Você está na página 1de 63

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


CURSO DE HISTÓRIA – LICENCIATURA PLENA E BACHARELADO

ESTUDANTES NA ARENA:
O TEATRO UNIVERSITÁRIO DE SANTA MARIA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE GRADUAÇÃO

Karina Maia Dick

Santa Maria, RS, Brasil


2011
ESTUDANTES NA ARENA:
O TEATRO UNIVERSITÁRIO DE SANTA MARIA

Monografia apresentada ao Curso de História – Licenciatura Plena e


Bacharelado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como requisito
parcial para obtenção do grau de
Licenciado e Bacharel em História.

Karina Maia Dick

Orientadora: Prof. Dr. Diorge Alceno Konrad

Santa Maria, RS, Brasil


2011
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Curso de História – Licenciatura Plena e Bacharelado

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,


aprova o Trabalho de Conclusão de Graduação

ESTUDANTES NA ARENA:
O TEATRO UNIVERSITÁRIO DE SANTA MARIA

elaborada por
Karina Maia Dick

como requisito parcial para obtenção do grau de


Licenciado e Bacharel em História

COMISSÃO EXAMINADORA:

Diorge Alceno Konrad, Dr. (Orientador - UFSM)

Roselâine Casanova Corrêa Ms. (Membro - UNIFRA)

Neida Regina Ceccim Morales, Ms. (Membro - UFSM)

Vitor Otávio Fernandes Biasoli, Dr. (Suplente - UFSM)

Santa Maria, 21 de março de 2011


AGRADECIMENTOS

Este trabalho pôde ser desenvolvido por que em certo momento alguns jovens
entusiasmados decidiram dedicar-se a arte. A eles que agradeço primeiramente. Alguns deles
tiveram importância direta nessa pesquisa, pois foram atuantes desse processo: Pedro Freire
Jr., Luiz Carlos Grassi, Clênio Faccin, João Luiz Beck e o grupo integrante do Teatro
Universitário Independente que muito contribuiu com seu acervo documental. À minha
pequena grande família Marlene (mãe) e Daniel (irmão), agradeço a paciência e compreensão.
Aos amigos devo o incentivo das horas mais complicadas. Ana e Elpídia, sempre mandando
vibrações positivas de Uruguaiana; Bianca, Morgana, Letícia e Denise, as colegas de
faculdade que se tornaram verdadeiras amigas. Roberto, sempre disposto a ajudar com livros,
ideias e preocupado com minha gramática. Ao Curso de História agradeço a oportunidade de
encontrar meios de realizar uma prática social e por ter me permitido o embasamento teórico
necessário para investigar esse trecho da História de Santa Maria.
Outras pessoas importantes que muito escutaram em conversas descontraídas minha
excitação para com o tema são os amigos Rodrigo, Bruno e Evelim, e os colegas da CIA
Retalhos de Teatro (Jeferson, Helquer, Cauã) cujas palavras e apoio sempre foram bem
vindos. São tantas pessoas que compõem de forma significativa a atmosfera na qual foi feito
esse trabalho que se torna difícil descrever.
Agradeço ao professor e também orientador Diorge, pela paciência que teve nas
várias vezes em que me explicou a diferença entre “objetivo” e “justificativa”, o que de fato
ainda não está clara.
Por último, é preciso agradecer em memória ao meu pai, Sidnei, que despertou em
mim na infância o gosto pela leitura, pelas histórias, pela História.
RESUMO

Trabalho de Conclusão de Graduação


Centro de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Federal de Santa Maria

ESTUDANTES NA ARENA:
O TEATRO UNIVERSITÁRIO DE SANTA MARIA

Autora: Karina Maia Dick


Orientador: Diorge Alceno Konrad
Data e local da defesa: Santa Maria, 21 de março de 2011

Este trabalho procurou investigar de que forma ocorreu em Santa Maria/RS, na década de
1960, um fenômeno cultural que se disseminava pelo País: os teatros de estudantes. A
experiência, nesta cidade, foi ligada ao movimento estudantil que criou o Teatro Universitário
de Santa Maria (TUSM), a partir da Federação dos Estudantes de Santa Maria. Ao mesmo
tempo, buscamos entender com o grupo teatral se relacionava com a conjuntura política
anterior e posterior ao Golpe de 1964 no Brasil. Ao atravessar um momento de construção
democrática, a exigência de que os indivíduos se posicionassem diante de suas escolhas, fez
surgir com força uma prática declarada de arte como instrumento de transformações sociais.
Costumeiramente essa postura artística é chamada de “Engajamento”. Propomos verificar na
experiência do TUSM de que forma esses elementos se manifestavam em suas práticas.

