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FRATURAS EM MEMBROS INFERIORES

artigo de revisão
POR CAUSAS EXTERNAS: significado para
indivíduos hospitalizados
Marilia de Andrade Fonseca*
Marilia de Andrade Fonseca**
Camila Rego Amorim***
Marcos Antonio Almeida Matos****

RESUMO
Este estudo objetivou identificar e descrever os
significados e sentimentos experimentadospor
indivíduos hospitalizados que sofreram fraturas em
membros inferiores. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa, onde os significados foram construídos a
partir da ocorrência de lesões, e consequente
internação hospitalar e neste contexto estabeleceram
um sentido para vida frente ao eventoinesperado.
Foram entrevistados quatro indivíduos internados em * Doutoranda em Medicina e Saúde
hospital público na Bahia. As entrevistas resultaram na Humana pela Escola Bahiana de
Medicina e Saúde Pública – EBMSP.
construção de três temáticas maiores, que foram E-mail: marilia-fonseca@hotmail.
descritas e analisadas no contexto das repercussões com.
**Professora da Universidade
causadas nas internações. Existe uma associação Federal da Bahia – Campus Anísio
presente entre a fratura e a dependência física, o medo Teixeira; Doutoranda em Medicina e
de não voltar a andar e a incapacidade para o trabalho. Saúde Humana, pela Escola
Bahiana de Medicina e Saúde
Ao se depararem hospitalizados, revelaram-se Pública – EBMSP. E-mail: amathias.
incapazes de prover sustento para a família, ufba@gmail.com
provocando um sentimento de incertezas para o futuro. ***Professora Assistente da
Universidade Estadual do Sudoeste
Fator associado ao incômodo de estarem da Bahia- UESB. Coordenadora
potencializando essa problemática ao necessitarem de colegiado do Curso de fisioterapia -
UESB. E-mail: camilaamorim30@ho
outro familiar para o autocuidado, revelando, medo, tmail.com
baixa de autoestima e vulnerabilidade física, financeira ****Coordenador do Curso de
e psicológica. É preciso uma atenção voltada ao Mestrado em Tecnologias em Saúde
da EBMSP; Professor Adjunto do
suporte social e de saúde ofertados, tendo como Curso de Graduação em Medicina;
referência a idéia de reforço da rede social da vítima e Professor do Corpo Docente
do familiar como melhor estratégia. Permanente do Mestrado e
Doutorado em Medicina e Saúde
Humana da EBMSP. E-mail:
Palavras-chave: Causas Externas. Hospitalização. Fraturas Expostas. malmeidamatos@ig.com.br

1 INTRODUÇÃO

O percentual expressivo do número discutido e noticiado em vários meios de


de hospitalizações no Brasil ocasionadas comunicação, tornando uma preocupação
por causas externas envolvendo em diversos setores. Para Hungria (1998),
traumatismos dos membros inferiores é sob o ponto de vista mecânico a fratura
um cenário bastante atual, e vem sendo pode ser definida como a perda da capa-

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Marilia de A. Fonseca, Marilia de A. Fonseca, Camila R. Amorim, Marcos A. A. Matos

cidade do osso de transmitir normalmente 453,3 bilhões (SOUZA; MINAYO;


