraco e necessitado. O Salmo 58 é um apelo de Davi a Deus
justamente por não encontrar nos homens a justiça que barraria o mal e que
defenderia o inocente. O contexto de composição do salmo é tremendamente
debatido. Possibilidades como a rebelião de Absalão e a atuação destruidora
de seres demoníacos são aventadas por muitos estudiosos. Entretanto, o
salmo não parece apresentar algo diferente de outros produzidos no período
da perseguição de Saul a Davi. Na verdade, a reticência de Davi em tratar seu
filho Absalão como inimigo, durante o golpe de estado que ele efetuou, faz
com que as duras palavras contidas no Salmo 58 contra as autoridades
injustas se encaixem melhor no período em que ele fugia de Saul.
Ao que tudo indica, Davi estava indignado com os feitos iníquos dos
homens que assistiam o rei Saul. Todos eles conheciam Davi. Este, por ser
genro do rei e comandante do seu exército, frequentava a corte real em Gibeá
e convivia com todas as autoridades israelitas, tanto civis, como militares. É
certo que tais homens conheciam o caráter de Davi, assim como jamais
haviam testemunhado qualquer tipo de tramoia vinda dele no sentido de trair
o rei e lhe usurpar o trono. Contudo, quando Davi poupa a vida de Saul,
também lhe diz que ele não deveria dar ouvidos a pessoas que o difamavam
injustamente: “Disse Davi a Saul: Por que dás tu ouvidos às palavras dos
homens que dizem: Davi procura fazer-te mal?” (1Sm 24.9). Ao agirem
assim, tais homens pioravam, por pura ambição, a situação que já era terrível
entre Saul e seu genro Davi. Parece que é desses homens que Davi fala no
Salmo 58. Sobre eles Davi se queixa ao Senhor e clama por uma justa
vindicação. O salmo também mostra que, para que tal vingança exista, é
necessário um processo de três etapas.
A primeira etapa é a realização da maldade pelos injustos. Davi inicia o
salmo com duas perguntas (v.1): “Vocês realmente falam coisas justas, ó
autoridades? Julgam os filhos dos homens com retidão?” (ha’umnam ’êlîm
tsedeq tedaberûn mêsharîm tishpetô benê ’adam). Essas perguntas estão
envoltas em ironia da parte do salmista, sendo classificadas como perguntas
retóricas. Sendo assim, elas não são um tipo de questionamento, mas uma
acusação de injustiça, de parcialidade e de manipulação da verdade por parte
de homens que tinham condições – e obrigação – de fazerem o oposto. Parece
que Davi se refere ao procedimento mentiroso dessas autoridades para fazer
Saul crer que Davi era um traidor. A resposta, desprovida de ironia, é dada no
v.2: “De fato, no coração eles elaboram iniquidades e suas mãos distribuem a
violência na Terra” (’af-belev ‘ôlot tif‘alûn ba’arets hamas yedêkem
tefallesûn).
A acusação de Davi não para por aí. Com ela, vem anexada uma explicação
sobre o caráter desses homens (v.3): “Os ímpios se extraviaram desde o
ventre materno; os que falam falsidades se desviaram desde o nascimento”
(zorû resha‘îm merahem ta‘û mibbeten doverê kazav). Davi associa a maldade
e a falsidade dos homens poderosos, que injustamente o perseguiam, à sua
condição pecaminosa. Davi faz menção a essa mesma desventura do ser
humano quando se refere ao seu próprio pecado no caso de Bate-Seba e Urias
(Sl 51.5). A julgar pela gravidade do pecado confessado por Davi no Salmo
51, o fato de ele se referir nos mesmos termos ao pecado dessas autoridades,
faz com que a acusação seja revestida de seriedade e de gravidade. No campo
prático, o pecado com o qual nasceram – e que não foi tratado pelo perdão
divino e pela graça transformadora do Senhor – mostra-se na forma de
atitudes perigosas e destrutivas (v.4): “O veneno deles é semelhante ao
veneno da serpente” (hamat-lamô kidmût hamat-nahash). Utilizando-se da
mesma comparação – a serpente –, Davi os acusa de serem pessoas
incorrigíveis, portadoras de corações fechados à verdade e ao arrependimento
(vv.4,5): “Como uma cobra surda eles tapam seus ouvidos para não ouvirem a
voz dos encantadores” (kemô-peten heresh ya’tem ’oznô ’asher lo’-yishma‘
leqôl melahashîm). Com isso, Davi quis dizer que é mais fácil um encantador
domar uma serpente venenosa do que tais homens darem ouvidos à justiça.
Uma atuação malévola como a descrita por Davi certamente cria muito
sofrimento nos alvos da maldade, os homens indefesos. Portanto, a segunda
etapa é o clamor a Deus pelos injustiçados. O injustiçado, nesse caso, é o
próprio salmista. Sofrendo com o mal, ele clama a Deus (v.6): “Ó Deus,
quebra os dentes das suas bocas; arranca as presas de leões, ó Senhor”
(’elohîm haras-shinnêmô bepîmô malte‘ôt kefîrîm netots yehwâ). Esse pedido
violento, que continua nos vv.7-9, não condiz com o ânimo normal de Davi,
visto sua piedade com os perseguidores e sua fidelidade a Deus (ver como
exemplo 1Samuel 24). Assim, tais palavras duras certamente revelam o
sofrimento que afligia o salmista. Tendo em vista que Davi, no Salmo 57.4,
comparou as flechas e lanças dos inimigos com dentes de leões, seu clamor
mostra que ele está nos limites da sua resistência contra a perseguição militar
que está sofrendo. O que torna o clamor a Deus uma das etapas da punição do
mal é o fato de Deus se importar com o fraco e dar ouvidos ao seu clamor (Dt
24.14,15). Ele não ignora o pecado contra os fracos e injustiçados.
A etapa final no processo que conduz à vingança contra o pecado dos
opressores é a efetivação do castigo pelo justo Senhor. Apesar do momento
de dor, Davi já vislumbra o momento em que Deus o livraria punindo os
maus. Ele demonstrou tal esperança quando se absteve de resolver por si
mesmo, injustamente, sua difícil situação: “Davi, porém, respondeu a Abisai:
não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor
e fique inocente? Acrescentou Davi: tão certo como vive o Senhor, este o
ferirá, ou o seu dia chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha,
seja morto” (1Sm 26.9-10). Prevendo tal libertação, o salmista, então,
prenuncia sua alegria ao ver o Senhor agir (v.10): “O justo se alegrará quando
vir a vingança” (yismah tsadîq kî-hazâ naqam). Essa declaração atesta a
atuação de Deus em proteger os seus punindo os que lhe oprimem. A
conclusão, contrária ao que pensa o injusto (Sl 53.1), é que (v.11)
“certamente há um Deus que julga na Terra” (’ak yesh-’elohîm shoftîm
ba’arets).
Para ambos os lados, opressores e oprimidos, há lições importantes. Paulo
descreve um desses lados nos seguintes termos: “Pois muitos andam entre
nós, dos quais, repetidas vezes, eu vos dizia e, agora, vos digo, até chorando,
que são inimigos da cruz de Cristo. O destino deles é a perdição, o deus deles
é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam
com as coisas terrenas” (Fp 3.18,19). As pessoas que se veem descritas
nesses dizeres devem, olhando para o Salmo 58, saber que Deus não deixará
tais atitudes impunes. Diante disso, devem se arrepender dos seus pecados e
buscar o único que pode mudar não apenas tal destino, mas o próprio caráter
dos que o buscam, fazendo-os “serem feitos filhos de Deus” (Jo 1.12).
Quanto aos que já pertencem a Deus, pela fé em Cristo, e atravessam
momentos difíceis como o de Davi, devem lembrar-se do seu futuro nos
braços do Senhor quando ele separar uns para a vida eterna e outros para a
vergonha eterna (Dn 12.2). De qualquer modo, devem eles aguardar o justo
juízo daquele que não aceita subornos, nem julga com base em interesses
espúrios: o maior de todos os juízes que se assenta no supremo tribunal.
SALMO 59
A Perseguição e Condenação do Inocente
SALMO 61
As Recordações do que Deus Faz
SALMO 62
O Silêncio do Sofredor
SALMO 63
O Anseio de Estar na Presença de Deus
SALMO 65
A Transbordante Gratidão da Restauração
SALMO 66
A Gratidão que não se Pode Conter
SALMO 67
A Ação que Beneficia o Mundo
Assim como eu, minha mãe também é dentista. Ela voltou a estudar depois
que os filhos já tinham certa idade e se formou com quarenta anos de idade.
Cursamos odontologia na mesma universidade em que iniciei meu curso no
ano seguinte ao da formatura da minha mãe. Desse modo, tivemos os
mesmos professores. Um deles tinha um modo de avaliação que envolvia um
exame oral. O problema é que a matéria em si já era complicadíssima.
Juntando a isso o fato de que o professor era um tanto amedrontador, o
resultado eram alunos em pânico antes do exame oral e vários deles
chorando, pois frequentemente se esqueciam do que haviam estudado devido
ao nervosismo do momento.
Depois de algumas dessas provas – ou “provações” –, minha mãe procurou
o professor e argumentou com ele sobre os efeitos que seu sistema de
avaliação produzia nos alunos e como, diante de tanto pânico, a avaliação não
refletia o real conhecimento do aluno. Por fim, o professor aboliu esse jeito
de avaliar os alunos. Eu não me beneficiei dessa mudança, pois no ano em
que cursei aquela matéria o professor voltou a aplicar as chamadas orais. De
qualquer modo, todos os alunos até a minha turma foram beneficiados pela
iniciativa da minha mãe.
O Salmo 67 também fala de uma atuação cujos benefícios se estendem a
outros. Mas não se trata de uma turma; trata-se do mundo. Assim como no
Salmo 65, a ocasião é a colheita farta vinda como suprimento de Deus ao seu
povo (v.6): “A terra deu sua safra” (’erets notnâ yevûlah). O motivo da alegria
é a colheita, mas a fonte da colheita e da alegria é o próprio Deus: “Deus, o
nosso Deus, nos abençoa” (yevarkenû ’elohîm ’elohênû). Sendo assim, essa
poesia é, conforme diz seu título, uma alegre “música” (mizmôr), um
“cântico” (shîr) de louvor a Deus pelo suprimento.
Esse assunto não é novidade a essa altura do livro de Salmos. Entretanto,
há um fator que torna singular esse capítulo: o modo como, por meio da
bênção de Deus ao povo de Israel, há benefício para outros, a saber, as nações
da Terra. Esse enfoque explica porque o salmista, por duas vezes,
vislumbrando a colheita dos agricultores israelitas, se refere aos homens de
todas as nações e os conclama a adorar o Deus soberano (vv.3,5): “Aclamem-
te os povos, ó Deus, aclamem-te todos os povos” (yôdûka ‘ammîm ‘elohîm
yôdûka ‘ammîm cullam). Apesar de não parecer em um primeiro momento, a
ação de Deus em benefício do suprimento de Israel é motivo de bênção para
pessoas do mundo todo. Assim, esse salmo evidencia três efeitos da bondade
de Deus em relação a Israel que abençoa o mundo, o qual, pela verdade e
pelo conhecimento, pode se tornar alvo das maiores benesses do Senhor.
O primeiro efeito produzido pela demonstração da bondade de Deus é
tornar sua salvação conhecida ao mundo. O salmista inicia o salmo
expressando seu desejo (v.1): “Que Deus mostre seu favor para conosco e nos
abençoe” (’elohîm yehannenû wîvorkenû). Esse é o pedido geral de bênçãos
vindas da graça de Deus. Porém, em um salmo alegre por causa da colheita, é
claro que o salmista tem em mente a bênção dada por Deus enchendo os
celeiros do povo a fim de garantir sua subsistência. Pensando nisso, o
salmista vê esse ato gracioso de Deus como uma oportunidade de tornar seu
caráter conhecido dos homens: “Que ele faça sua face resplandecer sobre
nós” (ya’er panayw ’ittanû). Outra maneira de dizer isso seria: “Que o Deus
invisível se mostre aos homens na sua atuação favorável a nós”.
O desejo do salmista é justificado. Ele deseja que o conhecimento de Deus
não fique restrito apenas aos israelitas de fala hebraica, mas a todos os povos.
Ele deseja de coração que as nações conheçam a salvação que vem de Deus
conhecendo o próprio Deus que salva (v.2): “A fim de que o teu caminho seja
conhecido na Terra e, em todos os povos, a tua salvação” (lada‘at ba’arets
darkeka bekol-gôyim yeshû‘ateka). Eis um dos propósitos divinos ligados à
eleição de Israel. Deus escolheu um povo por meio de quem sua Palavra, seu
caráter e o Evangelho da salvação fossem manifestos e anunciados pelo
mundo todo. Deus escolheu a nação israelita para se revelar aos homens e
para trazer salvação.
O segundo efeito é garantir uma direção justa para o mundo. Depois de
convocar os povos para a adoração ao Senhor (v.3), o salmista explica a razão
para o efusivo louvor (v.4): “Que os povos celebrem e deem brados de
louvor, pois tu julgas as nações com retidão e guias os povos na Terra”
(yismehû wîrannenû le’ummîm kî-tishpot ‘ammîm mîshôr ûle’ummîm ba’arets
tanhem). A segunda cláusula desse versículo traz um problema para os
exegetas, pois pode ser compreendida, como aqui traduzida, na forma de uma
ação presente e contínua – “tu julgas... guias”. Isso revela o controle
soberano de Deus sobre a História e o modo justo de tratar aqueles que o
temem e punir os que desprezam o bem, garantindo que o mal não cresça sem
limites. Porém, é possível e teologicamente aceitável traduzir tais ações no
tempo futuro – “tu julgarás... guiarás” –, aludindo à vinda do Messias para
reinar com justiça e poder, trazendo ao mundo paz e retidão (Is 2.1-4; Mq
4.1-4). Problema para os exegetas, mas não para as pessoas que, vendo o
poder de Deus no sustento de Israel, passam a ter convicção e esperança de
que Deus é poderoso para, agora, refrear o mal e, no futuro, debelá-lo
definitivamente no reinado anunciado e prometido do Deus Filho.
Por fim, o terceiro efeito é inspirar um sentimento de temor no mundo.
A observação atenta da atuação poderosa e graciosa de Deus, sustentando o
povo que ele chamou para si, não permite que se ignorem a grandeza de Deus
e a veracidade das suas promessas e caminhos. Eis a razão porque, muitas
vezes, as pessoas se curvam em devoção ao Senhor, Deus do universo. O
salmista não está alheio ao efeito que a atuação de Deus tem sobre o coração
dos homens (v.7): “Que Deus nos abençoe e, assim, temam a ti todas as
extremidades da Terra” (yeborkenû ’elohîm weyiyre’û ’otô kol-’afsê-’arets).
É nítida a conexão entre a ação misericordiosa e soberana de Deus para
com Israel e o temor que deve ser produzido no mundo pela observação do
ato. O que precisa ficar claro é como esse temor liga o homem perdido ao
Deus salvador. Em primeiro lugar, significa reconhecer a divindade,
singularidade e primazia do Senhor sobre tudo que existe. Em segundo, estar
convicto de que, pela justiça divina, há punição para quem não puder
comparecer plenamente inocente em seu tribunal. Por último, crer que só ele
pode conceder o perdão que homem pecador necessita para ser salvo do juízo
e ser recebido nos braços calorosos e amáveis do Pai eterno: “Se observares,
Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá? Contigo, porém, está o
perdão, para que te temam” (Sl 130.3,4).
Diante disso, quem duvidará da sabedoria de Deus em chamar um povo por
meio de quem ele se revelasse ao mundo como Deus eterno e poderoso e
como Pai amoroso, compassivo e salvador? Quem defenderá a ideia de que
Deus foi frustrado pelo modo como a história do Antigo Testamento se
desenhou? Quem ignorará que tudo que Deus fez no passado foi para
alcançar homens e mulheres perdidos ao redor do globo em todas as eras?
Quem poderá desprezar um amor tão grande e a oferta da gratuita salvação
que vem pela fé no sacrifício do Senhor Jesus no Calvário? Bem disse o
apóstolo Paulo: “Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi
escrito a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras,
tenhamos esperança [...] para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 15.4,6).
SALMO 68
Os Efeitos da Presença de Deus
SALMO 69
Reações das Pessoas Maltratadas
SALMO 70
O Valor da Memória
Eu tenho um amigo alemão com quem gosto muito de conversar. Não é
sempre que podemos gastar algum tempo conversando, mas, sempre que isso
acontece, aprendo algo novo e relevante para minha vida. Em nossa última
conversa, ele me disse ter vergonha a respeito dos rumos e dos resultados da
Segunda Guerra Mundial para o seu país. A princípio, não compreendi muito
bem o sentimento do meu amigo, principalmente em relação ao “holocausto”,
visto que tudo aquilo ocorreu em outra geração e por mãos de uma minoria
dominante. Porém, ele me explicou que isso é resultado de sua educação no
ensino fundamental, visto que as professoras ensinam essa parte da história
alemã como motivo de vergonha para o povo com a finalidade específica de
impedir que coisas assim voltem a acontecer. Nesse ponto, fiquei atônito.
Primeiro, com a nobreza do objetivo; depois, com o valor que a memória tem
na vida prática das pessoas. A lição que tirei disso foi: “Relembrar o passado
altera os rumos no presente”.
Acredito que Davi sabia muito bem essa lição e o Salmo 70 é uma prova
disso. Esse salmo é praticamente uma cópia do Salmo 40.13-17. Apesar de
nenhum versículo ser exatamente idêntico no texto hebraico, o sentido básico
é exatamente o mesmo. Na verdade, parece que Davi escreveu “de cabeça” o
Salmo 70 lembrando do trecho final do Salmo 40 – razão para as pequenas
diferenças – com a clara intenção de relembrá-lo. É possível também que,
pelo uso popular de um salmo tão belo, sua letra tenha sofrido certa alteração
na boca do povo, levando o salmista a reproduzi-la. De qualquer modo, a
intenção do Salmo 70 vem expressa no seu título. Literalmente, e ele diz:
“Para relembrar” (lehazkîr). A pergunta é: “Para relembrar o que?”.
Essa resposta não é fácil definir, pois duas situações podem estar por trás
do salmo. A expressão lehazkîr (infinitivo construto do verbo “lembrar”, no
grau Hifil, prefixado pela preposição “para”) pode ser traduzida de modo a
sugerir duas situações. Ela pode ser “para recordar” – como em Isaías 43.26
– em que a situação talvez relembrasse a crise que Davi passou quando
escreveu o Salmo 40. Nesse caso, a lembrança da esperança do rei no passado
serviria agora para reavivar a esperança e a confiança no Senhor, lembrando,
também, da libertação passada. Outra possibilidade de tradução é “para
celebrar” – como em Cantares 1.4 –, sugerindo o mesmo tipo de livramento
que o salmista teve nos dias do Salmo 40, conclamando o povo a agradecer e
comemorar aquilo que pediu a Deus e dele recebeu.
O fato de não ser possível definir o contexto do Salmo 70, não nos impede
de notar a intenção de Davi de relembrar os dias de tormento que atravessou
apoiado na oração confiante ao Senhor. Nesse sentido, o salmista quer
oferecer quatro recordações que ajudem os leitores do salmo a decidir pelo
modo correto de se comportar no presente diante das dificuldades e do
controle soberano e amoroso do Senhor.
A primeira recordação é a grande necessidade que temos de Deus (v.1).
“Ó Deus, [seja favorável] a me livrar” (’elohîm lehatsîlenî). Deve-se notar
que o salmista não dá nenhum tipo de ordem a Deus, nenhum tipo de
ultimato, nem sequer algum modo de orar ou alguma realidade a ser lembrada
que obrigue o Senhor a socorrê-lo. O que o salmista pede é o favor de Deus,
favor esse imerecido para qualquer homem – “favor imerecido” é uma das
definições teológicas para a graça de Deus. A razão dessa oração é o fato de
que o salmista não pode, por si só, resolver o que lhe aflige. Assim, mesmo
sabendo que nada merece, ele recorre ao único que pode sanar sua
necessidade. O v.1 ainda fornece mais uma característica da situação
atravessada pelo salmista, demonstrando que ele tinha uma necessidade
“urgente”: “Ó Senhor, apressa-te em me livrar” (yehwâ le‘ezratî hûshâ). Com
isso, o salmista não se deixa enganar pelo orgulho de dizer que pode
enfrentar qualquer coisa e que tem respostas corretas para tudo. Ele
reconhece que tem necessidades que ele mesmo não pode sanar e conhece o
único que pode.
A segunda recordação é o pequeno poder das adversidades (vv.2,3). Davi
lembra a situação arriscada que passou. Havia inimigos que queriam matá-lo,
cuja determinação fazia com que a vida de Davi estivesse “por um fio”.
Porém, sabedor de quem é o Senhor e qual o seu poder, Davi clama a fim de
que seus inimigos sejam desbaratados: “Sejam envergonhados e derrotados
aqueles que buscam [tirar] minha vida” (yevôshû weyahperû mevaqshê nafshî).
Essa oração só faz sentido porque o salmista sabe que mesmo as piores
adversidades nada são diante de Deus. Não era questão de Deus conseguir ou
não livrá-lo, mas de querer ou não. Por isso, sua oração confiante: “Que
fujam por causa da sua vergonha aqueles que dizem: Aha! Aha!” (yashûvû
‘al-‘eqev bashtam ha’omerîm he’â he’â). A confiança dos inimigos que riam
e zombavam de Davi é vista por ele – e por Deus – como uma bravata
inconsequente de quem não conhece o poder de Deus. O fato é que o salmista
quer trazer à memória que, independente do tamanho da provação e da
perseguição, nenhum problema é maior que o nosso Deus.
A terceira é a grande maravilha de servir a Deus (v.4). Se os inimigos
dos servos de Deus são reduzidos a nada diante do Senhor Todo-poderoso, os
agraciados de Deus crescem em seus braços: “Alegrem-se e exultem em ti os
que te buscam” (yasîsû weyismehû beka kol-mevaqsheyka). Davi mostra que
buscar a Deus leva o servo de Deus a encontrar mais que o Senhor a quem
busca. Leva-o a encontrar a alegria verdadeira, sinal de edificação pessoal e
uma paz centrada em Deus e não nas circunstâncias. E nesse crescimento
pessoal, crescem-lhes também a gratidão e o louvor, expressão da comunhão
maravilhosa que tem aquele que é encontrado por Deus: “E que aqueles que
amam a tua salvação digam continuamente: ‘Seja Deus engrandecido’”
(weyo’merû tamîd yigdal ’elohîm ’ohavê yeshû‘ateka). Esse é o júbilo e o
louvor de quem conhece algo maravilhoso desconhecido dos que andam
longe de Deus.
A quarta recordação é a pequena capacidade dos homens (v.5). Por ser
rei, o salmista deveria ser o homem mais poderoso, respeitado e temido do
país. Entretanto, Davi se mostra fraco diante dos inimigos, pelo que busca do
Senhor um socorro que ele mesmo não pode promover, ainda que tenha
recursos que outros não têm. Desse modo, o rico e nobre rei diz: “Eu sou
pobre e desamparado” (’anî ‘anî we’evyôn). O salmista tem um vislumbre da
sua incapacidade diante do mundo. Para o homem mundano, essa visão
costumeiramente produz um pessimismo que lhe tira por completo a paz e a
esperança. Para o servo de Deus, essa visão produz dependência: “Tu és o
meu socorro e a minha preservação” (‘ezrî ûmefaltî ’attâ).
Davi tinha razão: há coisas que temos de recordar para saber como agir nas
mais diversas situações. E isso aumenta em importância na medida em que
essas situações vão se tornando mais difíceis e delicadas. Se isso foi
importante nos dias de Davi, continua sendo nos dias de Jesus, pelo que,
falando da obra do Espírito Santo, diz que ele utilizaria a memória como
ferramenta de edificação e de direcionamento na vida dos crentes: “Mas o
Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos
ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo
14.26). Nos momentos difíceis Jesus afirmou que seria necessário relembrar
do seu ensino: “Ora, estas coisas vos tenho dito para que, quando a hora
chegar, vos recordeis de que eu vo-las disse” (Jo 16.4). Que incentivo maior
que esse nós precisamos para nos aplicar ao estudo da Bíblia e para nos
submeter confiantes ao Senhor de quem recordamos as grandezas?
SALMO 71
As Inseguranças da Idade Avançada
SALMO 72
Os Santos Desejos para a Vida
SALMO 73
Inveja da Condição dos Ímpios
Certo rapaz gostava muito de dirigir seu carro. Cuidava dele como se fosse
um filho. Lavava, encerava e mantinha tudo em bom estado de conservação.
Seu carro só não lhe trazia mais alegria porque o rapaz detestava o modo
como outros motoristas se portavam no trânsito. Em lugar de aproveitar os
passeios de carro, o jovem ficava muito nervoso quando era ultrapassado pelo
lado direito, quando via carros mal-estacionados e, principalmente, quando
outros carros atravessavam o sinal vermelho. Ele se sentia lesado por ter de
esperar a vez para seguir em frente enquanto um “espertinho” cruzava
indevidamente o semáforo. Essa indignação e essa sensação de perda foram
crescendo até que, um dia, invejando a condição daqueles motoristas que
sempre chegavam antes que os outros, ele resolveu passar o cruzamento com
o sinal vermelho. Foi quando um caminhão, em alta velocidade, se chocou
com seu carro e lhe tirou a vida.
Asafe, autor de doze salmos (50, 73-83), não tinha um automóvel, mas
conhecia o sentimento que acabou levando aquele rapaz à morte. Sobre o
autor, muitos o associam ao chefe do louvor na “Casa de Deus” (1Cr 16.3 cf.
25.1,6). Contudo, tendo em vista que todos seus salmos têm como pano de
fundo a rebeldia do povo e o juízo de Deus (anunciado ou aplicado) –
contexto mais parecido com os dias de Jeremias e Habacuque que de Davi e
Salomão (exceto do Salmo 83, claramente escrito antes da destruição da
Assíria em 722 a.C.) –, é bem possível que se trate de outro Asafe, o qual
teria exercido uma função sacerdotal nos dias que precederam a queda de
Jerusalém (587 a.C.) e que, sobrevivendo a ela, escreveu posteriormente
sobre a aplicação do juízo de Deus – não podemos descartar a possibilidade
de os massoretas que introduziram os pontos vocálicos no texto hebraico do
Antigo Testamento terem interpretado o título como “de Asafe” (le’asaf),
quando talvez o correto fosse “do colecionador” (le’osef) ou, ainda, “para se
guardar” (le’asof).
Seja quem for o autor, o Salmo 73 é um relado do conflito pelo qual ele
passou, atravessando uma crise que quase o inutilizou na obra do Senhor.
Essa crise – e seu aprendizado posterior – foi descrita no Salmo 73. Ele
começa com a afirmação (v.1) de que “Deus é bom para Israel, para os puros
de coração” (tôv leyisra’el ’elohîm levarê levav). Entretanto, parecendo
contradizer essa verdade, Asafe completa (v.2): “Meus pés quase se
desviaram” (kim‘at natayû raglay). Ele não quis dizer que tropeçou em algo,
mas que quase se afastou do Deus bondoso. A razão disso é clara na pena do
salmista (v.3): “Pois eu senti inveja dos arrogantes ao ver a prosperidade dos
ímpios” (kî-qinne’tî bahôlelîm shelôm resha‘îm ’er’eh).