Palavras-Chaves: Teatro Universitário; Engajamento; Movimento Estudantil; Santa Maria.


ABSTRACT

Work of Conclusion of Graduation


Centro de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Federal de Santa Maria

STUDENTS IN SCENE: THE UNIVERSITY THEATER OF SANTA


MARIA

Author: Karina Maia Dick


Adviser: Diorge Alnceno Konrad
Date and place of the defense: Santa Maria, 21 of March of 2011

This work looks for to investigate of that it forms occurred in Santa Maria/RS, in the decade
of 1960, a cultural phenomenon that if spread for the Country: the theaters of students. The
experience, in this city, was on to the movement of students that created the University
Theater of Santa Maria (TUSM), from the Federacy of the Students of Santa Maria. At the
same time, we search to understand with the teatral group if previous politics related
subsequent to with the conjuncture and the Coup d etat of 1964 in the Brazil. When crossing a
moment of democratic construction, the requirement of that the individuals of located ahead
of its choices, it made to appear with declared practical force one of art as instrument of social
transformations. Usually, this artistic position is called “Enrollment”. Thus, we consider
verifying in the experience of the TUSM of that it forms these elements if they revealed in its
practical.

Word-Keys: University Theater; Enrollment; Movement of Students; Santa Maria.


LISTA DE ANEXOS

ANEXO A- Reportagens sobre inauguração da Sala João Belém ........................................ 53

ANEXO B - Reportagem sobre a estreia do espetáculo Eles não usam black tie.................. 54

ANEXO C - Reportagem sobre a estreia do espetáculo À margem da vida ......................... 55

ANEXO D - Reportagem sobre Reformas de Base.............................................................. 56

ANEXO E - Reportagem sobre a adesão à greve dos universitários .................................... 57

ANEXO F - Reportagem sobre a posse do Presidente da FEUSM....................................... 58

ANEXO G – Ofício com data da criação do TUSM ............................................................ 59

ANEXO H – Portfólio do I Festival Latinoamericano de Teatro Universitário .................... 60

ANEXO I – Primeira parte do relatório sobre o Festival ..................................................... 61

ANEXO J – Segunda parte do relatório sobre o Festival ..................................................... 62

ANEXO K – Ofício ............................................................................................................ 63


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9
1. CONJUNTURA BRASILEIRA DOS ANOS 1960 E O FATÍDICO GOLPE ............... 15
1.1 O Teatro Brasileiro Revolucionando-se ...................................................................... 22
1.2 Uma Nova Estrutura Cênica: a Arena ........................................................................ 24
1.3 A Arte como Instrumento Para a Revolução: o CPC da UNE ................................... 29
2. A CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO ESTUDANTIL E O TEATRO
UNIVERSITÁRIO DE SANTA MARIA ................................................................................ 33
2.1 O Teatro do Estudante: uma Arena de Ideias............................................................. 35
2.2. O Teatro Universitário de Santa Maria: as Duas Facetas de um Movimento Cultural
............................................................................................................................................ 36
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................... 49
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 50
ANEXOS ....................................................................................................................................... 52
9

