Você está na página 1de 8

O DIREITO ÇOMO

PARTE DA ETICA

Fábio Konder Comparato

Bom día a todos!

A pergunta inicíalmente formulada é estaz O que é a

Filosoña do Direito?

Eu vou formulá-la de forma díferentez Por que a Fi-

Iosoña do Direito no curso jurídico? E minha resposta

édupla.Elatemligação com dois defeitos ou duas carên-


cías graves de todos os cursos jurídicos. Em primeiro lu-

gar,a apresentação atomístíca do fenômeno jurídico.Em

Segundo lugar, a prevalência da técnica sobre a ética.

Quanto ao primeiro ponto, o que a Filosoña do Dí-


reito traz aos estudantes é uma vísão panorâmica do fe-

nÔmeno jurídico no contexto social. O que se procura

Vef nÊO é apenas o Direito nacionaL mas também o Dí-

:::1°01::3r1131flci.0nal. O que se procura examinar não é um


lrelto separado dos outros, mas todos os ra-
4 O QUE ÉA FILOSOFIA DO DIREITO?

mos do Direito em conjunto. Freqüentemente, os alu-

nos me dizem:“É interessante como pela primeira vez

percebemos a ligação entre direito penaL direíto civiL


direíto nacional e direito internacíonal”.

A verdade é que a Visão ñlosóñca nos permite Vi-

sualizar a oposição permanente entre direito ideal e direi-

to vigente. Por mais que se faça, não é possível esconder

ou sufocar a necessídade de

A visão filosófica nos uma crítica permanente do

permite visualizar a direito positivo.Nós só avan-

OPOSÍÇÕO PeTmaneníe çamos na medida em que fa-


entre direito idcal e
zemos essa auto~análise e
direito vigente.
também uma análise da rea-

lidade externa que nos cer-

ca. Freqüentemente, o que se vê nos cursos jurídicos é

uma consideração meramente factual da realidade como

se o Direito fosse algo ligado à própria natureza, um dado

que não precisa ter explicação e que de qualquer maneira

não precísa ser justiñcad0.

Alem dlSSO,n0 âmbito dessa visão panorâmica do

fenomeno )urldlC0, insere-se o reconhecimento de sua

natureza histórica.Todas as vezes que nós nos debruça-

mlos SObre um problema mais complicado, sentimos que


h.a lfma certa consíderação relativa de valor naquela ins-
tlÉUlÇaO que está sendo apresentada, e percebemos tam-
bem que há uma evoluçã°› que pode ser dar no bom ou
O DIREITO COMO PARTE DA ÉTICA

no num sentido, mas de qualquer maneira há sempre

uma resposta a problemas surgídos num determinado

mo
mento histórico.

De que maneira compreender o princípío de 5e-

paração de poderes que surgíu como consideração pu-


ramente ñlosóñca em Aristóteles? De que maneira ele

voltou a surgir, fomentando 0 ardor revolucíonário _no

século XVIIL sem a compreensão de uma evolução so-

cial que percorreu toda a Idade Média européia? É jus-

tamente esse caráter essencialmente histórico do

Direito que é ímportante para a compreensão dos di-

reitos humanos.

A vida social neste país desenvolveu-se, durante

quatro séculos, fundada na escravídã0, e isso sempre nos

pareceu algo natural até o fmal do século XIX. É sabido

que as grandes corporações eclesíásticas, as grandes or-

dens religiosas eram proprietárias de fazendas e explo-

ravam a mão-de-obra escrava, sem que isso suscítasse

nenhum problema moral. Por que razão, num determi-

nado momento, houve uma oposição crescente à explo-

ração da mão-de-obra escrava? Por que razão durante

milênios a mulher foi considerada inferior ao homem?

Çomo se deu essa revolução extraordinária,talvez a mais


lmP<^>rtante de toda História, que foi a luta pela igualdade
de gener0? Será possível considerar o conjunto dos di-

reitos _
humanos como alguma cmsa absolutamente ra-
6 O QUE É A FILOSOFIA DO DIREITO?

cionaL eterna e imutável? Ou devemos reconhecer que,

a par da evolução biológica, há uma inegável evolução

de ordem ética?

É aí que eu entro na segunda grande deñcíência dos

cursos jurídicos, que é a visão excessivamente técnica,

ou exclusivamente técnica

do Direito. Nesses cinco anos


O D ireito
_ ' qua ndo
, de curso aqu1. na Faculdade,

Teduzldo a uma szmples A _ ~ _


, . . voces ouv1ra0 mu1t0 pouco

tecnzca, flca _ , _

desbussolado sobre étlca.E claro que 0 D1-

reito é uma técnica, uma das

mais delicadas, das mais

complexas que o homem já criou. Ê evidente que não se

pode trafegar no campo do Díreito sem uma boa com-

petência técnica,mas a técnica é mero instrumento;ela

é neutra quanto aos valores, ela pode servir à vida, como

pode servir à morte. É impossível tentar reduzir 0 Dí-

reito a uma mera técnica, poís dessa forma ele ñca com-

pletamente desbussolado. Quando penso nos meus

tempos de estudante, lembro-me como os professores

procuravam sempre fugir dessa debate ético, tal como

os juízes, que, ao julgarem contra a sua consciência, re-

fugíam-se no fato de que são meros servidores da lei. O

juiz diz que não é Iegislador e, portanto, decide injusta-

mente e tem conscíência dessa injustiça.


