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III Conferência Internacional sobre Dinâmicas Sociais em África: rupturas e continuidades

Maputo (Moçambique), 19 a 20 de dezembro de 2014

Causação direta e indireta na língua Citshwa (Grupo Bantu)1

Quesler Fagundes Camargos2 (UFMG)


Indra Marrime Manuel3 (UEM)
Domingas Machavele4 (UEM)

1. Introdução

A língua Citshwa pertence ao Grupo S.51 Tshwa-Ronga (cf. Guthrie 1948). De acordo

com os dados do Censo de 2007, essa língua é falada por 693.386 indivíduos (INE 2010), os

quais habitam as províncias moçambicanas de Inhambane, Manica, Sofala, Gaza e Maputo.

Há ainda alguns indícios de que essa língua ainda é falada nas regiões meridionais da

República do Zimbabwe e da República da África do Sul (cf. Ngunga & Faquir 2011). O

Citshwa divide-se em seis dialetos (cf. Ngunga & Faquir 2011), a saber: Xikhambane,

Xirhonga, Xilhengwe, Ximhandla, Xidzhonge (ou Xidonge) e Cidzivi. Escolhemos como

objeto de pesquisa a variante Cidzivi, por ter sido adotada como variante padrão.

O objetivo deste trabalho é analisar o processo de causativização na língua Citshwa

por meio da causativização lexical, morfológica e analítica. Em termos descritivos,

mostraremos que tanto os verbos intransitivos quanto os transitivos são sujeitos à

causativização morfológica e analítica, as quais são produtivas na língua. Outro objetivo será

investigar a natureza semântica da causação: se ela é direta ou indireta (cf. Whaley 1997).

1
O presente trabalho faz parte do Projeto “Descrição e Documentação de Línguas Moçambicanas”, o qual é
coordenado pelo Prof. Dr. Fábio Bonfim Duarte (UFMG-Brasil) e pelo Prof. Dr. Armindo Ngunga (UEM-
Moçambique). Esse projeto é financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES/Brasil), por meio do Edital n o 33/2012 (Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por
meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional).
2
Quesler Fagundes Camargos é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da
Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). E-mail: queslerc@yahoo.com.br.
3
Indra Marrime Manuel é licenciada em Ensino de Línguas Bantu da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da
Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique). E-mail: marrimemanuel2013@gmail.com.
4
Domingas Machavele é aluna do curso de Licenciatura em Ensino de Línguas Bantu da Faculdade de Letras e
Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique). E-mail: domingasmachavele@gmail.com.

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Maputo (Moçambique), 19 a 20 de dezembro de 2014

Este trabalho está divido quatro seções, incluindo esta introdução. Na seção 2,

apresentamos descritivamente os três tipos de causativização presentes nas línguas naturais:

lexical, morfológica e perifrástica. Na seção 3, descrevemos os processos de causativização na

língua Citshwa. Na seção 4, discutimos a natureza semântica da causação nessa língua. Na

seção 5, por fim, encerramos com as considerações finais.

2. Causativização nas línguas naturais

As línguas naturais, de modo geral, são ricas e diversas com relação aos mecanismos

de mudança de valência verbal (cf. Whaley 1997). Talvez um dos processos de aumento de

valência provavelmente mais comum nas línguas naturais seja a causativização. Este

fenômeno linguístico envolve uma estrutura causativa que corresponde a uma expressão

linguística de causação. É necessário ressaltar que causação, por sua vez, é um conceito

abstrato em que a ocorrência de um evento resulta na realização de um outro evento.

De acordo com Comrie (1981), o processo de causativização é, na verdade, um

epifenômeno que envolve duas microssituações, a saber: a causa e o efeito dessa causa.

Assim, um determinando agente causador deve ser o responsável por desencadear um evento

(=evento da causação) que causa outro evento (=evento causado). Vale notar que não é

sempre claro o modo como um evento pode causar outro evento, uma vez que a conexão entre

eles pode ser, em determinados contextos, intangível.

Tendo em vista que a causação não é concreta, é esperado que haja nas línguas

humanas diferentes estruturas para expressar a causativização. De modo geral, de acordo com

Comrie (1981), as expressões causativas se apresentam, pelo menos, em três formas: lexical,

morfológica e analítica. O autor ainda afirma que todas as línguas apresentam ao menos um

tipo de estrutura causativa. Apesar dessa variação tipológica, todas estas estruturas

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apresentam, em comum, as seguintes características: (i) evento da causação; (ii) evento

causado; (iii) participante causador; (iv) participante causado.