INTRODUÇÃO

O que move a historiografia se não a investigação do historiador acerca das lacunas


historiográficas, ou mesmo a insatisfação de perceber que um objeto fora tratado sob uma
perspectiva que lhe fora insatisfatória, pelo seu ponto de vista. Compreendemos que a História
segue tendências, que não há neutralidade. Dessa maneira, o fazer histórico é uma trajetória
ininterrupta e estará, deveras, condicionada ao gosto, melhor dizendo, subordinada a
curiosidade do historiador e sua subjetividade.
Entendendo História como uma ciência social, podemos dizer que a investigação
histórica é um meio para uma prática social. Essa prática será parte de um discurso que
reconstrói um período ou fenômeno, mas que jamais o esgota. Além da escolha do tema, a
forma de abordá-lo o torna único. Neste trabalho, temos a responsabilidade de relacionar
Teatro e História, mais especificamente, como essa arte se relacionou com a política de certo
momento histórico. Antes de entrarmos especificamente nas características da constituição
dessa monografia, iremos colocar nossa postura diante desse assunto tão controverso, a
relação do Teatro com a História.
O Teatro é por natureza uma arte social. O fenômeno teatral só pode ser concebido
diante do público no estabelecimento de um diálogo entre os atores e a plateia, no qual há
uma troca de experiências, emoções que ocasionam as mais diversas reações. A História é da
mesma maneira feita desse material, o material humano. O mote do historiador é um anseio,
um problema que surge de uma demanda do presente, que não será dele somente, mas estará
representada por ele. Essa particularidade prova que, mesmo que recortemos em política,
econômica ou cultural, a História é antes de tudo social.
O Teatro está para a História como um reflexo das condições objetivas manifestadas
a partir das relações infra-estruturais, interpretadas de forma subjetiva. Nesse aspecto, ele não
difere de qualquer outra forma de arte. O que o torna peculiar é que “a sua existência depende,
mais do que a de outras artes, de agrupamentos ou sociedades de indivíduos” (BENTLEY,
1969, p. 119). O autor ainda argumenta sobre o grau de sociabilidade, que no caso do teatro é
maior do que em outras artes, pelo fato de que um espetáculo é fruto do trabalho conjunto de
muitas pessoas e mostrado para outras em número maior. Ao passar por essa experiência,
juntos, elas têm sua dimensão individual comprometida e tornam-se uma multidão.
O Teatro, portanto, é um fenômeno social determinado pela sociedade. Seu princípio
máximo e básico é que toda a ação gera uma reação, não apenas entre os atores, mas atinge
10

público e atores. Devido ao seu alcance social, ele adquire uma importância relevante como
expressão artística.
Há muitas formas diferentes de tratar a relação Teatro e História: História do Teatro:
trajetória do mesmo; Teatro na História: Teatro como fonte histórica; História no Teatro:
Teatro como intérprete do passado ou como formador de discurso ideológico. No caso deste
trabalho, a apreciação do tema se aproxima deste último aspecto, compreendendo o Teatro
como um campo no qual se manifesta uma postura ideológica, ou melhor, a dimensão política
e engajada que o Teatro possui.
Quando falamos engajamento, logo nos vêm a associação direta com formas de
contestação do status quo. Porém, essa é uma forma ingênua de encarar o assunto,
“‘Engajamento’ é uma dessas palavras, assim como “violência” ou “nação”, que escondem
uma variedade de significados sob uma superfície aparentemente simples e homogênea”
(HOBSBAWM, 1998, p. 148). Porém encaramos o engajamento de forma diferente na
História e no Teatro. Sem o compromisso de ser científico, o Teatro tem suas manifestações
ideológicas de forma despreocupada com a verdade. Nas ciências sociais não se pode inventar
ou negar um fato que em si mesmo é neutro, mas a sua interpretação condicionada pelo olhar
do cientista será composta de juízos de valor e comportará implicações ideológicas e políticas.
Desta forma, temos como consenso de que não existe uma ciência puramente isenta
de subjetividade. A própria tentativa de evidenciar uma hipótese terá implicações ideológicas
seja política, religiosa ou de outra natureza. O principio da investigação estará diretamente
ligado ao vínculo social que o cientista ou mesmo o artista possui. Mesmo partindo de um
indivíduo, o seu critério terá relevância para um determinado grupo social, no qual ele está
inserido, cuja estrutura e suas relações geram como demanda a necessidade investigativa.
Em um aspecto específico, o engajamento tem correspondência tanto nas ciências
sócias e na arte. No seu comprometimento, ser engajado implicará sempre um adversário,
como bem define Hobsbawm (1998, p. 139), a “ciência ‘certa’ contra a ciência ‘errada’ – da
história das mulheres em oposição à história masculina chauvinista, da ciência proletária em
oposição a ciência burguesa”.
Bentley (1969, p. 106) chama de propaganda e problematiza a questão dizendo que
toda a arte é propaganda, a arte é uma arma. Adverte que propaganda, ou melhor, “teatro de
propaganda” é uma expressão que possui ambiguidades e é repleto de paradoxos. Podendo
significar coisas diferentes, um conceito polissêmico. No sentido tradicional, é subentendida
como um esforço para mudar a História, podendo ser o mote de uma transformação social
concreta, uma revolução.
11