Assim como o jovem que se cansou de ver os motoristas “espertinhos”
cruzarem o sinal vermelho, Asafe se cansou de ver os maus vivendo
tranquilamente enquanto os justos sofriam. Em algum momento, essa
indignação se tornou inveja e desejo de viver como aqueles homens que não
temiam a Deus, mas que não sofriam privações. Assim, dá para entender
porque ele disse “meus pés quase se desviaram”. Esse estado – impróprio
para o servo de Deus – não surgiu do nada. Sua causa foram conceitos e
sentimentos errados.
Dentre as causas da inveja de Asafe, a primeira delas é a visão unilateral
da situação. Usando um dito popular, Asafe viu apenas um “lado da moeda”:
a vida tranquila dos homens maus. A unilateralidade da visão de Asafe é
facilmente notada na análise irreal que faz desses homens (v.4): “Pois não há
tormentos para eles e seus corpos são bem alimentados” (kî ’ên hartsuvvôt
lemô tam ûbarî’ ’ûlam). Essa visão cresce e Asafe acaba por fazer uma
descrição quase sobre-humana dos injustos, como se experimentassem uma
existência distinta do resto da humanidade (v.5): “Para eles as fadigas
humanas não existem e eles não sofrem como os homens” (ba‘amal ’enôsh
’ênemô we‘im-’adam lo’ yenugga‘û). A visão do salmista, que vê apenas um
lado da realidade, ignora que todos os homens são sujeitos às condições da
vida e, com uma observação unilateral da situação dos ímpios, conclui
equivocadamente (v.12) que eles vivem “sempre tranquilos” (shalwê ‘ôlam).
Não é de surpreender que Asafe os invejasse.
A segunda causa é a frustração diante da impunidade. Asafe vê que os
homens maus, em lugar de esconderem seu orgulho vergonhoso e seu
procedimento violento, os exibiam como se fossem peças do vestuário (v.6).
Quem age assim, normalmente o faz pela certeza da impunidade. Por isso,
suas palavras nem eram dissimuladas ou hipócritas. Sua maldade era exposta
abertamente entre as pessoas por meio de palavras de uma arrogância sem
limites (v.8): “Eles afrontam e falam com maldade. Eles falam da opressão
abertamente” (yamîqû wîdavverû bera‘ ‘osheq mimmarôm yedavverû). A
palavra traduzida aqui como “abertamente” quer dizer literalmente “de um
lugar alto”. Isso pode significar falar com “orgulho” ou fazê-lo “de um lugar
em que todos vejam”. Quer dizer que a certeza de impunidade leva o homem
assim como que a subir em palanques para anunciar arrogantemente seus atos
de injustiça e de exploração – o v.10 favorece a questão do orgulho dizendo
que eles “colocam nos céus as suas bocas” (shattû bashamayim pîhem), como
se fossem “deuses” falando. A impunidade que Asafe observa fica patente na
pergunta desafiadora dos ímpios que questionava a própria capacidade ou
existência de Deus (v.11): “Eles dizem: ‘De que maneira sabe Deus o que
acontece? Há no Altíssimo conhecimento?’” (we’omrû êkâ yada‘-’el weyesh
de‘â be‘elyôn). Ninguém age assim se sabe que terá de encarar o Senhor. Essa
certeza de impunidade associada à prosperidade desses arrogantes foi uma
das causas da inveja do salmista.
A terceira é o equívoco quanto ao propósito da vida. Parece que Asafe
nutriu, por algum tempo, a falsa noção de que o homem existe para “ser
feliz” e para “desfrutar de paz e de riquezas”. Isso porque, mesmo vendo que
o procedimento dos ímpios é deplorável, ele reprova a validade dos seus
próprios procedimentos justos (v.13): “Assim sendo, em vão eu mantive a
minha consciência pura e banhei minhas mãos na inocência” (’ak-rîq zikkîtî
levavî wa’erhats beniqqayôn kaffay). Se Asafe se lembrasse que o objetivo da
sua existência é “glorificar a Deus” em lugar de “ser feliz e próspero”, ainda
que os injustos prosperassem, ele estaria satisfeito e convicto de estar no
lugar correto. Mas ele conclui que seu procedimento santo tem sido inútil
diante dos resultados que estava colhendo (v.14): “Pois eu sofro o dia todo e
sou punido a cada manhã” (wa’ehî nagûa‘ kol-hayyôm wetôkahtî lavveqarîm).
Essa punição a que ele se refere parece ser o fato de ter de lutar com as
dificuldades da vida enquanto os maus prosperavam. Não são necessários
mais que esses três erros de observação e pensamento para se ter inveja das
pessoas mais desonestas e vis do planeta.
Contudo, o salmo não termina assim. Os vv.15-17 formam uma transição
para uma postura totalmente diferente. Enquanto os vv.15,16 evidenciam que
Asafe não deixou sua vida ser guiada por aquela visão pessimista e invejosa –
e o quanto seria danoso se tal ocorresse –, o v.17 é como uma vertente do
salmo. Nele se inicia uma guinada no pensamento do salmista, sobre a
prosperidade dos ímpios e o sofrimento dos justos, que o faz assumir seu
lugar correto sob a direção soberana e santa do Senhor. O ponto que converte
o rumo do texto é a preposição temporal “até que” (‘ad). Ela demonstra que
aquilo que aconteceu no passado havia terminado naquele momento (v.17):
“Até que eu entrei no santuário de Deus” (‘ad-’avô’ ’el-miqdeshê-’el). Não é
possível determinar se Asafe se refere a uma entrada literal no tabernáculo ou
se é uma figura de linguagem para se referir a uma aproximação de Deus – ou
ambos concomitantemente. No entanto, é possível ver claramente o resultado:
“Eu compreendi o futuro deles” (’avînâ le’aharîtam). Refletir sobre o fim dos
injustos sanou a inveja que sentia deles e evitou seu desvio completo. Isso
não ocorreu sem que três fatores o guiassem.
O primeiro fator foi lembrar a verdade completa. O outro “lado da
moeda” era que a alegria presente dos ímpios se tornaria punição nas mãos de
Deus (v.18): “Tu seguramente os colocarás em lugares escorregadios. Tu os
farás cair em ruínas” (’ak bahalaqôt tashît lamô hiffaltam lemashû’ôt). Se a
figura anterior era a de arrogantemente anunciarem sua maldade de lugares
altos, essa nova figura os coloca como caídos dessas alturas onde subiram,
destruídos pela queda (ver vv.19,20).
O segundo foi reconhecer a graça de Deus. O salmista narra seu estado
inicial de conflito dizendo (vv.21,22): “Quando meu coração se tornou azedo
e senti minhas entranhas perfuradas, eu fui um tolo e ignorante. Como fazem
os animais, assim agi eu contigo” (kî yithammets levavî wekilyôtay ’eshtônan:
wa’anî-ba‘ar welo’ ’eda‘ behemôt hayîtî ‘immak). Entretanto, quando se
aproximou de Deus (v.17) ele percebeu a presença do Senhor consigo (v.23):
“Mas estou continuamente contigo” (wa’anî tamîd ‘immak). Apesar de o
salmista ter vivido momentos de revolta, de inveja e de ingratidão, o Senhor
nem o abandonou, nem o desamparou nas dificuldades: “Tu seguraste a
minha mão direita” (’ahazta beyad-yemînî). Finalmente, Asafe reconhece o
que nunca deveria deixar de perceber: que a graça de Deus o acompanhava
sempre.
O último fator foi nutrir a esperança da vida futura. Se no presente o
Senhor era o guia de Asafe – assim como de todos os que lhe pertencem –,
ele seria, no futuro, aquele que garantiria o bem-estar do salmista para que
vivesse na sua maravilhosa presença (v.24): “No teu conselho tu me guias e,
depois disso, levar-me-ás à glória” (ba‘atsatka tanhenî we’ahar kavôd
tiqqahenî). A jornada com Deus que começa na Terra só termina nos céus.
Assim, olhando para o futuro glorioso, Asafe vive com a esperança presente e
com o consolo que vem dessa esperança (v.25): “Estando contigo, eu não
tenho alegria na Terra” (we‘immeka lo’-hafatstî ba’arets). A ideia não é que
andar com Deus gera tristeza. Pelo contrário, o que Asafe afirma é que
nenhuma alegria terrena pode superar a alegria que ele tem no Senhor. Esse é
o sentimento que surge no salmista que vive problemas no presente, mas que
sabe que viverá no futuro na glória de Deus. Assim, a esperança da vida
futura cria, na vida presente, contentamento, consolo, confiança e coragem
(v.26,28).
É certo que o mundo tem muitas coisas que nos chamam a atenção. Com
toda certeza seremos tomados de inveja ao ver os homens que não temem o
Senhor desfrutar de paz, de alegria e de prosperidade enquanto nós lutamos
para cumprir honradamente nossas responsabilidades. E é totalmente seguro
que o diabo sempre fará sugestões a fim de acharmos desvantajoso seguir
nosso Deus. Entretanto, ao saber previamente o que acontece quando se é
atingido por um caminhão veloz, você ainda inveja os motoristas que cruzam
o sinal vermelho? Não! Você simplesmente aguarda com paciência o
semáforo ficar verde, pois sabe que sua alegria não vem de atravessar
primeiro o cruzamento, mas de chegar são e salvo ao seu destino.
SALMO 74
Ignorando os Avisos de Deus
SALMO 75
A Esperança do Justo Juízo de Deus
SALMO 76
A Admiração Diante da Vitória
Um dos heróis que tive na minha adolescência foi Ayrton Senna, piloto de
Fórmula 1. É certo que há um ou outro piloto, na história do automobilismo,
que obteve melhores marcas e até mais vitórias que Senna. Entretanto, o que
o torna um piloto singular não é ser vitorioso nas melhores condições de
carro e de equipe, mas vencer nas mais adversas situações como era o caso de
Senna. Isso aconteceu muitas vezes quando ele dividia equipe com Alain
Prost e era ocasionalmente tratado como segundo piloto. Isso também
ocorreu quando, com pneus gastos e disputando a vitória contra Nigel
Mansell em seu carro mais potente, Senna segurou o favorito até o final,
depois de perder e retomar à primeira colocação, vencendo a corrida por meio
carro de vantagem (Grande Prêmio da Espanha – 1986). Algumas de suas
vitórias são históricas e serão contadas por muito tempo por pessoas que,
diante de feitos inigualáveis, passaram a admirar um dos melhores pilotos da
história do automobilismo.
Asafe, que nunca assistiu a uma corrida de Formula 1 e cujos únicos carros
que conhecia eram os de guerra, também tinha um herói, a quem passou a
admirar ainda mais depois de uma vitória marcante. O Salmo 76 é o registro
do louvor de quem viu o Senhor agir em favor de um povo e uma cidade que
não tinham em si capacidade de deter ou vencer o inimigo. Não é para
menos. Asafe demonstra o poderio militar dos inimigos que atacaram Judá
com termos fortes e sugestivos como (vv.3,5 e 6, respectivamente)
“relâmpagos do arco” (rishfê-qashet), “valentes” (’avvîrê lev – lit. “poderosos
de coração”) e “carro [de guerra] e cavalo” (rekev wasûs). Quanto maior é o
poder do inimigo, maior é a admiração do salmista ao ver a libertação divina,
admiração essa que o leva imediatamente ao louvor (v.11). Essa admiração de
Deus e de seus feitos é o resultado de quatro percepções que o salmista tem a
partir da libertação.
A primeira percepção é que Deus é imanente. Ser imanente significa que
Deus se faz presente na história humana, especialmente junto aos seus servos,
interferindo nos acontecimentos e aceitando se relacionar com as pessoas. Por
isso, ainda que sejam verdadeiras a transcendência divina (1Rs 8.27) e a
incapacidade do homem de entender completamente o Senhor (Jó 5.9; 11.7-
9; Is 55.9), o salmista diz (v.1): “Deus se manifestou em Judá” (nôda‘ bîhûdâ
’elohîm). Se a essência de Deus não pode ser vislumbrada pelo homem, Deus
se dá a conhecer por meio dos seus atos. Ao mostrar-se, o Senhor demonstrou
sua grandeza: “Seu nome é grande em Israel” (beyisra’el gadôl shemô).
A revelação pessoal de Deus não é um acidente de percurso, mas uma
iniciativa pessoal do Senhor, já que, não apenas chamou Israel para ser seu
povo pactual, como se introduziu no meio do povo e da sua vida por meio da
construção e do significado do tabernáculo (v.2): “Pois está em Salém a sua
tenda e em Sião a sua habitação” (wayhî beshalem sukkô ûme‘ônatô betsîyôn).
Salém e Sião são duas designações da cidade de Jerusalém, onde um
tabernáculo foi erigido por Davi para receber a arca até o tempo em que
Salomão construiu o templo.
A segunda percepção é que Deus é poderoso. A não ser quando Israel se
tornava alvo da disciplina do Senhor, sua imanência entre os israelitas trazia a
eles proteção. Essa é a razão desse salmo. O autor diz que em Jerusalém (cf.
v.2) o Senhor protegeu seu povo vencendo um inimigo poderoso, bem
armado e letal (v.3): “Ali ele despedaçou os relâmpagos do arco, o escudo, a
espada e a batalha” (shammâ shivvar rishfê-qashet magen weherev
ûmilhamâ). A libertação, segundo o salmista, foi tão magnífica que sua visão
de Deus foi enaltecida pelo conceito da glória (v.4): “Tu és resplandecente e
magnífico” (na’ôr ’attâ ’adîr).
A descrição do local do livramento e o poderio desbaratado do inimigo
fazem alguns estudiosos crerem que o salmo trata da libertação de Jerusalém
do ataque anunciado por Senaqueribe (2Rs 18.19-37), frustrado pela ação de
Deus de, em uma noite, fazer perecer 185 mil soldados assírios (2Rs 19.35-
37), encerrando sua campanha militar. Essa é uma sugestão que deve ser
considerada, já que o salmista fala do grande poderio que foi vencido
(vv.5,6): “Os valentes foram despojados. Eles dormiram seu sono e nenhum
dos homens fortes pôde contar com seus punhos. Por causa da tua repreensão
adormeceram tanto o carro como cavalo, ó Deus de Jacó” (’eshtôlelû ’avvîrê
lev namû shenatam welo’-mats’û kol-’anshê-hayil yedêhem migga‘arateka
’elohê ya‘aqov nirdam werekev wasûs). Leve-se em conta que esse sono e a
ação de dormir são eufemismos para a morte dos soldados, dos charreteiros
(os carros aqui citados são uma figura para se referir aos seus condutores) e
das suas montarias. Não é sem razão a admiração do salmista, visto o
expresso e revelado poder divino na vitória.
A terceira é que Deus é temível. Asafe declara exatamente isso (v.7): “Tu
és temível” (’attâ nôra’). Esse fato está assentado sobre outra qualidade do
Senhor que é a sua justiça. Assim, a razão para ser temido pelos homens é sua
ação de castigar o mal (v.8a): “Dos céus anunciastes tua sentença”
(mishammayim hishma‘ta dîn). O resultado prático de tal juízo torna Deus
temível diante dos homens, pois seu julgamento não é apenas uma
declaração, mas a concretização de ações poderosas. Sua sentença vem com
força e efeito a fim de promover juízo. Desse modo, Deus é tanto o juiz que
dá o veredito contra o mal como o oficial de justiça que faz cumprir a sua
decisão.
Nesse sentido, a atuação de Deus é dupla, pois ele, em primeiro lugar, traz o
direito que alivia os oprimidos (vv.8b,9): “A Terra se aterrorizou e se
acalmou ao se levantar Deus para executar o juízo e para libertar todos os
aflitos da Terra” (’erets yor’â weshaqatâ beqûm-lammishpat ’elohîm lehôshîa‘
kol-‘anwê-’erets). Em segundo lugar, ele destrona os perversos da sua
posição de arrogância e maldade (v.12): “Ele suprime o fôlego dos príncipes”
(yivtsor rûah negîdîm). A ideia formada por essa frase é que o Senhor os
impede de encher o peito orgulhosamente, abatendo-os e humilhando-os. A
conclusão é a mesma do início do v.7, acrescida da indicação de que ninguém
há que possa escapar dessa realidade: “Temível és aos reis da Terra” (nôra’
lemalkê-’arets).
A última percepção é a de que Deus é louvável. A admiração do salmista,
por fim, repousa sobre a dignidade do Deus de toda a Terra, a qual é
merecedora do louvor de seus servos. O curiosos é que ele não é louvável
apenas por trazer libertação e paz aos seus, mas por trazer também juízo aos
ímpios (v.10): “Pois a ira do homem te exalta” (kî-hamat ’adam tôdeka). À
primeira vista, essa frase é confusa. Entretanto, esse é um modo de exaltar
uma ação por meio do seu efeito. Nesse contexto, no qual Deus se levanta
contra os inimigos de Judá, o que produziu a ira desses homens foi a atuação
punitiva do Senhor sobre eles. Assim, seu nome é exaltado quando ele julga o
mal e pune os pecadores. Parece ser a mesma ideia de Paulo de que Deus é
revelado e glorificado tanto nos “vasos de misericórdia” como nos “vasos de
ira” (Rm 9.22-22). Por isso, o salmista completa: “Tu te cercas dos
sobreviventes da ira” (she’erît hemot tahgor), possivelmente transmitindo o
conceito de que Deus é glorificado até nas lembranças e nos relatos contados
pelos que viram seu poderio ruir diante do poder do soberano Senhor.
A ira dos inimigos punidos também aponta para o louvor do povo que
busca a Deus pela demonstração da fidelidade divina (v.11): “Façam votos ao
Senhor, vosso Deus, e cumpram” (nidarû weshallemû layhwâ ’elohêkem). Em
situações de calamidade e de iminente destruição, era comum os homens
fazerem votos a Deus pedindo libertação. O que o salmista ordena é que tais
votos sejam pagos em atitude de fidelidade. Assim, o temor a Deus mostra
seu lado reverente na adoração dos servos que admiram seu Senhor e o
louvam com atitudes práticas: “Tragam ofertas para aquele que é temível,
todos [vocês] que estão à sua volta” (kol-sevîvayw yôvîlû shay lannôra’).
Deus é, sim, admirável e digno de todo louvor, temor, respeito e submissão.
Por que será, então, que as pessoas têm mais disposição de admirar e exaltar
os feitos dos homens que exaltar aquele que lhes deu tais habilidades e cujo
poder e glória são incomparáveis? Talvez seja porque, até mesmo naqueles
que já foram perdoados e transformados pela graça de Deus, haja uma
pontinha – maior ou menor – da mesma soberba que é alvo do juízo divino.
Tal soberba tende a valorizar o homem em detrimento de Deus para que o
próprio homem receba um pouquinho da glória que pertence apenas ao
Criador soberano. Por isso mesmo, o povo de Deus deve notar essa raiz da
antiga erva daninha e erradicá-la totalmente. Sendo assim, que nossa maior
admiração seja constantemente direcionada àquele que faz o que ninguém
pode igualar e que é tudo sobre todos, cumprindo a ordem dada por meio do
profeta: “Mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu
sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas
me agrado, diz o Senhor” (Jr 9.24).
SALMO 77
A Questão do ‘Ponto de Vista’
SALMO 78
As Lições do Passado que Educam no Presente
SALMO 79
Providências Necessárias Depois do Choro
Há alguns anos ouvi a gravação de uma fita cassete que me fez retornar ao
passado. Ela foi gravada na casa do meu avô paterno enquanto eu e meu
primo brincávamos com um jogo que possuía um tabuleiro com pequenas
bolas. Além das conversas entre as pessoas que estavam na sala, a gravação
registrou o choro crescente da minha irmã, que ainda era uma pequena
criança, dizendo: “Eu quero a bolinha na mão!”. O que ela queria era pegar
uma das bolinhas do jogo. Em certo ponto da gravação, vozes começaram a
alertá-la sobre a iminente disciplina, caso continuasse com o choro mantido
por motivos errados. Infelizmente, os alertas não resolveram. A certa altura,
ouve-se uma mudança na intensidade do choro, demonstrando que ela foi
mesmo disciplinada. Nesse momento, minha mãe disse à minha irmã – com
um sotaque interiorano muito engraçado: “Agora você chora, porque agora
você merece!”. O que ela quis dizer foi que as reclamações indevidas e a
desobediência irredutível encontraram a devida e anunciada punição, de
modo que o choro passou a ser razoável. Não sei se minha irmã se lembra dos
fatos daquele dia, mas, até hoje, ela – e a família – se diverte com aquela
gravação.
Uma disciplina que, quando recordada, não produz diversão e risos foi a
punição de Judá pelo exército babilônico de Nabucodonosor (587 a.C.). Se o
Salmo 78 foi uma tentativa de, por meio das lições do passado, levar o povo
ao arrependimento e à verdadeira devoção ao Senhor “antes” que fosse
disciplinado, o Salmo 79 foi escrito “depois” que a dura punição se abateu
sobre Jerusalém e sobre o povo que se portou de modo irreverente e iníquo
diante de Deus. Porém, além do lamento natural em um momento como esse
– nessa ocasião, Jeremias escreveu o livro de Lamentações –, agora era hora
de aprender, ainda que tardiamente, a lição que Deus queria ensinar e
trabalhar pela restauração. Só que esse “trabalhar” não era algo a ser feito
pelos “braços” dos israelitas, mas pelos seus “joelhos” – modo figurado de
dizer que eles deveriam se humilhar diante de Deus e buscá-lo com os
corações arrependidos e desejosos de cumprir sua santa vontade. Nesse
sentido é que o salmista indica três providências que Israel deveria tomar
para ser restaurado pelo Senhor, tanto espiritual como politicamente.
A primeira providência é saber interpretar as consequências do pecado
(vv.1-4). É muito comum, diante de circunstâncias difíceis, ver as pessoas
assumindo atitudes diferentes. Em alguns casos, vemos gente que sofre agir
como se nada estivesse acontecendo. Não me refiro à atitude de não se abater
diante das dificuldades por confiar no Senhor, mas de, em um tipo infantil de
otimismo, praticamente irresponsável, negar o sofrimento em termos mais ou
menos assim: “Eu não aceito essa situação e, a partir de agora, já sou
vencedor”. Em outros casos, não importa o tamanho do problema, para
algumas pessoas a vida simplesmente acabou e, por ela, a morte pode levá-la.
Ambas as posições ignoram a verdade falhando em analisar os fatos que, no
caso do Salmo 79 – e de muita gente –, tratava-se de consequências do
pecado contra o qual Deus se irou (v.5).
Assim, o salmista descreve sua verdadeira situação (v.1): “Ó Deus, as
nações entraram na tua herança, profanaram o teu santo templo e
transformaram Jerusalém em ruínas” (’elohîm ba’û gôyim benahalateka
timme’û ’et-hêkal qodsheka samû ’et-yerûshalaim le‘îyîm). Além da invasão
militar, houve crueldade de tal maneira que só era comum em casos de
vingança contra um povo que foi rebelde ou que agiu como um inimigo
odioso. Tal crueldade se manifestou na desonra dos corpos dos israelitas
mortos – algo que, na visão da época, constituía um dos maiores temores dos
guerreiros (v.2): “Eles deram os cadáveres dos teus servos como comida às
aves do céu e a carne dos teus fiéis aos animais da terra” (notnû ’et-nivlat
‘avadeyka ma’akal le‘ôf hashamayim besar hasîdeyka lehaytô-’arets). Em
outras palavras, eles não receberam sepultura (v.3) e tiveram seus corpos
desonrados ao apodrecer no tempo e ao ser devorado por bichos, tornando-os
motivo de escárnio para quem o ouvisse (v.4). A realidade era dura de
encarar, mas somente por meio da verdade dos fatos e da correta relação com
sua causa (v.5) é que viria a restauração futura para a desventura presente.
A segunda providência é buscar a Deus para o perdão e a restauração
(vv.5-12). O reconhecimento da ira de Deus na forma da severa punição (v.5)
leva o salmista a pedir perdão pelos pecados da nação (v.8): “Não evoque
contra nós as iniquidades dos antepassados” (’al-tizkar-lanû ‘aônot
ri’shonîm). O salmista não está culpando as gerações anteriores e isentando a
geração presente. Ele provavelmente recorda a aliança do Senhor com Israel
no Sinai – que previa esse tipo de punição pela quebra do pacto – e dos
prolongados avisos do Senhor por meio dos profetas, aos quais tanto as
gerações passadas como a presente haviam ignorado. Em lugar disso, o
salmista busca a misericórdia de Deus: “Que nos alcance logo a tua
compaixão, pois estamos muito abatidos” (maher yeqaddemûnû rahameyka kî
dallônû me’od). Se até aqui não houve clareza quanto à contrição de coração,
o salmista pede claramente (v.9): “Perdoa os nossos pecados por amor ao teu
nome” (kaffer ‘al-hatto’tênû lema‘an shemeka).
Junto com o arrependimento que levou a um pedido de perdão, o salmista
pede outras coisas (v.9): “Socorra-nos” (‘ozrenû) e “livra-nos” (hatsîlenû).
Ao que tudo indica, o salmista vê bem a relação entre o arrependimento e
perdão de pecados com a restauração do pecador e seu retorno à condição de
servo abençoado pelo Senhor. Por isso, o salmista clama confiantemente pela
punição dos inimigos que destruíram Jerusalém e desonraram o povo do
Senhor (vv.6,7,11,12) e, também, pela vindicação do próprio nome de Deus,
cujo povo servia de testemunho do seu amor e poder (v.10).
A última providência é voltar à constância da submissão e da adoração
(v.13). Nenhum arrependimento é verdadeiro se não vislumbra o retorno à
fidelidade. Nenhuma restauração é completa se não há restauração no âmbito
espiritual. Por isso, o escritor do Salmo 79, antes de encerrar o texto, se refere
ao povo de Israel (v.13) como “teu povo e rebanho do teu pasto” (‘ammeka
wetso’n mar‘îteka). Ao dizer “teu povo”, a figura divina que é produzida na
mente dos leitores é a de que Deus é o rei da nação, sendo assim seu Senhor e
normatizador do modo de vida e de culto. Ao dizer “teu rebanho”, firma-se a
ideia da dependência que os israelitas tinham diante do seu protetor e
provedor. Não há espaço nesse quadro para a manutenção e continuidade da
rebeldia que lhes trouxe punição. Isso quer dizer que, depois do
arrependimento e da restauração, o salmista vislumbra o povo de Israel de
volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído: sob o comando pleno do
Altíssimo.
Como consequência de tal retorno, ele também propõe a efetivação da
função de Israel que, entre outras coisas, deveria adorar a Deus e ser razão,
até entre outros povos, de revelação do caráter divino e da produção de temor
ante o soberano: “Exaltaremos a ti para sempre, proclamaremos teu louvor de
geração em geração” (nodeh leka le‘ôlam ledor wador nesaffer tehillateka).
Adoração e proclamação são as duas atividades que o salmista atribui a Israel
– em circunstâncias ideais, obviamente – a serem realizadas “para sempre”.
Sendo assim, tal observação não age exatamente como profecia, mas como
um chamado aos israelitas para que, arrependidos, adorem a Deus
continuamente com devoção e temor.
A nação israelita, de fato, aprendeu com as lições do passado – pelo menos
nunca mais adorou outros deuses – e buscou a misericórdia de Deus. Foi
restaurada à sua terra no ano 538 a.C., um ano depois de a Babilônia cair
diante do poderio medo-persa e do controle de Ciro. Porém, Israel voltou a
abandonar Deus e deixou de obedecê-lo ao negligenciar, nos dias de Ageu e
Zacarias, a reconstrução do templo do Senhor, ao se unir, nos dias de Esdras,
às mulheres moabitas, ao promover, nos dias de Neemias, mais injustiça
social e descaso com a lei da aliança e, nos dias de Malaquias, promover um
culto odioso a Deus pelo desprezo que tinha para com as ofertas, com a
pureza de coração e com a devoção verdadeira.