Em uma perspectiva puramente semântica, Whaley (1997) afirma ainda que as línguas

possuem ainda mecanismos para explicitar o nível de controle do participante causador ou do

participante causado, bem como apontar se a causação é direta ou indireta.

Nas próximas subseções, apresentaremos os processos de causativização presentes nas

línguas naturais. Comecemos com a causativização lexical.

2.1 Causativização lexical

Na causativização lexical, conforme Comrie (1981), o predicado não causativo e sua

contraparte causativa não possuem aparentemente nenhuma relação morfológica. É

imprescindível observar que essa relação provavelmente já tenha sido lexicalizada ao longo

da evolução da língua (cf. Lyons 1979). Veja a seguir dois exemplos que ilustram esse

fenômeno no português:

(1a) O porco morreu


(1b) João matou o porco

(2a) Pedro viu o desenho


(2b) Maria mostrou o desenho para Pedro

Além das causativas lexicais heterônimas, conforme os exemplos acima, as línguas

ainda apresentam uma causativização lexical homônima, a saber: quando há ampliação de

valência por meio da causação, sem que haja alteração na forma verbal, conforme os

exemplos abaixo (as causativas homônimas também são chamadas pela literatura linguística

de alternância incoativa-causativa):

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(3a) A porta abriu


(3b) O menino abriu a porta

(4a) O lápis quebrou


(4b) O menino quebrou o lápis

Note que, nos exemplos em (3) e (4), os verbos abrir e quebrar apresentam a mesma

representação fonológica para cobrir a função de verbos intransitivos e transitivos causativos.

Na próxima seção, apresentamos a causativização morfológica.

2.2 Causativização morfológica

Na causativização morfológica, um verbo não causativo sofre aumento de valência por

meio de morfologia causativa. Conforme Comrie (1981), há, pelo menos, duas situações

possíveis. Primeiro, o verbo causativo está relacionado com um predicado não causativo,

conforme os exemplos5 do turco em (5) e (6), retirados de Çetinoğlu et al. (2010: 44):

(5a) kedi uyu-du


gato.NOM dormir-PAST
“O gato dormiu”

(5b) çocuk kedi-yi uyu-t-tu


criança.NOM gato-ACC dormir-CAUS-PAST
“A criança fez o gato dormir”

(6a) köpek kedi-yi kovala-dı


cachorro.NOM gato-ACC perseguir-PAST
“O cachorro perseguiu o gato”

(6b) çocuk köpe-e kedi-yi kovala-t-tı


criança.NOM cachorro-DAT gato-ACC perseguir-CAUS-PAST
“A criança fez o cachorro perseguir o gato”

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Abreviaturas utilizadas neste trabalho: ACC: Caso acusativo; APPL: morfema aplicativo; CAUS: morfema
causativo; DAT: Caso dativo; INF: infinitivo; LOC: sufixo de locativo; MO: marca de objeto; MS: marca de sujeito;
NOM: Caso nominativo; PASS: morfema de passiva; PAST: marca de tempo passado; VF: vogal final.

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Veja que, em (5b), o causativo {-t} dá o significado de causação e transforma o verbo

inacusativo uyu ‘dormir’ no verbo transitivo uyu-t ‘fazer dormir’. Para isso, esse causativo

permite a introdução do novo DP çocuk ‘a criança’ na função sintática de sujeito, enquanto

que o sujeito inicial, a saber: o DP kedi ‘o gato’, passa a exercer a função de objeto.

Paralelamente, em (6), o verbo transitivo kovala ‘perseguir’ também pode receber o morfema

{-t}, cuja função é introduzir o significado de causação e, consequentemente, acrescentar um

terceiro argumento à grade temática do verbo.

