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Prelúdio da Bossa Nova

Rosângela Francischini
João Victor

1. Contextualização histórica.

No país do carnaval era comum se ouvir o ronco da cuíca, batuque de samba e de três em três
minutos “Chiquita Bacana”, com Emilinha Borba. Isso parecia ótimo, mas para quem não gostava
desse gênero de música e dança o que restava era o refúgio ou agüentar aquilo calado. Televisão não
existia e o entretenimento ficava cada vez mais comprometido. Como uma alternativa de fuga um
grupo de jovens que não via a menor graça em correr atrás do Rei Momo decidiu investir em um
outro gênero. Três jovens, Joca, Didi e Tereza Queiroz e um desejo em comum: a paixão por Frank
Sinatra e Dick Farney. As garotas tinham como propriedade um porão onde foi decidido tornar do
lugar uma sede, um ponto de encontrou e conversar, um fã clube para seus ídolos.
Frank Sinatra era o grande ícone americano do momento, um símbolo sexual que fazia a
alegria das meninas. Já Dick Farney acabará de ser revelado pela canção “Copacabana” que
mostrava um requinte e sofisticação que os cantores do rádio (Orlando Silva, Vicente Celestino e
Nelson Gonçalves) não tinham. A música mostrava a capacidade de ser moderno, romântico e
sensual em português.

2. A trajetória de Dick Farney.

Dick Farney gravou Copacabana, posteriormente decidiu tentar carreira solo nos Estados
Unidos. Para a surpresa de todos começou a chegar relatos que Dick fazia sucesso no país do Tio
Sam e para comprovar isso ao seu público incrédulo, o pai de Dick fez questão de mostrar gravações
do filho em rádios americanas. Em dezembro de 1948 o contrato de Dick expirou com a NBC e não
havia um futuro muito promissor imediato. Assim, o cantor e pianista retorna ao Brasil.

. Música romântica com Dick Farney.

Dick Farney – 1954 – Continental - LPP-2

1 Você se lembra? (Haroldo Eira - Victor Berbara)


2 Canção do mar (Bruno Marnet)
3 Grande verdade (Billy Blanco)

1
4 Outra vez (Tom Jobim)
5 She's funny that way (N.Moret - R.Whiting)
6 These foolish things remind me of you (J.Starchey - H.Link - H.Marvell)
7 How deep is the ocean (Irving Berlin)
8 You go to my head (J.F.Coots - H.Gillespie).
3. Sinatra-Farney Fan Club.

Depois de transformar o sótão num fã clube as meninas, animadas com o retorno de Farney,
trataram de organizar toda a parte administrativa, inscrevendo sócios e preparando a burocracia para
oficializar o fã Clube. O Sinatra-Farney se tornaria um berço dos principais nomes que futuramente
fariam a Bossa Nova. Destacam-se os grandes freqüentadores da casa: Johnny Alf, João Donato,
Nora Ney, Doris Monteiro, Jô Soares, Billy Blanco, dentre outros membros. Há pessoas que
acreditam que Tom Jobim e Vinicius de Moraes tenham marcado presença no Fã clube. Entretanto,
segundo Castro (2000) isso não passa de uma falácia. Tom havia se mudado do bairro com 22 anos,
já era casado e bastante ocupado. Vinicius, muito menos, pois a data de fundação do clube
corresponde exatamente com sua estadia em Los Angeles. Mesmo quando ainda nos EUA Dick
soube que no Brasil existia um fã clube em sua homenagem, notícia essa que o deixou imensamente
feliz. No Sinatra-Farney tinha de tudo, dançarinos, cantores, intérpretes ainda amadores, mas
amadores com promessas de grandes profissionais. O sucesso da casa se tornava estonteante com a
presença do próprio Dick Farney que depois que voltou ao Brasil, se tornou membro assíduo do
local.