Isso significa que as providências tomadas pelo salmista, no Salmo 79,
devem ser constantes. Afinal, o pecado ainda acomete todos os servos de
Deus, os quais aguardam o tempo em que terão seus corpos glorificados e
não mais conviverão com as consequências da queda. Até lá, saber
reconhecer os fatores que apontam os erros, buscar a reconciliação e
comunhão com o Senhor por meio do perdão que há na obra de Jesus Cristo e
entrar em um sério processo de santificação, com a finalidade de ser
constantes na adoração, pureza e testemunho cristão, são as obrigações
diárias de todos os que foram redimidos pela graça divina. No final de tudo,
na presença do nosso Senhor e mestre, minha mãe, com um grande sorriso no
rosto, poderá dizer – talvez até com aquele sotaque engraçado: “Agora você
ri, porque agora você não mais padece!”.
SALMO 80
Quando Deus Faz o que Disse que Faria
Assim que me formei, mudei-me para uma cidade no sertão mineiro com a
intenção de lá pregar o evangelho. Nos dez anos em que lá morei, passei a
conhecer as agruras da seca, já que se trata de uma terra onde as chuvas
costumam surgir somente no verão – houve um ano em que não choveu
durante onze meses. Eu brincava dizendo que lá o Sol queimava até na
sombra. Depois de deixar a região e voltar à minha terra de origem, até hoje
me pego admirando a chuva como se fosse demorar muito tempo para ver
outra.
Contudo, houve um ano – antes de eu me mudar para lá – em que choveu
quarenta dias seguidos, fazendo com que as estradas, que eram todas de terra,
se tornassem uma poça conjunta de lama. As estradas ficaram simplesmente
intransitáveis e a cidade começou a ficar ilhada. Caminhões com
mantimentos não conseguiam chegar até lá, de modo que houve certo pânico
entre os habitantes diante da possibilidade de os mercados ficarem vazios e
não haver o que comer. Ainda que fosse uma região que normalmente era
seca e que a chuva fosse ansiosamente aguardada, tudo que moradores da
região queriam nesse ano era ver a chuva passar e o Sol voltar a brilhar.
Esse mesmo desejo está no contexto do Salmo 80. Ele foi escrito em um
momento histórico que não é fácil de definir. Há quem considere a queda de
Samaria, capital do reino do Norte, Israel (722 a.C.), como esse momento.
Entretanto, a aflição causada por aquele reino a Judá torna improvável que o
salmista sentisse a tristeza contida nesse salmo diante da queda do inimigo.
Na verdade, a queda de Israel seria vista como libertação de Deus para Judá –
assim como foi profetizado em Isaías 7.1-9. Além disso, parece que todo o
território herdado pelos descendentes de Jacó fora abatido, haja vista (v.2) as
menções a Efraim (uma das tribos de Israel, onde estava a capital do reino,
Samaria), a Benjamim (uma das tribos de Judá, onde ficava a capital,
Jerusalém) e a Manassés (metade da tribo de Manassés representava a maior
unidade israelita na Transjordânia) – apesar de a referência a José (v.1) ser
uma clara inferência ao reino do Norte, cujas maiores tribos eram Efraim e
Manassés, os dois filhos de José. Assim, é bem possível que o contexto desse
salmo seja o mesmo do salmo precedente: a queda de Judá perante a
Babilônia, quando o único dos dois reinos até então intocado fora atingido
pelas consequências da sua maldade.
A semelhança entre esse salmo e a história que contei no início é que, em
ambos, as pessoas queriam ver o Sol brilhar. Isso, que na ilustração inicial era
um desejo literal, no salmo é uma figuração para a presença abençoadora e
libertadora do Senhor. O salmista trata essa ação de Deus como se fosse o
“brilho do Sol”, dizendo repetidas vezes (vv.3,7,19): “Faz brilhar o teu rosto
para que sejamos salvos” (weha’er paneyka weniwwashe‘â). Aliás, o salmo
começa com um clamor nesse sentido, de modo a conter dois pedidos (v.1):
“Dá ouvidos [ao clamor]” (ha’azînâ) e “faz brilhar” ou “resplandeça”
(hôfî‘â). O significado desse pedido é claro dentro do contexto (v.2):
“Desperta a tua força e vem para [trazer]-nos salvação” (‘ôrerâ ’et-gevûrateka
ûlekâ lîshu‘atâ lanû).
O desejo do salmista por ver tal brilho cumpre um papel dentro de uma
figura agrária: Israel é uma videira (v.8) que necessita do brilho do Sol e está
morrendo por falta dele. Na verdade, essa figura proposta pelo salmista não é
original e é muito provável que ele tivesse em mente o cumprimento do que
Deus avisou que faria no “cântico da vinha”, do profeta Isaías (Is 5.1-7) –
profecia de juízo contra Israel e contra Judá pelos seus pecados (cf. Is 5.7 –
Ezequiel e Oseias fizeram o mesmo [Ez 17.6-10; Os 10.1]). Assim, Isaías
comparou Israel a uma vinha pertencente a Deus (Is 5.1), pelo que o salmista,
tendo em mente tais predições, diz: “Tu tiraste do Egito uma videira” (gefen
mimmitsrayim tassîa‘) – clara menção ao êxodo. Essa videira foi tirada do
Egito e levada para uma terra que Deus, como agricultor, limpou e deixou
pronta para o cultivo (v.9): “Limpaste [a terra] diante dela [a videira]”
(pinnîta lepaneyha), ao que Isaías se refere nos seguintes termos: “O meu
amado teve uma vinha num outeiro fertilíssimo. Sachou-a, limpou-a das
pedras e a plantou de vides escolhidas” (Is 5.1b,2a).
O resultado desse cuidado, escolhendo a vide, tirando-a do Egito, limpando
a terra do que não era bom (v.8b) e tornando o solo propício para o plantio, é
que a vinha se estabeleceu muito bem e se espalhou por todo o terreno, a
saber, toda a terra de Canaã (vv.9-11). Contudo, algo surpreendente acontece,
sobre o que o salmista indaga do Senhor (v.12): “Por que derrubaste a cerca
dela?” (lammâ paratsta gedereyha). Derrubar a cerca que rodeava a vinha,
nesse caso, significa que Deus retirou e proteção dos israelitas e permitiu que
outras nações o invadissem e destruíssem (v.13), algo que Isaías previu muito
tempo antes de acontecer: “Agora, pois, vos farei saber o que pretendo fazer à
minha vinha: tirarei a sua sebe, para que a vinha sirva de pasto; derribarei o
seu muro, para que seja pisada” (Is 5.5).
Por essa causa, a condição da nação israelita quando o Salmo 80 foi escrito
era a seguinte (v.16): “Queimada a fogo e arrancada” (serufâ ba’esh kesûhâ).
Essa descrição combina com o anúncio do estado caótico advindo do juízo
divino presente nos dizeres de Isaías: “Torná-la-ei em deserto. Não será
podada, nem sachada, mas crescerão nela espinheiros e abrolhos; às nuvens
darei ordem que não derramem chuva sobre ela” (Is 5.6). É um quadro de
destruição e de infertilidade.
A questão que permanece diante desse quadro de uma mudança abrupta no
tratamento da vinha pelo seu agricultor divino é: “Por que Deus faria uma
coisa dessas – abandonar Israel e entregá-lo ao inimigo – com seu povo que
tirou do Egito e que estabeleceu em Canaã com todo cuidado?”. A resposta é
conhecida do salmista. Na verdade, ele nem sequer pergunta a Deus “por
quê”, mas “até quando”, mostrando saber que Israel estava sendo punido
pelos pecados que cometeu e pela rebeldia que manteve diante do Senhor
(v.4): “Ó Senhor, Deus dos Exércitos, até quando estarás irado contra a
oração do teu povo?” (yehwâ ’elohîm tseva’ôt ‘ad-matay ‘ashanta bitfillat
‘ammeka). Estar irado, ou “fumegar” (tradução literal) é a reação de Deus à
rebeldia e à desobediência do povo, pelo que não mais lhe atende as orações.
A razão para tanto é exposta por Isaías pelo uso de trocadilhos (Is 5.7). Ele
afirma que o Senhor se irou contra Israel porque lhe pediu um “julgamento
justo” (mishpat), mas viu o povo produzir “crime” ou “assassinato” (mispâ),
descrição do tratamento injusto que os poderosos rendiam aos mais fracos por
pura ganância e cobiça, tomando-lhes os bens e as terras e vendendo
sentenças a pessoas de muitas posses (um exemplo disso pode ser visto em
1Rs 21.1-16). Deus também lhes ordenou “justiça” (tsedaqâ), mas só se viu
entre eles “choro” ou “clamor” (tse‘aqâ), reação dos que eram abatidos
injustamente. Em resumo, o Salmo 80 vislumbra a anunciada punição do
Senhor ao povo pecador, injusto e obstinado. O Senhor realmente fez aquilo
que disse que faria. O salmista entende a lição e recorre a Deus,
reconhecendo o pecado de Israel (v.4), e se propõe, ensinando o povo a fazer
o mesmo, a retornar ao estado original de fidelidade para com Deus (v.18):
“E não nos afastaremos de ti. Vivifica-nos e proclamaremos o teu nome”
(welo’-nasôg mimmeka tehayyenû ûveshimka niqra’).
Assim, a conclusão que tiramos é que quando recai sobre alguém a
disciplina de Deus prevista para os momentos em que seus servos agem
obstinadamente (Hb 12.5-7), não adianta tentar racionalizar a situação
encontrando justificativas para o pecado, nem mudar de igreja procurando
algum lugar em que a iniquidade seja aceita, nem tampouco lançar mão de
técnicas “mágicas” para tentar comandar a situação e obrigar Deus a agir
beneficamente. Só há uma solução: o arrependimento de pecados, o retorno à
santidade e a renovação da submissão ao Senhor. Afinal, como diz o próprio
Isaías, “a mão do Senhor não está encolhida, para que não possa salvar; nem
surdo o seu ouvido, para não poder ouvir. Mas as vossas iniquidades fazem
separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu
rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.1,2).
SALMO 81
A Falsa Gratidão a Deus
SALMO 82
A Indignação do Justo Contra o Mal
SALMO 83
Quando o Sucesso Parece Improvável
SALMO 84
O Anseio pela Felicidade
SALMO 85
Os Benefícios do Perdão de Deus
Ouvi alguém dizer muito tempo atrás: “Eu não faço declaração de Imposto
de Renda, pois ganho meu dinheiro com muito suor e não quero dá-lo ao
governo. A corrupção de muitos políticos é tão grande que meu dinheiro sai
da minha conta e vai quase direto para as contas deles”. Apesar de parte dessa
afirmação refletir certa realidade do nosso país, tentei alertá-lo quanto aos
riscos que ele corria e quanto às sanções que sofreria, mas nada o demoveu
da sua posição. Até que ele quis fazer um financiamento para abrir um
negócio e adquirir um veículo. Um dos primeiros documentos requeridos
para esses financiamentos era a Declaração de Renda, a qual, obviamente,
ele não tinha. Foi preciso buscar a Receita Federal, entrar em acordo em
relação à dívida e buscar um modo de ser perdoado das multas geradas pelas
infrações fiscais. Somente quando tudo isso foi resolvido, os benefícios da
condição regularizada puderam ser usufruídos.
Esse não é o único benefício da regularização de uma condição corrompida.
O Salmo 85, escrito pelos filhos de Corá, foi composto em meio a uma
possível opressão nacional por povos inimigos, mas certamente em meio a
uma terrível seca. Os males, quaisquer que sejam, que recaíram sobre o povo
de Israel são interpretados pelo salmista como consequência de pecados do
próprio povo, de modo que deveriam buscar o perdão de Deus. Nesse sentido,
o salmista dá o exemplo a fim de que seus irmãos façam o mesmo (v.4).
Olhando para a situação de Israel nesse salmo, é possível notar que perdão de
Deus é uma bênção fantástica pela qual seus servos devem sempre agradecer.
Entretanto, o perdão em si não é o único benefício do arrependimento de
pecados. Quando o servo de Deus é perdoado pelo misericordioso Senhor
Todo-poderoso, outros benefícios são promovidos e aparecem nesse salmo.
Assim, o texto é tanto uma lição sobre a remissão divina como um
inigualável encorajamento para o arrependimento verdadeiro e um coração
contrito.
O primeiro dos benefícios do perdão de Deus é a percepção da
misericórdia no passado (vv.1-3). O salmista se lança ao rogo pelo perdão
presente depois de recordar o perdão passado. Nada como uma situação
desfavorável para se lembrar de como é bom andar com Deus e ser
beneficiário da sua obra redentora. Por isso, com a visão aclarada pelas
consequências do pecado, o salmista diz (v.2): “Tu perdoaste a culpa do teu
povo, encobriste todos os seus pecados” (nasa’ta ‘aôn ‘ammeka kissîta kol-
hatta’tam). Ele diz isso em referência a uma restauração passada de Israel
que envolveu o retorno de israelitas capturados pelo inimigo (v.1):
“Favoreceste a tua terra, ó Senhor, restauraste os cativos de Jacó” (ratsîta
yhwh ’artseka shavta shevût ya‘aqov). Há aqui uma demonstração de
conhecimento teológico, pois o escritor associa corretamente a disciplina de
Israel com a ira de Deus contra o pecado e, por isso, em meio ao seu clamor
está presente a nítida lembrança de que a restauração passada somente se deu
pela apaziguação do Deus santo (v.3): “Fizeste cessar toda a tua indignação,
reprimiste o furor da tua ira” (’asafta kol-‘evrateka heshîvôta meharôn
’affeka). Nesse caso, a percepção da misericórdia de Deus na história de
Israel foi uma bênção indizível para o povo arrependido, trazendo-lhe a
correta direção por meio da contrição e, também, a esperança de ser perdoado
e restaurado.
O segundo benefício é a validação do verdadeiro arrependimento (vv.4-
7). É fato que um arrependimento apenas social – aquele a que nos referimos
como “da boca para fora” – não tem validade alguma diante do Deus
onisciente que sonda os corações dos homens. Entretanto, o verdadeiro
arrependimento encontra no Senhor uma disposição graciosa de perdoar. Por
isso, o salmista, pedindo perdão, associa esse ato à restauração que vem de
Deus (v.4): “Restaura-nos, ó Deus da nossa salvação, e cancela a tua irritação
conosco” (shûvenû ’elohê yish‘enû wehafer ka‘aska ‘immanû). A pergunta do
v.5 é retórica, visto que Deus se prontificou, na aliança mosaica, a retribuir a
confissão de pecados com o desvio da sua ira e com a renovação das bênçãos
(Lv 26.40-45). Por isso, seguindo esse recurso literário, ele completa (v.6):
“Tu não voltarás a vivificar-nos para que o teu povo se alegre em ti?”
(halo’-’attah tashûv tehayyenû we‘ammeka yismehû-bak). Tendo colocado
desse modo, o salmista deixa o estilo rebuscado e faz um pedido claro que
condiz com sua mais pura intenção, sabendo que será atendido pela
misericórdia e fidelidade de Deus (v.7): “Manifesta a nós o teu amor e
conceda-nos a tua salvação” (har’enû yehwâ hasdeka weyesh‘aka titen-lanû).
O terceiro é a comunhão plena com o Senhor (vv.8-10). Nesse três
versículos, há um grande acúmulo de substantivos que expressam atuações de
Deus entre seu povo quando há uma boa manutenção do relacionamento, ou
seja, quando há comunhão entre Deus e seus servos. O primeiro desses
benefícios é a “paz” (v.8): “Eu ouvirei o que falar Deus, o Senhor, pois falará
de paz ao seu povo” (’shme‘â mah-yedavver ha’el yhwh kî yedavver shalôm
’el-‘ammô). Em seguida, o salmista alista a “salvação” e a “glória” de Deus
no meio do povo, seja atuando gloriosamente, seja sendo glorificado pelos
seus (v.9): “Certamente, a salvação está próxima dos que o temem para
habitar a glória em nossa terra” (’ak qarôv lîre’ayw yish‘ô lîshkon kavôd
be’artsenû). Por fim, surge a menção ao “amor” de onde provêm a lealdade, a
“fidelidade”, a “justiça” e novamente a “paz”, todos eles benefícios da
restauração da comunhão com Deus (v.10): “Amor leal e fidelidade se
encontraram, justiça e paz se beijaram” (hesed-we’emet nifgashû tsedeq
weshalôm nashaqû). A figura das qualidades positivas do caráter de Deus e da
obediência do homem “se encontrando” e “se beijando” aponta para uma
restauração plena tanto da submissão humana como da comunhão divina,
obviamente, por meio do perdão.
O último benefício é o desfrute de bênçãos vindas de Deus (vv.11-13). A
transição da ideia anterior com o final do salmo é muito interessante. O
salmista, lançando mão das qualidades advindas da comunhão, mescla-as ao
efeito físico que terão na agricultura de Israel (v.11): “A fidelidade brotará da
terra e a justiça dirigirá o olhar desde os céus” (’emet me’erets titsmâ wetedeq
mishamayim nishqaf). Na verdade, o que brota literalmente da terra é o fruto
do plantio que alimenta o povo e o que baixa do céu é a chuva que rega a
plantação – “dirigir o olhar” é um modo de o salmista se referir ao retorno da
chuva, como se antes ela tivesse “desviado seu olhar” da terra dos pecadores.
Entretanto, o salmista associa o desfrute dessas bênçãos ao retorno da
comunhão pelo perdão dos pecados. Feita essa conexão de ideias, o escritor
diz às claras qual será o resultado agrário, mostrando, por meio da palavra
“também” (gam), a íntima ligação que há entre o perdão e o retorno da
provisão divina (v.12): “Também o Senhor dará o que é bom, de modo que a
nossa terra dará sua colheita” (gam-yhwh yitten hattôv we’artsenû titten
yevûlah). Esse não seria o único benefício a ser desfrutado pelos
arrependidos. O Senhor restabeleceria sua caminhada junto com o povo como
um desbravador que abre um caminho seguro, do mesmo modo que fez no
deserto ao guiar a multidão até Canaã (v.13): “A justiça irá à sua frente e suas
pegadas abrirão caminho” (tsedeq lefanayw yehallek weyasem lederek
pe‘amayw). Essa afirmação pode, também, significar que Deus traria de volta
os israelitas cativos – e daria um sentido mais amplo ao v.1. O fato é que o
perdão de pecados, mediante o verdadeiro arrependimento, traria aos
contritos o desfrute das bênçãos que eles tanto ansiavam.
A vida presente, em quase todos os sentidos, é bem diferente da dos dias
desse salmista e da aflição aqui refletida. Entretanto, o Senhor é o mesmo e o
pecado produz a mesma repugnância no Deus santo. Eis a razão pela qual a
igreja, muitas vezes, deixa de desfrutar plenamente de bênçãos como paz,
alegria, esperança, segurança, consolo, direcionamento e coragem. O
desinteresse pela Palavra de Deus, o desenvolvimento de uma religião de
egoísmo e entretenimento, o afrouxamento dos padrões morais e o namoro
com o mundo perdido têm tirado muitos crentes do caminho seguro aberto
por Deus e os lançado nos perigosos pântanos do pecado. Deus, obviamente,
não permanece inerte diante do desvio, mas “corrige a quem ama e açoita a
todo filho a quem recebe” (Hb 12.6). Em lugar disso, os crentes deveriam
experimentar em todas as suas dimensões o que significa “eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10.10). Já decidiu o que é
melhor?
SALMO 86
As Identidades de Deus e dos seus Servos
SALMO 87
A Grande Metrópole de Deus
Gosto muito de história. Assim, em uma pesquisa sobre a Segunda Guerra
Mundial há alguns anos, deparei-me com um personagem marcante. Trata-se
de William Guarnere, sargento do 2º Batalhão do Regimento de
Paraquedistas 506 da 101ª Divisão Aerotransportada do Exército americano.
Ele fez parte da famosa Easy Company, conhecida de muitos por meio de
livros, filmes e seriados de televisão, que esteve à frente de muitas das mais
importantes batalhas da guerra na Europa, incluindo o “Dia D”. Chamado por
seus companheiros de armas como “Wild Bill” Guarnere, um dos grandes
motivos de orgulho para esse soldado, além de ter servido e lutado na
Companhia E, é o fato de ter nascido no Sul da Filadélfia, capital da
Pensilvânia, onde também conheceu sua esposa, Frannie, e criou seus dois
filhos, Gene e Bill. Assim como ele, muita gente tem uma ligação muito forte
com a cidade em que nasceu e procura qualquer ocasião na qual possa fazer
alguma referência à sua amada cidade natal.
O autor do Salmo 87 também olha para uma cidade natal com respeito e
alegria. Entretanto, não é uma cidade qualquer. Sua singularidade vem do
fato de que mesmo pessoas que não nasceram nela serão chamadas de filhas
daquela cidade. Isso se percebe pela repetição da frase (vv.4,6) “este foi ali
gerado” (zeh yullad-sham), além de uma variação que diz (v.5) “cada um
[desses] foi ali gerado” (’îsh we’îsh yullad-sham). A cidade-mãe, geradora de
tantos filhos, é Jerusalém. Sua peculiaridade, nesse caso, é que seus filhos são
do mundo todo, não apenas aqueles nascidos dentro dos seus limites. Como
pode uma coisa assim ser verdade? Simples: seus “nascidos” parecem sê-lo
de modo espiritual, envolve a conversão e a submissão a Deus, enquanto a
relação de parentesco não se dá pela geografia, mas pelo que a cidade
representa. Nem tudo que o salmo exalta está contido nele de modo explícito,
mas quando levamos em conta a revelação e os pilares teológicos bem
estabelecidos e firmados na época da sua composição, podemos vislumbrar
um dos mais belos e significativos capítulos do saltério. Desse modo, o
Salmo 87 apresenta verdades ligadas a Jerusalém em três épocas distintas.
No passado, Jerusalém foi fundada e amada por Deus (vv.1-3).
Jerusalém não é um acidente geográfico, histórico ou demográfico. Sua
função como sede do trono israelita, sobre o qual reinaram Davi e sua
dinastia monárquica, e local do templo que marcava a habitação do Senhor no
meio de Israel é resultado da indicação do próprio Deus que, primeiro, guiou
Abraão ao monte Moriá para sacrificar seu filho (Gn 22.2) e, depois,
designou tal monte como local escolhido para ser adorado: “Começou
Salomão a edificar a Casa do Senhor em Jerusalém, no monte Moriá, onde o
Senhor aparecera a Davi, seu pai, lugar que Davi tinha designado na eira de
Ornã, o jebuseu” (2Cr 3.1) – Flávio Josefo associa essas duas citações
bíblicas ao mesmo local (Antiguidades Judaicas: I, XIII, 2).
Sendo assim, o salmista inicia o texto se referindo a Jerusalém nos
seguintes termos (v.1): “Fundada por ele sobre os montes santos” (yesûdatô
beharrê-qadesh). O verso seguinte aclara que “ele”, nesse texto, é o próprio
Senhor. O local da cidade fundada por Deus foi determinado com base na
“santidade” – não que o local seja em si santo, mas que Deus decidiu
santificá-lo, ou seja, separá-lo para seus propósitos. Ele certamente amou o
povo que escolheu (Dt 7.7-9; Jr 31.31), mas fez diferença entre suas cidades
(v.2): “O Senhor ama as portas de Sião mais que todas as moradas de Jacó”
(’ohev yhwh sha‘arê tsîyôn mikkol mishkenôt ya‘aqov). Se até aqui o salmista
não especifica a razão para tal amor, ele lembra o leitor que muito já havia
sido dito sobre a cidade (v.3): “Dizem-se coisas gloriosas de ti, ó cidade de
Deus” (nikbadôt meduvvar bak ‘îr ha’elohîm).
No futuro, Jerusalém será o centro de convergência das nações (vv.4-6).
Acabando com o suspense criado pelos versos iniciais, o salmista apresenta a
razão da singularidade de Jerusalém atrelando esse fato a eventos futuros de
ordem mundial (v.4): “Mencionarei Rahav e a Babilônia àqueles que me
conhecem. Eis a Filístia e Tiro junto com a Etiópia. Este foi ali gerado”
(’azkîr rahav ûbabel leyot‘ay hinneh peleshet wetsôr ‘im-kûsh zeh yullad-
sham). Rahav é um “monstro marinho mitológico” ou “alguém soberbo e
arrogante” e não deve ser confundido com o nome de Raabe, prostituta de
Jericó – apesar de a pronúncia ser semelhante, a grafia das duas palavras é
diferente, assim como “sessão” e “seção”. Nesse caso, a palavra rahav é
utilizada para descrever o Egito (Is 30.7; 51.9 cf. v.10), provavelmente se
utilizando da figura de um monstro aquático para se referir ao país poderoso
– e soberbo – cujas águas são uma importante marca. Deve-se observar que
as nações mencionadas são tratadas no singular pelo pronome “este” (zeh),
indicando a unidade das nações diante do que representará Jerusalém no
futuro – a mesma ideia é expressa pela conglomeração das nações por meio
da preposição hebraica aqui traduzida como “junto com” (‘im).
Essa união mundial, representada pelas duas potências militares da época –
Egito e Babilônia –, e por nações próximas e distantes, quer amigos, quer
inimigos – Filístia, Tiro e Etiópia –, recebe uma filiação surpreendente ligada
a Jerusalém (v.5): “E se dirá a respeito de Sião: cada um [desses] foi ali
gerado. E ele, o Altíssimo, a firmará” (ûlatsîyôn ye’amar ’îsh we’îsh yullad-
sham wehû’ yekôneneha ‘elyôn). Isso deve ter sido realmente enigmático para
os judeus da época, visto que foram instruídos a não se ligar às nações
estrangeiras. Contudo, o Senhor afirma que fará um tipo de adoção oficial de
outros povos e que os colocará na qualidade de afiliados daquela cidade (v.6):
“O Senhor averbará no registro das nações: este foi ali gerado” (yhwh yispor
biktôv ‘ammîm zeh yullad-sham). Trata-se de um ato oficial como o de
registrar um imóvel ou de certificar o local de um nascimento.
A grande interrogação levantada nesse ponto é desfeita pela lembrança das
“coisas gloriosas” que foram ditas da cidade de Deus (cf. v.3). Em primeiro
lugar, Jerusalém figurava como local da presença do Santo de Israel quando,
no futuro, a pátria fosse restaurada (Is 12.6 cf. vv.1-5). Esse Santo terá a
função de redentor a atuará na conversão do povo (Is 59.20,21). O redentor
de Israel também será seu rei, o rei da casa de Davi, rei este que também é
Deus (Jr 3.17 cf. 2Sm 7.16; Mq 5.2). O reinado desse soberano não será
restrito a Israel, mas a todas as nações do mundo, às quais trará paz e justiça
(Mq 4.1-3 cf. Is 2.4; Zc 9.10). Desse modo, a glória de Jerusalém não está nas
suas pedras, muralhas ou edificações, mas naquele que irá reinar sobre ela e
sobre o mundo: “E o Senhor reinará sobre eles no monte Sião, desde agora e
para sempre” (Mq 4.7). O Novo Testamento identifica o Senhor Jesus como
tal rei e aclara o tamanho da glória que aqui é tratada: “O sétimo anjo tocou a
trombeta, e houve no céu grandes vozes, dizendo: O reino do mundo se
tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos
séculos” (Ap 11.15).
