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Existe vida após o Holocausto.

#40
Julgar uma obra autobiográfica é sempre um desafio para qualquer leitor, afinal, é a vida
do autor que está sendo contada em texto, são fatos e experiências que foram vividos.

Isso se torna ainda mais complexo quando esse autor está relatando sua vida a partir de
um período histórico e social específico, do qual ele viveu, a exemplo, o nazismo e pós
guerra.
Esse é o enredo de “Bailarina de Auschwitz”.

É evidente que hoje existe um nicho da literatura só de histórias (ficção e não-ficção) que
se passa durante ou após o nazismo da 2ª Guerra Mundial. Desde a escravidão dos povos
africanos, o holocausto nazista, é, talvez, o período mais sombrio que a humanidade
experienciou (pelo menos na minha parca visão).

E mesmo com tantas obras, a literatura ainda é insuficiente para compreender o quão
complexo foi esse período da história humana. No entanto, a literatura segue sendo um
instrumento indispensável para análise desse fenômeno histórico, principalmente, quando
quem conta a história é quem viveu esse período.

Edith Eva Eger foi uma prisioneira e sobrevivente do Holocausto.


É ela que dá voz em “A Bailarina de Auschwitz”.

Nascida na Hungria, numa família de judeus, Edith foi levada junto com seus pais e sua
irmã para o campo de concentração de Auschwitz no ano de 1942.

Edith era bailarina, respirava dança e estava construindo uma carreira.


Seus sonhos foram interrompidos.

Ao chegarem no campo, Edith e sua irmã, Magda, ficam órfãs.


Sua mãe é carbonizada nos chuveiros de gás.
Seu pai é transferido para outro campo de concentração.

“Sua mãe está queimando lá dentro. É melhor você começar a falar dela no passado”
(p.51).

A partir daí, Edith e Magda, enfrentarão juntas as piores torturas que duas meninas
adolescentes e judias nem sequer imaginaria.
Violência física. Violência psicológica. Fome.
Medo constante. A Morte sempre próxima.

“Centenas de milhares de húngaros já haviam sido mandados para os campos de


concentração; 400 mil foram assassinados em dois curtos meses” (p.62).

“Embarcamos em outro trem, só que dessa vez somos obrigadas a ficar no teto dos
vagões, com nossos uniformes listrados, chamarizes humanos para desencorajar os
ingleses de bombardearem o trem que carrega munição” (p.66).

“Eu me imagino comendo uma batata como se fosse uma maçã. Eu nem perderia tempo
limpando-a. Comeria com terra e tudo” (p.69).

A escrita da autora é delicada, ao mesmo tempo, direta e crua, descreve situações que
deixam o leitor enojado, a ponto de ter que parar a leitura para respirar, processar as
informações.
Após quase 2 anos presas em Auschwitz, Edith e sua irmã Magda, são resgatadas por
soldados americanos. A partir daí, Edith e sua irmã iniciam uma jornada para retornar a
sua casa: Hungria. Liberdade.

“Um dia, um soldado americano e seus amigos vêm nos dizer que vamos deixar Wels e
que os russos estão ajudando a transportar os sobreviventes para casa” (p.95).

Ao retornarem para Hungria, Edith encontra sua outra irmã, Klara, que por sorte não foi
capturada, após conseguir manter uma identidade falsa de não-judia.

Hitler e o nazismo finalmente caiem.


Liberdade. Ou talvez não.

Após a queda do nazismo, a Europa está prestes a vivenciar outro regime totalitário.
O Stalinismo.

“Por causa do golpe comunista em andamento na Tchecoslováquia, nossos amigos em


Presov também falam em emigrar, talvez para Israel, talvez para o Estados Unidos”
(p.125).

Diante de tal ameaça, Edith, já casada e com uma filha, decide fugir o mais rápido
possível, juntamente com suas irmãs, Klara e Magda para outro país.

Enquanto Klara emigra para Austrália, Edith e Magda vão para o Estados Unidos.
Recomeço. Desafios. Preconceitos. Traumas.

“Greener idiota!” (...). Greener é como são chamados os imigrantes que recebem o green
card, que garante direito a residência e trabalho nos Estados Unidos (p.153).

O processo de recomeço de Edith nos Estados Unidos demorará décadas, exigirá dela
resiliência bem como coragem para enfrentar as adversidades, traumas e fantasmas do
passado que atravessaram o atlântico junto com ela.

“No Estados Unidos, eu estava mais distante geograficamente do que jamais estive de
minha antiga prisão. Mas, aqui, fiquei mais presa psicologicamente do que estava antes”
(p.154).

É nos Estados Unidos, que Edith inicia uma nova carreira como psicóloga após se formar
na Universidade do Texas. O seu trabalho na psicologia não só ajudará os outros, como
ajudará a ela mesma a compreender e superar suas angústias, medos e traumas.

Sendo assim, o livro é estruturado da seguinte forma: num primeiro momento, Edith
escreve sobre suas memórias das experiências que viveu no campo de Auschwitz, sua
libertação, sua emigração e recomeço nos Estados; em seguida, Edith relata as
experiências que teve com seus pacientes no seu escritório de psicologia, e associa tais
experiências com sua formação subjetiva, como ela encontrou nos seus pacientes reflexos
de sua própria vida durante e após Auschwitz, e aos poucos seu processo de cura foi se
realizando.

A partir do seu trabalho terapêutico para com seus pacientes, Edith traz ensinamentos e
reflexões profundas que nos coloca a questionar sobre: sobreviver x viver, nossas
escolhas, nossos traumas do passado, sobre errar, sobre perdoar, aceitação.
“É muito fácil transformar nossa dor, nosso passado, numa prisão. Na melhor das
hipóteses, a vingança é inútil. Ela não muda o que foi feito conosco, não apaga os erros
que foram cometidos, não traz os mortos de volta (...)” (p.239).

“Perdoar é sofrer pelo que aconteceu, a renunciar à necessidade de um passado diferente.


Aceitar a vida como ela era, e como ela é. Naturalmente, não estou dizendo que foi
aceitável Hitler assassinar seis milhões de pessoas. Simplesmente é preciso dizer que isso
ocorreu e não quero que esse fato destrua a vida que eu agarrei e lutei tanto para manter
contra todas as probabilidades” (p.240).

Particularmente, à medida que eu ia lendo, eu me enxergava como um dos seus


pacientes, compartilhei muito das angústias que ela relata a respeito deles no livro, bem
como das angústias da própria Edith. Isso se deve ao fato de que, atualmente, eu estou
fazendo terapia, e muito dessas situações, eu já vivi ou lido diariamente.

Por fim, se eu tivesse que definir em duas palavras a obra de Edith e suas experiências
relatadas, seria: liberdade e esperança.

“(...) podemos ser nossos próprios carcereiros ou podemos escolher ser livres” (p.200).

A liberdade para aceitar as adversidades do passado.


A esperança nos momentos mais sombrios e de desesperança.

A liberdade para decidir viver, após ter sobrevivido.


A esperança na vida após a morte, afinal, existe vida após o holocausto.

Hitler não venceu.

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