3.1. Evolução do Sinatra-Farney.

Os encontros na Sinatra Farney aconteciam lá mesmo no porão, um local pequeno e pouco


adequado para o uso do áudio. O barulho, por sua vez, incomodava a vizinhança e pontualmente às
22 horas as reuniões deveriam ser finalizadas, para fazer jus à lei, cuja observância ou não era feita
pela polícia através de rondas, diariamente. Um fato curioso foi quando os responsáveis pela
segurança do bairro esqueceram-se do ofício e se deliciaram com a música que se ouvia da calçada.
Foi a partir de então que se fez necessária uma expansão por parte do clube; os limites do sótão eram
pequenos demais. As primeiras atividades a transbordarem do porão foram as chamadas “Jam
Sessions” que aconteciam em dacings nas tardes de sábado. O clube crescia e o público, por sua vez,
acompanhava. Foi quando surgiram os pacotes para animações de festas. É dessa maneira que o
Sinatra-Farney Fan Club chegou ao Tijuca tênis Clube, Fluminense, Teatro Municipal do Rio de

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Janeiro e até em Curitiba. De acordo com Ruy Castro, “O fã clube era uma espécie de manjedoura de
muitos nomes que futuramente fariam a Bossa” (Castro, 2008: 36).
Mesmo desbravando mais territórios o Sinatra-Farney continuará a depender do sótão; era lá
que acorria toda a parte administrativa, ensaios e controle dos membros. Quando tudo ocorria bem
quando a mãe das meninas, proprietárias do antro, faleceu. Assim, o Sinatra-Farney tem que mudar
de endereço. Esse acontecimento resultou na dispersão de alguns membros que mais tarde deságuam
no profissionalismo. Foi o que aconteceu com Doris Monteiro, Nora Ney, Alf e Donato.
Um dos freqüentadores do Clube, como já citado, era o Johnny Alf. Em decorrência de sua
importância para a Bossa Nova e de sua longa e bem sucedida carreira, destacamos, abaixo, algumas
informações sobre ele.

4. Jonny Alf.
“Johnny, pianista, compositor e cantor, compôs, no início
dos anos 50 “Rapaz de bem”, a canção que inspirou “Desafinado”.
Johnny Alf é considerado o mais importante precursor da Bossa
Nova.” (Mello, 2008, p. 111).

Alfredo José da Silva, posteriormente Jonny Alf, nasceu em 1929, na Vila Isabel, berço do
samba de Noel Rosa. Aos 11 anos, passou a estudar piano com o incentivo e os custos assumidos
pela dona da casa onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Estudou os clássicos, mas
sempre procurava aproximar-se do popular. Por volta de 1947 passou a freqüentar o Instituto Brasil-
Estados Unidos, onde, além de praticar o inglês, tocava e cantava sucessos americanos. Nesse
ambiente é que surgiu o Alf, abreviatura de Alfredo. Em 1948 surgiu o ‘Jonny’, por sugestão de uma
amiga americana, para apresentação no Programa Em tempo de Jazz, na Rádio MEC.
Nessa época, freqüentava, (onde tocava piano), o Sinatra-Farney Fan Club, organização
criada pelos fãs de Sinatra e Dick Farney, que tinha viajado para trabalhar anos EUA em 1947. Esse
mesmo fã clube era freqüentado por vários outros cantores/compositores que, mais tarde, se
destacaram na música popular brasileira: Nora Ney, João Donato, Paulo Moura e Carlos Manga, esse
último, diretor de cinema responsável pelas chanchadas da Atlântida (Castro, 2008).
Em 1952, por indicação de Dick Farney, passou a tocar piano e cantar em um restaurante –
cantina - de Cesar de Alencar, apresentador do Programa Cesar de Alencar, famoso e popular na
época. João Donato e Dolores Duran, então freqüentadores do Sinatra-Farney Fan Club passam a ir à
cantina para ver Johnny Alf. O mesmo se passa com João Gilberto, que havia sido demitido do
conjunto vocal Garotos da Lua. Segundo Ruy Castro, no entanto, saber-se admirado por Radamés