a carga durante o movimento, por perda FRANCO, 2007).
da integridade estrutural. Considerando a realidade atual e
Estudo realizado enfatizando a diante dadimensão do númerode indiví-
morbimortalidade por causas externas na duos envolvidos, as patologias traumáti-
população brasileira, relatou que as fratu- cas vêm progressivamente ocupando es-
ras de membros inferiores foram a maioria paço diferenciado nas estatísticas de
(43,7%) sendo que 22,0% do total, para diagnósticos e internações hospitalares
as fraturas de fêmur. Dentro dos meca- nas grandes metrópoles brasileiras. Isso
nismos de trauma, os acidentes de trân- em decorrência da multiplicação da vio-
sito somam o maior percentual de lesões, lência e da quantidade de veículos auto-
seguidos de quedas, agressões e lesões motores. Admite-se que o trauma atingiu o
autoprovocadas (GAWRYSZEWSKI et al., primeiro lugar comoetiologia de morbi-
2004). mortalidade na população de zero a
Esses agravos à saúde correspon- 39anos de idade, tornando-se um grave
dem à terceira causa de óbito na popula- problema de saúde pública (BRAGA et al.,
ção brasileira, após as doenças do apa- 2005). Também, A utilização da
relho circulatório e neoplasias. Consti- motocicleta como meio de trabalho vem
tuem, ademais, a primeira causa de óbito contribuindo para o aumento no número
na faixa etária de 1 a 44 anos, em ambos dos acidentes de trânsito e se
os sexos (PIMENTA, 2007). constituindo em acidentes de trabalho
Em 2009, a Organização Mundial para os mototaxistas (AMORIM et. al.,
de Saúde registrou 1,3 milhão de mortes 2012).
por acidente de trânsito em 178 países. Sobre o diagnóstico de lesões e
Segundo a OMS, se nenhuma ação mun- qualidade de vida de mototaxistas, cons-
dial for empreendida, este número poderá tatou que os membros são os mais aco-
chegar a 1,9 milhão de mortes até 2020. metidos, com lesões como fraturas, con-
Na América Latina, o custo aproximado tusões e luxações. As fraturas de mem-
das incapacidades e mortes por esses bros, observadas em 23,89% dos motoci-
eventos foi de 18,9 bilhões de dólares; já clistas, são consideradas lesões de baixa
nos países altamente motorizados, de ou média gravidade (AIS 1 a AIS 3). En-
tretanto, requerem imobilizações prolon-

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Fraturas em membros inferiores por causas externas: significado para indivíduos hospitalizados

gadas, acarretando longos períodos de tos sociais e psicológicos nas vidas dos
recuperação da vítima, com importantes indivíduos e seus familiares.
custos econômicos e sociais. Após nove A lesão isolada de membros supe-
meses a um ano do evento traumático, riores ou inferiores raramente é relacio-
alguns indivíduos ainda apresentam se- nada a casos fatais, mas com necessida-
quelas de natureza física. Essas vítimas dede cirurgias reparadoras, corretivas e
tinham deficiências principalmente rela- amputações, o que diretamente influencia
cionadas aos membros inferiores, com a qualidade de vida dos pacientes e seus
dificuldades para realizar determinadas familiares (CALIL et al., 2009). O elevado
atividades (OLIVEIRA; SOUSA, 2003). número de pacientes que permanece, por
Sob o ponto de vista das sequelas decor- semanas, meses ou até anos, em pro-
rentes das lesões advindas dos acidentes gramas de reabilitação física, psicológica
e violências, quando não levam o paci- e fisioterapia, com perdas salariais e de
ente diretamente à morte, podem deman- emprego em decorrência desses eventos,
dar uma internação às vezes longa, com mostrando a dimensão econômico-social
gastos elevados. Além disso, há a possi- do problema (BOTO et al., 2006).
bilidade de gerarem sequelas permanen- Frequentemente, trabalhos realiza-
tes e incapacidades (BRASIL, 2001). dos na área de saúde pública privilegiam
A persistência de ocorrência das o conhecimento das causas externas que
fraturas por causas externas vêm-se determinaram os eventos, uma vez que
apresentando de forma recorrente, isso são essas causas que vão orientar as ati-
parece ser devido a consequente melho- vidades de prevenção. No entanto, as in-
ria das condições socioeconômicas da formações acerca dos traumas e lesões
população, como consequência, maior mais frequentes abrem inúmeras possibi-
acesso aos bens e serviços acarretando lidades de atuação desde as administrati-
alarmantes números de acidentes e vio- vas, visando ao melhor planejamento dos
lências. Diante disto, essas causas vêm serviços e alocação de recursos, quanto
gerando um dos principais problemas de na própria avaliação da assistência mé-
saúde pública no Brasil seja por sua mag- dica prestada. Permitem também, envol-
nitude, mas também pelos custos que re- ver os profissionais que prestam atendi-
presentam para a sociedade e os impac- mento direto às vítimas na discussão do