Por essa razão, no presente, Jerusalém é motivo de adoração ao Senhor
(v.7): “[Atentai vós], tanto cantores como adoradores: Todas as minhas fontes
estão em ti” (wesharîm keholelîm kol-ma‘yanay bak). A ordem de “atentar” ou
“dar atenção” não está presente no texto hebraico, mas está subentendida,
parecendo haver um chamado àqueles que louvam a Deus que se vale de uma
construção poética – caso contrário, a compreensão do texto perde a fluência
e o próprio sentido. “As fontes de Deus” – a razão do chamado – são a figura
das suas bênçãos, produtoras de salvação (Is 12.3-6), enchendo a cidade e
transbordando para as nações. O resultado almejado por essa frase final
justifica o próprio salmo. O salmista apresenta as verdades ligadas à
instituição de Jerusalém como local escolhido por Deus para sua morada e
como cidade cujo reinado futuro fará convergir para ela todas as nações a fim
de que, no presente, independente das circunstâncias possivelmente adversas
– levando em conta o contexto turbulento presente em vários salmos dos
filhos de Corá –, mantenha-se a esperança e se levante o devido louvor a
Deus.
A glória dos propósitos de Deus expressos na escolha e fundação de
Jerusalém como a capital do reinado israelita e habitação de Deus, unido ao
futuro glorioso da cidade quando nela Jesus for tanto o rei israelita como o
Deus que habita entre os homens, deve produzir agora, em nós, todos os
verdadeiros servos de Deus, um louvor que não se pode conter. É certo que
nós ainda aguardamos o dia em que o rei do universo adentrará novamente
Jerusalém para julgar o mundo e lhe trazer ordem e paz. Mas desde já
bradamos, pela fé, os gritos dos que o receberão como rei e Senhor na grande
metrópole escolhida para assentar o trono do nosso soberano e, segundo “o
seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na
dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as
da terra” (Ef 1.9,10).
SALMO 88
O Último Desejo Antes da Morte
SALMO 89
A Promessa do Reino Perpétuo
SALMO 90
O Homem Fraco Diante do Deus Forte
SALMO 91
A Segurança que só Deus Pode Dar
SALMO 92
A Maravilha do Tempo de Adoração a Deus
SALMO 94
O Injusto Diante dos Homens e Diante de Deus
Quando eu era criança, me disseram que “é melhor ser a cabeça do rato que
o rabo do leão”. A ideia pretendida pelo provérbio popular é que é mais
vantajoso ser o melhor de um grupo inferior que, em um grupo de elite, ser o
pior, o último deles. Eu nunca vi sentido nisso até que, quando adolescente,
vivi algo que me fez pensar a respeito. Eu jogava voleibol em certa categoria
em que eu me destacava. Isso me fez crer que eu merecia ser elevado à
categoria superior, na qual, na minha mente, eu também me destacaria. Mas,
quando aconteceu o que eu desejava, deixei de ser destaque para ser inferior a
todos, motivo de piadas e alvo de broncas e mais broncas. Ainda que isso
tenha sido bom para mim, fazendo-me crescer mais do que seria possível na
categoria inferior, eu entendi o que aquele provérbio queria dizer.
O Salmo 94 não deixa de conter, sob certo aspecto, a mesma lição. O texto
não nos informa nem a identidade do escritor, nem o contexto histórico em
que foi composto. Contudo, ele guarda semelhanças profundas com o Salmo
10, outro salmo anônimo, em que os ímpios fazem o mal abertamente,
ignorando o pleno conhecimento de Deus da situação e sua inevitável ação de
julgar. Do modo como aqui é exposto, a dupla realidade do ímpio é posta sob
aspectos diferentes. Por um lado, ele é descrito em sua ação diante dos outros
homens, sobre os quais ele se eleva e age como se ninguém pudesse detê-lo
ou julgá-lo – a “cabeça do rato”. Porém, por outro lado, ele é pintado, diante
do juiz eterno e Deus soberano, como alguém desfavorecido e fraco, incapaz
de evitar sua punição final – o “rabo do leão”. Quem escreve o salmo é um
homem sofrendo na mão de ímpios, motivo pelo qual o salmo é uma oração
por libertação e por punição dos maus. Assim, quatro verdades sobre o ímpio
são retratadas no texto.
A primeira verdade é que, diante dos homens, os ímpios se vangloriam
da maldade (vv.1-4). O pecado dos ímpios transparece desde o clamor inicial
do salmista (v.1): “Ó Senhor, Deus das vinganças. Manifesta-te, Deus das
vinganças” (’el-neqamôt yhwh ’el-neqamôt hôfîa‘). Fica claro que essa
maldade estava apontada na direção do próprio salmista. Ao se referir a Deus
como “Deus das vinganças”, é mais ou menos como chamá-lo de “Deus da
justiça”, ou seja, alguém que pune o mal e retribui a perversidade com juízo
(v.2): “Levanta-te, ó juiz da Terra. Traga a merecida punição aos soberbos”
(hinnase’ shofet ha’arets hashev gemûl ‘al-ge’îm). O que, a princípio, parece
um sentimento vingativo e rancoroso do salmista, explica-se na descrição da
maldade dos ímpios. Em lugar de agir perversamente de modo oculto e
dissimulado, esses homens faziam o mal abertamente. Em primeiro lugar, sua
maldade não era motivo de vergonha para eles, mas de engrandecimento
(v.3): “Até quando os ímpios, ó Senhor? Até quando os ímpios exultarão?”
(‘ad-matay resha‘îm yhwh ‘ad-matay resha‘îm ya‘alozû). Em segundo, ao
agir com violência, eles se vangloriavam do seu mal, demonstrando um
sentimento de aprovação total do seu sistema corrompido de vida e completo
desprezo pelos outros homens (v.4): “Eles vomitam palavras arrogantes.
Vangloriam-se todos aqueles que praticam a iniquidade” (yavvî‘û yedavverû
‘ataq yit’ammerû kol-po‘alê ’awen).
A segunda verdade é que, diante dos homens, os ímpios têm certeza da
impunidade (vv.5-11). O salmista especifica, agora com ênfase, que tipo de
maldade praticam os maus até mesmo contra as pessoas mais indefesas
(vv.5,6): “Eles oprimem o teu povo, ó Senhor, e afligem a tua herança.
Matam a viúva e o estrangeiro e assassinam os órfãos” (‘ammeka yhwh
yedakke’û wenahalateka ye‘annû ’almanâ weger yaharogû wîtômîm yeratsehû).
Apesar de, com isso, tornarem-se merecedores do juízo de Deus, eles
parecem não achar que Deus se manifeste nesse sentido. Talvez nem
acreditassem na existência de Deus, pois, em lugar de terem temor,
zombavam da ideia da punição divina (v.7): “Mas eles dizem: O Senhor não
vê [nada disso] e o Deus de Jacó não toma conhecimento” (wayyo’merû lo’
yir’eh-yyah welo’-yavîn ’elohê ya‘aqov). Essa é a mesma irreverência tola
exposta em outro salmo: “Alardeiam de boca; em seus lábios há espadas. Pois
dizem eles: Quem há que nos escute?” (Sl 59.7). Desse modo, eles
demonstram ter plena certeza da impunidade dos seus atos. É claro que a base
dessa falsa esperança não encontra bases na realidade, fazendo com que
sejam considerados plenamente tolos aqueles que acham que ficarão
impunes. Por isso, o salmista faz questão de afirmar que Deus, como criador
poderoso, ouve todas as coisas (v.9), que ele conhece sim e se importa com o
que é feito, punindo a maldade (v.10) e que é tão onisciente que conhece até
mesmo os pensamentos e os propósitos mais íntimos do homem (v.11).
A terceira é que, diante de Deus, os ímpios são frágeis e desamparados
(vv.12-19). Se os injustos se exaltam diante dos homens, diante de Deus a
realidade é outra. Não importa o que eles pensam a respeito de si, mas, sim, o
que Deus pensa a respeito deles. Por isso, o salmista muda a figura –
lembrando muito o Salmo 1 – mostrando que o homem que aprende a
Palavra de Deus e é corrigido a fim de se tornar cada vez mais obediente e
santo é aquele que realmente é feliz (v.12): “Feliz é o homem a quem tu
advertes, ó Senhor, e ensinas a tua lei” (’asrê haggever ’asher-teyasserennû
yyah ûmittôrateka telammedennû). Tal felicidade transparece na forma de
consolo nos tempos de dificuldade (v.13) e de segurança na manutenção da
união com Deus (v.14). Esse tratamento benéfico não é concedido aos
ímpios. Enquanto os servos de Deus são amparados, instruídos e corrigidos,
os maus aguardam o dia de serem abatidos de modo a se parecerem com
cadáveres que são enterrados (v.13): “Até que seja aberta uma cova para o
ímpio” (‘ad yikkareh larasha‘ shahat). Desse modo, há uma antítese entre o
tratamento divino aos seus servos e aos injustos. Se os servos de Deus têm a
quem recorrer quando são perseguidos (v.16), têm proteção nos momentos
mais perigosos e desanimadores (v.17) e têm em Deus um sustentador (v.18)
e um consolador (v.19), os ímpios não têm nada disso, ficando à mercê do
desamparo, fracos diante da ira do Senhor.
A última verdade é que, diante de Deus, os ímpios serão condenados no
futuro (vv.20-23). Se os ímpios são agora desamparados por Deus, é também
certo que eles perceberão que suas ilusões de poder e de impunidade não
passam de falsidades que não os protegerão de perecer no dia do juízo. Isso é
verdade porque há um abismo entre o Deus santo e o homem perdido, pelo
que o salmista propõe uma pergunta retórica cuja resposta é um sonoro “não”
(v.20): “Acaso, se associa contigo o trono da injustiça, aquele que forja a
maldade em nome da lei?” (hayhovreka kisse’ hawwôt yotser ‘amal ‘alê-hoq).
Fazer o mal por meio de decretos oficiais é uma atividade típica de líderes
corruptos, de modo que o salmista dá a entender que está sendo perseguido
por pessoas de cargo público em Israel – talvez príncipes, juízes e,
possivelmente, até o rei –, motivo, talvez, de o salmista ter associado seus
perseguidores à figura de um trono, o “trono da injustiça”. Esse homens, em
lugar de proteger os inocentes, os acusavam e condenavam (v.21). Entretanto,
mesmo diante de um quadro tão perturbador, o escritor tem confiança em
Deus como juiz justo, libertador e protetor diante do perigo promovido pelos
maus (v.22). A consequência desses fatos é que Deus protegeria seus servos e
não seria indiferente à perversidade dos injustos, trazendo sobre eles, no
momento certo, a devida e merecida condenação (v.23): “Mas ele os punirá
por sua perversidade” (wayyashev ‘alêhem ’et-’ônam) – literalmente: “Mas
fará voltar sobre eles a sua perversidade”, apontando para a paga do mal, a
vingança requerida no início do salmo. A ideia se completa com dizeres que
apontam para uma destruição completa: “E ele os destruirá por sua maldade.
O Senhor, nosso Deus, os destruirá” (ûbera‘atam yatsmîtem yatsmîtem yhwh
’elohênû).
Que lições atuais esse salmo contém! Por um lado, há o ensino de que,
ainda que o mundo hoje ignore os avisos de Deus, haverá punição para o
pecador impenitente. Todos comparecerão diante dele e terão seus pecados
avaliados e condenados caso não tenham Cristo como salvador. Mesmo
aquelas pessoas que imaginam que, ao ignorar a existência e santidade de
Deus – como criancinhas que querem se esconder pondo as mãos sobre o
rosto –, a verdade é que Deus vê todos e, também, os seus pecados. Ele não
ignorará nada que foi feito. Por outro lado, há um encorajamento sem
tamanho para aqueles que já se tornaram, pela fé em Cristo, alvos da graça
redentora do Senhor. Mesmo que sejam injustiçados agora, verão a justiça no
futuro. Mesmo que sejam perseguidos, terão paz. Ainda que mintam sobre
eles, o Deus da verdade os vindicará. Mesmo que sofram no presente,
conhecerão o pleno alívio na vida futura. Apesar das tristezas que os cercam,
são felizes por serem instruídos por Deus e o serão ainda mais vivendo na
presença do santo criador. E ainda, diante dos homens maus que promovem a
injustiça, podem prosseguir esperando o sustento divino no presente até
chegar o dia em que todos verão que o menor no reino dos céus é maior e
mais feliz que os cabeças do mundo terreno.
SALMO 95
Quem não É por nós É contra nós
SALMO 96
O Louvor a Deus pela Possibilidade de Louvá-lo
SALMO 97
A Temível Chegada de Deus
SALMO 98
O Reconhecimento da Atuação Divina
Um dos livros de que gostei muito de ler foi o Ilíada, de Homero. Contudo,
meu gosto pelo livro não se compara ao de Alexandre, o Grande. Contam
que, sendo Ilíada sua obra favorita, ele disse dele: “É a mais perfeita
produção humana e o melhor remédio de um guerreiro”. Os historiadores dão
conta de que a grandeza e heroísmo das batalhas contadas por Homero
inspiraram Alexandre e, entre outros fatores, fizeram dele o conquistador que
foi. Por sua vez, Julio César foi inspirado pelo espírito conquistador de
Alexandre e, querendo imitá-lo, iniciou uma história de imperadores
romanos. Outros líderes, como Carlos XII, da Suécia, e o imperador Selymus,
da Turquia, foram marcados pela história e pelos feitos de Alexandre e Julio
César, tornando-se, eles mesmos, imitadores dos seus impulsos e guerreiros
com o sonho de conquistar o máximo que pudessem. Estranho como a
história tão bem escrita por Homero acabou por influenciar pessoas a agirem
com dureza e com violência.
O Salmo 99 também fala de alguém cujos atributos influenciam e dão novos
rumos à história da humanidade. Muito distante das fraquezas de Aquiles,
Heitor, Ulisses e Agamenon, o Senhor Deus é apresentado no salmo como o
ser perfeito e ilimitado que influencia todas as eras. Apesar de cada um dos
atributos de Deus ter o poder de exercer essa ação transformadora e
controladora sobre a história, a característica que sobressai nesse salmo é a
sua santidade. Há três afirmações categóricas nesse sentido – duas vezes
(vv.3,5) se diz “ele é santo” (qadôsh hû’) e uma vez (v.9) “pois o Senhor,
nosso Deus, é santo” (kî-qadôsh yhwh ’elohênû). Ser santo significa existir
separado de tudo que é mal. Desse modo, não é muito fácil para nós,
pecadores em um mundo mau, observar a santidade do Senhor. Na verdade, o
próprio caráter abstrato do conceito da santidade torna difícil para nós o seu
vislumbre – se tivéssemos de representar graficamente o conceito, é provável
que o melhor que poderíamos fazer fosse apresentar a imagem de uma luz
radiante. Entretanto, a santidade de Deus influencia a história na forma de
atuações visíveis e interpretáveis. Nesse sentido, o salmista é extremamente
feliz ao nos trazer à vista três vislumbres da santidade de Deus durante a
história por meio dos efeitos que ela produz.
O primeiro vislumbre da santidade de Deus no decorrer da história humana,
presente no Salmo 99, é a vinda gloriosa e temível no futuro (vv.1-3).
Assim como nos salmos 93 e 97, esse salmo inicia afirmando o caráter
majestoso de Deus e seu efeito sobre a criação, especialmente sobre os
homens (v.1): “O Senhor reina, as nações estremecerão. Ele se assenta entre
querubins, a Terra tremerá” (yehwâ malak yirgezû ‘ammîm yoshev kerûvîm
tanût ha’arets). A gloriosa vinda do Senhor para efetuar julgamento é assunto
tratado de igual modo nos dois salmos precedentes. Aqui, também, o fato de
o Senhor ser agora um rei poderoso produzirá na Terra temor e tremor. Seria
diferente se não houvesse no mundo pecado, nem rebeldia. Contudo, a
existência do mal entre os homens redundará em um julgamento futuro, na
sua vinda, motivo pelo qual é dito que as nações estremecerão. Ninguém
escapará desse juízo, já que o Senhor comanda a história e todos os povos –
tanto Israel como as demais nações (v.2): “O Senhor é grande em Sião. Ele é
elevado sobre todos os povos” (yhwh betsîyôn gadôl weram hû’ ‘al-kol-
ha‘ammîm).
Falando do futuro, o salmista completa com o outro lado da moeda, ou seja,
com a reação dos que não serão abalados diante da santidade de Deus, mas
comemorarão e o receberão com alegria (v.3): “Eles celebrarão o teu nome
grande e temível. Ele é santo” (yôdû shimka gadol wenôra’ qadôsh hû’). Ao
dizer “ele é santo”, o escritor parece se referir ao nome de Deus – é ele que
aparece na frase ligado a um pronome na terceira pessoa singular,
combinando com a cláusula final. Entretanto, citar o nome de Deus é fazer
menção a ele como um todo, de modo que não é apenas o nome do Senhor
que é santo, mas o próprio Senhor. O que o salmista transmite é a ideia de
que “Deus é grande e temível” – grande do ponto de vista de uns e temível do
ponto de vista de outros.
O segundo vislumbre é a justiça do seu caráter no presente (vv.4,5). Algo
que Israel conhecia muito bem era a descrição do caráter divino. Fosse pelo
que aprenderam, fosse pelo que viam Deus fazer, eles sabiam quão cara para
Deus era a justiça (v.4): “O rei é poderoso. Ele ama a decisão justa. Tu
instituis a equidade. Tu promoves juízo e a justiça em Jacó” (we‘oz melek
mishpat ’attâ kônanta mêsharîm mishpat ûtsedaqâ beya‘aqov ’attâ ‘asîta).
Apesar de os verbos estarem no tempo hebraico chamado “perfeito” – que
normalmente indica o tempo passado –, seu amor pela justiça, que não se
limita ao passado, sugere uma realidade contínua que marca todo o versículo.
Assim, equidade, juízo e justiça são interesses perenes de Deus em todo
tempo, evidências vivas da santidade daquele que é separado de tudo que é
mal e corrompido.
Não sabemos o contexto em que o salmo foi escrito, mas é possível que
uma atuação no sentido de preservar a justiça no meio do seu povo,
protegendo-os de inimigos internos ou externos, tenha sido o que inspirou o
salmista a escrever. Essa seria a ação de um rei justo e poderoso que comanda
tudo ao seu redor e faz valer sua lei e sua moral, como o próprio Deus é
descrito a seguir (v.5): “Exaltai ao Senhor, nosso Deus, e prostrai-vos diante
do estrado dos seus pés. Ele é santo” (rômemû yhwh ’elohênû wehishtahawû
lahadom raglayw qadosh hû’). Esse “estrado” (ou “escabelo”) é um apoio
para os pés que, nas Escrituras, é associado à figura do trono de Deus (Is
66.1), produzindo a ideia do domínio que ele exerce. A razão, mais uma vez,
é o resultado de ele ser santo e repudiar o mal, a injustiça e o pecado.
O último vislumbre da santidade divina evidenciada na história é o
tratamento do seu povo no passado (vv.6-8). A separação de Deus daquilo
que é indigno dele se fez ver muitas vezes na história israelita. Ela se fez ver
no uso de intermediários entre Deus e os homens (v.6): “Moisés e Arão, entre
os seus sacerdotes, e Samuel, entre os que invocam o teu nome, clamaram ao
Senhor e tu lhes respondeste” (mosheh we’aharon bekohanayw ûshemû’el
beqor’ê shemô qari’ym ’el-yhwh wehû’ ya‘anem). Esses personagens bíblicos
e outros foram veículos das palavras de Deus aos homens e também dos
clamores dos israelitas ao Senhor. A clara imagem que se forma em nossa
mente é que esse tipo de acesso era restrito a poucos homens, homens
escolhidos por Deus, justamente porque a humanidade se viu afastada dele
por ser pecadora, enquanto Deus é santo.
Além do mais, a santidade do Senhor ficou expressa ao povo por meio da
lei mosaica que tanto evidenciava a perfeita moral divina como a
pecaminosidade dos homens (v.7): “Em uma coluna de nuvem tu lhes falaste.
Eles guardaram os teus preceitos e o estatuto que lhes deste” (be‘ammûd
‘anan yedavver ’alêhem shamrû ‘edotayw wehoq natan-lamô). Ou Israel se
adequava à santidade de Deus ou não podia ter comunhão com ele. O
tratamento rendido aos israelitas no decorrer da história bradava a mesma
lição, já que era comum observar que quem se arrependia dos pecados era
perdoado – a santidade não permite que o homem se concilie com Deus sem
que haja perdão e os meios para a efetivação desse perdão – e quem
permanecia rebelde era punido – a lei previa punição aos pecadores infiéis
(v.8): “Ó Senhor, nosso Deus, tu lhes respondeste. Tu foste para eles um
Deus perdoador e um vingador dos seus feitos” (yhwh elohênû ’attâ ‘anîtam
’el nose’ hayîta lahem wenoqem ‘al-‘alîlôtam).
Diante da visão da santidade de Deus e do modo como isso é revertido no
relacionamento com o homem em todos os tempos, o chamado no final do
salmo é inevitável (v.9): “Exaltai ao Senhor, nosso Deus, e prostrai-vos
diante do seu monte santo, pois o Senhor, nosso Deus, é santo” (rômemû
yhwh ’elohênû wehishtahawû lehar qodshô kî-qadôsh yhwh ’elohênû). O
convite a se curvar diante do “monte santo” de Deus é um chamado duplo.
Em primeiro lugar, para reverenciá-lo como Deus, na figura de adoradores se
prostrando diante do Templo que marcava a habitação divina no meio de
Israel. Em segundo lugar, para servi-lo, como fazem súditos que se prostram
ante seu rei, sabendo que em Jerusalém reinaria o santo descendente de Davi
prometido por Deus – a quem o Novo Testamento depois identificaria como o
Senhor Jesus Cristo: “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem
chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do
Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para
sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1.31-33).
Esse mesmo chamado vale hoje tanto quanto valeu naqueles dias. O
vislumbre da santidade do Senhor ainda deve produzir temor e tremor,
clamor e reverência, obediência e louvor. Curve-se você também diante do
trono do santo Deus e exalte o seu santo nome!
SALMO 100
De Quê Consiste o Verdadeiro Louvor
SALMO 101
Os Votos e os Propósitos do Servo de Deus
SALMO 102
O Microcosmos das Alianças de Deus
SALMO 103
As Qualidades Louváveis de Deus
SALMO 104
A Multiforme Obra de Deus
Quando cursei Odontologia, um dos meus primeiros espantos foi saber que
cada dente possuía um nome e uma anatomia própria que o faz ser
reconhecido mesmo fora da arcada dentária – antes de aprender isso, os
dentes, para mim, se dividiam apenas em “dentes da frente”, “dentes do
fundo” e “presas”. Mais impressionante foi descobrir que cada um tinha uma
forma peculiar a fim de desenvolver uma ação bastante definida. A partir
disso, imagine qual foi minha surpresa ao descobrir que o corpo todo tem
formas e funções tão específicas e inteligentes que nem uma equipe de
engenheiros muito bons poderia conceber. O fato foi que, quanto mais eu
conhecia a anatomia, a fisiologia e a bioquímica do corpo humano, mais eu
admirava o Senhor como um perfeito, sábio e poderoso criador.
O Salmo 104 narra uma observação parecida. Entretanto, em lugar de
analisar o corpo humano, o salmista observa a natureza e, mesmo que tais
informações fossem apenas superficiais comparadas ao nosso conhecimento
no tempo presente, as conclusões são as mesmas. Isso não é de espantar já
que as Escrituras afirmam que “os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das
coisas que foram criadas” (Rm 1.20). Dadas as semelhanças, principalmente
de abertura e de encerramento, é possível que os Salmos 103 e 104 sejam
companheiros e provindos da mesma pena. De qualquer modo, assim como
Davi, esse salmista tem um olho observador no que tange àquilo que a
natureza revela a respeito do Senhor, de modo que sua observação o leva a
uma adoração nada acanhada (v.1,2a): “Que a minha alma bendiga ao
Senhor. Ó Senhor, meu Deus, tu és grandessíssimo. Estás revestido de glória
e majestade, coberto de luz como se fosse um manto” (barakî nafshî ’et-yhwh
yhwh ’elohay gadalta me’od hôd wehadar lavashta). Assim, o salmista faz
cinco observações reveladoras sobre a glória de Deus.
A primeira observação é com relação ao tamanho e à perfeição da criação
(vv.2-5). A análise começa por uma das mais impressionantes provas do
tamanho do poder glorioso de Deus: os céus – deve-se notar que essa é uma
referência ao universo como um todo, já que se trata da observação das
estrelas (v.2b): “Estendestes os céus como se fossem uma tenda” (noteh
shamayim kayrî‘â). “Estendestes” pode também ser traduzido como
“desenrolastes”, de modo que o salmista apela para a figura de um homem
desenrolando os tecidos de uma tenda para armá-la e colocá-la como proteção
sobre a cabeça dos seus – para Deus, criar o universo foi tão fácil como armar
uma barraca. A análise lança, agora, os olhos sobre a atmosfera terrestre
(v.3): “Construístes nas águas a tua morada, fizestes das núvens a tua
carruagem, caminhastes sobre as asas do vento” (hamqareh bammayim
‘alîyôtayw hassam-‘avîm rekûvô hamhallek ‘al-kanfê-rûah). Apesar de a
palavra “águas” parecer ser uma referência aos mares, por se tratar de um
relato da criação quando havia “águas sobre o firmamento” (Gn 1.6,7 – isso
parece ter existido somente até o dilúvio, cf. Gn 7.11) –, essas águas devem
ser compreendidas como paralelas às nuvens, de modo que o Senhor está
acima da terra, nos céus, olhando para nós como de uma “varanda” ou de um
“mirante” – traduções alternativas para a palavra “morada”. Além do mais,
ele controla os efeitos naturais poderosos dos céus: os “ventos” e os “raios” –
esses últimos são descritos aqui como “fogo ardente” (v.4). Por fim, o
salmista se refere ao mundo como uma estrutura firme (v.5): “Estabelecestes
a Terra sobre seus fundamentos, [de modo que] ela nunca, em tempo algum,
seja abalada” (yosed-’erets ‘al-mekôneyha bal-timmôt ‘ôlam wa’ed).
A segunda observação é quanto ao poder empregado no dilúvio (vv.6-9).
Em primeiro lugar, Deus trouxe as águas sobre toda a porção seca, fazendo
com que toda a Terra fosse coberta (v.6): “Tu a cobriste com o oceano como
se fosse uma roupagem. As águas permaneceram sobre os montes” (tehôm
kallevûsh kissôtô ‘al-harîm ya‘amdû-mayim). Em seguida, com o mesmo
poder, ordenou o recuo das águas para haver novamente porção seca (v.7):
“Elas fugiram diante da tua repreensão e se apressaram diante da tua voz
trovejante” (min-ga‘arotka yenûsûn min-qôl ra‘amka yehafezûn). Muita gente
se questiona como as águas se recolheram, ou para onde foi tanta água.