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Gnattali era, para Alf, de grande valor, considerando o prestígio e nível de exigência que eram
relacionados à pessoa do maestro.
Sua permanência na cantina, no entanto, não foi longa. Poucos meses depois, transferiu-se
para a boate Monte Carlos, na Gávea. Seguiu-se: Clube da Chave, em Copacabana, Mandarim, no
Leme, Boate Posto 5, Club de Paris, Stud, Boate Drink e, por fim, bar do Plaza. No Mandarim, Alf
revezava o piano com Newton Mendonça, posteriormente co-autor, com Tom Jobim, de
“Desafinado” e “Samba de uma Nota Só”.
Em 1952 teve três composições suas no disco Convite ao Romance, de Mary Gonçalves, pela
gravadora Sinter. São elas: “O Que é Amar”, “Escuta” e “Estamos Sós”. Essas foram as primeiras
músicas de Johnny Alf gravadas. O disco não obteve bons comentários da crítica de Claribalte
Passos, no Jornal Última Hora. Ramalho Neto, então produtor da gravadora acima citada, decidiu
por gravar um 78 rpm com o próprio Johnny Alf ao piano, Garoto no violão e Vidal, no contrabaixo.
Destacam-se “Falsete” de Johnny Alf e “De Cigarro em Cigarro”, de Luiz Bonfá. O disco não teve a
recepção esperada por seu idealizador.
Nos anos de 1954-55, Johnny Alf, com 25 anos, tocava piano no bar do hotel Plaza, no Rio de
Janeiro, localizado na avenida Princesa Isabel, entre o Leme e Copacabana. Dentre os freqüentadores
do bar, que assim o faziam para ouvir sua música, destacamos: Sylvinha Telles, Carlinhos Lyra,
Roberto Menescal, Nara Leão, Lucio Alves, Tom Jobim, Newton Mendonça, Billy Blanco, João
Donato, Dolores Duran, Claudette Soares, Milton Banana, Cyl Farney (irmão de Dick Farney) e João
Gilberto. Acrescente-se a esse público tão seleto os componentes dos conjuntos vocais.
Além de um repertório que incluía música americana, notadamente Nat “King” Cole, e
música de outros compositores brasileiros (Ary Barroso, Custódio Mesquita e José Maria de Abreu)
incluía, em suas apresentações no Plaza, composições suas. Destacam-se “Rapaz de Bem”, O Que é
Amar”, “Fim de Semana em Eldorado”, “Escuta” e “Céu e Mar”, essa última, um “baião estilizado”,
nas palavras de Ruy Castro. (2008, Vol. 8). “Rapaz de Bem” e “O Tempo e o Vento” foram gravadas
por Johnn Alf pela Continental. A primeira, com piano, baixo e bateria e, a segunda, com orquestra.
Novamente o insucesso fonográfico foi uma realidade.1
Em meados de 1955, no entanto, Johnny Alf se muda para São Paulo, a convite de um
empresário paulista, Heraldo Funaro, e inaugura o restaurante Baiúca, no Centro da cidade.
Estabelece-se em São Paulo e deixa Copacabana com a sensação de que “a noite tivesse se mudado
para fora do Rio.” (Castro, 2008, p 11).

1
Há, em Ruy Castro, 2008, vol. 8, uma imprecisão em termos de datas. Esse disco, segundo a página 27, é de 1956. No
entanto, em meados de 1955, conforme a página 30 da mesma referência, Johnny Alf mudou-se para São Paulo.