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Marilia de A. Fonseca, Marilia de A. Fonseca, Camila R. Amorim, Marcos A. A. Matos

problema das causas externas Para Gordilho et al. (2001), a de-


(GAWRYSZEWSKI et al., 2004). pendência pode ser definida como a con-
As lesões decorrentes dos eventos dição de uma dada pessoa que faz com
traumáticos resultam, repetidamente, em que ela requeira o auxílio de outra pessoa
deficiências e incapacidades temporárias para a realização de atividade do dia-a-
ou permanentes, que interferem na capa- dia.
cidade de as vítimas sobreviventes cum- O objetivo deste estudo foi identifi-
prirem tarefas que delas são esperadas, car e descrever os significadosque as
assim como na qualidade de suas vidas. fraturasde membros inferiorestem na vida
De um modo geral, os estudos que anali- dos indivíduos hospitalizados, os senti-
sam as causas externas, em suas princi- mentos narrados por eles frente a nova
pais vertentes epidemiológicas, abordam condição de internação hospitalar, inca-
o problema sob o aspecto da mortalidade pacidade de locomoção e dependência
e/ou demanda aos serviços hospitalares, física. Este trabalho é um recorte de um
e são escassas as referências à questão estudo maior, doutorado em curso, ao
das sequelas, dependência física e fun- qual pretende conhecer os impactos que
cional, como também a qualidade de vida as fraturas de membros inferiores causas
após o evento (OLIVEIRA; SOUSA, na qualidade de vida destes indivíduos.
2003).
O conceito de capacidade funcional 2 METODOLOGIA
consiste em manter habilidade físicas e
mentais necessárias para uma vida inde- Trata-se de uma pesquisa de natu-
pendente e autônoma (MONTEIRO; reza qualitativa, com o propósito de iden-
FARO, 2010). As deficiências podem ser tificar e descrever sobre o significado que
temporárias ou permanentes, consistindo as fraturas nos membros inferiores repre-
em perdas ou anormalidades de funções sentam na vida dos indivíduos acometi-
ou estruturas anatômicas. A incapacidade dos. Estes significados são construídos a
é definida como qualquer restrição ou partir da ocorrência de lesões por causas
falta de habilidade que o indivíduo sofra externas, levando-os a internação hospi-
para desenvolver suas funções motoras e talar e a partir deste cenárioestabelece-
psíquicas (COSTA, 2006). mum sentido para a vida cotidiana.

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Fraturas em membros inferiores por causas externas: significado para indivíduos hospitalizados

A pesquisa está sendo desenvol- Após consentir em participar do


vida em 02 municípios, Vitória da Con- estudo, o sujeito foi convidado a respon-
quista e Jequié, situados no sudoeste da der um questionário contendo dados da
Bahia, tendo como campo de estudo 02 unidade hospitalar onde estava internado,
hospitaisde grande porte públicos da re- informações sociodemográficas como,
gião. Porém, neste trabalho foram recru- gênero, idade, escolaridade, situação
tados somente indivíduos internados em conjugal, número de filhos, cor da pele,
um hospital de um município. renda mensal familiar, situação profissio-
A amostra deste estudo é parte de nal, renda mensal. Depoisda obtenção
uma pesquisa de tese de doutorado em destes dados foi feita uma entrevista, in-
andamento onde foi contemplado um dos quirindo sobre o significado e o que re-
escopos do trabalho. Foram entrevistados presentava a fratura para o indivíduo.
04 indivíduos internadospreviamente hígi- A realização da pesquisa foi con-
dos,que sofreram fraturas de membros cretizada no hospital onde os indivíduos
inferiores por causas externas. estavam internados, sendo gravada a fala
Os indivíduos foram recrutados por de cada um dos indivíduos e analisadas-
aqueles que preencheram os critérios de conformeo contexto do significado das
inclusão do estudo. Os critérios de sele- fraturas. Para os participantes do estudo
ção para os participantes do estudo foram foi explicado com detalhes o Termo de
indivíduos adultos, acima de 18 anos com Consentimento Livre e Esclarecido -
diagnóstico de fratura em qualquer seg- TCLE, onde ficou evidenciado o objetivo
mento do membro inferior, internados há do estudo, sua importância e os procedi-
mais de 24 horas. Foram excluídos do mentos a serem realizados. Após concor-
estudo indivíduos portadores de outras darem em participar do estudo, assinaram
doenças do sistema osteoarticular associ- o TCLE. O presente estudo foi realizado
adas (doenças reumáticas, osteometabó- de acordo com a Resolução 196/96, do
licas, ou qualquer outra que não seja de Ministério da Saúde (CONEP), tendo sido
origem traumática), pacientes politrauma- aprovado pelo Comitê de Ética em Pes-
tizados, baixa cognição; e também aque- quisada Fundação Bahiana para Desen-
les que se recusaram em participar da volvimento das Ciências, CAAE:
pesquisa. 19698613.2.0000.5544.