Talvez, o versículo seguinte responda a essa questão (v.8): “As montanhas se
elevaram [e] as planícies desceram até o lugar que tu determinaste para elas”
(ya‘alû harîm yerdû beqa‘ôt ’el-meqôm zeh yasadta lahem). Essa pode ser
uma referência à locomoção das placas tectônicas afastando algumas e
colidindo outras entre si, criando, com isso, cadeias montanhosas que
elevaram a terra e abriram espaço para a acomodação das águas – é bem
provável que a Terra tivesse um relevo mais baixo antes do dilúvio, sem
montanhas altas ou planaltos elevados. O resultado foi que a nova geografia
fez as águas assumirem um lugar que garantiu a existência perene da terra
seca em que habitamos (v.9).
A terceira é quanto ao cuidado da fauna e da flora (vv.10-18). Os rios,
descendo pelos montes, também são obra de Deus (v.10). Dessas águas
dependem os animais (vv.11,12). Entretanto, para manter os rios correndo, o
Senhor constantemente os abastece por meio do controle que possui sobre as
chuvas (v.13): “Da tua morada tu regas os montes, [de modo que] a terra se
enche do fruto das tuas obras” (mashqeh harîm me‘alîyôtayw mifferî
ma‘aseyka tisba‘ ha’arets). Essa é uma referência à irrigação pluvial e fluvial
que faz crescer os vegetais que servem de alimento para os animais e para o
homem (v.14): “Tu fazes brotar a erva para os animais e os vegetais para a
lavoura do homem a fim de tirar [seu] pão da terra” (matsmîah hatsîr
lavvehemâ we‘eseh la‘avodat ha’adam lehôtsî’ lehem min-ha’arets). Na
verdade, o homem parece ser o alvo final e primordial desse suprimento
(v.15). Além da fauna, a flora no geral também se estabelece por causa do
controle de Deus sobre as chuvas (v.16), beneficiando outros animais não
citados até então, a saber, as aves (v.17a). A citação de diversos animais que
habitam lugares diferentes e quase inatingíveis ao homem serve para mostrar
a variedade dos seres vivos e o amplo cuidado que o Senhor exerce sobre
toda a criação (vv.17b,18).
A quarta observação é a utilidade do dia e da noite (vv.19-23). Assim
como o corpo humano possui uma fisiologia inteligente, o mundo e a vida na
Terra também são sustentados por ciclos que promovem seu perfeito
funcionamento. Isso se dá pela sucessão interminável de dias e noites descrita
pelos astros que marcam cada período (v.19): “Ele fez a Lua para as ocasiões
[determinadas e] o Sol conhece sua hora de se pôr” (‘asâ yareah lemô‘adîm
shemesh yada‘ mevô’ô). A palavra “ocasiões” também pode ser traduzida
como “estações do ano”, mas, como o parágrafo todo trata do dia e da noite,
deve ser compreendida como as ocasiões em que a Lua surge, ou seja, o
período noturno. Tanto o dia como a noite são benéficos para a criação, já
que a noite é o momento da caça e da alimentação de certos animais (v.21),
enquanto durante o dia eles se protegem e o homem sai ao trabalho a fim de
se sustentar (vv.22,23). É claro que essa breve descrição não expressa tudo
que acontece durante os dias e as noites, mas serve para exemplificar o
funcionamento diuturno da fauna e da flora ao redor do globo.
A última observação é sobre a manutenção da vida (vv.25-30). Nessa
seção, o salmista trata do hábitat que faltou, o mar e as populações marinhas
(v.25): “Eis o mar, enorme e extenso, no qual há incontáveis peixes, seres
pequenos junto com os grandes (zeh hayyam gadôl ûrehav yadayim shom-
remes we’ên mispar hayyôt qetannôt ‘im-gedolôt). Não importa o número
incontável de peixes ou o tamanho imensurável do mar (v.26), todos os seres
marinhos são alimentados pelo Senhor (v.27): “Todos eles esperam de ti que
lhes dê de comer no tempo devido” (kullam ’eleyka yesavverûn latet ’oklam
be‘ittô). O salmista escolheu bem os peixes para expressar o ato divino de
alimentar cada criatura, já que o número excessivo de seres marinhos exalta
ao infinito a capacidade de Deus de sustentar a vida no planeta. Não importa
o quão ferozes ou hábeis sejam, se o Senhor lhes dá o que comer, eles se
alimentam (v.28), mas se não dá, passam fome (v.29) – no v.29, ao citar a
“respiração”, o salmista não se limita à vida marinha, mas à vida em todas as
esferas. Por fim, a vida depende tanto de Deus que, quando morrem seres
vivos (v.29), outros vêm à vida como se fosse uma nova criação (v.30): “Tu
envias o teu sopro e eles são criados e, assim, tu renovas a face do solo”
(teshallah rûhaka yivvare’ûn ûtehaddesh penê ’adamâ) – Deus cessou a
criação ao final do sexto dia, mas a renovação da vida depende dele assim
como a criação também dependeu (cf. Gn 2.7).
Olhando para a variedade e grandiosidade tanto das ações acabadas como
das ações contínuas de Deus sobre o mundo, o salmista não podia chegar a
outra conclusão (v.24): “Ó, quantas são as tuas obras, ó Senhor! Tu fizestes
todas elas com sabedoria! A Terra está repleta das tuas criaturas” (mâ-ravvû
yhwh kullam behokmâ ‘asîta mol’â ha’arets qinyaneka). Uma conclusão
como essa não pode deixar o observador inerte. O salmista não fica inerte.
Ele glorifica a Deus por tudo que fez e que faz (v.31), reconhece seu poder
soberano (v.32), assume definitiva e permanentemente a posição de um servo
do Senhor (v.33), prima por manter uma vida que lhe seja agradável (v.34) e
reconhece que o pecado e a imperfeição não podem conviver com aquele que
é perfeito. Devemos continuamente fazer o mesmo e bradar todos os dias
(v.35): “Que a minha alma bendiga ao Senhor! Exaltai ao Senhor!” (barakî
nafshî ’et-yhwh yhwh hallû-yah).
SALMO 105
Quanto o Senhor já Fez por nós
SALMO 106
Quanto o Povo de Deus já Fez
SALMO 107
As Lições que Aprendemos
Certa vez, ouvi o relato sobre uma reunião realizada por irmãos de outra
denominação, cujos membros eu conhecia, que, diante da chegada das
planejadas férias do pastor, buscavam a organização do pessoal para ajudar
nos cultos. A proposta era que cada irmão assumisse a responsabilidade por
algo a fim de que os trabalhos diários daquela igreja não sofressem nenhuma
ruptura com a ausência do seu líder. Enquanto cada um se propunha a
assumir uma tarefa, um recém-convertido disse a todos: “Os irmãos sabem
que eu sou crente há pouco tempo e que eu ainda sei muito pouco. Mas o
pouquinho que eu aprendi usarei para ajudar: um ‘aleluia’... um ‘glória a
Deus’...”. O que esse homem quis dizer foi que, apesar do pequeno
conhecimento que possuía, seu coração estava disposto a ajudar e a servir ao
Senhor.
O Salmo 107 é também fruto de lições aprendidas, mas não por pessoas
inexperientes e que ainda conhecem pouco o Senhor. Ao contrário, trata de
lições aprendidas pela exposição da palavra do Senhor e pela experiência de
se ver abatido pela maldade de outros homens, pelas intempéries da natureza
e pela desobediência aos ensinos de Deus. Contudo, uma peculiaridade
dessas lições é que elas foram aprendidas por gente que Deus poupou da
morte e libertou de destinos funestos. Por isso, o salmo é dirigido a pessoas
que o salmista nomeia (v.2) como “redimidos do Senhor, os quais ele
resgatou da mão do inimigo e reuniu de entre as terras” (ge’ûlê yhwh ’asher
ge’alam mîyad-tsar ûme’aratsôt qivvetsam) – nesse texto, a palavra
“redimidos” não tem uma conotação espiritual como no Novo Testamento,
mas aponta para pessoas que foram libertas de males temporais como
escravidão, exílio e morte. Ao citar um retorno do exílio, é óbvio que surge
na mente do leitor a ocasião do retorno do cativeiro babilônico, mas o
salmista parece ter em mente situações diversas, pois diz que a reunião dos
seus irmãos se deu “do Leste e do Oeste, do Norte e do mar” (mimmizrâ
ûmimma‘arav mitsafôn ûmîyam). A esses, o salmista conclama a proclamar a
lição que aprenderam: que Deus é bondoso e que sua misericórdia sempre os
acompanha (v.1).
O salmo dispõe quatro lições aprendidas por esses redimidos – e por tantos
quantos chegaram a saber do que lhes ocorreu. Tais lições são separadas por
duas frases que se repetem ao longo do salmo, marcando cada trecho como
uma unidade definida. Esses trechos iniciam com a descrição dos sofredores
de Israel, seguido pelo fato de Deus ter-lhes atendido as súplicas (v.6): “Mas,
na sua angústia, eles clamaram ao Senhor e ele os livrou das suas tribulações”
(wayyits‘aqû ’el-yhwh batsar lahem mimmetsûqôtêhem yatsîlem) – os
vv.13,19,28 repetem a mesma ideia com pequenas variações de palavras
hebraicas sinônimas. Depois de cada uma dessas afirmações da resposta de
Deus, o salmista especifica a ação libertadora do Senhor e proclama outra
frase que se repete de modo idêntico a cada ciclo (vv.8,15,21,31): “Celebrai
ao Senhor por sua misericórdia e por seus maravilhosos feitos aos filhos dos
homens!” (yôdû layhwh hasdô wenifle’ôtayw livnê ’adam).
Assim, a primeira lição que os redimidos tiveram foi que Deus guia seu
povo até o destino seguro (vv.4-9). Nesse caso, o salmista parece refletir
sobre a jornada de quatro décadas de Israel no deserto da península do Sinai,
após deixar o Egito (v.4): “Eles vagaram pelo deserto, por um caminho ermo,
sem encontrar uma cidade de habitação” (ta‘û bammidbar bîshîôn derek ‘îr
môshav lo’ matsa’û). Como resultado disso, o texto afirma (v.5): “Famintos e
sedentos, desfalecia neles a sua alma” (re‘evîm gam-tseme’îm nafsham bahem
tit‘attaf). Sabe-se que o cuidado do Senhor no deserto os sustentou, mas não
como o modo maravilhoso com o qual os trataria na terra da promessa ao lhes
prover com frutos maravilhosos da terra (Lv 20.24; Dt 28.8; Js 24.13) e com
chuvas na hora certa que lhes produzisse fartura do que comer e do que beber
(Lv 26.4; Dt 11.14). Por isso, o Senhor os guiou com mão poderosa até a terra
da sua devida morada (v.7): “Ele os guiou por um caminho reto a fim de
chegarem à cidade de habitação” (wayyadrîkem bederek yesharâ laleket ’el-‘îr
môshav) – “caminho reto” aqui não enfatiza o trajeto em si, mas a ideia da
proteção de Deus durante a jornada e sua intenção final de conduzi-los ao
bom destino. O resultado foi serem providos da segurança e dos víveres
necessários ao seu bem-estar (v.9).
A segunda lição dos redimidos foi que Deus livra seu povo da opressão
(vv.10-16). O salmista se refere, a essa altura, a israelitas que enfrentaram
uma realidade tão terrível que era como se vivessem na companhia da morte
(v.10), chamando-os de “aqueles que se assentaram na escuridão e às sombras
da morte” (yoshvê hoshek wetsalmawet). Essa linguagem figurada cede,
então, lugar para uma descrição mais clara que revela a escravidão no exílio
infligida por outros povos: “Prisioneiros da opressão e [postos] à ferro”
(’asîrê ‘anî ûvarzel) – “ferro” aqui pode ser uma referência a correntes e
algemas que detêm um cativo ou a armas de ferro que os inimigos utilizam
para ameaçar e deter os presos. Nesse cativeiro, causado pelo próprio pecado
do povo (v.11), os israelitas se viram em grande sofrimento, entregues aos
inimigos, sem ter qualquer esperança de serem resgatados por seus irmãos
(v.12): “Eles caíram e não havia quem os socorresse” (koshlû we’ên ‘ozer).
Mas Deus, no uso da sua misericórdia (v.14), “tirou-os da escuridão e da
sombra da morte e arrebentou as suas algemas” (yôtsî’em mehoshek
wetsalmawet ûmôserôtêhem yenatteq). Na verdade, o Senhor parece ter
abatido com mão poderosa o povo que os escravizava (v.16) – deve-se notar
que, para haver libertação, há a destruição do que causa a prisão.
A terceira lição foi que Deus protege seu povo da própria tolice (vv.17-
22). Os alvos da atuação de Deus, dessa vez, são pessoas consideradas tolas
por sofrerem um juízo divino em decorrência dos seus pecados (v.17): “Os
insensatos que foram afligidos devido aos seus caminhos de transgressão e às
suas iniquidades” (’ewilîm midderek pish‘am ûme‘aônotêhem yit‘annû).
Nesse caso, a aflição parece ter vindo sobre eles na forma de doenças que
lhes tiraram completamente o apetite e pelas quais passaram a definhar quase
até a morte (v.18): “Eles tiveram repugnância de toda comida e chegaram à
beira da morte” (kol-’okel teta‘ev nafsham wayyaggî‘û ‘ad-sha‘arê mawet) –
isso ocorre certas vezes quando alguém é acometido por chagas e dores (Jó
33.19,20). A esses (v.20), o Senhor “enviou sua palavra e os curou, livrando-
os, assim, da cova que havia para eles” (yishlah devarû weyirpa’em wîmallet
mishahat hayyatam). Fica patente, nesse livramento que tem como base a
misericórdia divina, seu caráter disciplinador e supressor da tolice que leva ao
pecado.
A quarta lição que os redimidos tiveram foi que Deus guarda seu povo
quando está diante da morte (vv.18-32). Essa seção fala de homens cujo
perigoso trabalho colocava suas vidas em constante risco (v.23): “Aqueles
que descem ao mar nos navios, os que trabalham na vastidão das águas”
(yôredê hayyam ba’onîyôt ‘osê melo’kã bemayim ravvîm). Segundo o salmista,
o poder do Senhor que controla a natureza não era novidade (v.24). Em meio
à sua profissão, eles já estiveram em situações de grandes tempestades (v.25)
nas quais eles perderam a esperança de sobreviver (v.26): “Subiram aos céus,
desceram às profundezas. Na calamidade suas almas se derreteram” (ya‘alû
shamayim yerdû tehômôt nafsham bera‘â titmôgag). Esse movimento de
“sobe e desce” descreve o tamanho das vagas no mar revolto sobre as quais o
navio flutuava com dificuldade, de modo que o medo tomou conta deles –
outra possível tradução para esse resultado da tempestade é que “seus
estômagos se reviraram em meio ao transtorno”. Antes que viessem a
perecer, o Senhor lhes ouviu os clamores (v.29) e “apaziguou a tempestade
[tornando-a] uma brisa suave e suas ondas se aquietaram” (yaqem se‘arâ
lidmamâ wayyeheshû gallêhem). A ação libertadora foi levada a cabo por
Deus, acompanhando os marinheiros em segurança até o porto (v.30): “E os
conduziu até o porto desejado por eles” (wayyanhem ’el-mehôz heftsam).
Assim como nos casos anteriores, esse é um grande motivo de louvor
(vv.31,32).
Depois de citar essas quatro libertações, o salmista alista uma série de ações
benéficas do Senhor para redimir seu povo das suas tribulações e para
discipliná-los a fim de corrigir seu mau caminho (vv.33-42). Com isso em
mente, o escritor do salmo conclama cada um a ser sábio na análise desses
dados para saber distinguir a misericórdia de Deus em meio às circunstâncias
(v.43): “Quem é sábio observe essas coisas e considere as misericórdias do
Senhor” (mî-hakam weyishmar-’elleh weyitbônenû hasdê yhwh).
Está aqui uma ótima oportunidade de fazermos o mesmo: distinguir a
misericórdia de Deus sobre nossas vidas. O Senhor também guia sua igreja
até seu destino proveitoso quando ela jaz na ignorância sobre o futuro. Ela
também foi liberta de um jugo de escravidão, a escravidão da morte e do
pecado. O Senhor, por amor aos seus servos, também disciplina sua igreja
para que ela não ande na tolice dos seus desejos e cobiças, afastando-se dos
ensinos do seu mestre. E também é verdade que o Senhor tem guardado sua
igreja da destruição quando, ao longo dos séculos, seus inimigos se levantam
como ondas assassinas a fim de abatê-los. A lição que os israelitas
aprenderam, ao longo da sua história, sobre a misericórdia de Deus, também
foi ministrada à igreja. É por isso mesmo que é tão atual para a igreja de
Cristo a ordem repetida tantas vezes no salmo: “Celebrai ao Senhor por sua
misericórdia e por seus maravilhosos feitos aos filhos dos homens!” (yôdû
layhwh hasdô wenifle’ôtayw livnê ’adam).
Salmo 108
Louvor a Deus em Tempos Difíceis
É dito que uma refeição não é feita apenas pela comida, mas também pelo
ambiente em que as pessoas se alimentam. A verdade é que as horas de
refeição podem ser ocasiões para todo tipo alegre de comunicação e de
aprendizado, um momento de grata comunhão entre os participantes da mesa.
Nesse sentido, uma comida ruim pode ser redimida por uma conversação
alegre, grata e construtiva, mas uma boa comida pode ser irremediavelmente
arruinada por uma má conversação. O que esse pensamento pretende revelar
é que, até em momentos difíceis, é possível se manter uma atitude positiva
que trará muitos benefícios. Desdobrando essa lógica para nossa vida diária
com Deus, a gratidão que temos por tudo que ele nos fez, faz e fará pode
transformar os momentos mais difíceis da vida em ocasiões de sincera
adoração e de profundo louvor ao nosso Senhor.
O Salmo 108, que revela essa disposição no salmista, é a união de dois
trechos de outros salmos. Os vv.1-5 são referentes ao Sl 57.7-11, enquanto os
vv.6-13 são a reprodução do Sl 60.5-12. Os dois salmos que agem como fonte
para o Salmo 108 também pertencem a Davi e ajudam a mostrar o que o
compositor tinha em mente ao compilá-los. O Salmo 57 foi escrito quando
Davi fugia de Saul em uma caverna. O Salmo 60 foi composto quando Edom
atacou Judá enquanto Davi fazia uma campanha militar na Síria, a cerca de
500 km de Jerusalém. Nos dois casos Davi esteve para ser atingido
definitivamente e o Senhor o salvou, revertendo parcialmente a situação. Por
isso mesmo, o rei, provavelmente diante de outra libertação divina que não é
possível captar por esse salmo, toma dois trechos já conhecidos do povo para
cantar um salmo de agradecimento e louvor a Deus por sua presença e
proteção junto aos seus, ainda que tivessem certos problemas com que lidar.
Informações mais específicas sobre a contextualização e aplicação de cada
versículo devem ser pesquisadas nos livros de comentários dos salmos 57 e
60. Sob o enfoque do Salmo 108, ou seja, da editoração feita por Davi,
observaremos quatro razões para louvarmos a Deus em tempos de
dificuldades.
A primeira razão do louvor ao Senhor nas dificuldades é a atuação de
Deus conforme suas promessas (vv.1-4). Davi fornece o caráter do seu
sentimento ao iniciar o salmo com um trecho que fala da sua segurança em
Deus (v.1): “Meu coração está firme, ó Deus” (nakôn livvî ’elohîm). E essa
firmeza imediatamente o leva ao louvor: “Cantarei e farei músicas a ti com
todo o meu ser” (’ashîrâ wa’azammerâ ’af-kevôdî). Tal louvor é descrito
como uma atividade a ter início pela manhã (v.2), subentendendo sua
continuidade ao longo do dia por meio de tudo quanto é feito. Seu desejo é
que sua gratidão tenha certa abrangência e vá além dos seus próprios muros
anunciar as grandezas do Senhor a outros (v.3). Resta-nos saber que razão tão
maravilhosa pode motivar um louvor tão efusivo e sincero. A resposta é
apresentada logo a seguir (v.4): “Pois chega acima dos céus a tua
misericórdia e até as nuvens a tua fidelidade” (kî-gadol me‘ad-shamayim
hasdeka we‘ad-shehaqîm ’amitteka). Em primeiro lugar, o salmista se vê
como alguém que nada merece de Deus, pelo que os benefícios celestes lhe
sobrevêm por pura “misericórdia de Deus”, atributo este anunciado pelo
próprio Senhor em sua revelação escrita. Em segundo lugar, Davi olha para
as promessas de Deus como fonte da sua segurança pessoal, visto que a
“fidelidade de Deus” não permite que ele mude seus planos, nem cancele
suas promessas – uma dessas promessas foi a de ele vir a reinar sobre Israel
(1Sm 16.1,12,13).
A segunda razão do louvor é a resposta de Deus às nossas orações
(vv.5,6). Davi mais uma vez oferece a Deus sua adoração reconhecendo a
grandeza divina acima de tudo e de todos (v.5): “Seja elevado acima dos
céus, ó Deus” (rûmâ ‘al-shamayim ’elohîm). Ele completa a ideia e deseja
que a glória que ele vê por intermédio das Escrituras e da própria experiência
de andar com Deus seja, também, vista por toda parte: “E sobre toda a Terra
esteja a tua glória” (we‘al kol-ha’arets kevôdeka). O fato de Davi desejar que
a glória de Deus esteja sobre toda a Terra não é apenas um tipo de louvor,
mas a transição perfeita para a oração que apresentará a seguir. Na verdade,
ele ora para que a glória de Deus seja vista ao responder seu clamor por
libertação pessoal e do seu povo: (v.6): “Liberta-nos pela tua destra e
responda-me para que os teus amados possam ser livres” (lema‘an yeholtsûn
yedîdeyka hôshî‘â yemîneka wa‘anenî). Quando Davi escreveu isso pela
primeira vez, ele tinha obtido uma libertação parcial – mas fundamental – e
ainda aguardava uma atuação mais ampla do Senhor. Desse modo, ele já viu
sua oração ser atendida e espera que todo o propósito de Deus seja cumprido
em resposta aos seus clamores. A própria constância na oração de Davi, vista
nesse salmo e ao longo de vários livros do Antigo Testamento, aponta para o
fato de que ele confiava nas respostas porque conhecia Deus e
frequentemente era atendido por ele. Por isso, em sua experiência, o clamor e
o louvor andam juntos.
A terceira razão é o caráter santificador das ações de Deus (vv.7-9). Davi
faz menção de algo que Deus lhe falou em resposta à sua oração por ter
Edom atacado Judá enquanto ele estava bem ao norte de Israel (v.7): “Deus,
em sua santidade, disse” (’elohîm diber beqodshô). “Santificar” significa
separar. É o que esses versículos mostram. Além de separar um povo para si,
o fato de Deus atuar na santificação desse povo vai além de escolhê-lo e
alcançá-lo. Deus o preserva em um mundo hostil aos servos de Deus e
subjuga aqueles que se empenham em destruí-los. Nesse caso, promover a
santificação envolvia garantir aos israelitas a posse da terra que, logo após
sua conquista por Josué, foi “medida” e “dividida” a fim de ser dada às tribos
e famílias de Israel: “Eu exultarei, pois dividirei Siquém e medirei o vale de
Sucote” (’e‘lozâ ahalleqâ shekem we‘emeq sukôt ’amaded). Aquilo que Deus
preparou para o seu povo é dado efetivamente a ele, a quem o Senhor não
apenas protege, mas exalta (v.8). Por outro lado, a ação santificadora de
Deus, ainda que não elimine por hora os seus inimigos, os contem em sua
ação maléfica contra seu povo, além de guardar um tempo para puni-los de
modo pleno (v.9): “Moabe é o meu lavabo; sobre Edom jogarei a minha
sandália; sobre a Filístia eu cantarei vitória” (mô’av sîr rahtsî ‘al-’edôm
’ashlîk na‘alî ‘alê-peleshet ’etro‘a‘). Ver o Senhor, contra as expectativas
humanas, preservar seu povo e vencer seus inimigos é um grande motivo de
louvor.
A última razão do louvor ao Senhor é a certeza das vitórias que Deus nos
dará (vv.10-13). Davi lança mão, para escrever o final do salmo, de um
trecho que fazia referência à impossibilidade que encontrou de dominar as
fortificações edomitas no alto dos seus montes e dentro das suas cavernas
(v.10). Segundo o salmista, a razão da vitória parcial, ou seja, de conseguir
repelir o ataque edomita a Judá, sem conseguir, contudo, conquistá-los
totalmente a fim de impedir possíveis ataques futuros, era o fato de Deus não
tê-los feito vencer plenamente (v.11): “Ó Deus, acaso tu não nos rejeitaste?
Por isso, ó Deus, não sais com nossos exércitos” (halo’-’elohîm zenahtanû
welo’-tetse’ ’elohîm betsiv’ôteynû). Isso faz com que o salmista permaneça em
oração, sabendo que no meio do silêncio de Deus nenhuma providência
meramente humana pode ter sucesso (v.12): “Socorra-nos do adversário, pois
nulo é o socorro do homem” (havâ-lanû ‘ezrat mitsar weshawe’ teshû‘at
’adam). Apesar de o quadro não parecer até aqui muito bonito ou otimista,
isso não abala o rei de Israel. Ao contrário, ele tem seus olhos, por meio da
fé, voltados para frente. Ele conhece o Senhor e suas promessas. Baseado
nisso, não importa o que as circunstâncias digam, ele sabe que Deus os levará
em frente rumo aos destinos que previu e prometeu (v.13): “Em Deus nós
faremos proezas, pois ele investirá contra nossos adversários” (be’lohîm
na‘aseh-hayil wehû’ yabûs tsareynû). Essa certeza curva o salmista em
adoração e gratidão ao Senhor bondoso e soberano.
Olhando para todos esses motivos de se render verdadeira adoração ao
nosso Deus, não é difícil entender os textos que Davi selecionou para compor
esse hino de gratidão. Na verdade, nós, igreja de Cristo e povo de Deus,
também temos as mesmas razões para elevar nossos louvores aos céus. Nosso
maravilhoso Deus nos prometeu a salvação pela fé (Jo 3.36; Rm 1.16,17), a
segurança de permanecermos salvos (Rm 8.1,37-39), a sua presença constante
conosco (Mt 28.20) e a direção para nossa vida (Jo 16.13). Ele também está
atento às nossas orações (Fp 4.6), auxiliando-nos até mesmo na imperfeição
dos nossos clamores (Rm 8.26). É ele quem nos preserva (Jo 17.14,15), que
contém os ímpios para que não abatam sua igreja (Mt 16.18) e que tem
reservado um tempo em que punirá seus inimigos (Mt 13.49,50). Finalmente,
é ele quem nos garante a vitória (Rm 8.37) e que nos capacita a fazer o que
seria impossível para nós (Rm 12.3-8). Que razões mais nós precisaríamos
para louvar o Senhor glorioso, mesmo quando atravessamos dificuldades,
mas vemos sua mão nos guiando e fortalecendo?
SALMO 109
Lições Aprendidas no Meio da Indignação
SALMO 110
Uma Visão do Futuro
SALMO 111
Os Deveres dos Verdadeiros Adoradores
SALMO 112
A Alegria de Ser um Homem que Teme a Deus
SALMO 113
Deus acima dos Céus e sobre a Terra
SALMO 114
A Presença da Glória do Senhor
SALMO 115
A Disposição Correta para Louvar a Deus
Quase todos nós já ouvimos a expressão “isso não vale um tostão furado”.