A segunda situação, proposta por Comrie (1981), diz respeito ao contexto no qual um

verbo causativo é formado a partir de outro verbo causativo – dupla causativização. De acordo

com Pylkkänen (2002, 2008), apesar de haver certas limitações semânticas, esse processo é

produtivo em japonês, conforme o exemplo abaixo:

(7a) kodomo-ga naki-sugi-ta


criança-NOM chorar-muito-PAST
“A criança chorava muito” (Pylkkänen 2002: 112)

(7b) John-ga kodomo-o nak-asi-ta


John-NOM criança-ACC chorar-CAUS-PAST
“John fez a criança chorar” (Pylkkänen 2002: 110)

(7c) Taroo-ga John-ni kodomo-o nak-as-ase-ta


Taroo-NOM John-DAT criança-ACC chorar-CAUS-CAUS-PAST
“Taro fez o John fazer a criança chorar”

Vemos que, em (7a), figura o verbo inacusativo nak ‘chorar’ que seleciona o DP

sujeito kodomo-ga ‘criança’. Já em (7b), por ter recebido o causativo {-asi}, o novo predicado

passa a projetar dois argumentos nucleares: o DP sujeito John-ga ‘João’ e o DP objeto

kodomo-o ‘a criança’. Esse transitivo causativo pode receber ainda outro morfema causativo

{-ase}, cuja função é introduzir o significado de causação e, assim, acrescentar um terceiro

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argumento à grade temática do verbo. Vemos que, em (7c), o predicado duplamente

causativizado projeta três argumentos nucleares, a saber: o DP Taroo-ga ‘Taro’ na função

sintática de sujeito; o argumento John-ni ‘John’ que recebe a marca de dativo; e, por fim, o

DP kodomo-o ‘a criança’ na função de objeto.

Na próxima seção, apresentamos a causativização perifrástica.

2.3 Causativização perifrástica

Na causativização analítica (i.e. perifrástica), segundo Comrie (1981), não há a

contração do elemento causativo com o verbo da oração não causativa. Dizendo de outra

forma: a estrutura causativa não é realizada por meio de uma oração simples. Assim, o

predicado que expressa a noção de causação e o predicado do efeito dessa causação estão

sintaticamente separados. As orações não causativas em (8a) e (9a) terão, como causativo

analítico correspondente, as construções em (8b) e (9b), respectivamente.

(8a) O menino correu


(8b) Eu fiz o menino correr

(9a) O menino comeu a maçã


(9b) A mãe fez o menino comer a maçã

Na próxima seção, mostramos como a causativizão se realiza na língua Citshwa.

3. Causativização em Citshwa

Nesta seção, nosso objetivo é apresentar descritivamente os processos de

causativização presentes na língua Citshwa. Começaremos com a causativização perifrástica

para depois discutirmos as causativizações morfológicas e lexicais.

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3.3 Causativização perifrástica

Na causativização perifrástica, conforme Comrie (1981), em termos descritivos, não

há a contração do elemento causativo com o verbo da oração não causativa. Assim, a estrutura

causativa não é realizada por meio de uma oração simples. Veja que o predicado que expressa

a noção de causação e o predicado do efeito desta causação estão sintaticamente separados.

Os predicados inacusativo e inergativo em (10a) e (11a) terão como causativo analítico

correspondente as construções em (10b) e (11b), respectivamente.

(10a) mufana a-babza-ile


1.menino MS1-adoecer-PAST
“O menino adoeceu”

(10b) wasati a-mah-ile mufana a-babza-a


1.mulher MS1-fazer-PAST 1.menino MS1-adoecer-VF
“A mulher fez o menino adoecer”

(11a) mufana a-hlamb-ile


1.menino MS1-banhar-PAST
“O menino tomou banho”

(11b) wasati a-mah-ile mufana a-hlamb-a


1.mulher MS1-fazer-PAST 1.menino MS1-banhar-VF
“A mulher fez o menino tomar banho”

Note que, nos dois exemplos acima, os verbos inacusativo e inergativo são

causativizados por meio do verbo kumaha ‘fazer’. O resultado, como pode-se ver, é a

realização de uma causativização analítica, uma vez que o evento causativo e o evento

causado são introduzidos por unidades lexicais distintas. Veja a seguir um exemplo de

causativização de verbos transitivos de ação e psicológico:

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(12a) mufana a-vhul-ile bokisi


1.menino MS1-abrir-PAST 5.mala
“O menino abriu a mala”

(12b) mufana a-mah-ile nhanyana a-vhul-a bokisi


1.menino MS1-fazer-PAST 1.menina MS1-abrir-VF 5.mala
“O menino fez a menina abrir a mala”

(13a) mufana a-rival-ile buku


1.menino MS1-esquecer-PAST 5.livro
“O menino esqueceu o livro”

(13b) wasati a-mah-ile mufana a-rival-a buku


1.mulher MS1-fazer-PAST 1.menino MS1-esquecer-VF 5.livro
“A mulher fez o menino esquecer o livro”

No exemplo acima, os verbos transitivos kuvhula ‘abrir’ e kurivala ‘esquecer’ são

causativizados por meio do verbo kumaha ‘fazer’. Como pode-se notar, o resultado é a

realização de uma causativização analítica, visto que o evento causativo e o evento causado

são introduzidos por unidades lexicais distintas.