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A mesma condição do Rio, de mudanças constantes de espaços, ocorreu em São Paulo. Do
Baiúca foi para o Michel, na seqüência, para o Feitiço, para o Cave, para o Golden Ball, para o
Tetéia, o La Ronde, a nova Baiúca, o After Dark, o Stardust, o Club de Paris e o Lancaster.
Segundo Ruy Castro, Johnny “ajudou preparar a cama para a bossa nova. Esticou o edredon,
afofou os travesseiros e, por uma cruel ironia, não estava presente quando os outros se deitaram nela”
(2008: 36). A agitação noturna, no Rio, estava, mais do nunca, acentuada, embora diluída em vários
espaços. A confluência de todos os que ocupavam esses espaços (Sylvinha Telles, Tom Jobim,
Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Lúcio Alves, Nara Leão) foi o próprio bar do Plaza. No entanto,
com a presença de um personagem central, com uma nova batida de violão: João Gilberto.
O reconhecimento de que a música de Johnny Alf influenciou a Bossa Nova é, segundo
Castro, unânime entre os bossa-novistas. Todos iam ao bar do Plaza para ouvir e aprender com
Johnny Alf. Uma das manifestações públicas desse reconhecimento é o convite para que Alf
participasse do show de bossa nova realizado em maio de 1960, na Faculdade de Arquitetura, no Rio
de Janeiro, denominado “Noite do Amor, do Sorriso e da Flor”. O convite para que Alf entrasse em
cena foi feito por Ronaldo Bôscoli, com as seguintes palavras: “Os verdadeiros entendidos na
história da bossa nova não poderão estar esquecidos deste nome. Faz dez anos que ele toca música
bossa nova, e, por isso, foi muitas vezes chamado de vigarista e de maluco. Johnny Alf!!!” (Castro,
2008: 41, Vol. 8).
Em 1961 produz, pela RCA Victor, o LP Rapaz de Bem. Em 1962 foi convidado para fazer
parte da delegação brasileira que iria ao concerto de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York,
mas não viajou com o grupo. Em 1964, também pela RCA Victor, grava outro LP, Diagonal. Em
1968, Márcia, uma cantora paulistana, participa do Festival da Canção da TV Record com uma
canção de Johnny Alf, “Eu e a Brisa”. Não foi classificada entre as 10 primeiras colocadas. Foi nesse
Festival que se apresentaram, e foram campeãs, “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam; “Domingo no
Parque, de Gilberto Gil; “Roda Viva”, de Chico Buarque e “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.
Johnny, durante sua longa carreira, passou muito tempo fora dos estúdios, o que ocorreu, por
exemplo, entre 1978 e 1990.
Em 1998 grava, ao vivo, Cult Alf e em 1999, Eu e a Bossa – 40 Anos de Bossa Nova.
“Na verdade, não teria havido nem João Gilberto – que precisou desviar-se da linha Johnny
Alf para encontra seu próprio caminho.” (Castro, 2008, p. 45. Vol. 8)

5. A vida noturna no Rio de Janeiro.

5
A noite do Rio de Janeiro que precede a Bossa Nova era imensamente tumultuada e cheia de
possibilidades da arte acontecer; os shows eram diluídos e espalhados em vários espaços. Os artistas,
muitos, nesse território eram espalhados nos seguintes espaços: Clube da Chave, em Copacabana,
Mandarim, no Leme, Boate Posto 5, Club de Paris, Stud, Boate Drink e bar do Plaza. Paralelamente
a isso, os grupos de conjuntos vocais começam a apresentar-se nos mais diversos lugares com o
mesmo intuito: festejar a música. Esse tópico, Conjuntos Vocais, será retomado em outro contexto,
posteriormente.

5.1. A concorrência dos fãs clubes.

Com o crescimento do Fã Clube Sinatra-Dick e, posteriormente, com a disseminação de mais


“hits parades” pela rádio Globo, o ambiente ficou exatamente propício para o surgimento de mais
associações e é nesse âmbito que surge o Fã Club Dick-Hayme, vinculado a Lúcio Alves, para
desespero e desconforto do Sinatra-Farney, e o Stan Kenton Progressive Club, que recebeu essa
denominação em referência ao progressivo Jazz de Kenton. Segundo Castro, alguns membros do Fã
clube de Dick compravam, a todo instante, provocações que desmereciam os ídolos do fã clube
concorrente. “Como alguém podia preferir Dick Haymes à Sinatra, ou mesmo Lúcio Alves poderia
ser comparado a Dick Farney.” ( Castro, 2008:48).
Apesar da rivalidade expressa entre os membros desses fãs clubes, houve artistas que
freqüentavam, simultaneamente, duas ou mais associações. Foi o caso de João Donato, a quem será
dado destaque, posteriormente, neste trabalho. Certa vez, João foi pego assobiando uma das músicas
de Lúcio Alves em territórios errados. Isso gerou grande alarde. Dick Farney, como muita sabedoria
e superioridade, entendeu exatamente que essa rixa “de melhor” era coisa exclusivamente criada por
fãs e numa atitude sábia convidou o próprio Lucio Alves para cantar no Sinatra-Farney.
Posteriormente, os dois gravaram, junto, Tereza da Praia, de Tom Jobim e Billy Blanco.