O que pouca gente sabe é o que é um “tostão furado”. O tostão é uma moeda
brasileira antiga – inspirada na moeda portuguesa –, feita de níquel, que valia
cem réis – os réis circularam no Brasil desde o período Imperial até o
governo de Getúlio Vargas. Porém, antes dele, havia o tostão furado, o qual
equivalia a oitenta réis. No século 19, ele saiu de circulação para dar lugar ao
tostão cheio, conhecido simplesmente como tostão. Seu valor não passava de
dez centavos em relação ao cruzeiro antigo. Eram moedas que, sozinhas,
compravam pouca coisa e serviam para dar troco de pagamentos maiores.
Desse modo, dizer que alguém não tem um tostão significa não estar
carregando dinheiro algum. Com o tostão furado, a coisa era pior, pois, além
de valer 20% menos que o tostão cheio, perdeu totalmente seu valor ao ser
substituído e sair do mercado. Por isso, falar que algo não vale um tostão
furado significa que não há valor algum naquilo.
Olhando para essa expressão brasileira, podemos dizer que o salmista
atravessou um momento em que sua própria vida não valeu um tostão furado
no sentido de que esteve completamente à beira da morte. Ele deixa isso claro
ao dizer (v.3) que “laços da morte me envolveram” (’afafûnî hevlê-mawet) –
valendo-se dos dizeres de Davi ao se ver cercado por inimigos que queriam
tirar sua vida (Sl 18.4). Contudo, o salmista não pereceu porque Deus o livrou
da morte, preservando sua vida (v.6): “Eu estava desfalecido, mas ele me
salvou” (dallôtî welî yehôshîa‘). Se até aqui a natureza de tal salvação não fica
clara, ele resolve a questão afirmando (v.8): “Pois tu livraste a minha alma da
morte” (kî hillatsta nafshî mimmawet) – deve-se observar que “alma” aqui
não visa a indicar uma salvação de ordem espiritual, mas ao salmista como
um todo, como se ele dissesse “tu me livraste da morte”. Diante disso, muitos
comentaristas veem semelhanças notáveis entre as declarações desse salmista
e a experiência de libertação da morte do rei Ezequias que, avisado de que
iria morrer, ouviu do profeta Isaías que Deus lhe daria mais quinze anos de
vida (Is 38). Alguns até sugerem que o próprio Ezequias seja o escritor do
salmo. De qualquer modo, uma situação como a daquele rei que, achando-se
doente e não vendo possibilidades humanas para impedir que sua vida se
esvaísse, serve como um pano de fundo compatível com o salmo. Por isso,
por meio de quatro ações do escritor do Salmo 116, podemos aprender sobre
o procedimento adequado ao servo de Deus que vê que sua vida ruma para a
condição de não valer um tostão furado.
Quando o salmista se viu impotente contra os riscos à sua vida e percebeu
que só o Senhor, segundo seu plano, preserva seus servos, sua primeira ação
foi demonstrar seu amor por Deus (vv.1-3). Ele inicia o salmo com esta
declaração (v.1): “Eu amo o Senhor, pois ele ouve a minha voz, as minhas
súplicas” (’ahavtî kî-yishma‘ yhwh ’et-qôlî tahanûnay). Apesar de parecer ser
mais fácil amar a Deus quando tudo vai bem e quando a impressão é que a
vida só conhece bênçãos, a situação desse homem passou pelo extremo
oposto (v.3): “Laços da morte me envolveram e os assédios da sepultura me
sobrevieram” (’afafûnî hevlê-mawet ûmetsarê she’ôl metsa’ûnî). O escritor
personifica a própria morte como um caçador que passou a persegui-lo com
seus laços de armadilhas. Ele se sentiu sendo tragado pela sepultura onde
jazeria morto. O resultado foi um abatimento profundo: “Eu fui acometido
por angústia e aflição” (tsarâ weyagôn ’emtsa’). Mas é justamente nessa
situação que sente que Deus tem um relacionamento com ele pautado pelo
amor, já que o Senhor não foi alheio ou insensível ao seu sofrimento. Deus,
na verdade, se mostrou muito interessado na sua situação e lhe tratou como
alguém próximo e amado (v.2): “Pois inclinou seu ouvido para mim” (kî-hittâ
’oznô lî). Inclinar o ouvido não significa apenas escutar, mas atender à
oração. Assim, o salmista, em amor, se relaciona com Deus e se propõe fazê-
lo por toda a sua vida: “Pelo que nos meus dias [de vida] eu o invocarei”
(ûbeyamay ’eqra’).
A segunda ação foi levar a Deus seus pedidos (vv.4-9). Logo após fazer
uma descrição vívida do seu sofrimento, ele declara sua reação (v.4): “Mas eu
invoquei o nome do Senhor [dizendo]: ‘Ó Senhor, livra minha alma’”
(ûbeshem-yhwh ’eqra’ ’annâ yhwh malletâ nafshî). Trata-se de um pedido por
preservação da vida. Essa oração não foi feita sem esperança. O salmista
contava com os atributos de Deus pelos quais ele age beneficamente para
com seus servos (v.5): “O Senhor é compassivo e justo e o nosso Deus é
misericordioso” (hannûn yhwh wetsaddîq we’lohênû merahem). A resposta
divina à oração do salmista moribundo foi positiva e realmente o preservou
(v.6): “O Senhor guarda os simples. Eu estava desfalecido, mas ele me
salvou” (shomer peta’yim yhwh dallôtî welî yehôshîa‘). Imediatamente, sua
confiança na misericórdia de Deus lhe trouxe verdadeira paz em meio à
tempestade, avistando o porto e a terra firme para os quais o Senhor conduziu
o barco da sua vida (v.7): “Ó minha alma, volta ao lugar de descanso, pois o
Senhor foi benevolente para contigo” (shûvî nafshî limnûhoykî kî-yhwh gamal
‘aoykî). Se até aqui o tipo de libertação promovido pelo Senhor fica
subentendido, o escritor, então, o descreve com todas as letras, revelando a
resposta à sua oração (v.8): “Pois tu livraste a minha alma da morte, os meus
olhos das lágrimas [e] os meus pés do tropeço” (kî hillatsta nafshî mimmawet
’et-‘ênî min-dim‘â ’et-raglî middehî). O resultado final é que ele continuaria
vivo e servindo a Deus (v.9): “Servirei ao Senhor nas regiões dos viventes”
(’ethallek lifnê yhwh be’artsôt hahayyîm).
A terceira ação do salmista foi manter sua fé em Deus (vv.10-14). Crer em
Deus depois de ver uma grande libertação não é raro. Entretanto, crer
enquanto tudo que há em volta são problemas e dificuldades é algo mais
difícil de se ver. Pois foi exatamente isso que o salmista fez. Ele creu em
Deus no meio da aflição (v.10): “Eu confiei quando eu [ainda] dizia: ‘Estou
muito aflito’” (he’emantî kî ’adavver ’anî ‘anîtî me’od). Essa confiança fica
em maior relevo quando ele expõe que não apenas estava sofrendo, mas que
também estava desiludido com as pessoas e com sua capacidade de socorrê-lo
(v.11): “Na minha fúria, eu disse: ‘Todo homem é mentiroso’” (’anî ’amartî
behofzî kol-ha’adam kozev). Não é fácil ter fé em uma situação assim, mas o
salmista creu e Deus correspondeu à sua confiança. Se os homens são falhos
e infiéis, Deus é fiel e confiável. Essa constatação levou o escritor a meditar
sobre o modo como ele procederia diante da ação de Deus (v.12): “Como
retribuirei ao Senhor por todos os seus benefícios para comigo?” (mâ-’ashîv
layhwh kol-tagmûlôhî ‘alay). A resposta que ele encontra é dupla. A primeira
é demonstrar sua fé no Senhor, como se sua própria vida preservada agisse
como um brinde público a Deus (v.13): “Erguerei a taça da salvação e
invocarei o nome do Senhor” (kôs-yeshû‘ôt ’esha’ ûveshem yhwh ’eqra’). A
segunda é ser ele mesmo fiel, assim como Deus foi para com ele (v.14):
“Cumprirei meus votos ao Senhor perante todo o seu povo” (nedaray layhwh
’ashallem negdâ-na’ lekol-‘ammô).
A última ação foi oferecer a Deus o devido louvor (vv.15-19). Ao
introduzir um novo parágrafo, o escritor enaltece novamente a ação
preservadora de Deus (v.15): “Custosa aos olhos do Senhor é a morte dos
seus fiéis” (yaqar be‘ênê yhwh hammowtâ lahasîdayw). Apesar de esse texto
normalmente ser traduzido com a palavra “preciosa” –fazendo parecer um
coro aos dizeres de Paulo “o morrer é lucro” (Fp 1.21) –, o contexto geral do
salmo aponta para o fato de que Deus não despreza seus servos na hora da
morte. Ao contrário, ele sente o drama da morte dos seus fiéis, dá valor às
suas vidas e, se assim for seu plano, os preserva da morte – algo que ele fez
com esse servo (v.16). Devido a isso, o louvor toma conta das ações do
salmista (v.17): “Oferecerei a ti sacrifício de ação de graças e invocarei o
nome do Senhor” (leka-’ezbah zevah tôdâ ûveshem yhwh ’eqra’). Ele volta a
afirmar sua fidelidade a Deus por meio do cumprimento dos seus votos diante
do povo (v.18), acrescentando a informação de que o faria no templo do
Senhor, diante de todos (v.19): “Nos átrios da casa do Senhor, no meio de
Jerusalém” (behatsrôt bêt yhwh betôkekî yerûshalaim). Se o salmo começa
com uma declaração de amor, termina com uma proclamação da glória de
Deus: “Exaltai ao Senhor!” (hallû-yah).
Olhando para essa experiência de um servo de Deus que se viu diante da
morte, quando sua vida parecia não valer mais nada, somos encorajados
quando, diante de diversas tribulações que a vida reserva a todos, nos
sentimos desvalidos e inertes. Seja diante da morte, seja diante da vida
atribulada, lembramos que para Deus nós temos muito valor e somos tratados
como tal. Não somos, de modo algum, apenas um número na contabilidade
divina, mas pessoas, servos amados, por quem Deus enviou seu próprio Filho
a fim de nos substituir na condenação do pecado. O valor do Senhor Jesus
Cristo na cruz nos lembra e nos firma em fé, sabendo nós que não é verdade
que não valemos nem um tostão furado. Para Deus nós temos valor e ele nos
tem em meio aos maiores cuidados, atenção e misericórdia.
SALMO 117
O Glorioso Chamado das Nações
SALMO 118
Agradecendo pela Salvação Presente e Futura
SALMO 119
A Maravilhosa ‘Palavra de Deus’
SALMO 120
Vivendo em um Mundo Hostil
SALMO 121
O Único e Supremo Protetor
SALMO 122
O Ajuntamento que Unifica o Povo de Deus
SALMO 123
Como Lidar com a Decepção
SALMO 124
O Cuidado Sempre Presente de Deus
Em certa ocasião, uma mãe e sua pequena filha de quatro anos preparavam-
se para dormir. A criança tinha medo do escuro. Na verdade, sua mãe, que
nesse dia estava sozinha com a filha, também se sentia amedrontada. Quando
a luz foi apagada, a criança notou o brilho da Lua entrando pela janela.
Imediatamente, perguntou: “Mãe, a Lua é a luz de Deus?”. A mãe respondeu
que sim. A próxima pergunta foi: “Deus acende sua luz e vai dormir?”. A
mãe, então, explicou: “Não, minha filha, Deus nunca vai dormir”. Tendo
ouvido isso, apesar da simplicidade da sua fé infantil, a menina disse algo que
trouxe conforto e coragem à temerosa mãe: “Então, já que Deus está
acordado, não há sentido algum em nós também ficarmos”. E assim,
dormiram em paz, confiantes na proteção do Senhor cuja luz brilhava lá fora
e as recordava de que ele nunca se ausenta.
O rei Davi, autor do Salmo 124, conhecia bem os benefícios de Deus não
dormir ou se ausentar. Afinal, ele havia testemunhado o cuidado presente do
Senhor junto aos seus. Este salmo foi composto para louvar a Deus e lhe
render graças por causa de uma libertação notável que se processou diante da
presença do Senhor com seu povo. Pelo tom emocionado do texto, pelas
figuras fortes e sugestivas da destruição iminente que foi evitada e pela
gratidão rendida a Deus, é bem provável que o salmo tenha sido escrito logo
após a libertação, quando o medo e a alegria que Israel sentiu ainda estavam
na memória. Como conhecemos a autoria do cântico, podemos tentar
identificar o contexto histórico. Davi, como rei, atravessou duas crises
graves: o ataque dos filisteus, assim que ele assumiu o trono de Israel (2Sm
5.17-25), e o golpe de Estado de Absalão (2Sm 15—18). Como o segundo
configurou mais uma crise pessoal de Davi, cujo risco de vida era dele e não
da nação, é mais provável que o ataque filisteu tenha provido o pano de fundo
do salmo, já que, por causa disso, Israel correu o risco de ser extinto. Os
filisteus, que achavam que ao vencerem e matarem Saul haviam
sacramentado seu domínio na Palestina, atacaram os israelitas com toda fúria
ao saber que Davi tomara o lugar do antigo rei. O poderio filisteu e as baixas
israelitas na guerra anterior faziam com que a sobrevivência do povo de Deus
corresse risco em um novo conflito. Olhando para trás, para tudo que
passaram e para o modo como o Senhor os protegeu, Davi chega a três
conclusões do fato de Deus se colocar ao lado dos seus servos.
A primeira conclusão é o que aconteceria sem Deus estar ao lado (vv.1-
5). O salmo começa exibindo emoção e ênfase na gratidão nacional. Essa
emoção se vê em uma digressão que conclama o povo a confirmar a tese do
salmista. Ele introduz a primeira parte da longa frase que irá desenvolver nos
vv.2-5, exclamando (v.1a): “Se não fosse o Senhor, que esteve conosco!”
(lûlê yhwh shehayâ lanû). Mas em vez de dar sequência à frase, o escritor a
interrompe e chama todo Israel a confirmar seu dito e dar suas próprias
versões e contribuições ao relato da libertação (v.1b): “Que Israel o diga!”
(yo’mar-na’ yisra’el). Emoções florescem e o salmista não pode contê-las,
deixando que transpareçam nessa interrupção da frase. A seguir, no
acréscimo veloz de figurações da libertação, umas sobre as outras, produz
uma frase maior e mais rica que o normal. Ele retoma e completa a ideia
inicial lhe dando o contexto (v.2): “Se não fosse o Senhor, que esteve
conosco, quando os homens se levantaram contra nós” (lûlê yhwh shehayâ
lanû beqûm ‘alênû ’adam). Não há dificuldade em notar nessa frase a marcha
de um exército estrangeiro para abater Israel. É sobre isso que o salmista diz:
“Se não fosse o Senhor”. Trata-se de um inimigo poderoso que eles não
podiam conter sem o auxílio divino.
Para dar a entender a questão, Davi expõe os prováveis resultados caso
Deus não estivesse ao lado deles quando foram atacados. Ele o faz por meio
de algumas figuras. A primeira delas é a de um animal ou um monstro
devorador (v.3): “Eles já teriam nos devorado vivos por causa da sua ira
ardente contra nós” (’azay hayyîm bela‘ûnû baharôt ’affam banû). Essa
imagem de um devorador é exposta de modo mais dramático no v.6, ao citar
seus dentes prontos para serem cravados na presa. Em resumo, se alguém
pode imaginar a agonia de ser devorado por uma fera, pode então saber como
os israelitas se sentiram diante do poderoso inimigo. Davi também compara a
força letal dos opressores a uma forte correnteza que arrasta, afunda e afoga
suas vítimas (v.4): “As águas já teriam nos afundado, a correnteza teria
passado sobre a nossa alma” (’azay hammayim shetafûnû nahlâ ‘avar ‘al-
nafshenû). Se a total impossibilidade de sobreviver a essa torrente ainda não
ficou clara aos ouvintes, o salmista repete a ideia de modo mais dramático
(v.5): “Águas revoltas já teriam passado sobre a nossa alma” (’azay ‘avar ‘al-
nafshenû hammayim hazzêdônîm). A palavra traduzida aqui como “revolta”
quer também dizer “espumejante”, descrevendo a aparência que tem a água
que desce corredeiras íngremes em um leito pedregoso — águas mortais!
Com isso, o que o salmista proclama a todos é que a morte do povo e a
destruição de Israel eram certas se o Senhor não tivesse impedido o inimigo.
É isso que aconteceria sem Deus estar ao lado do seu povo.
A segunda conclusão é o que aconteceu por Deus estar ao lado (vv.6,7).
Davi, aqui, para de falar “e se” e passa a relatar os fatos: Israel foi poupado
pela ação libertadora de Deus. Por isso, ele louva seu salvador (v.6): “Bendito
é o Senhor que não nos entregou como presa para os seus dentes” (barûk
yhwh shello’ netananû teref leshinnêhem). É interessante como, nesse texto,
percebemos a noção da soberania de Deus acolhida por Davi. Ele olha para
os inimigos e entende que o sucesso deles só viria se Deus assim o quisesse.
Se Israel caísse era por que o Senhor os teria entregado aos opressores.
Contudo, se nisso a soberania fica patente, tanto mais na libertação pela qual
o salmista agradece a Deus e lhe chama “bendito”. O resultado final é
descrito de uma maneira dramática por meio do quadro de uma preservação
improvável aos olhos humanos (v.7a): “A nossa alma escapou com vida
como um pássaro [escapa] da armadilha dos caçadores” (nafshenû ketsiffôr
nimletâ miffah yôqesîm). A palavra hebraica traduzida como “alma” (nefesh)
nem sempre tem um sentido espiritual e, frequentemente, é utilizada para se
referir à pessoa como todo. Nesse versículo, isso ocorre, de modo que “nossa
alma” deve ser interpretada como “nós”. O salmista está dizendo: “Nós
escapamos com vida”. Para deixar vívida a figura da improvável fuga de um
pássaro já capturado, ele completa (v.7b): “A armadilha se rompeu e nós
escapamos com vida” (haffah nishbar wa’anahnû nimlatnû). Improvável aos
olhos humanos ou não, foi exatamente o que o Senhor fez: protegeu seu povo
de uma derrota iminente e inevitável. Foi isso que aconteceu por Deus estar
ao lado de Israel em uma hora tão difícil.
A última conclusão é o que significa Deus estar ao lado (v.8). O rei Davi
encerra o salmo com uma declaração de confiança que não se restringia à
situação militar dos seus dias. Na verdade, ele pensa em Deus não somente
como quem os preservou do ataque inimigo, mas como aquele que o faz
sempre (v.8a): “A nossa proteção está no nome do Senhor” (‘azrenû beshem
yhwh). Ao falar do “nome do Senhor”, sua intenção não é produzir uma ideia
de que frases que contenham o nome de Deus conferem poder às pessoas,
assim como imaginavam os pagãos. Na verdade, essa expressão aponta para a
glória do Senhor e para sua fama por tudo que ele é e faz. O significado disso
é que a proteção vem do próprio Deus e não do uso do seu nome pelos
homens. E para mostrar isso, Davi descreve quem é o Senhor (v.8b): “O
criador dos céus e da Terra” (‘oseh shamayim wa’arets). Ser criador do
universo é o maior testemunho bíblico do poder e da majestade do Senhor.
Quando Davi lhe chama protetor, ele pensa no portador do maior poder que
existe. E não apenas isso, mas também do conhecimento ilimitado, da
sabedoria para fazer tudo do melhor modo possível e do amor que dá ao
homem uma condição que ele não merece. Portanto, a presença de Deus é o
que determina o final de cada situação. Para o salmista, ter Deus ao lado
significa que seus servos podem descansar em paz, sabendo que ninguém é
mais poderoso que o nosso Senhor e que tudo que acontece vem das mãos do
soberano e sábio criador.
Felizmente, tais conclusões não apenas valem para nós, igreja de Cristo,
como podem até ser observadas a partir da nossa experiência com o Senhor.
Quantas coisas Deus já fez por nós? De quantos males ele nos livrou? De
quantos perigos nos protegeu? E quantas lições já tivemos sobre o que
significa ter Deus ao nosso lado? A primeira conclusão é que não podemos de
modo algum querer andar longe de Deus. O desenvolvimento da vida cristã,
da fidelidade, da santidade, do amor e do testemunho deve ser inerente à
existência de todo crente, em toda parte. A segunda conclusão é que, mesmo
em tempos em que o mundo se arma contra nós, tentando, inclusive, nos calar
e perseguir por meio das leis e dos tribunais, nosso protetor é “o criador dos
céus e da Terra”. Ainda que pareça que o fim da igreja está próximo, é do
nosso Senhor, o fundador da igreja, que ouvimos: “Edificarei a minha igreja,
e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18b). Durmamos
em paz, sob o brilho da luz de Deus!
SALMO 125
Não Onde, mas Quem
Certo turista, indo ao Rio de Janeiro, tinha como prioridade em sua lista de
locais a serem visitados o Estádio Jornalista Mário Filho, mais conhecido
como Maracanã. A expectativa daquele turista em estar nesse templo do
futebol brasileiro era muito grande. Sem demora, tomou um taxi e foi direto
para lá. Ao chegar, ficou extasiado com o tamanho da construção. Adentrar
aqueles portões aumentou sua ansiedade por sentir a emoção de se ver na
famosa arquibancada. Lá do alto, a visão foi fantástica: era bem maior do que
imaginava. O que não foi tão grande assim foi a emoção que sentiu. Ele
gostou da visita, mas percebeu que quando alguém vai a um estádio, não vai
para ver a construção, mas o jogo disputado ali. Ele percebeu que lhe ficou
um vazio por ter ido à casa do seu time do coração e não tê-lo visto jogar.
Voltou ao hotel um pouco decepcionado. Pelo menos, não perdeu a viagem:
as fotos ficaram ótimas.
O Salmo 125 revela o sentimento oposto ao do turista no estádio. Esse é
mais um “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt). Era cantado quando os
peregrinos que empreenderam a viagem a Jerusalém para a festa regular já
tinham chegado à cidade e adentrado suas portas. Estar em Jerusalém era
fantástico! Finalmente, aquela viagem anual terminara e eles chegaram ao
local amado, cheio de recordações históricas e significados para o povo de
Israel. Entretanto, eles não estavam ali pela cidade em si. Vieram por outra
razão: adorar o Senhor criador e soberano, o Deus da casa de Israel. Apesar
de o Senhor estar em toda parte, era ao templo construído em Jerusalém, local
dos utensílios sagrados e dos sacrifícios realizados pelos sacerdotes, que eles
traziam suas ofertas a Deus, cumprindo os estatutos da lei. E mais do que
isso: era ali que a presença divina se mostrava junto ao povo que ele separou
para si. Mesmo que representativamente, era ali que o Senhor habitava entre
eles. Por isso, chegar a Jerusalém era mais que vir a um lugar bonito e
amado. Era se aproximar de Deus, ter comunhão com ele, adorá-lo como que
face a face e manter vivas todas as esperanças na promessa da restauração
plena de Israel sob o reinado do Messias. Jerusalém era mais que um lugar
turístico. Era o local para adorar a Deus, fazer uma autoavaliação seguida de
arrependimento e, com fé, manter viva a esperança futura. Por isso mesmo, o
salmo nos apresenta três lembranças importantes que os servos de Deus
devem ter quando vão adorá-lo.
A primeira lembrança é a razão da confiança dos servos de Deus (vv.1,2).
O salmo inicia comparando os crentes a um ponto geográfico cheio de
significados para os israelitas (v.1a): “Os que confiam no Senhor são como o
Monte Sião” (havvotehîm bayhwh kehar-tsîyôn). O monte chamado Sião
(tsîyôn) é o local, dentro de Jerusalém, em que havia uma fortaleza quando
Davi tomou a cidade dos jebuseus. Ela se chamava “fortaleza de Sião”, mas,
depois da invasão, teve seu nome mudado para “cidade de Davi” (2Sm 5.7).
Não era o monte do Templo, pois Salomão reuniu os cabeças de cada tribo
“para fazerem subir a arca da Aliança do Senhor da Cidade de Davi, que é
Sião, para o templo” (1Rs 8.1). Mais adiante, dado o significado do local
como centro do poder de Jerusalém sobre todo Israel, passou a ser sinônimo
da cidade como um todo. Isso se pode notar quando Sião e Jerusalém são
citados paralelamente de modo a identificá-las como sendo o mesmo lugar
(Am 1.2; Sf 3.14). Para os israelitas, falar de Jerusalém era pensar em um
ponto geográfico e político, mas falar de Sião era se referir a isso tudo
acrescido de um sentimento não apenas nacionalista, mas esperançoso de que
ali novamente se levantaria o poder soberano sobre a nação e sobre os povos
ao redor do mundo (Mq 4.1-3). Por causa dessas promessas, eles tinham
plena confiança que aquele local não pereceria, mas duraria para sempre,
aguardando o reinado do Messias. O salmista concorda com isso ao descrever
a qualidade marcante de Sião (v.1b): “Ele nunca será abalado, [mas]
permanecerá para sempre” (lo’-yimmôt le‘ôlam yeshev).
O monte Sião é assunto do salmo, mas não é seu ponto central. Ele age
como introdução e comparação a algo maior. O assunto do salmo não é
“onde”, mas “quem”. Por isso, o escritor passa da figura de Sião, que é
Jerusalém, para a pessoa do Deus de Israel (v.2a): “[Como] Jerusalém é
cercada por montes, assim é o Senhor” (yerûshalaim harîm savîv lah
wayhwh). Além de ser o local em que, no presente, o Senhor habitava com
seu povo, e onde, no futuro, o Messias reinará, Jerusalém, cercada por outros
montes, guarda semelhança com Deus no sentido em que ele também é
cercado (v.2b), “cercado pelo seu povo, desde agora até a eternidade” (saviv
le‘ammô me‘attâ we‘ad-‘ôlam). Assim como Jerusalém dura para sempre e é
cercada por montes, o domínio e a presença do Senhor também são
permanentes e, por isso, seu povo se achega a ele para sua adoração e
glorificação. Era exatamente isso que aqueles peregrinos de outras terras
estavam fazendo em Jerusalém: reunindo-se para adorar a Deus e lhe trazer
suas ofertas. E tão inabaláveis como o governo de Deus e a durabilidade do
Monte Sião, assim são “os que confiam no Senhor” (v.1). Mesmo em tempos
difíceis, eles são mantidos por aquele que mantém todo o restante.
A segunda lembrança é a razão da retidão dos servos de Deus (v.3). O
salmista aborda uma questão de governo presente nos seus dias, representada
pela palavra “cetro” como figuração de um rei. O que não se sabe é se ele se
refere a um rei estrangeiro, cujo poder se fazia sentir sobre Jerusalém, ou ao
próprio rei israelita (v.3a): “Assim, o cetro do ímpio não se deterá sobre o
destino dos justos” (kî lo’ yanûah shevet haresha‘ ‘al gôral hatsaddîqîm).
Isso coloca tal rei em uma posição de opressor do povo por causa da sua
iniquidade. Sobre isso, o texto garante que tal governo não prevalecerá por
muito tempo pela seguinte razão (v.3b): “Para que os justos não lancem suas
mãos em [direção à] injustiça” (lema‘an lo’-yishlehû hatsaddîqîm be‘awlatâ
yedêhem). Principalmente quando os reis israelitas eram homens perversos, o
povo acabava por se desviar de Deus e dar vazão aos seus impulsos carnais
sem detença. Isso acontece por vários motivos. Um deles é o mau exemplo
dos líderes — o povo pensa: “Se ele que é líder pode, por que eu não
poderia?”. Outro é um sentimento de desforra — “farei o mesmo para que
eles sintam na carne o que me fizeram sentir”. Mais um motivo é a escolha
errada para suprir as necessidades geradas pela injustiça dos governantes —
“tenho de fazer o que sei que é errado, pois é o único meio de me manter”.