Na próxima seção, discutimos a causativização morfológica.

3.2. Causativização morfológica

A causativização morfológica na língua Citshwa é realizada pela extensão verbal {-is},

a qual pode se juntar a verbos inacusativos, inergativos e transitivos. De modo geral, quando

um predicado verbal recebe esse morfema, seu sujeito passa a exercer a função sintática de

objeto, ao passo que um novo argumento é inserido na estrutura argumental com a função

sintática de sujeito. Assim, verbos intransitivos tornam-se transitivos causativos e verbos

transitivos transformam-se em verbos bitransitivos causativos. Veja abaixo exemplos de

causativização de verbos inacusativo e inergativo, respectivamente:

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(14a) cikwa ci-nyamalal-ile


7.faca MS7-desaparecer-PAST
“A faca sumiu”

(14b) wasati a-nyamalal-is-ile cikwa


1.mulher MS1-desaparecer-CAUS-PAST 7.faca
“A mulher sumiu a faca” (lit.: A mulher fez a faca sumir)

(15a) mufana a-hlamb-ile


1.menino MS1-banhar-PAST
“O menino tomou banho”

(15b) wasati a-hlamb-is-ile mufana


1.mulher MS1-banhar-CAUS-PAST 1.menino
“A mulher fez o menino tomar banho”

Note que, nos dois exemplos acima, os verbos inacusativo e inergativo, após

receberem a morfologia causativa {-is}, aumentam sua valência verbal, tornando-se verbos

transitivos. Nesse processo, o sujeito, nos exemplos em (a), passam a exercer a função

sintática de objeto, nos exemplos em (b). Além disso, um novo sujeito é inserido na estrutura

argumental. Em termos semânticos, vale a pena ressaltar que esse novo sujeito exerce a

função de agente, o qual tem a função de desencadear o evento da causação. Observe que é o

evento da causação, por sua vez, o responsável por “causar” o evento causado. Veja a seguir

um exemplo de causativização de verbos transitivos de ação e psicológico:

(16a) nhanyana a-vhul-ile bokisu


1.menina MS1-abrir-PAST 5.mala
“A menina abriu a mala”

(16b) mufana a-vhul-is-ile bokisu nhanyana


menino MS1-abrir-CAUS-PAST 5.mala 1.menina
“O menino fez a menina abrir a mala”

(17a) mufana a-rival-ile buku


1.menino MS1-esquecer-PAST 5.livro
“O menino esqueceu o livro”

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(17b) wasati a-rival-is-ile buku mufana


1.mulher MS1-esquecer-CAUS-PAST 5.livro 1.menino
“A mulher fez o menino esquecer o livro”

No exemplo acima, o verbo transitivo, depois de receber a extensão {-is}, aumenta sua

valência verbal, tornando-se um verbo bitransitivo causativo. Nesse processo, o sujeito passa

a exercer a função sintática de objeto adicional e um novo sujeito é inserido na estrutura

argumental. Semanticamente, esse novo sujeito exerce a função de agente, o qual tem a

função desencadear o evento da causação. O evento da causação, por sua vez, é o responsável

por causar o evento causado.

Na próxima seção, descrevemos a causativização lexical.

3.3 Causativização lexical

Assim como ocorre em português, a língua Citshwa também apresenta causativas

lexicais hererônimas. Note que, nos exemplos abaixo, a forma não causativa não apresenta

nenhuma relação fonológica com sua contraparte causativa. Mais precisamente, a forma

causativa e a forma não causativa são realizadas por itens lexicais distintos:

(18a) huku yi-f-ile


9.galinha MS9-morrer-PAST
“A galinha morreu”

(18b) mufana a-day-ile huku


1.menino MS1-matar-PAST 9.galinha
“O menino matou a galinha”

(19a) nwana a-kas-ile


1.criança MS1-arrastar.se-PAST
“A criança se arrastou” (=A criança engatinhou)

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(19b) wasati a-kok-ile nwana


1.mulher MS1-arrastar-PAST 1.criança
“A mulher arrastou a criança” (=A mulher puxou a criança)

Nos exemplos em (18) e (19), cada par de verbos corresponde à estratégia

morfossintática de causativização lexical, de tipo heterônima. Isso fica evidente, visto que o

predicado não causativo, em (a), e sua contraparte causativa, em (b), não possuem nenhuma

relação morfológica entre si. Não é possível identificar nos exemplos em (b) nenhuma adição

de morfologia causativa.