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Marilia de A. Fonseca, Marilia de A. Fonseca, Camila R. Amorim, Marcos A. A. Matos

As entrevistas tiveram uma dura- pela surpresa do acidente, medo de mor-


ção média de 35 minutos, foram registra- rer, reflexão sobre a vida e o viver, e o
das por gravação e transcritas integral- voltar mais para Deus.
mente. Para que os temas mais relevan- Nesta sessão serão apresentados
tes emergissem, as transcrições foram os indivíduos entrevistados participantes
lidas repetidas vezes, resultando na do estudo e as temáticas que emergiram
construção de três temáticas maiores, das entrevistas.
onde foi possível descrever e analisar as
repercussões causadas por fraturas de 3.1 APRESENTAÇÃO DOS ENTREVIS-
TADOS
membros inferior.
As três temáticas construídas fo-
3.1.1Sujeito 1
ram analisadas e ancoradas na aborda-
gem construcionista social, procurando Casado, 48 anos, alfabetizado, 02
dessa forma compreender as falas dos filhos, morador da zona urbana, católico,
entrevistados enquanto elementos sociais renda mensal familiar de 1 salário mínimo,
produzidos historicamente e culturalmente trabalha com funilaria e pintura de auto-
de maneira coletiva (GERGEN, 1985). móveis sem vínculo empregatício, domici-
lio próprio. Vítima de atropelamento por
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
motocicleta, no turno vespertino, foi admi-
tido para internamento hospitalar entre 1 e
É importante quantificar os custos
2 horas após o evento, tendo como lesão
sociais dos acidentes por meio de estudos
fratura exposta de perna esquerda, com
qualitativos que contextualizem o impacto
tratamento cirúrgico e colocação de fixa-
nas vítimas e em seus familiares; além de
dores externos, estando no 150 dia de in-
haver necessidade de se traçarem parâ-
ternação hospitalar.
metros para avaliar impactos de difícil
quantificação para os indivíduos e para a
3.1.2 Sujeito 2
sociedade, visando nortear políticas públi-
cas (GONÇALVES et al., 2007).
Gênero masculino, união estável,
Os sentimentos atribuídos a expe-
25 anos, ensino médio incompleto, 01 fi-
riência de estar internado com fraturas em
lho, morador da zona urbana, católico,
membros inferiores foram caracterizados
renda mensal familiar de 1 salário mínimo,