Justamente por causa da injustiça que, por vezes, cresce de cima para baixo,
Deus parece interromper tais ciclos perversos e trazer sobriedade e
santificação, principalmente ao seu povo. Isso ele o faz abatendo o “cetro
ímpio”, causando temor em todos. Esse efeito foi visto há alguns anos,
quando a justiça italiana se lançou a uma busca implacável por políticos
corruptos a fim de colocá-los na cadeia. Isso gerou um clima de austeridade
que se instalou no país de tal maneira que até a moda, naquele ano, assumiu
uma postura mais austera e sóbria. Os desfiles exibiram vestidos mais longos,
de cores sérias e com decotes menos chamativos. Dentro de Israel, ainda que
Deus tenha reservado um dia futuro para julgar a nação israelita e o mundo
inteiro por seus pecados, ele agiu com mão punitiva ao longo da sua história a
fim de manifestar sua justiça, santidade, poder e, também, gerar
arrependimento no seu povo e retorno à retidão, à santidade e à comunhão
com o Senhor. Estar em Jerusalém promovia a lembrança dos juízos de Deus
e o temor necessário para os servos buscarem andar retamente.
A última lembrança é a razão da esperança dos servos de Deus (vv.4,5).
O trecho final do salmo é uma oração, cuja primeira parte visa a ver os que
confiam em Deus serem por ele abençoados (v.4): “Ó Senhor, faze o bem
para os bons e retos de coração” (hêtîvâ yhwh lattôvîm welîsharîm
belivvôtam). Apesar de ser um pedido bem genérico — fazer o bem —, o que
se entendia por “bem” tinha um conteúdo específico que envolvia a provisão
e a saúde do dia a dia, mas que também abarcava o futuro da nação, com a
restauração e estabelecimento dos limites da sua terra (Gn 15.18-21), o
reinado glorioso da casa de Davi (2Sm 7.11-16), a perpetuidade de Jerusalém,
sede do trono (Jr 31.38-40) e o arrependimento e retorno dos israelitas
exilados por várias partes do mundo (Ez 36.24-28 cf. Jr 31.31-34). Quanto
aos ímpios, a oração é por juízo e expulsão do seu meio (v.5a): “Mas aqueles
que se desviam em seus caminhos tortuosos, o Senhor os expulsará junto com
os malfeitores” (wehammattîm ‘aqalqallôtam yôlîkem yhwh ’et-po‘alê
ha’awen). A conclusão do clamor, esperança última do povo de Israel e
marca de todo bem divino feito ao povo que escolheu, era (v.5b): “[Que haja]
paz sobre Israel!” (shalôm ‘al-yisra’el). A isso, muita gente devia bradar um
sonoro “amém!”.
Que o mesmo valha para nós. Que deixemos o conforto dos nossos lares
para nos reunir com nossos irmãos em culto a Deus — não pela igreja em si,
mas pelo Senhor. Ao nos reunirmos em culto, que recordemos juntos a razão
da nossa confiança (a salvação concedida pela fé em Jesus), a razão da nossa
retidão (a santidade do Senhor e da sua palavra) e a razão da nossa esperança
(a promessa de que habitaremos para sempre com nosso grandioso Deus).
Que haja paz sobre a igreja de Cristo!
SALMO 126
Uma Alegria Verdadeira e Transbordante
SALMO 127
A Preocupação do Servo de Deus
SALMO 128
Bênçãos de Dentro para Fora
SALMO 129
Gratidão do Passado, Confiança do Presente
Quando penso no Salmo 129, lembro-me de uma história que li. Dizem que
Frederico o Grande (1712-1786), rei da Prússia, era um escarnecedor,
enquanto seu principal general, um senhor chamado Von Zealand, era cristão.
Em certo encontro, o rei estava fazendo piadas grosseiras e ofensivas sobre
Jesus Cristo, tirando ruidosas gargalhadas dos muitos homens que estavam ao
seu redor. Diante disso, o general Von Zealand se levantou com certa
dificuldade, dada sua idade avançada, e disse: “Meu senhor, você sabe que eu
nunca temi a morte. Lutei e venci 38 batalhas por você. Sou um homem
velho e em breve partirei para a presença daquele que é maior que você, o
poderoso Deus que me salvou do meu pecado: o Senhor Jesus Cristo, contra
quem você está blasfemando. Eu o saúdo, meu senhor, como um homem
velho que ama o seu salvador, à beira da eternidade”. Com voz trêmula,
Frederico lhe respondeu: “General Von Zealand: peço seu perdão! Peço seu
perdão! Peço seu perdão!”. Depois disso, todos os presentes foram partindo
em silêncio.
O interessante nessa história é que a grande coragem de enfrentar um rei
veio de certas recordações gratas: a salvação que o general recebeu de Cristo,
as bênçãos em termos de sucesso militar e a promessa bíblica de viver com
Deus. Diante disso, prontamente a gratidão do passado se transformou na
coragem do presente na forma de um testemunho que ficou gravado na
história. Nesse sentido, há semelhanças entre esse relato e o Salmo 129. Esse
“cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt), entoado pelos que iam ao Templo
adorar a Deus, foi, provavelmente, composto em dias nos quais Israel sofria
com ataques de inimigos e em que o perigo estava literalmente ao redor. Na
ocasião, ele serviu como oração por libertação e fonte de coragem e
esperança para o povo. Para os peregrinos que entoavam o salmo, ele servia
para lembrar que havia promessas a Israel a serem cumpridas, para as quais a
história do seu povo fornecia razões de sobra para que confiassem nelas.
Desse modo, apesar de narrar um pouco da sofrida história dos judeus e de
pronunciar imprecações desconfortáveis para o leitor, trata-se de um salmo
tremendamente prático com duas lições muito importantes.
A primeira lição, tanto para Israel como para a igreja de Cristo, é que o
servo de Deus deve sempre lembrar as bênçãos que Deus lhe concedeu no
passado (vv.1-4). Se Israel estava sob o ataque quando o salmo foi composto,
o salmista lembra que isso não era novidade para seu povo. Na verdade,
Israel tinha uma história de sofrimento e de perseguição por parte de quase
todas as nações ao seu redor, pelo que o escritor em nada exagera os fatos ao
dizer (v.1a): “Muito me atacaram desde a minha juventude” (ravvat tserarûnî
minne‘ûray). Apesar de o escritor falar como se fossem dele, suas palavras
são ditas por toda a nação. Isso fica claro quando, na sequência, assim como
no Salmo 124, o escritor abre parêntese para chamar o povo a confirmar sua
afirmação e tomarem para si as suas palavras (v.1b): “Que Israel o diga!”
(yo’mar-na’ yisra’el). Dito isso, ele volta à afirmação inicial, mas a completa
com uma virada surpreendente (v.2): “Muito me atacaram desde a minha
juventude, porém, não puderam me vencer” (ravvat tserarûnî minne‘ûray gam
lo’-yoklû lî). Agora é possível entender o porquê da recordação. Não se trata
de nostalgia, mas de perceber, pelos eventos passados, que Deus vinha
trabalhando positivamente em favor do povo em um passado que não foi
nada fácil. Os ataques numerosos que enfrentaram foram também violentos,
ao que ele se refere usando a figura de lavradores que ferem a terra com o
arado. Porém, nesse caso, a terra era a nação de Israel (v.3a): “Os lavradores
passaram o arado sobre as minhas costas” (‘al-gavvî horshû horshîm). Não
satisfeito, ele estende a figura de modo a ficar claro que foram muitas vezes
alvo de extrema violência (v.3b): “Fizeram longos sulcos sobre elas”
(he’erîkû lema‘anôtam).
Apesar da figura eloquente sobre a opressão de Israel por parte dos
exércitos inimigos, o próximo texto apresenta uma realidade tão oposta que a
frase bem poderia começar com a palavra “mas”, não obstante ela não constar
no texto hebraico (v.4): “[Mas] o Senhor é justo: ele cortou as correias dos
ímpios” (yhwh tsaddîq qitsets ‘avôt resha‘îm). A figura de “cordas” ou
“correias” parece estar diretamente ligada à figura do arado. Se os ataques
sobre Israel eram como passar o arado sobre suas costas, esse texto está
dizendo que o Senhor impediu que o inimigo obtivesse seu objetivo final
cortando as correias do arado, aquelas cordas amarradas ao boi de um lado e
ao arado de outro, permitindo que o movimento do boi arrastasse o arado à
medida que este abria a terra. Algo interessante é notar o atributo divino
destacado nessa ação. Enquanto esperaríamos ler que a “bondade” ou a
“misericórdia” de Deus o levaram a deter a crueldade do inimigo, é sua
“justiça” que leva o crédito da ação. Por isso, deve-se adicionar ao quadro da
ação libertadora, a mão punitiva de Deus contra os atacantes. O Senhor, não
apenas deteve os inimigos do passado, mas os puniu por sua maldade. Assim,
a frase “porém, não puderam me vencer” (v.2b) assume um significado
especial a respeito do cuidado de Deus.
A segunda lição é que o servo de Deus deve crer firmemente no seu
cuidado presente e nas promessas futuras (vv.5-8). Essa seção traz ao
exegeta uma dificuldade logo de início. A maioria das formas verbais aponta
para o futuro. Interpretadas assim, o autor estaria demonstrando confiança de
que os inimigos seriam abatidos adiante. Contudo, a mesma forma verbal
costuma assumir um sentido volitivo. Nesse caso, em lugar de uma ação
futura expressa nas palavras “eles serão envergonhados”, a tradução seria o
desejo de “que eles sejam envergonhados”. O autor estaria se dividindo entre
a oração a Deus por libertação e a imprecação contra os inimigos de Israel.
Não é fácil definir gramaticalmente o que o salmista estava pensando, mas,
levando em conta o uso dos salmos, o sentido volitivo é preferível.
Assim, a partir das gratas lembranças do passado, o salmista olha para o
presente como ocasião de depender de Deus em oração e de crer que ele, que
está no controle de tudo, tratará a maldade do inimigo como ela merece ser
tratada. Além do mais, ser inimigo de Israel era ser inimigo de Sião não
apenas como capital, mas como centro da esperança israelita de redenção. Por
isso, o resultado, mais cedo ou mais tarde, seria a derrota dos opressores
(v.5): “Que todos os inimigos de Sião sejam envergonhados e batam em
retirada” (yevoshû weyissogû ’ahôr kol sone’ê tsîyôn).
Frequentemente, as metáforas produzem uma compreensão mais vívida das
grandes vitórias ou das grandes derrotas. Nesse caso não é diferente. A
grande derrota antevista nessa oração imprecatória é comparada a pequenas
plantas que germinavam no telhado das casas sobre a poeira que ali se
acumulava. Como a semente em solo rochoso da parábola do semeador (Mt
13.5,6), essas plantas não tinham raiz e secavam antes de se desenvolver. Era
assim que aconteceria aos inimigos de Israel (v.6): “Que sejam como a erva
do telhado que seca antes de florescer” (yihyû kahatsîr gaggôt sheqqadmat
shalaf yavesh). Seu abatimento seria tal que, caso fossem aquelas ervas secas,
sua quantidade seria ínfima, pelo que o salmista prossegue (v.7): “Com a qual
o ceifeiro não enche sua mão, nem o colhedor [enche] seus braços” (shello’
mille’ kaffô qôtser wehitsnô me‘ammer). Além disso, as alianças entre os
ímpios se desfariam e eles não seriam alvo nem da simpatia nem da
misericórdia de ninguém (v.8): “E que aqueles que passam não digam: ‘A
bênção do Senhor esteja convosco! Nós vos abençoamos em nome do
Senhor!’” (welo’ ’omrû ha‘overîm birkat-yhwh ’alêkem beraknû ’etkem
beshem yhwh). Vê-se que os israelitas tomaram a história da ação de Deus
como um padrão para sua atuação no presente e no futuro. A gratidão pela
proteção divina no passado se tornou, para eles, oração confiante no presente
e esperança corajosa a respeito do futuro.
Como igreja de Deus redimida por Cristo, devemos aprender essas lições
que, apesar de provirem da teologia, têm valor e aplicações tremendamente
práticas. Principalmente porque o mundo dos nossos dias tem sido palco de
uma oposição cada vez mais decidida e feroz do mundo em relação a Deus, à
mensagem do evangelho e à igreja cristã verdadeira. Não é difícil notar o
surgimento de situações que preocupem os cristãos: leis que defendem a
liberdade das pessoas tolhendo a liberdade dos cristãos; perseguição e
martírio de crentes pelo mundo; ameaças de fechar igrejas e proibir a
pregação do evangelho; a tentativa de obrigar a igreja a assumir posturas
mundanas e a receber em seu meio pecadores não arrependidos; a aprovação
e admiração na sociedade dos pecados mais abomináveis previstos nas
Escrituras. Os dias não são fáceis! Mais do que nunca, precisamos lembrar o
que Deus fez por nós no passado: enviou seu Filho para morrer por nossos
pecados, salvou-nos gratuitamente pela fé em Cristo, deu-nos uma família
espiritual e uma pátria celestial, supriu-nos ao longo de muitas crises e
dificuldades, tem nos protegido dos perigos crescentes do mundo, tem nos
confortado nos piores momentos por meio do Espírito Santo, tem nos dado
crescimento pela sua palavra. Sendo assim, porque ele iria mudar agora e nos
abandonar? Isso nunca vai acontecer! Por isso, olhemos para o passado com
gratidão e nos curvemos em oração a respeito do presente, em plena
confiança de que, no futuro, cearemos à mesa do nosso amado Senhor, justo e
santo anfitrião de um povo que redimiu para si.
SALMO 130
A Jornada em Busca do Perdão
SALMO 132
A Durabilidade da Promessa de Deus
SALMO 133
A Maravilhosa União dos Irmãos
SALMO 134
A Bendição do Servo e a Bênção de Deus
Encontrei, certa vez, uma moça que estava afastada da igreja por haver
deliberadamente escolhido viver em situação de pecado. Apesar da
possibilidade que havia de aquela triste condição ser revertida, a moça se
mostrava bastante decidida em mantê-la. Então, como modo de, ao mesmo
tempo, apontar sua situação irregular e a disposição da igreja de perdoar e
receber de volta o arrependido, eu disse a ela: “Estou orando por você!”. A
resposta dela me deixou aturdido! Ela disse: “Ore mesmo por mim, pois vou
prestar um concurso em tal dia e preciso da ajuda de Deus”. Eu não sabia se
ria ou lamentava. Pensei comigo: “Será que ela entendeu que eu estava
orando para que ela fosse feliz e abençoada em suas ações e não para que se
arrependesse do pecado?”. E como eu poderia pedir ao Senhor que
abençoasse alguém que, deliberadamente, se afastou dele e que cuspia na
comunhão obtida pelo sacrifício de Jesus na cruz? Apesar de Deus ser capaz
de fazer qualquer coisa, a comunhão com ele filtra que tipo de ações ele
rende aos seus, pelo que diz Isaías: “Eis que a mão do Senhor não está
encolhida, para que não possa salvar; nem surdo o seu ouvido, para não poder
ouvir. Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e
os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is
59.1,2). Por isso, realmente não orei a Deus para que a abençoasse no tal
concurso, mas continuei a clamar por arrependimento e retorno à comunhão
dos santos, mesmo que, para isso, o Senhor tivesse de discipliná-la.
O ato de demonstrar gratidão pelas grandezas divinas ou de clamar por
alguém pelas bênçãos do Senhor se chama “bendizer”. A palavra hebraica
para tal ação é barak, a mesma usada para descrever a ação de Deus de
conceder bênçãos. Então, quando Deus efetua tal ação, o sentido da palavra é
“abençoar”. Porém, como o homem não tem a mesma capacidade de efetivar
bênçãos, ao ser o autor da ação do verbo barak, o significado passa a ser
“bendizer” — a visão supersticiosa dessa atividade, a qual acredita que o
homem tem poder em si, é retratada pela palavra “benzer”. Assim, é no
sentido de “bendizer” que as pessoas descritas no Salmo 134 atuam. Esse é o
último dos salmos nomeados como “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt).
Ele era cantado pelos peregrinos quando sua viagem havia chegado ao fim,
seu propósito fora completamente atingido e eles estavam em pleno curso da
adoração comunitária a Deus no Templo. No decurso do culto, o salmo
expressa um chamado aos adoradores (vv.1,2), chamado esse feito por um
homem, o próprio salmista ou, possivelmente, o sumo sacerdote, e a resposta
que é a ele dirigida (v.3) — essas pessoas são identificadas pelos pronomes
masculinos plurais dos vv.1,2 e pelo pronome masculino singular do v.3.
Assim, o chamado do salmista ou do sacerdote é que o povo pratique a
bendição a Deus, ou seja, a oração de uns em favor dos outros. Por isso, o
salmo serve para assentar três pontos cardeais na prática da bendição pelos
servos do Senhor.
O primeiro ponto cardeal do salmo é que as bendições pressupõem
ligação do abençoado com Deus (v.1). O homem que se dirige ao povo diz
em alta voz (v.1a): “Atenção! Bendizei vós ao Senhor, todos os servos do
Senhor” (hinneh barakû ’et-yhwh kol-‘avdê yhwh). Apesar da segunda parte
do versículo dizer que esses serviam a Deus “de noite” — o que faz com que
alguns comentaristas associem tais servos com os levitas que trabalhavam no
Templo —, o tom do salmo e sua ocasião de execução parecem descrever
como servos do Senhor todos os adoradores ali presentes. A ordem de
bendizer a Deus tem aqui o sentido de orar por bênçãos — esse sentido é
compreendido pelo modo como o povo reage ao chamado, não louvando a
Deus, mas clamando por sua ação abençoadora em favor do dirigente do
culto (v.3).
Uma dificuldade na compreensão de tal chamado é que não se oferece o
alvo das orações do povo. Entretanto, a falta de especificidade do pedido
sugere que bendição deveria ser em favor de todos, como se dissesse:
“Clamem a Deus por todos nós, ó servos do Senhor”. Contudo, mesmo que o
chamado visasse à oração pelo povo em geral, ele é feito às pessoas ali
presentes, àqueles (v.1b) “que permaneceis na casa do Senhor durante as
noites” (ha‘omedîm bevêt-yhwh ballêlôt). Trata-se dos adoradores que,
comprometidamente, deixaram seus lares e seus interesses econômicos para
estar diante de Deus e lhe prestar todas as homenagens e louvores, de manhã
até a noite, por vários dias. Essa ligação com Deus era pressuposta para que
buscassem a Deus em oração uns pelos outros. Afinal, que vantagem haveria
na oração dependente de quem orgulhosamente se mantinha longe do Senhor
e da obediência a ele?
O segundo ponto cardeal é que as bendições requerem a busca por
santidade de vida (v.2). Se o orgulho, a rebeldia e a independência de Deus
não eram os solos para serem plantadas as bendições em favor dos irmãos, a
impureza e o pecado também não. Por isso, o dirigente do culto diz em alta
voz (v.2): “Levantai vossa mão santa e bendizei ao Senhor” (se’û-yedekem
qodesh ûbarakû ’et-yhwh). A segunda parte do versículo repete o que foi dito
no texto anterior, mas o início do v.2 introduz a maneira como a bendição
deveria ser realizada. Apesar de a maioria das traduções trazer algo do tipo
“levantai vossas mãos ao santuário”, o texto hebraico não traz nenhuma
preposição locativa ou artigo ligados à palavra qodesh (santo/santuário) —
como ocorre em Sl 28.2 —, demonstrando se tratar de um adjetivo e não de
um substantivo, o qual combina em número com a expressão “vossa mão”
(yedekem). Assim, parece que os dizeres de Paulo a Timóteo refletem
exatamente a ideia em questão: “Quero, portanto, que os varões orem em
todo lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem animosidade” (1Tm 2.8).
Levantar as mãos é um gesto que expressa oração e adoração. Era
exatamente isso que Israel fazia diante de Deus no Templo. Entretanto, a
atenção não recai tanto sobre a ação quanto sobre o modo de realizá-la: em
santidade. Para os israelitas, a expressão “mão santa” podia ter relação com a
observância dos mandamentos relativos à impureza cultual, de modo que
ninguém que não havia sido purificado ritualmente poderia prestar tal
adoração no Templo. Entretanto, o sentido primário certamente era a própria
santidade e pureza de vida, já que Deus se importava menos com o rito em si
que com o coração e a devoção dos adoradores (1Sm 15.22; Os 6.6). Por isso,
tanto na epístola paulina como nesse salmo, a orientação é manter a pureza
por meio da obediência, do arrependimento e do perdão para que, sem
qualquer impedimento, se possa elevar a voz a Deus suplicando por si e por
outros.
O último ponto cardeal é que as bendições necessitam da ação
abençoadora do Senhor (v.3). O final do salmo condena ao esquecimento a
ideia supersticiosa do benzimento. Longe de realizar um ritual como que
mágico a fim de promover o benefício do homem que dirigiu as palavras dos
vv.1,2, o povo responde as orientações dos versículos precedentes, dizendo
(v.3): “Que o Senhor, o criador dos céus e da Terra, te abençoe de Sião”
(yevarekka yhwh mitsîyôn ‘oseh shamayim wa’arets). Dois fatores notáveis
merecem atenção nesse texto. O primeiro é o autor da bênção. Se é o povo
quem promove a bendição, o responsável pela bênção é o Senhor em pessoa.
Ao agir, seu poder soberano é o lastro para que as bênçãos aos seus servos
sejam efetivadas, motivo pelo qual o seu poder criador é mencionado aqui. O
mesmo Deus que criou tudo que existe, sejam os céus, seja a Terra, seria o
responsável por abençoar seus servos. Por isso mesmo, a ele se dirigiam as
orações. Ao homem cabe a função de ser o receptor dependente de tais
benesses.
O segundo fator notável é a menção de Sião como local de onde partem as
bênçãos aqui preditas. A ideia do escritor não parece ser simplesmente o local
em que os clamores eram apresentados. Sião não é apenas o local da
manifestação das benevolências de Deus, mas a fonte delas. Trata-se de uma
referência ao local em que Deus, representativamente, habitava entre o povo
e de onde atuava em seu favor. É também referência às esperanças que Israel
tinha de redenção e restauração escatológica pelo que viria a acontecer em
Jerusalém com a vinda do rei Messias para reinar sobre eles e sobre as
nações. Esses homens pareciam saber que, sem a ação abençoadora de Deus,
não existiria uma bênção sequer — nem para Israel, nem para os povos, tanto
no presente como no futuro.
Quantas lições preciosas e práticas aprendemos com esse salmo! Em
primeiro lugar, também somos chamados a orar por nós mesmos, por nossas
famílias, por nossa igreja e por todos os crentes ao redor do mundo. Também
aprendemos que é necessária a manutenção da comunhão com o Senhor, por
meio da santificação de vida, a fim de termos as condições ideais para buscá-
lo em oração sem que nosso pecado nos torne antes dignos de disciplina que
de bênçãos. Finalmente, somos lembrados de algo que a cristandade tem se
esquecido — ou que tem trabalhado duro para esquecer — a respeito de
quem Deus é: o Senhor soberano sobre a Terra e o determinador dos rumos
da história, quer mundial, quer pessoal. Olhar com respeito e valor para tais
princípios evidencia nossa própria identidade como “servos do Senhor”.
SALMO 135
A Íntima Relação entre a Memória e o Louvor
SALMO 136
Razões para Ser Grato a Deus
Uma senhora alemã, certa vez, procurou seu pastor com uma oferta para a
igreja, o equivalente a dez dólares na época, dizendo: “Nos anos anteriores eu
tive de gastar com a compra de remédios, mas neste ano ninguém da minha
família ficou doente e não tive de comprar remédio algum, de modo que
quero demonstrar minha gratidão a Deus dessa maneira”. Algum tempo
depois, a mesma mulher veio ao seu pastor com outra oferta explicando que
muitos dos seus vizinhos haviam sofrido perdas em uma recente tempestade,
mas que sua fazenda tinha sido completamente poupada. “Eu trouxe essa
doação à igreja como oferta de gratidão”, disse ela ao pastor.
Essa demonstração de gratidão pelos feitos bondosos de Deus é uma dentre
várias maneiras de ser grato. Outras pessoas podem fazer o mesmo se
esforçando para desenvolver santidade e obediência às palavras do Senhor,
dedicando tempo à pregação do evangelho, comparecendo aos cultos de
adoração a Deus e trabalhando pela edificação do corpo de Cristo. O escritor
do Salmo 136 também encontrou uma maneira de evidenciar sua gratidão a
Deus de um modo bastante enfático. O seu chamado ao povo, no início dos
três primeiros versículos, é “rendei graças ao Senhor” (hôdû layhwh), “rendei
graças ao Deus dos deuses” (hôdû le’lohê ha’elohîm) e “rendei graças ao
Senhor dos senhores” (hôdû la’adonê ha’adonîm). O tema e o chamado são
exatamente a “gratidão”. E, nesse caso, a gratidão tem uma razão não só
específica, mas enfática: “O amor divino”. Algo notável em todo o salmo é a
recorrência da frase “pois o seu amor dura para sempre” (kî lê‘ôlam hasdô).
Isso ocorre rigorosamente na parte final de todos os 26 versículos — no v.3
há uma pequena variação na palavra traduzida como “para sempre” (lê‘ôlam),
a qual surge em sua forma defectiva (lê‘olam) que não muda seu sentido em
absolutamente nada. Para destacar o amor do Senhor pelo qual o crente deve
ser grato, o salmista alista cinco evidências desse amor que beneficia a
humanidade de um modo geral, mas principalmente os servos de Deus.
A primeira evidência do amor constante do Senhor é o caráter divino
(vv.1-3). O primeiro chamado à gratidão tem como explicação a declaração
(v.1): “Pois ele é bom” (kî-tôv). Há muitos modos de alguém ser bom, mas,
no caso de Deus, trata-se tanto de um traço íntimo do seu caráter como uma
virtude ativa que pode ser testemunhada por olhos atentos. Alguém pode ser
bom, mas ter sua atuação bondosa suprimida pela força dos maus ou pela
incapacidade pessoal de externar o bem interior. Esse não é o caso de Deus,
visto ser chamado de (v.2) “Deus dos deuses” (le’lohê ha’elohîm) e de (v.3)
“Senhor dos senhores” (la’adonê ha’adonîm). Essa é a garantia de que sua
bondade não é limitada por circunstâncias adversas ou pela oposição dos
inimigos. Por isso, ao ser bondoso para com seus servos, seu amor é
retribuído com gratidão e louvor, conforme expressos nesse cântico. Ao que
tudo indica, principalmente pela ênfase na gratidão e pelo tom exultante do
salmo, o povo de Israel havia testemunhado recentemente o amor bondoso de
Deus em sua vida.
A segunda evidência é a obra maravilhosa de Deus (vv.4-9). O segundo
chamado à gratidão é direcionado (v.4) “àquele que faz grandes maravilhas
por si mesmo” (le‘oseh nifla’ôt gedolôt levaddô). O termo “maravilhas”, que
expressa as ações poderosas de Deus, normalmente surge em conexão com
uma das duas maiores demonstrações do seu poder: a criação ou a libertação
de Israel da escravidão no Egito. Nesse caso, apesar de o êxodo ser um
assunto tratado pelo salmista (vv.10-15), a conexão primária se dá com a obra
da criação (vv.5-9). Tal obra não dependeu de mais ninguém além de Deus e,
tudo que ele criou, o fez “por si mesmo”, ou seja, com seus próprios recursos.