Além da causativização lexical heterônima, a língua Citshwa também possui uma

causativização lexical que se caracteriza pela mudança fonológica de parte do radical, a qual,

no entanto, não corresponde à adição de uma morfologia causativa específica. Ao passo que a

causativa morfológica produtiva apresenta um morfema invariável, a saber: {-is}, a causativa

lexical não produtiva apresenta uma variedade significativa de formas. Pode-se dizer que

todas as causativas que não são realizadas com o morfema {-is}, exceto as analíticas

(perifrásticas), são na verdade causativas lexicais não produtivas. Vejam os exemplos abaixo:

(20a) nwana a-yambal-ile zvilatu


1.criança MS1-calçar-PAST 8.sapato
“A criança calçou o sapato”

(20b) Maria a-yambex-ile zvilatu nwana


Maria MS1-calçar.CAUS-PAST 8.sapato 1.criança
“Maria calçou os sapatos na criança”

(21a) nwana a-tol-ile mafura


1.criança MS1-untar.se-PAST 5.creme
“A criança untou-se com creme”

(22b) Maria a-tot-ile mafura nwana


Maria MS1-untar-PAST 5.creme 1.criança
“A Maria untou a criança com creme”

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Note nos exemplos acima que o predicado não causativo em (a), após a causativização

em (b), apresenta uma mudança na estrutura fonológica do seu radical. Contudo, diferente do

que ocorre com a causativa morfológica produtiva, essa mudança fonológica parecer ser

idiossincrática. Logo, provavelmente deve ser mapeada no léxico e não na sintaxe.

Na próxima seção, faremos uma análise da natureza semântica da causação nos

contextos de cautativa morfológica produtiva e lexical não produtiva na língua Citshwa.

Nossa intenção é verificar se esses dois tipos de causativização se distinguem em termos

semânticos.

4. A natureza semântica da causação em Citshwa

De acordo com Shibatani (1976), Whaley (1997) e Pylkkänen (2002, 2008), o

processo causativo é compreendido como uma estrutura bieventiva, tendo em vista que

envolve a realização de dois eventos que ocorrem em momentos distintos. Dessa forma, o

evento da causação se realiza em um primeiro momento, ao passo que o evento causado

acontece em um segundo momento. Dizendo de outra forma, no primeiro momento, há um

elemento causador que desencadeia o evento da causação, o qual induz o elemento causado a

realizar, em um segundo momento, uma outra ação ou processo.

Segundo Whaley (1997), a natureza semântica da causação pode ser de dois tipos, a

saber: direta ou indireta. Na causação direta, o causador realiza um evento da causação que

tem impacto direto e imediato sobre o elemento causado. Nesse contexto, o causador

geralmente atua de forma manipulativa e deliberada, ao passo que o elemento causado

necessariamente apresenta propriedades semânticas de afetação. Na causação indireta, o

causador realiza um evento da causação mais distante do evento causado. Logo não tem um

impacto direto e imediato sobre o elemento causado. Nesse contexto, o causador pode atuar

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de forma deliberada mas não manipulativa. Diferente da causação direta, o elemento causado

não apresenta necessariamente propriedades semânticas de afetação. Ele poder ser um agente.

Considerando a natureza semântica da causação, conforme Shibatani (1976), Whaley

(1997) e Pylkkänen (2002, 2008), nossa hipótese é que a língua Citshwa utiliza as causativas

lexicais para codificar a causação direta e usa as causativas morfológicas produtivas para

marcar a causação indireta. Nossa proposta se fundamenta basicamente nos exemplos a

seguir:

(23a) mufana a-hum-ile cikol-eni


1.menino MS1-sair-PAST 7.escola-LOC
“O menino saiu da escola”

(23b) wasati a-humes-ile mufana cikol-eni


1.mulher MS1-sair.CAUS-PAST 1.menino 7.escola-LOC
“A mulher tirou o menino da escola”

(23c) wasati a-hum-is-ile mufana cikol-eni


1.mulher MS1-sair-CAUS-PAST 1.menino 7.escola-LOC
“A mulher fez o menino sair da escola”