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Fraturas em membros inferiores por causas externas: significado para indivíduos hospitalizados

carteira assinada, trabalhador de indústria mensal familiar entre 2 a 4 salários mí-


têxtil, domicílio alugado. Vítima de agres- nimo, domicílio alugado, motorista sem
são física por arma de fogo, no turno no- vínculo empregatício. Vítima de acidente
turno, foi admitido para internação hospi- automobilístico no turno matutino, sendo
talar com 40 minutos após o evento, admitido para internação entre 1 a 2 horas
tendo como lesão fratura em fêmur es- após o evento, tendo como lesão fratura
querdo, ainda não realizada cirurgia em de perna esquerda e ainda não realizada
coxa, estando a mesma com faixa ges- cirurgia e estava no 250 dia de internação
sada e no 210 dia de internação hospita- hospitalar.
lar. Segundo os entrevistados, ao se
depararem com a surpresa do acidente e
3.1.3 Sujeito 3 a lesão que sofreram, de estarem interna-
dos sem saberem como será o futuro e
Gênero masculino, união estável, como será o processo de recuperação,
28 anos, 20 grau completo, morador da fizeram associação com o medo e a tris-
zona urbana, evangélico, com renda teza de estarem acamados e sem possi-
mensal familiar entre 2 a 4 salários mí- blidade de locomoção.
nimo, domicílio próprio, motorista, carteira
“É muito triste estar aqui, vendo
assinada. Vítima de acidente automobilís- tanto gente sofrer, gritar, não
dormir e outros que trabalham dia
tico no turno vespertino, uso de cinto de e noite para diminuir o sofrimento
segurança, sendo admitido para interna- das pessoas...” (S3).

ção hospitalar com mais de 3 horas após “Ficar fora de casa, longe de tudo
é muito ruim... tem hora que a
o evento, tendo como lesão fratura ex- tristeza é tão grande que tenho
vontade de chorar...” (S1).
posta de perna direita, com fixadores ex-
“Me dá uma revolta,
ternos e estava 910 dia de internação nervosismo(...), sei lá, uma baixa
hospitalar. de autoestima, e aí vem a tristeza,
que não para... todo dia fico
assim.... (S2).

3.1.4 Sujeito 4 “Parece que o mundo desabou.


Me vi naquele chão, com minha
perna daquele jeito, a tristeza foi
muita!” (S4)
Gênero masculino, união estável,
56 anos, ensino médio até o 90 ano, mo- Existe uma associação muito pre-
rador da zona urbana, católico, com renda sente entre a fratura e a dependência fí-

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Marilia de A. Fonseca, Marilia de A. Fonseca, Camila R. Amorim, Marcos A. A. Matos

sica, o medo de não voltar a andar e a 3.2 TEMÁTICAS QUE EMERGIRAM DAS
ENTREVISTAS
incapacidade para o trabalho. Os danos
físicos como a dor experimentada com a
3.2.1Tristeza
lesão adependência física e financeira.
Além de repercussõespsicológicas, refle-
Para Amin e Valadares (2001), a
xõessobre a vida e o voltar mais para
instituição hospitalar tem seus paradoxos
Deus e o resgate da valorizaçãoda famí-
com descuidos e proteção, contágios e
lia.
contaminações, tensões e intenções, tec-
Frente a incapacidade física para a
nologias e seres humanos, tristezas e
locomoção, foram externados o sentido do
alegrias, perdas e ganhos, vida e morte,
acidente voltados as reflexões imateriais
rupturas e continuidades.
para uma maior crença religiosa e o re-
Quando os indivíduos relataram
torno a espiritualidade, ao metafísico.
tristeza, expressavam que era muito es-
Dessa forma, a figura Divinae-
tressante e relevante o fato de estarem
merge permeando o sentido da vida e a
internados em ambiente hospitalar, longe
avaliaçãodas atitudes vividas anterior-
do ambiente familiar e da vida habitual. O
mente. O período da hospitalização e a
inesperado evento lhes causou transtor-
impossibilidade de locomoção gerando
nos emocionais vividos pela mudança re-
dependência de outros para a realização
pentina da vida, na parada abrupta do
das atividades de autocuidado, serviu
trabalho, vida social, e na nova condição
para se volverem para Deus,repensando
de vivenciar o ambiente hospitalar que
as atitudes do cotidiano e resgatando va-
consideram hostil.
lores perdidos.
“Eu vejo pessoas sofrendo,
“Esse tempo que estou aqui, tive gritando, gemendo de dor, fico
que refletir mais sobre a vida, me aqui imaginando que é triste ficar
voltar mais para Deus, rezar e me aqui sem saber quando vou fazer
encontrar com Ele, para pedir a cirurgia e poder voltar pra casa,
perdão das coisas erradas.” (S2). ver a família, os amigos, ter minha
vida normal. Voltar a trabalhar, ter
“Tenho que pedir a Deus pra me de novo minha independência
livrar das sequelas, que isso financeira, isso me causa muita
poderá me trazer, quero trabalhar, tristeza.” (S1)
ter minha vida normal, sem “Fico aqui pensando como isso foi
precisar depender de ninguém...” acontecer comigo... Não havia
(S3). necessidade de tanta
brutalidade(...) a única coisa que
posso fazer é pedir pra voltar logo