Tais recursos envolvem seu maravilhoso conhecimento, pelo que o louvor se
dirige (v.5) “àquele que fez os céus com entendimento” (le‘oseh hashamayim
bitvûnâ). A capacidade divina de criar com uma habilidade magistral se deve
ao fato de que seu conhecimento é ilimitado. Até aqui fica claro que a criação
envolveu o poder e o conhecimento de Deus. Mas, quando se percebe que,
podendo fazer tudo da maneira que quisesse, ele escolheu fazê-lo de modo
benéfico para o homem, como separar a terra em que o homem habitaria (v.6)
e criar os astros para nos servirem de luz, de guias e de promotores de
estações climáticas (vv.7-9), então, seu amor fica bastante evidente e convida
seus servos à gratidão.
A terceira evidência do amor de Deus é a libertação recebida (vv.10-15).
O assunto desse parágrafo é o êxodo, de modo que o louvor agora se dirige
(v.10) “àquele que desferiu golpes no Egito, em seus primogênitos”
(lemakkeh mitsrayim bivkôrêhem). Essa menção da décima praga age tanto
como resumo de todas as dez, como na qualidade do golpe mais duro dado à
sociedade egípcia da época. Porém, a ênfase não está sobre a justiça de Deus
contra o Egito, mas sobre o amor de Deus por Israel revelado na forma da
libertação do povo (v.11): “E fez Israel sair do meio deles” (wayyôtse’
yisra’el mittôkam). Para mostrar seu amor pelo povo que escolheu, o Senhor
não poupou nenhuma atuação poderosa que fosse necessária (v.12). Por isso,
quando o povo se viu entre o mar e os perseguidores, Deus fez o que jamais
se ouvira dizer, pelo que o povo rendeu louvor (v.13) “àquele que dividiu o
Mar Vermelho em [duas] partes” (legozer yam-sûf ligzarîm). Tendo feito
Israel passar no meio do mar em seco (v.14), Deus finalizou sua libertação
afundando todo o poderio militar inimigo (v.15): “Mas lançou o Faraó e seu
exército no Mar Vermelho” (weni‘er par‘oh wehêlô beyam-sûf). O povo de
Israel jamais se esqueceu dessa demonstração amorosa, razão pela qual Deus
passou a ser conhecido como “Senhor, vosso Deus, que vos tirou da terra do
Egito” (Dt 13.5).
A quarta evidência é a proteção constante (vv.16-20). A viagem no deserto
durou quarenta anos por causa da incredulidade e rebeldia do povo, apesar de
ter testemunhado o grande poder de Deus no êxodo. Ainda assim, o Senhor
não deixou que eles perecessem por completo no deserto. Em lugar disso, sua
atuação amorosa fez com que a gratidão do povo fosse rendida (v.16) “àquele
que conduziu seu povo pelo deserto” (lemôlîk ‘ammô bammidbar). A ação de
Deus de conduzir Israel foi bem mais que apontar o rumo certo, como se
fosse uma espécie de mapa ou de bússola. A ideia presente é a de fazê-los
chegar ao destino e de, no caminho, lhes sustentar com o que fosse
necessário. Por isso, além de lhes apontar o rumo a seguir (Ex 13.21,22), o
Senhor lhes forneceu diariamente o alimento que, em meio ao deserto, caía
do céu na forma de maná (Dt 8.16). Não somente isso, mas também lhes deu
água mesmo onde não havia mananciais visíveis ou acessíveis, e o fez
miraculosamente (Ne 9.15,20). Se eles foram protegidos dos perigos diários
de fome e sede, Deus também lhes protegeu de inimigos pontuais
aterrorizantes como exércitos inimigos liderados por reis que não lhes foram
favoráveis, abatendo, com isso, (v.19) “a Seom, rei dos amorreus” (lesîhôn
melek ha’emorî) e também (v.20) “a Ogue, rei de Basã” (ûle‘ôg melek
havvashan). A conta final é que, em meio a muitas ações protetoras como
essas, Deus agiu amorosamente em benefício de Israel (v.18) “e matou
poderosos reis” (wayyaharog melakîm ’addîrîm).
A última evidência do amor do Senhor é a misericórdia imerecida (vv.21-
26). A dureza de Israel no deserto lhe rendou a alcunha de “povo de dura
cerviz” (Êx 32.9; 33.3; 34.9; Dt 9.6,13), ou seja, um povo cuja rebeldia e
orgulho lhe impediam de dobrar seu pescoço diante de Deus em humildade e
sujeição. Apesar de merecerem castigo e rejeição por isso, o Senhor tomou os
reinos que abateu diante de Israel (vv.21,22) “e deu suas terras por herança”
(wenatan ’artsam lenahalâ), “herança para Israel, seu servo” (nahalâ
leyisra’el ‘avdô). Ao falar da herança da terra de Canaã, o salmista adentra
seu pensamento nos dias da conquista e dos juízes de Israel. Novamente por
causa de pecado, os israelitas foram acossados por inimigos, seis povos
daquela região — arameus, moabitas, filisteus, cananeus, midianitas e
amonitas. Em meio aos juízos, o povo se arrependeu e clamou a Deus, o qual
não tinha obrigação de lhes perdoar, nem de lhes socorrer. Mas, devido à
fidelidade plena de misericórdia, o Senhor os acudiu e o povo se tornou
muito grato àquele (v.23) “que, no nosso abatimento, se lembrou de nós”
(shevveshiflenû zakar lanû), conforme declarou o salmista. “Lembrar-se” do
povo não significa que tivesse se esquecido deles, mas que lhes atendeu as
orações e lhes socorreu. Assim, o Senhor foi misericordioso (v.24) “e nos
livrou de nossos inimigos” (wayyifreqenû mitsarênû). Se a misericórdia de
Deus, como evidência do seu amor, foi vista na proteção, também o foi na
provisão (v.25): “Ele concede pão à toda carne” (noten lehem lekol-basar).
Deus realmente é o responsável pela manutenção de toda vida na Terra, mas
o salmista se sente ainda mais grato ao saber que ele e seu povo são alvos
desse trato. Assim, o salmo encerra com o chamado inicial (v.26): “Rendei
graças ao Deus dos céus” (hôdû le’el hashamayim).
Que nós demonstremos a mesma gratidão pelas mesmas razões: as
demonstrações do amor divino por nós ao agir nos salvando, sustentando,
conduzindo, provendo e abençoando, apesar de nada merecermos! E que,
devido a tal gratidão, nossa demonstração também seja vista e honre ao Deus
digno de toda adoração e gratidão!
SALMO 137
Resistindo às Pressões do Mundo
SALMO 138
Proteção Contra Tudo e Contra Todos
Nos dias da Guerra Fria, um grande medo pairava sobre o planeta: uma
guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética destruiria, de um
modo ou de outro, o mundo todo. Se essa era uma preocupação constante de
nações distantes das duas superpotências, imagine como era a insegurança
sentida por americanos e soviéticos. Pensando nisso, os Estados Unidos
construíram, na década de 1960, um complexo subterrâneo de 143 milhões de
dólares em Cheyenne Mountain, no Colorado, com a finalidade de abrigar o
Comando Norte Americano de Defesa Aeroespacial (Norad) e o controle do
sistema de mísseis antibalísticos (ABM). Com um sistema de radar de 1
bilhão de dólares conectado a catorze computadores, toda a informação do
mundo exterior se fazia presente no interior da montanha. Assim, abrigado
por quinhentos metros de granito, esse complexo foi projetado para, a partir
dele, o presidente norte-americano ter a capacidade de liderar uma guerra
nuclear protegido de tudo e de todos. Graças a Deus, essa guerra nunca
aconteceu!
O Salmo 138 trata de uma proteção muito maior que aquela promovida
pelas rochas de Cheyenne Mountain. Esse é um salmo “de Davi” (ledawid),
iniciando uma seção de salmos da mesma autoria que vai do 138 até o 145.
Sobre a designação “de Davi” no salmo em questão, há manuscritos da
Septuaginta (tradução grega do AT feita há cerca de 200 a.C.) que
acrescentam as palavras “de Ageu e Zacarias”. Apesar de não termos razões
para duvidar da autoria davídica, essa menção nos indica o tempo em que tais
salmos foram colecionados no saltério e assumiram um significado especial
para o povo — todos os oito salmos dessa seção tratam de temas relevantes
ao povo que voltou do exílio como a fidelidade de Deus, a necessidade de
auxílio e a gratidão pela libertação. Assim como Israel foi preservado por
Deus no exílio e no seu difícil restabelecimento na Palestina, o rei Davi
também sentiu a ação protetora do Senhor. Foi protegido de Saul e de seus
servos, dos povos vizinhos e dos inimigos internos durante seu reinado. Esse
salmo parece ter sido composto quando Davi obteve vitória, pela graça
divina, sobre um povo estrangeiro que adorava outros “deuses” (v.1). Ainda
que Davi soubesse que o poder dos “reis da Terra” (v.4) fosse muito superior
ao do rei israelita, Deus o protegeu de todos e fez-lhe vencedor, mesmo tendo
corrido sério risco de morte (vv.3,7). Com isso, o Senhor se mostra grandioso
e faz certas revelações a respeito das fraquezas daquilo que é considerado
forte e inabalável nesse mundo.
A primeira revelação exposta no salmo é a inutilidade dos deuses (vv.1-3).
O tom do salmo, claro desde a primeira palavra, é de gratidão (v.1a):
“Renderei graças a ti com todo meu coração” (’ôdeka bekol-livvî). Apesar de
essa disposição ser apropriada em qualquer situação, ela geralmente surge
nos salmos em circunstâncias em que a gratidão tem uma razão específica e
definida em termos de atuação benéfica de Deus. Nesse caso, a providência
divina parece ter vindo diante de uma ameaça estrangeira, pelo que Davi,
contrariando a esperança dos inimigos em seus falsos deuses, proclama de
modo zombeteiro e desafiador (v.1b): “Cantarei a ti diante dos deuses”
(neged ’elohîm ’azammereka). Esse canto diante dos falsos deuses das nações
certamente lembra o desafio e a zombaria de Elias aos profetas de Baal e ao
seu falso deus (1Rs 18.20-40). Desse modo, a gratidão de Davi tem relação
com a vitória que o Senhor lhe concedeu sobre inimigos cujos deuses não
lhes puderam socorrer. Não apenas a supremacia de Deus fica patente, como
também a inutilidade dos falsos deuses — em tempos de politeísmo, a prova
da inutilidade dos deuses devia preceder a prova da sua inexistência (Dn
2.47; 4.34,35).
Adorando e agradecendo ao Deus verdadeiro e existente, Davi se
compromete a cultuá-lo publicamente no lugar apropriado (v.2a): “Eu me
prostrarei no teu santo Templo e renderei graças ao teu nome” (’eshtahaweh
’el-hêcal qodsheka we’ôdeh ’et-shemeka). A razão para isso foi que, ao
envergonhar os deuses, o Senhor comprovou não apenas o seu amor leal, mas
também a fidelidade da sua palavra empenhada diante dos seus servos (v.2b):
“Por causa do teu amor e da tua fidelidade, pois tu engrandeceste acima de
tudo o teu nome e a tua promessa” (‘al-hasdeka we‘al-’amitteka kî-higdaleta
‘al-kol-shimka ’imrateka). Desse modo, a grandeza do nome do Senhor se
antepõe à inutilidade dos deuses. Por fim, Davi explica como Deus lhe fez tão
grande benefício. Em primeiro lugar, o Senhor ouviu e atendeu sua oração:
(v.3a): “No dia em que eu clamei [por socorro], tu me respondeste” (beyôm
qara’tî watta‘anenî). Em segundo, ele encorajou e capacitou Davi a vencer o
inimigo (v.3b): “Provocaste força em minha alma” (tarhivenî benafshî ‘oz).
A segunda revelação é a subordinação dos reis (vv.4-6). Davi lidou com
muitos reis: fugiu de alguns, fez alianças comerciais com outros e abateu
muitos deles. Ele sabia o poder que tinha um rei e, principalmente, um
conglomerado de reis. Entretanto, em seu agradecimento pelo socorro
poderoso do Deus fiel, ele enumera a totalidade dos reis se submetendo ao
Senhor ao serem impactados com suas palavras e ações (v.4): “Todos os reis
da Terra renderão graças a ti, ó Senhor, quando ouvirem as palavras da tua
boca” (yôdûka yhwh kol-malkê-’arets kî shom‘û ’imrê-pîka). Isso significa
que as palavras do Senhor são maravilhosas e louváveis, mas também que são
gloriosas e temíveis, razão pela qual os reis, mesmo em sua costumeira
arrogância, são forçados a se curvar diante do soberano.
A atuação de Deus na história comprova todo o caráter e os atributos do
monarca eterno (v.5): “E cantarão sobre os caminhos do Senhor, pois grande
é a glória do Senhor” (weyashîrû bedarkê yhwh kî gadôl kevôd yhwh). Aqui, a
expressão “caminhos do Senhor” aponta para seus feitos e para o seu modo
de agir segundo seu caráter, objetos dos cânticos dos reis de acordo com o
que Davi previu. Onipotência, onipresença e onisciência também formam o
pano de fundo da razão de os reis temeram a Deus (v.6): “Pois exaltado está o
Senhor, mas, [apesar disso], olha para o humilde e de longe reconhece o
soberbo” (kî-ram yhwh weshafal yir’eh wegavoah mimmerhaq yeyeda‘).
Mesmo estando muito acima dos homens, ele conhece e dá atenção a todos,
conhecendo-lhes o caráter e sabendo exatamente como tratar a cada um. Isso
inclui reis, príncipes, governadores, trabalhadores, escravos e mendigos.
A última revelação do salmo é a ineficácia dos inimigos (vv.7,8). Davi
enfrentou duras batalhas e teve muitos inimigos poderosos. E ele realmente
não era como os “heróis” das histórias de ficção de hoje que não morrem nem
podem ser feridos. Cada batalha era um perigo real para o salmista, mas a
presença protetora de Deus fazia toda a diferença nos resultados dos seus
embates militares (v.7a): “Se eu ando em meio ao perigo, tu me fazes viver”
(’im-’elek beqerev tsarâ tehayyenî). O grau do verbo hebraico traduzido como
“fazer viver” mostra que o responsável por Davi sair com vida dos perigos
que enfrentava não era ele mesmo, ou o acaso, mas tratava-se de uma ação
deliberada do Senhor concedendo vida ao servo.
O modo de fazê-lo revela que os inimigos, ainda que armados e perigosos,
nada eram diante do Senhor (v.7b): “Estendes a tua mão contra a ira dos meus
inimigos e tua destra me preserva” (‘al ’af ’oyevay tishlah yadeka wetôshî‘enî
yemîneka). Apesar de a palavra “mão” aparecer no plural no versículo
seguinte, sua ocorrência no singular no v.7 aponta a facilidade que Deus tem
de lidar com os inimigos do seu povo, mesmo que sejam numerosos e
valentes. A verdade é que, quando o Senhor lhes estende sua mão, eles se
mostram inúteis e inertes para combatê-lo. Por isso, o salmista tem plena
confiança de que Deus, que é fiel e leal, agiria do mesmo modo no futuro e
cumpriria suas promessas para com seu servo (v.8a): “O Senhor completará
[sua obra] em meu benefício” (yhwh yigmor ba‘adî). Assim, em vez de
buscar apoio político questionável e alianças espúrias, Davi busca a Deus em
oração para que seja sempre bem sucedido (v.8b): “Ó Senhor, o teu amor
dura para sempre. Não cesses as obras das tuas mãos!” (yhwh yigmor ba‘adî
yhwh hasdeka le‘ôlam ma‘ashê yadeyka ’al-teref).
Está aí uma lição que a igreja de Cristo precisa aprender. Com a crescente
admiração e dependência das modernas técnicas de administração de igrejas e
de crescimento explosivo, os crentes estão se tornando cada vez menos
dependentes de Deus e cada vez mais confiantes em sua própria capacidade.
É claro que, quando essa capacidade se mostra ineficaz, a falta de comunhão
com o Senhor e a falta de costume de orar e depender dele para tudo lançam
essas igrejas no desespero ou na utilização de expedientes reprováveis e
vergonhosos para conseguir lidar com os problemas. O que é necessário
aprender em momentos assim é que Deus sempre protegeu seus servos no
momento e do modo como planejou, independente de quais fossem as
dificuldades. Ainda que tudo e todos se levantem contra o povo do Senhor, o
salvador eterno tem poder mais que suficiente para preservar-lhes a vida e
usá-los como instrumentos da sua vontade. Que nossa confiança em seu
poder, sabedoria, fidelidade e amor nos guie nos momentos de crise e nos
torne mais fortes que muitas montanhas feitas de granito e de duras rochas!
SALMO 139
O Deus que não Conhece Limites
SALMO 140
O Aprimoramento que Começa na Tribulação
SALMO 141
Como Agir Longe de Casa
SALMO 142
O Remédio para a Depressão
Ouvi contar a história de um pastor que passava por uma fase de grande
desânimo. Certa noite, ele sonhou que estava em pé no topo de uma grande
rocha de granito tentando quebrá-la com uma picareta. Ele trabalhou por
horas a fio sem que obtivesse qualquer resultado. Por fim, disse: “É inútil,
vou parar”. De repente, um homem parou junto a ele e perguntou: “Essa
tarefa não foi dada a você? Por que, então, você vai abandoná-la?”. O pastor
respondeu: “Estou trabalhando em vão. Não consigo nem arranhar o
granito”. O estranho replicou: “Seu dever é bater com a picareta, quebrando
a rocha ou não. O trabalho é seu; os resultados estão em outras mãos.
Trabalhe!”. O pastor, então, reanimou-se e voltou ao trabalho. Em seu
primeiro golpe voaram centenas de pedaços da rocha.
Davi também passou por momentos de desalento, desencorajamento e até
uma pontinha de depressão. Uma dessas ocasiões foi quando se escondeu de
Saul em uma caverna, circunstância em que escreveu o Salmo 142: “Salmo
didático de Davi quando ele estava na caverna. Uma oração” (maskîl ledawid
bihyôtô bamme‘arâ tefillâ). Esse não foi o único salmo composto nessa
ocasião. Entretanto, enquanto no Salmo 57 ele afirma a firmeza do seu
coração (Sl 57.7), no Salmo 142 ele revela sua fraqueza (v.6), seu lamento
(v.2) e seu desânimo típico de quem está cansado e abatido (v.3). Contudo,
esse salmo não é uma declaração de derrota ou de desistência, mas um
esperançoso clamor a Deus de um servo que quer se levantar e seguir seus
altos objetivos. Por isso, o salmo age como um remédio ministrado em
quatro porções que ajudaram o salmista a atravessar o duríssimo momento
que viveu.
A primeira porção do seu remédio foi o acesso a Deus na oração (vv.1,2).
Muita gente fica depressiva quando as pessoas ao redor não lhe dão a devida
atenção, nem escutam suas queixas. Muitas vezes, a sensação de solidão é
pior que a própria solidão. Davi teria todas as razões para se sentir assim, já
que as pessoas que precisavam ouvir da sua boca sobre sua inocência não
queriam ouvi-lo. Entretanto, ele recorre a alguém que certamente ouvia sua
voz com clareza e atenção (v.1): “[Com] minha voz eu clamo ao Senhor.
[Com] minha voz eu suplico ao Senhor” (qôlî ’el-yhwh ’ez‘aq qôlî ’el-yhwh
’ethannan). Davi roga a Deus por sua vida na situação complicada que
atravessava, pois, se descoberto na caverna onde estava, seria um alvo fácil
— era um ótimo esconderijo, mas um péssimo lugar para quem tivesse de
fugir dali. É interessante notar que uma das vantagens de um lugar como
aquele é que, além de os fugitivos não serem vistos, também não são ouvidos.
Mesmo assim, ele podia dali clamar a Deus, pois tinha acesso a ele.
Esse acesso era baseado em um relacionamento pessoal, pelo que Davi
podia, inclusive, lamentar-se com o Senhor como um filho preocupado e
inseguro o faz com seu pai (v.2a): “Diante dele eu desabafo o meu lamento”
(’eshpok lefanayw sîhî). E o Senhor está atento ao sofrimento dos seus servos.
Por isso, Davi, em suas orações, abria seu coração diante de Deus e lhe
narrava seus sofrimentos (v.2b): “Diante dele eu relato o meu momento
crítico” (tsaratî lefanayw ’aggîd). Não que Deus não soubesse o que estava
ocorrendo, mas, sim, porque é da sua vontade que o busquemos nas aflições,
conforme explica o apóstolo: “Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo,
porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e
pela súplica, com ações de graças” (Fp 4.6). Fazer isso foi a primeira dose do
remédio para a depressão do salmista.
A segunda porção foi a certeza do cuidado de Deus (vv.3,4). Não se
engane: a situação era extremamente crítica. O risco que Davi corria com
seus homens dentro daquela caverna era comparado ao risco de um animal
desavisado que anda entre armadilhas invisíveis e mortais (v.3b): “No
caminho por onde eu passo eles esconderam uma armadilha para mim”
(be’orah-zû ’ahallek tomnû pah lî). Para piorar, ninguém se levantava contra
Saul para acusar-lhe o crime e a injustiça para com seu bom servo Davi. Seus
antigos amigos, temerosos de que o rei se voltasse contra eles também, se
calavam e demonstravam um desinteresse egoísta em relação ao salmista
(v.4): “Olha à minha direita e vê: Não há quem se importe comigo; não tenho
para onde escapar; não há quem se interesse por mim” (habbêt yamîn ûre’eh
we’ên-lî makkîr ’avad manôs mimmennî ’ên dôresh lenafshî). Olhando para
isso, dá para perceber que Davi não se sentia acuado apenas pela falta de
esconderijos geográficos, mas pela falta de amigos que lhe abrigassem. Não é
sem razão que o início do v.3 expressa o grande desânimo que ele estava
sentindo naquele momento. Como uma pessoa desanimada tende a tornar-se
descuidada — muitos até desistem de tudo —, Davi mantinha seu ânimo
baseado no fato de que Deus não apenas escuta seus servos, mas os protege
quando estão nessas circunstâncias (v.3a): “Ao desanimar em mim o meu
espírito, tu cuidas do meu caminho” (behit‘attef ‘alay rûhî we’attâ yada‘ta
netîvatî). Saber disso foi uma dose fundamental para ele resistir ao desespero.
A terceira porção foi a noção do poder de Deus (vv.5,6). Vários pacientes
ficam curados simplesmente por acreditar no efeito de um remédio, mesmo
que ele apenas pareça uma medicação — os médicos chamam isso de “efeito
placebo”. Se isso vale para um tratamento aparente, imagine como age a
noção do poder que tem o Senhor soberano. É claro que isso só serve para
quem conhece a Deus de fato, mas o salmista, sendo um servo de Deus de
verdade, era uma dessas pessoas. Por isso, ainda que estivesse no melhor
refúgio que pode encontrar, sua confiança última estava apontada para Deus e
não para as entranhas de uma montanha (v.5a): “Ó Senhor, eu clamo a ti,
dizendo: ‘Tu és o meu refúgio’” (za‘aqtî ’eleyka yhwh ’amartî ’attâ mahsî).
Não importava qual fosse o tamanho do exército de Saul: Deus era forte o
suficiente para proteger o servo. E não somente isso: era poderoso para
devolver a Davi tudo que havia perdido, de modo que a garantia de que
voltaria às suas posses estava no poder que há no soberano Deus, pelo que
assim se refere ao Senhor (v.5a): “És a minha herança na terra dos viventes’”
(helqî be’erets hahayyîm).
Muitos métodos de autoajuda buscam fazer com que seus pacientes olhem
para dentro de si e busquem sua força interior. Fazem com que eles acreditem
em si, recordando de coisas boas que fizeram no passado, levando-os a crer
que podem atingir tudo que quiserem. Fazem com que repitam para si: “Sim,
eu posso!”. Contudo, suas forças e habilidades continuam iguais, assim como
as lutas e sofrimentos. Davi seguiu outro caminho. Em lugar de buscar forças
em si e de acreditar que podia superar o inimigo, ele reconheceu sua fraqueza
e, reconhecendo-a, foi em busca daquele a quem sabia ser onipotente e mais
forte que qualquer circunstância (v.6): “Atende o meu clamor, pois estou
muito desfalecido. Livra-me dos meus perseguidores, pois eles são mais
fortes que eu” (haqshîvâ ’el-rinnatî kî-dallôtî me’od hatsîlenî merodefay kî
’omtsû mimmennî). A frase “estou muito desfalecido” também pode ser
traduzida como “estou extremamente esgotado”. Esse reconhecimento fez
com que ele se lançasse nos braços do Senhor, com plena confiança de que
seu poder é ilimitado e que ele o usa no benefício dos seus. Apenas saber
disso faz com que, pela fé, qualquer esgotamento comece a ceder.
A última porção do remédio que o ajudou a atravessar o momento
duríssimo foi a intenção de servir a Deus (v.7). Davi não entregou os
pontos, nem ficou culpando o Senhor por suas desventuras, usando isso por
pretexto de se descomprometer de seguir o caminho de Deus e de lhe cumprir
a vontade. Ao contrário, um fator que o ajudou foi manter acesa a chama do
seu desejo de lutar na causa divina. Assim, seu desejo era sair dali vivo e
anunciar as grandezas do Senhor, tornando a desventura em ocasião de
testemunho (v.7a): “Faze com que eu saia da prisão para que eu [possa]
proclamar o teu nome” (hôtsî’â mimmasger nafshî lehôdôt ’et-shemeka). Se
seu primeiro objetivo é anunciar a Palavra de Deus, seu segundo intento é
buscar santificação. Por isso, ele declara ao Senhor que, livre da caverna e da
perseguição — ao que ele chamou de “prisão” —, ele faria todo o necessário
para conviver com pessoas tementes a Deus, os “justos”, diferente de Saul
que, assessorado por homens maus, agia plenamente conforme sua própria
maldade (v.7b): “Os justos me rodearão quando tu me beneficiares” (bî
yaktirû tsaddîqîm kî tigmor). Deve-se observar que Davi não fala disso como
uma simples contingência na sua história, mas como um objetivo a ser
perseguido e produzido em zelo perante o Senhor. Desse modo, a
manutenção desses objetivos de vida agiram como a dose final para o
desespero que sentiu na escuridão de uma caverna.
Muitos crentes hoje em dia vivem desesperados e depressivos. Muitas
vezes, isso ocorre por razões egoístas, orgulhosas, mesquinhas e de incrível
falta de contentamento e gratidão. Mas, em outras, tudo se deve à dureza
dessa vida e aos ataques dos inimigos dos servos do Senhor. Infelizmente,
enquanto consultórios se enchem de crentes sem esperança, poucos olhos se
voltam para as verdades de Deus em sua Palavra e para o amor e comunhão
que há por meio de Jesus. Quem dera os crentes confiassem e buscassem
mais a Deus! Quem dera mantivessem vivos seus objetivos e
responsabilidades no corpo de Cristo! Seu desânimo se esmigalharia em
centenas de pedaços.
SALMO 143
A Lealdade de Deus em Favor do Servo
SALMO 145
O Modo de Deus Dirigir seu Reino
SALMO 146
O Rei dos Céus e os Reis dos Homens
SALMO 147
Louvor a quem Faz por Merecer
SALMO 148
Tudo e Todos Adorando ao Senhor
SALMO 149
As Armas de Guerra dos Servos de Deus
SALMO 150
A Necessidade de se Louvar a Deus