Observe que, no exemplo (23a), há o verbo monoeventivo kuhuma ‘sair’, o qual possui

apenas um argumento nuclear, a saber: o DP mufana ‘menino’. Nos exemplos em (23b) e

(23c), o verbo kuhuma ‘sair’ é causativizado, tornando-se uma estrutura bieventiva: com um

evento da causação e um evento causado. Em termos morfológicos e semânticos, note que o

exemplo (23b) ilustra a causativização lexical não produtiva, uma vez que a causativização

não envolve a adição da extensão verbal causativa {-is}. Assim, a natureza semântica do

evento da causação deve ser direta, ou seja, o DP wasati ‘mulher’ exercer um ação que tem

impacto imediato e direto sobre o DP mufana ‘menino’. O exemplo (23c), por sua vez,

corresponde à causativização morfológica e, portanto, a natureza semântica do evento da

causação deve ser indireta. Dessa forma, o evento desencadeado pelo DP wasati ‘mulher’ não

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tem um impacto direto sobre o DP mufana ‘menino’. Veja outro exemplo abaixo que ilustra a

distinção entre causação direta e indireta.

(24a) nwana a-yambal-ile zvilatu


1.criança MS1-calçar-PAST 8.sapato
“A criança calçou o sapato”

(24b) Maria a-yambex-ile zvilatu nwana


Maria MS1-calçar.CAUS-PAST 8.sapato 1.criança
“Maria calçou os sapatos na criança”

(24c) Maria a-yambal-is-ile zvilatu nwana


Maria MS1-calçar-CAUS-PAST 8.sapato 1.criança
“Maria fez a criança calçar os sapatos”

Note que, no exemplo (24a), temos o verbo transitivo kuyambala ‘calçar’, o qual

apresenta dois argumentos nucleares. No exemplo (24b), esse predicado apresenta uma forma

bitransitiva causativa lexical. Logo, sua semântica deve ser de causação direta: a ação

efetuada pelo DP Maria tem um impacto direto e imediato sobre o DP nwana ‘criança’. O

predicado no exemplo (24c), no entanto, por ter sido causativizado pelo morfema {-is},

apresenta uma semântica de causação indireta: a ação efetuada pelo DP Maria não tem um

impacto direto e imediato sobre o DP nwana ‘criança’.

O curioso nos exemplos acima é que o elemento causado, o DP nwana ‘criança’,

recebe distintos papéis temático em cada uma das causativizações. Na causativização lexical

em (24b), esse DP recebe a propriedade semântica de afetado. Na causativização morfológia

em (24c), todavia, esse DP recebe a propriedade semântica de agente, uma vez que exerce a

ação de “calçar o sapato”.

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5. Considerações finais

O objetivo deste trabalho era analisar as construções causativas na língua Citshwa.

Vimos que essa língua apresenta, com base em Comrie (1981), as causativizações lexicais,

morfológicas e analíticas. Nas causativas lexicais, o predicado não causativo e sua contraparte

causativa não apresentam uma correspondência fonológica regular, mas sim idiossincrática.

Nas causativas morfológicas, a língua disponibiliza a extensão verbal {-is}, a qual pode se

juntar a verbos inacusativos, inergativos e transitivos. Nas caustivas analíticas, por fim, a

língua utiliza um verbo causativo pleno, a saber: kumaha ‘fazer’, o qual seleciona como

complemento uma predicação que corresponde ao evento causado.

A partir dos trabalhos de Shibatani (1976), Whaley (1997) e Pylkkänen (2002, 2008),

outro objetivo foi investigar a natureza semântica da causação. O intuito era verificar se o

Citshwa apresentava mecanismos que pudessem distinguir a causação direta da causação

indireta. De modo geral, notamos que a causativa morfológica produtiva é invariante: seu

sufixo causativo será sempre {-is}. Além do mais, essa causativa produtiva está diretamente

associada à causação indireta: quando as ações do causador não apresentam um impacto

direto e imediato sobre o causado. Por sua vez, a causativização lexical não produtiva pode

ser identificada de duas maneiras, a saber: (i) em termos morfológicos, ela é frequentemente

distinta das causativas produtivas e (ii) está associada à causação direta.

Bibliografia

Çetinoğlu, Ö. & Butt, M. & Oflazer, K. (2010). “Mono/bi-clausality of Turkish Causatives”.


In AY, S. et al. Essays on Turkish Linguistics. Antalya: David Brown Book Co. Pp. 43-52.

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