O DIREITO COMO PARTE DA ÉTICA

Nessa consideração do Direito como parte integrante

da ética, o que o curso de Filosoña pode trazer de im_

portante é a análise das fontes do Direito. O Direito tem


sua fonte exclusivamente no poder, ou ele tem apoio ne-

cessariamente na consciência social, na consciência co-

letiva? Essas duas fontes podem produZír Direitos

contraditórios? Nesse caso, qual delas deve prevalecer?

Ainda aí,o estudo dos direitos humanos é importante,

porque ele nos traz uma resposta a essas questões. To-

dos esses problemas que eu citei - a escravidão, a infe-

rioridade da mulher, a exploração do trabalho humano,

mesmo fora da escravidão o aviltamento da pessoa hu-

mana no Díreito Penal antigo e moderno - tudo isso

representou, na evolução histórica, um choque, uma

contraposíção entre aquilo que estava na consciência


socíal e aquilo que era imposto pelo poder.

Ainda dentro desse campo de considerações, o curso

de Filosoña do Direito nos obriga a refletir sobre a rela-

ÇãO constante entre Moral e Direito, tão simplesmente

resolvida pelo positivismo jurídico. Ê inegável a influên-

cia incessante da Moral sobre o Direito. Em um deter-

minado trecho do Evangelho segundo Lucas, conta-se a

Parábola do bom samaritano. Muito conhecida› eu não

vou rePeti-1a.Eu gostaría apenas de frisar o fato de que,

uma Parábola,o que se apresenta é uma oposição entre

duas etnías, entre duas culturas, entre duas religiÕeS› e


O QUE ÉA FILOSOFIA DO DIREITO?

uma oposição radical na época do começo da Chamada

Era Cristã.A rivalidade entre judeus e samarltanos era

muito mais virulenta do que a oposição atual entre ara-

e o que se apresentou foi isto


bes e judeus na Palestina,

- a necessidade de se prestar socorr0. Muitos e muitos

séculos depois, em todos os códígos penais, foi inscrita

a flgura da omissão de socorro.Agora é um delit0. No

Código Penal brasileíro, ela está no art. 135. Naquela

época, a atitude do samaritano era uma manifestação


de amor heróico, uma atitude considerada absolutamente

utópíca,irrealista, senão revolucionária. Hoje é um de-


lit0. Está nos códigos penaís.

É justamente aí que se põe 0 grande problema que

é freqüentemente omitido nos cursos jurídicos: a con-

traposíção entre justiça e realismo. Todos nós, que so-

mos vítimados por essa decadência própria da idade,

tendemos, como adultos e como professores, mais para

o lado do realismo, com 0 sacrifício da justiça. Fre-

qüentemente, nós sentimos entre os alunos uma reação

quase que de desprezo; outras vezes, um certo Cinismo

latente, como se toda essa conversa sobre justiça fosse

algo meramente literário, sem nenhuma aplicação na


vida prática, onde 0 que importa é ganhar dinheiro. Esse

envelhecimento precoce da juventude precisa ser com-

batído a ferro e fogo.


o DIREITO COMO PARTE DA ÉTICA 9

Com base nessas idéias, eu procurei dívidir o curso

em duas partes. A primeira é a antropologia ñlosóñca

aplicada ao Direito. Impressmnante como até hoje, que


eu saiba,ainda não foi instituído na universidade 0 curso

de antropología ñlosóñca; e que eu saiba nunca, numa

Faculdade de Díreíto, essa assunto foi inscrito no pro-

grama.E,n0 entanto, pretende-se que o Direito seja uma


cíéncia humana. Uma ciência humana sem o estudo em

profundidade do ser humano? A todo momento, na vida


proñssionaL nós lidamos com a extrema complexídade
do ser humano. De que maneira podemos tratar um cri-

me passional sem compreender a força dos sentimen-

tos,das paixões? Spinoza, em vários trechos de sua obra,

criticou a idéía comum de que as paixões e os sentimen~

tos são vícios. Ora, se as paixões e os sentimentos são

considerados vícios, o homem é um ser vicioso por na-

tureza. Mas não seria exatamente o contrário? As pai-

xões e os sentimentos fazem parte

da própria natureza, são normais,


A partir de que
e e 0 desconhecimento dessa nor- momemo há uma

mahdade que torna impossível simação em que

mmtas vezes a SOIUÇãO de Pr0b16- percebemos que as

mas humanos.
exigências de ordem
A Segunda parte é a teoria mmal Íá $e mmm

furldamental dos direitos huma- ' exigências jurídicas.7


nos.0 professor Celso Lafer mos-
10 O QUE É A FILOSOFIA DO DIREITO?

trou, na sua tese de concurso, como essa consideração

dos direítos humanos é fundamental para a compreen-

são do Direito e dos rumos da civilização atuaL E é nes-

sa teoria fundamental dos direítos humanos que se põe

o problema do fundamento do Direito. Qual é o modelo,

qual é o critérío que pode ser apresentado para fundar a


validade do Direito, a vígência do Direit0? A partir de

que momento há uma situação em que percebemos que

as exígências de ordem moral já se tornaram exigências

jurídicas?
É exatamente nesse ponto que quero terminar, di-

zendo que o verdadeiro curso de Direíto não é uma sim-

ples preparação ao exercício


O verdadeiro curso de
proñssionaL É uma prepara-
Direito não é uma ção para a vida. Nós podemos

sim p les p re p ara çao


~ ao ser reprovados na faculdade,

Êxercício ProfissionaL
uma PTePaTação para
mas jamais podemos nos re-
-

- Sl nar a s

a vida. g ermos reprovados

na vida.

Você também pode gostar