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Fraturas em membros inferiores por causas externas: significado para indivíduos hospitalizados

pra casa e acabar com essa Não tinham informações concisas


tristeza, e baixa de autoestima que
sinto todo dia. O que eu fico mais sobre o tempo de recuperação, quando
triste não é por que estou aqui
com a perna quebrada, mas por iriam ser submetidos ao tratamento cirúr-
deixar minha família, trabalho e
tudo por uma coisa banal, sem gico. Isso também corroborou para o
tanta importância” (S2) medo, a inquietude e tristeza, externali-
“E agora como vou fazer pra
sustentar minha família? Todos zada por todos, principalmente S2 e S4.
dependem de mim(...) cuidava de
tudo em casa, minha família, meus A partir deste cenário,há relatos na
bichos, isso é muito triste sem um
emprego fixo pra me dar a literatura evidenciando que a maioria des-
garantia de cuidar da família(...)
me revolta e me dá muita tristeza”.
ses indivíduos irãonecessitar de uma in-
(S4) tervenção psicológica.Essa abordagem
“Vou agora depender de tudo dos
outros né, não sei se vou aguentar poderia ajudá-las a dar um significadoem
isso não moça, a vida é dura
quando você vê que fazia tudo, ia suas vidas, buscando redefinir o que a
e voltava pra todo lugar e agora
aqui na dependência das pessoas, experiência traumática lhes desvelou
até pra um copo d’água. Fico
pensando por que aconteceu(...) acerca da vida, a fim de aprender a lidar
tristeza é quando penso se vou ter com a nova circunstância (GONÇALVES;
minha vida e meu trabalho normal”
(S3). MORITA; HADDAD, 2007).

Nessa temática foi possível perce-


3.2.2 Incapacidade para o trabalho
ber o quanto a dependência, a dificuldade
de locomoção e dificuldade financeira “A gente fica aqui pensando todo
afetou psicologicamente os indivíduos, a mundo tá trabalhando meus
colegas lá e eu aqui sem poder dá
ponto de causar tamanha tristeza e in- um prego(...)A vontade que tenho
é de ir pra oficina trabalhar nem
certezas para o futuro. Este estado de que fosse sentado, pra ter meu
ganha pão, meu sustento. Não
tristeza denotou a vulnerabilidade em pro- consigo acreditar no que
aconteceu foi tão rápido, que fico
ver o sustento para as famílias e isto foi pensando que Deus me deu a vida
potencializado a medida que se encontra- novamente pra lutar”. (S1)
“Vou ficar aqui nem sei quanto
vam incapazes de gerir o autocuidado, tempo, sem fazer nada, em cima
de uma cama, dando trabalho aos
sendo requerido um outro familiar, geral- outros(...) e ainda pior sem
trabalhar, isso me dói muito, você
mente esposas, para o acompanhamento nem sabe como isso é ruim” (S3).
“A vida tem dessas coisas, pega a
hospitalar. Fator que impulsionou estresse gente na surpresa, tava
pelo instabilidade financeira e transtornos trabalhando, ganhado meu
dinheiro e agora aqui sem poder
familiares que a fratura ocasionou. nem sentar, quando vou poder
trabalhar? (S2)

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Marilia de A. Fonseca, Marilia de A. Fonseca, Camila R. Amorim, Marcos A. A. Matos