6. Lucio Alves.

Lucio era solista de um grupo chamado Namorados da Lua e tinha como influência o cantor
Orlando Silva, mas, como todos os cantores jovens do seu tempo, não podia escapar à influência
norte americana. Em 1947 Lucio desfez o grupo e viajou para os Estados Unidos. Essa época
coincidia exatamente ao período que Dick morava lá e daí surgiu uma grande amizade, por meio de
Farney. Lucio Alves nesse mesmo tempo conheceu o Cravinho, um amigo que o acompanhou por

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muito tempo fora e depois dentro do Brasil. Mas, já em 1948, Lucio retorna ao país de origem
justificando estar com saudade do Feijão e começa a fazer Show independente.

7. Lojas Murray.

Junto a esses acontecimentos, havia uma loja de discos de nome Murray, que iria abrigar os
meninos dos Fãs Clubes, os componentes dos grupos vocais e os admiradores do jazz, além de
jornalistas e interessados por músicas. Nos encontros que lá aconteciam, conflitos animavam a loja e
disputas recorrentes entre Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald animavam o clima. Além das constantes
brigas a casa reunia um público que tinha profunda admiração pelos conjuntos e ícones americanos
(Sinatra, Sarah, Kenton, dentre outros). A maioria de seus freqüentadores possuía um desejo ainda
insatisfeito: fazer parte de um conjunto vocal.

8. João Donato.

Nascido em 17 de agosto de 1934, em Rio Branco/AC, em uma família com tradição em


música. Com um ano, sua família muda-se para o Rio de Janeiro mas retorna para o Acre em 1939.
Em 1937 aprendeu a primeira música, que ficava cantando em sua casa, no mesmo tom
dramático de seu intérprete. Trata-se de “O Ébrio”, sucesso de Vicente Celestino.
Segundo Ruy Castro (2008, vol. 7), a precocidade musical de Donato era reconhecida por
todos. A canção “Índio Perdido”, gravada por ele, instrumental, e posteriormente com letra de
Gilberto Gil (1975) e denominada “Lugar Comum”, é resultado de uma canção que ouviu, aos 6
anos, assobiada por um nativo que passava por um rio, em uma canoa.
Em 1942, no Natal, ganhou o primeiro instrumento: uma sanfona infantil, substituída, logo
em seguida, por um acordeon de 24 baixos. A habilidade com o instrumento era reconhecida por
todos. Nessa época compôs “Nini”, uma valsinha dedicada à sua primeira namorada. O
reconhecimento, por parte de seu pai, de suas habilidades com o acordeon fez com que, aos onze
anos, esse lhe desse de presente um deles, só que desta vez, com 120 baixos. Nesse mesmo ano, em
1945, a família de João Donato volta para o Rio de Janeiro, de barco. Nessa viagem Donato
conheceu o cantor Carlos Galhardo e brindava os passageiros com seu acordeon, acompanhado por
sua irmã, ao piano.
Castro (2008) narra que com 13 anos Donato, ao entrar para se apresentar no programa de
Ary Barroso, na Rádio Tupi, no qual havia sido aceito através de inscrição, foi impedido de fazê-lo