Por outro lado, pode ser uma defesa do status quo. Uma obra não precisa exaltar a
ordem estabelecida para que se seu conteúdo esteja de acordo com tal. Ainda o autor nos dá as
características de como a arte passou a ser encarada nos anos 1960, afirmando que “esse
período viu surgir não apenas a doutrina do Engajamento, mas também a teoria que se coloca
no polo oposto, e cujo nome original não era Alienação, mas Esteticismo, ou Arte pela Arte”.
Dentro de uma dramaturgia, o posicionamento do ator pode não estar claro, mas sua postura
estará refletida no esteticismo empregado. Declarar-se engajado pode dar a falsa ideia de que
outros não o são:

Os autores não-engajados gostam de afirmar que, ao aderir a uma causa política,


qualquer pessoa se torna cúmplice dos crimes e erros de seus líderes e
correligionários. Os autores engajados respondem que os não-engajados são
cúmplices dos crimes e erros de todos e quaisquer líderes que eles se limitaram a dar
o seu consentimento. O fato de estar no mundo acarreta um vínculo de cumplicidade
(BENTLEY, 1969, p. 138).

Bentley vai mais longe ao afirmar que a chamada Arte pela Arte serve na verdade
como uma fachada que sustenta um motivo não aparente. A retomada aos clássicos, por
exemplo, no caso dos alemães, durante a fase nazista, “atraia fortemente o alemão culto e
tradicional, que almeja uma arte que seja nobre, arcaica e tranquilizadora” (1969, p. 136).
Esses são os aspectos de ligação entre Teatro e política, consequentemente entre Teatro e
História.
A maneira dessa postura ter correspondência para a vida das sociedades estará
diretamente relacionada a como as pessoas se relacionam com o Teatro. A correspondência
histórica ao nascimento de uma dramaturgia épica, como a de Brecht 1, é um período no qual o
pensamento coletivista se espalhava ligeiramente através do socialismo. Mais a frente, na
década de 1960, o mundo atravessava um período de transição de uma cultura aristocrática
para uma cultura que seria, em certo sentido, democrática (BENTLEY, 1969, p. 118). Porém,
não fora suficiente para que uma nova postura diante da arte exercesse uma transformação
concreta.
Compreendemos que a dimensão social que o Teatro carrega, mesmo aquele que se
pretende e se declara engajado, encontra limites. A paulatina democratização era barrada, e
hoje ainda o é, pelas condições materiais objetivas de certa camada social. Ou seja, uma

1
Teatro Épico é um conceito polissêmico. Embora seus elementos existissem na orientação dos clássicos gregos,
foi Bertolt Brecht que ressignificou o termo para uma orientação artística diversa. Utilizando linguagem e
abordagem inovadoras, como os conflitos sociais, sua função é criar um distanciamento do drama dos
personagens para aproximar da conjuntura que o cerca. Esses elementos são a comunicação entre o público e os
atores, a música como comentário da ação e a ruptura de tempo e espaço.
12