O sentimento de incapacidade para Itami (2008), relata que a incapaci-


o trabalho, causando mudanças na vida, dade funcional aumentou em casos de
tanto financeira quanto social, foi uma das acidentes automobilísticos, atropelamen-
temáticas mais enfocadas pelos sujei- tos, ferimentos por arma de fogo. Houve
tos.Corroborando comAmorim (2012), ainda uma significativa associação entre
estes trabalhadores quando vítimas de fraturas de membros inferiores e maiores
acidentes de trabalho, não possuem os comprometimentos funcionais. As morbi-
benefícios de proteção concedida pela dades envolvendo causas externas nos
legislação trabalhista. remete a necessidade de investigação da
rede de suporte social oferecida aos indi-
3.2.3 Dependência física víduos.

“Você não sabe quanto me


O cuidador, normalmente parente incomoda ver minha irmã aqui
cuidando de mim e ter que deixar
do sexo feminino, é a pessoa que assume de fazer seu trabalho(...) Do jeito
a tarefa diária relacionada aos cuidados que eu tô não consigo nem me
virar na maca sozinho preciso da
com o paciente acamado. Cabe a esta ajuda dela(...) até quando ela vai
poder me ajudar? Fico aqui
pessoa toda a responsabilidade sobre o pensando quando vou ficar bom”.
(S2)
cotidiano desses pacientes, desde os cui-
“Esse fato que aconteceu comigo
dados com a higiene, alimentação, curati- serviu pra mim mostrar que não
vos, administração do uso de medica- posso viver só, vou sempre
depender de alguém pra cuidar de
mentos até o apoio psicológico necessário mim, até pra vestir uma roupa,
isso me deixa arrasado, saber que
para a manutenção da cura (FREITAS, incomodo as pessoas”. (S1)

2002). “Você vai ver se chegar aqui a


semana que vem, minha mulher
A dependência física relatada pelos vai tá aqui fazendo tudo pra mim,
sujeitos gerou um fator de estresse para deixando tudo lá em casa pra
estar aqui(...) quero me livrar logo
os entrevistados.Sentiam-se incomodados desses ferros e poder pelo menos
andar de muletas sem depender
em necessitar continuamente do auxílio dos outros e ela cuidar da casa e
das coisas.” (S4).
de um cuidador. Dessa forma, um mem-
bro da família teve que se afastar de suas A incapacidade funcional é um fator
atividades de vida diária ou laborais para agravante e pode estar associada a se-
dedicar-se ao cuidado do hospitalizado. quelas de alguma patologia que altera a
capacidade do indivíduo em realizar suas

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Fraturas em membros inferiores por causas externas: significado para indivíduos hospitalizados

atividades de vida diária. Assim como sua vas precisam serem melhor operacionali-
independência funcional (REIS et al., zadas, dentre elas, garantir um acompa-
2013). nhamento efetivo e eficaz para as vítimas
Nas alocuções dos sujeitos entre- de acidentes e violência, além de orien-
vistados ficouevidente o estresse causado tar, treinar e capacitar os profissionais das
pela ausência de autonomia em todos os diversas áreas da saúde; desenvolver es-
aspectos. Estes motivados pela incapaci- tratégias para minimizar os efeitos do
dade de realização das atividades de vida trauma do acidente e da violência, dando
diária e laborale pela dependência física. mais suporte, capacitação e estrutura aos
Os indivíduosreferiram várias impli- locais que recebem as vítimas de aciden-
cações negativas da hospitalização após tes e violências, incluindo um trabalho
o evento traumático. Isso parece alterar com os familiares e as equipes de res-
de forma acentuada o estado emocional gate.
dos sujeitos, causando sentimentos de
medo e incertezasquanto seu estado fí- 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
sico e consequentemente o psicológico.
Para Muñoz e Fortes (1998), os grupos Este trabalho baseou-se nas narra-

sócio e economicamente vulneráveis, os tivas dos indivíduos acometidos por fratu-

mais desprovidos de recursos, têm menos ras de membros inferiores, onde o foco

alternativas de escolha em suas vidas, o das alocuções foi centrado na surpresa do

que afeta o desenvolvimento de seu po- adoecimento rápido.