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pelo próprio Ary Barroso, com as seguintes palavras: “Pode voltar. Não gosto de meninos-prodígio”.
(p. 22). O detalhe é que Ary Barroso, compositor e intérprete de “Aquarela do Brasil”, era admirado
por João Donato. É de Donato a seguinte afirmação: “Das músicas que não fiz, a que mais gostaria
de ter feito é Aquarela do Brasil. Õ, coisa linda!” (Castro, 2008: 45).
Nos dois anos seguintes Donato passou a apresentar as chamadas “caravanas culturais” com
seu acordeon acompanhado de sua irmã, ao piano, em cinemas e colégios, com o nome Irmãos
Oliveira.
Em 1949 sua irmã deixou a carreira de pianista e foi para a aviação; João Donato continuou a
sua, solo, insistindo em tocar música instrumental em um país onde a valorização da música
instrumental não era observada.
Nessa época, (1949), com quinze anos, Donato freqüentava os dois fãs clubes rivais do Rio,
conforme observado anteriormente: o Sinatra-Farney Fan Club, na Tijuca, e o Haymes- Lucio, em
Botafogo. Troca o acordeon pelo piano e passa a tocar na noite carioca, nos 10 anos seguintes.
Embora admirado por Tom Jobim, Altamiro Carrilho, Luiz Gonzaga, Dick Farney, Lúcio Alves,
João Gilberto, Dolores Duran, Sylvinha Telles e Alayde Costa, João Donato não tinha boa fama entre
os empresários das casas noturnas, uma vez que não respeitava os horários, freqüentemente não
comparecia ao trabalho e seu jeito de tocar com improvisos irritava os demais músicos do conjunto.
Em 1953, Donato reconstrói Os namorados (da Lua), sem Lúcio Alves e o conjunto grava Eu
quero um samba, anteriormente (1945) gravada por Lúcio Alves. Segundo Castro, “ No novo arranjo
de Donato, os baixos do seu acordeon fraturavam o ritmo como uma metralhadora de síncopes e
produziam uma batida que antecipava, quase sem tirar nem pôr, a do violão de João Gilberto, cinco
anos antes de “Chega de Saudade” (Castro, 2000: 58)
Em 1959, aos 25 anos, com a Bossa Nova começando a se manifestar no Brasil, Donato
muda-se para os EUA, a convite do violonista Nanai, ex-integrante do conjunto vocal Os
Namorados, que Nonato também já tinha sido integrante.
Embora não vivesse no Brasil na época da emergência da Bossa Nova, sua música, incluindo
sua batida de acordeon e piano, são consideradas influências decisivas em Tom Jobim, Newton
Mendonça, Carlinhos Lira e na batida singular do violão de João Gilberto.
No início de 1963 João Donato (piano), João Gilberto (voz e violão), Tião Neto (contrabaixo)
e Milton Banana (bateria) fazem uma temporada na Itália. Assim, mesmo longe do país, Donato
sempre esteve presente entre aqueles que fizeram surgir e se consolidar a Bossa Nova. De volta aos
EUA trabalhou com João Gilberto, Tom Jobim e Astrud Gilberto.
Em 1971 volta para o Brasil e sua música, até então predominantemente instrumental, passou
a ganhar letras por: Caetano Veloso, Gil, Chico Buarque, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Morais

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Moreira, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Martinho da Vila, Fausto Nilo, Cacaso, Abel Silva,
Geraldinho Carneiro, Ronaldo Bastos, Paulo André Barata, Arnaldo Antunes, Cazuza e o poeta
Haroldo de Campos. (Castro, 2008: 29)
Castro (2008) afirma que embora Donato não tenha estado no Brasil quando da emergência
da Bossa nova, “ninguém mais do que ele contribuiu para expandi-la musicalmente quando ela ainda
estava em embrião. E, em seu retorno, incorpora a bossa nova clássica ao seu já estabelecido estilo
de compor. O resultado disso é o que todos podemos ouvir até os dias atuais.

.Chá Dançante - Disco de 1956. João Donato.

1. Comigo é assim (José Menezes - Luiz Bittencourt)


2. No rancho fundo (Ary Barroso - Lamartine Babo)
3. Se acaso você chegasse (Felisberto Martins - Lupicínio Rodrigues)
4. Carinhoso (Pixinguinha - João de Barro)
5. Baião (Luiz Gonzaga - Humberto Teixeira)
6. Peguei um Ita no norte (Dorival Caymmi)
7. Farinhada (Zé Dantas).
8. Baião da garôa (Hervé Cordovil - Luiz Gonzaga).