manifestação teatral que se dedique a criticar o capitalismo, tendo como principal premissa a
luta de classes, alcançaria o público ao qual a mensagem se remete? Não podemos afirmar o
contrário, porém reconhecemos a limitação da proposta.
Dessa forma, entendemos que não se pode verdadeiramente atribuir uma
responsabilidade para a arte cuja ação não é objetiva, mas no inconsciente do espectador.
Entretanto, não podemos negar que o Teatro estará, assim como a História, engajado nos
princípios elencados como importantes pelo autor, independente desses princípios serem
explícitos ou não.
Este trabalho dedica-se a buscar na experiência teatral estudantil da cidade de Santa
Maria, no período de 1961 a 1968, com correspondente fenômeno ocorrido em outros pontos
do Brasil. Esse período também corresponde a uma turbulenta fase de transformações sociais
e políticas. Fase essa que podemos chamar de democratizante pelo alcance que vinham tento
os movimentos sociais com suas lutas e conquistas. Sensíveis a esses aspectos, muitos jovens
estudantes empenharam-se na construção de uma dramaturgia que mostrasse um meio de
trazer essas lutas como face de um Brasil que não tinha tido espaço até o momento nos palcos.
Outro aspecto condicionante para o momento era o crescente nacionalismo que
pretendia uma desvinculação da ordem internacional hegemônica. A construção de um teatro
crítico e didático fez-se como busca de uma arte popular que fosse um espelho da realidade.
Para tanto, foi preciso uma nova estrutura que tornasse a cena mais democrática. A proposta
que se difundiu para esse evento, fora o teatro de arena, como num circo, no qual os
espectadores vêem a cena de vários ângulos, sem uma visão privilegiada apenas para alguns.
Lado a lado com movimentos políticos estudantis e ou partidários, que deveras podem
confundir-se, os grupos trazidos para compreensão desse fenômeno, em âmbito nacional, são
o Teatro de Arena, de São Paulo, e o movimento artístico dos Centros Populares de Cultura
(CPCs), vinculados a União Nacional dos Estudantes (UNE), com diversas formações
espalhadas pelo País.
Logo, passamos a buscar compreender como ocorreu esse processo em Santa Maria,
buscando problematizar de que forma era atribuída relevância política a essa prática. Outro
questionamento proposto é a respeito da ligação do movimento estudantil, que se articulou a
partir da fundação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com a criação do Teatro
Universitário de Santa Maria (TUSM). Interessa saber também: qual seu alcance no meio
acadêmico? como era relacionado com o contexto político do mesmo período? o que pode ter
levado a sua extinção em 1968? Esses são os questionamentos que moveram a presente
pesquisa.
13

Para realizar esse trabalho, dispomos de fontes de naturezas diversas: relato oral,
jornais, ofícios, documentário e bibliografia sobre o tema. Enquadrando-se no âmbito da
História do Presente, tivemos a oportunidade de usar como fonte a História Oral. A utilização
de fontes orais exige uma apreciação crítica especifica por sua particularidade. Tratando do
campo da memória, o relato oral passa por filtros do tempo, sendo que, o que ficou na
memória pode ser uma construção de um período a partir das impressões diretas do
entrevistado. Entrar em contato com essas impressões traz evidências à História que outras
fontes documentais não possuem. Temos aqui o relato oral como testemunha direta do
passado. Entendemos que o historiador é o interprete que dará uma lógica coerente,
relacionando o relato com o contexto histórico dando a ele caráter científico.
Na busca dessas fontes, encontramos através de um dos entrevistados, um filme
documentário sobre a vida artística de Pedro Freire Jr. com direção de Luiz Carlos Grassi. O
documentário, com título de Freire Jr. tem aproximadamente 27 minutos e conta a vida e obra
desse artista:

A homenagem é resultado de um trabalho individual do diretor e conta ainda com


vídeos e fotos cedidos por pessoas que conviveram com Freire. “É um trabalho que
abrange todas as atividades do Freire: teatro, cinema, como secretário municipal,
funcionário da Câmara e como incentivador da cultura santa-mariense”, disse Grassi
(Jornal “A Razão”, 28 de janeiro de 2009, p. 2).