tencial de ampla autonomia. O acometimento físico e funcional-

A promoção de campanhas mais somado a internação hospitalar gerou aos

convincentes voltadas para a educação entrevistados tristeza por fatores intrínse-

no trânsito e punições mais ativas e seve- cos e extrínsecos. Foi identificado que

ras aos infratores, o oferecimento de su- adependência física, incapacidade para o

porte social e psicológico aos membros da trabalho foram fatores preponderantes

família, que é indissociável a problemática para a significação de valoração negativa

ora vivida pelo sujeito. de estar doente e hospitalizado.

Como recomendação do IPEA Como identificados e descritos os

(2009), os desafios para as políticas pú- significados deste estudo para as vítimas

blicas são amplos e algumas prerrogati- de fraturas de membros inferiores por

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Marilia de A. Fonseca, Marilia de A. Fonseca, Camila R. Amorim, Marcos A. A. Matos

causas externas, a tristeza, associada a cia social e suporte psicológico. Também


incapacidade física e consequente inapti- a necessidade da construção de políticas
dão para o trabalho. Ao se depararem públicas, com vistas a ampliações ao su-
hospitalizados, mostraram sentir-se inca- porte intrahospitalar tanto para o indivíduo
pazes de prover sustento para a família, quanto ao familiar.
delineadopelo sentimento de incertezas Além disso, é preciso uma atenção
para o futuro. Este fator aparece associ- voltada aos tipos de suporte social que
ado ao incômodo de estarempotenciali- serão oferecidos, tendo como referência a
zando a problemática experimentada ideia de reforço da rede social da vítima
quando necessitam de outro membro da como melhor estratégia.
família para o autocuidado. Isso trouxe- Para que isso efetivamente acon-
mudanças na rotina da vida familiar, pro- teça, maisestudos de caráter qualita-
vocando uma sobrecarga no contexto da tivo,como também os longitudinais deve-
vida social. E vento que gerou baixa na rão ser feitos para o conhecimento dos
autoestima, vulnerabilidade financeira e significados para os indivíduos vítimas de
psicológica. fraturas por causas externas, Faz-se im-
Diante das temáticas que emergi- portante para maior visibilidade dos pro-
ram das entrevistas, este trabalho poderá blemas inerentes das hospitalizações por
oferecer subsídios a assistência do hos- fraturas, por partedos profissionais envol-
pitalizado criando um maior aporte dos vidos no processo de prevenção, trata-
profissionais de saúde para esclareci- mento e reabilitação dos acometidos.
mentos acerca do estar doente, assistên-

FRACTURES IN LOWER FOR EXTERNAL CAUSES: significance for hospitalized


individuals

ABSTRACT
This article is part of a doctoral thesis research in progress, which was awarded
one of the scopes of work. This study aimed to identify and describe the meanings
and feelings experienced by hospitalized individuals who suffered fractures of the
lower limbs. This is a qualitative research, where the meanings constructed from
the occurrence of injuries, and consequent hospitalization and in this context
established a sense to life against the unexpected event. Four individuals
admitted to a public hospital in Bahia interviewed. The interviews resulted in the
construction of three major themes, which described and analyzed in the context
of the impact caused the hospitalization. Exists an association between fracture
and physical dependence, fear not walk again and the inability to work. When

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Fraturas em membros inferiores por causas externas: significado para indivíduos hospitalizados

faced hospitalized, proved incapable of providing sustenance for the family,


causing a feeling of uncertainty for the future. Factor associated with the hassle of
powering this problem are the need of another family for self-care, revealing, fear,
low self-esteem and physical, financial and psychological vulnerability. It takes a
focused social support and offered health care , with reference to the idea of
strengthening the social network of the victim and the family as best strategy.

Keywords: External Causes. Hospitalization. Fractures.

Recebido em: 08/09/2014 Aceito em: 03/11/2014

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