9. Os conjuntos vocais.

Surgidos nos EUA, a partir de 1930, os conjuntos vocais passaram por um processo de
modernização no final dessa mesma década e nos anos 40, seguintes. Segundo Castro (2009, vol.
18), apesar da influência do modelo americano na harmonização das vozes, os ritmos variam
seguindo as adaptações próprias de cada país.
No Brasil, na década de 1940, destacam-se: “Os Namorados da Lua” (Lúcio Alves), O Trio
Nagô, o Quitandinha Serenaders (Luiz Bonfá, no violão), Os Garotos da Lua (onde João Gilberto foi
“revelado”) e Os Cariocas. Todos esses conjuntos foram formados a partir da influência dos vocais
americanos de então, que podiam ser ouvidos no cinema, nas rádios e nos discos, principalmente nas
Lojas Murray. Para o propósito deste trabalho, destacamos o conjunto vocal Os Cariocas.

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9.1. Os Cariocas.

Conjunto Vocal formado, inicialmente, em 1942, a partir de Ismael Silva Netto, seu irmão e
três vizinhos seus, Ari, Salvador e Tarquínio. Passou por várias transformações – alterações em seus
componentes. Com uma dessas formações, em 1945 o conjunto ficou em 2º. Lugar em um Programa
de Calouros denominado Papel Carbono, na Rádio Clube, dirigido por Renato Murce. Em sua
segunda apresentação no mesmo programa, ficou em 1º lugar e,a partir de então, passou a se
apresentar com freqüência no referido programa.
Em 1946 o pai de Ismael e Severino conseguiu com que o Conjunto fizesse um teste na Rádio
Nacional. Foram bem sucedidos e passaram, então, a participar do musical Um milhão de Melodias,
cuja orquestra era regida por Radamés Gnatalli. Foi nesse época – 1946 – que se estruturou a
primeira formação oficial de Os Cariocas: Ismael e Severino, Quartera (Jorge Quartaroni), Badeco
(Emanoel Furtado) e Waldir Viviani.
De todos os integrantes o destaque sempre ficou para Ismael Netto que, segundo Castro
(2008, vol. 18) era admirado por Radamés Gnatalli e Villa-Lobos em função da habilidade com que
fazia a harmonização das vozes. Este último, ainda segundo Castro, afirma: “quem quisesse aprender
a cantar afinado, que fosse ouvir Os Cariocas” (p. 23)
Em 1948 grava o seu primeiro disco, um 78 rpm, pela Continental, que se tornou um grande
sucesso. Nele estão as músicas “Nova Ilusão” e “Adeus, América”. A partir de então, as gravações se
sucederam, todas com grande aceitação do público e mesclando vários gêneros musicais.
Em 1956 morre Ismael, com 31 anos de idade. Severino, seu irmão, assume o comando do
Conjunto e coloca sua irmã, Hortência, para substituir Ismael.
Em 1957 Os Cariocas gravam seu 1º LP, com 12 canções de Ismael Neto, pela Columbia.
Trata-se do Os Cariocas a Ismael Netto.
Nessa época, Badeco era amigo de João Gilberto. Assim, em maio de 1958, gravam um outro
LP, em que “Chega de Saudade” comparece com João Gilberto ao violão. Pouco tempo antes Elizeth
Cardoso havia gravado essa mesma canção no LP Canção do Amor Demais. Dois meses após a
gravação de Os Cariocas, João Gilberto grava esse mesmo samba, pela Odeon. Ocorre que gravação
de João Gilberto saiu antes da Columbia lançar o LP dos Cariocas. O “marco zero” da Bossa Nova, o
78 rpm de João Gilberto, portanto, havia sido antecedido por uma gravação com a participação do
próprio João Gilberto.
A amizade de Os Cariocas, no entanto, não se restringia a João Gilberto. Incluem-se entre
seus amigos e compositores os quais eles já haviam incluído canções em suas gravações, Tom Jobim,
Billy Blanco e Carlinhos Lyra. Posteriormente, a aproximação com outros expoentes da Bossa Nova

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se estendeu, o que resultou na participação do Conjunto (embora sem Hortência_, em 02.12.59 no
show de bossa nova ocorrido no auditório da Rádio Globo, transmitido ao vivo.
O casamento de Os Cariocas com a Bossa Nova foi consolidado e seguiu adiante, com o
conjunto formado pelos quatro integrantes, uma vez que Hortência havia se desligado do mesmo.
Nessa época (meados de 1962) Waldir afasta-se por motivos de saúde e é substituído por Luiz
Roberto, então com 22 anos. De 1962 a 1967 foram 6 LPs gravados, na Phillips, todos com canções
da Bossa Nova.
De 1967 a 1988 Os Cariocas interromperam a carreira. Retornaram com seu repertório de
Bossa Nova. Badeco e Quartera deixaram o conjunto no decorrer desse tempo. Luiz Roberto sofreu
um infarto e faleceu no show de retomada do conjunto. Com novos componentes e a persistência de
um de seus fundadores, Severino, o conjunto continua se apresentando até os dias atuais, com a
seguinte formação: Severino Filho, Elói Vicente, Neil Carlos Teixeira e Hernani Castro.

10. João Gilberto.

Nascido em 1931, em Juazeiro da Bahia. Com 14 anos ganhou um violão de seu padrinho,
instrumento que aprendeu a tocar através do método Turuna. Juntou-se a outros 3 meninos de
Juazeiro e os quatro formaram um grupo com o qual passaram a se apresentar na amplificadora de
seu Emicles. No repertório, “Marina”, de Caymmi, e “Malagueña salerosa”. O grupo passou a
animar bailes nos clubes locais.
Orlando Silva, por quem João Gilberto tinha muita admiração, era considerado o maior cantor
de todos os tempos.
João Gilberto continuou cantando em Juazeiro até 1949, quando decide buscar novas
possibilidades em Salvador. Nessa nova cidade, tem maior acesso à música produzida nos EUA,
através de um amigo seu, Cravinho, que disponibilizava seus 78 rpm e LPs para João Gilberto ouvi-
los.
Em 1950 é convidado a fazer parte do Conjunto Vocal Garotos da Lua, no Rio de Janeiro.
Muda-se, então, de Salvador para o Rio de Janeiro e permanece no Conjunto por um ano e meio.
Gravaram, em 1951, dois discos (78 rpm).
João Gilberto, no entanto, começou a não cumprir os compromissos com a Rádio Tupi, com
quem os Garotos tinham contrato. Acabou sendo demitido pelos colegas.
Em 1952 João Gilberto grava seu primeiro disco solo, na gravadora Copacabana, com as
faixas “Quando ela sai”, de Alberto Jesus e Roberto Penteado, e “Meia Luz”, de Hianto de Almeida e
João Luiz, compositores que freqüentavam a Murray.

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A admiração e a marca de Orlando Silva estavam presentes nessas gravações de João
Gilberto. “A emissão descansada da voz, a divisão, os vibratos, o jeito de sublinhar certas palavras, o
‘sentimento’ e, em vários momentos, até a própria voz”, tudo, portanto, segundo Castro (2008: 73),
lembrava Orlando Silva.
O disco que contém “Chega de saudade” e Bim-bom”, considerado o março da Bossa Nova,
foi gravado somente seis anos depois, em 1958.

Referências Bibliográficas

Castro, Ruy. Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
Castro, Ruy. Coleção Folha 50 anos de bossa nova; vol. 2, Dick Farney. Rio de Janeiro:
MEDIAfashion, 2008.
____. Coleção Folha 50 anos de bossa nova; vol. 7, João Donato. Rio de Janeiro: MEDIAfashion,
2008.
____. Coleção Folha 50 anos de bossa nova; vol.8, Johnny Alf. Rio de Janeiro: MEDIAfashion,
2008.
____. Coleção Folha 50 anos de bossa nova; vol. 9 , Lúcio Alves. Rio de Janeiro: MEDIAfashion,
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