Entendemos que a trajetória de vida de uma pessoa não caberia em um filme de 27


minutos, portanto restou ao diretor escolher os registros documentais a esse respeito que se
encaixem na construção de uma relativa representação dos acontecimentos que considera
importante. Estamos, desta forma, dizendo que o olhar do diretor é a fonte documental quando
utilizamos como fonte o documentário. Este traz para compor seu discurso o relato de outras
pessoas que passaram por uma experiência semelhante. Estes relatos foram editados com a
finalidade de obter uma lógica coerente na construção da trajetória de vida de Freire Jr.
Portanto, é a sua percepção, a do diretor, que terá de ser analisada e criticada por um método
específico que não será o mesmo para os registros históricos de outra natureza como os
escritos.
Foi através do arquivo pessoal de Luiz Carlos Grassi que tivemos a oportunidade de
obter jornais com informações sobre o período de formação do Teatro Universitário de 1958 a
1962. Já os documentos do período posterior (1964/68) foram encontrados no acervo do
Teatro Universitário Independente (TUI), localizado na Rua Duque de Caxias, 380, em Santa
Maria - RS.
14

Para dar conta desta problemática, no primeiro capítulo, foi apresentada uma síntese
da conjuntura brasileira dos anos 1960, relacionando-a com parte do teatro brasileiro e a busca
da revolução, especialmente através do CPC da UNE.
Já no segundo capítulo buscou-se relacionar a construção do movimento estudantil
em sua relação com o teatro universitário em Santa Maria, passando a interpretação acerca do
processo que levou a desvinculação do Teatro Universitário de Santa Maria da Universidade
Federal de Santa Maria, tentando compreender como a nova estrutura de poder, a Ditadura
Civil-Militar, interferiu neste processo.
15

1. CONJUNTURA BRASILEIRA DOS ANOS 1960 E O FATÍDICO


GOLPE

Na década de 1960, o Brasil passava por um momento de transformação. A novidade


política, a democracia2, permitia meios de atuação, além de exigir uma postura dos cidadãos
diante de suas próprias escolhas. Estas podiam ser através de partidos políticos e movimentos
sociais. Através de muitas lutas, os Movimentos Sociais conquistavam demandas, através de
suas reivindicações. A mobilização de alguns setores sociais por melhores condições de
trabalho e acesso a meios básicos de sobrevivência era diretamente oposta a outro setor social,
o qual via nessas reivindicações a eminente perda da “liberdade” de consumo e de sua
propriedade. Eram anos de instabilidade política, de negociações, da Campanha da
Legalidade. O País vivia sob a ameaça de um eminente golpe político desde 1945, quando se
deu o fim do Estado Novo. Os governos que vieram logo a seguir conviveram com um
constante e

amplo debate político e ideológico que se processava em órgãos governamentais,


partidos políticos, associações de classe, entidades culturais, revistas especializadas
(ou não), jornais etc. Assim, nos anos 60, conservadores, liberais, nacionalistas,
socialistas e comunistas formulavam publicamente suas propostas para defender
seus projetos sociais e econômicos. 3

Com Jânio Quadros, as aspirações de extinguir a oposição ao governo eram


latentes, sendo que este cogitava o fechamento do Congresso. Não tendo apoio popular,
terminou por renunciar a Presidência com sete meses de mandato. Pela Constituição de 1946,
assumiria, portanto, o vice-presidente, João Goulart de uma coligação composta pelo Partido
Social-Democrático (PSD) e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Partidários de Jânio,
ministros militares, ameaçaram um golpe com a pretensão de impedir a posse do Vice-
Presidente.
Rapidamente, iniciou-se um movimento de resistência ao golpe, conhecida como
Campanha da Legalidade, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de
Moura Brizola, no sentido de garantir a posse de João Goulart. Para tal, foram feitos grandes
esforços, com a utilização, como arma, a retórica de Brizola, no mais popular veículo de

2
Conceito que discutiremos mais a frente.
3
Cf. TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o Golpe contra as reformas e a democracia. In. REIS FILHO, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar. 40 anos depois
(1964-2004). Bauru: Ed. da USC, 2004, p. 69.
16

comunicação desse período, o rádio. Brizola conseguiu apoio da unidade militar sediada no
Sul, além da UNE. Sobre a participação dessa entidade, temos o relato do então Presidente,
Aldo Arantes, sobre a participação do movimento estudantil

pela primeira vez na História do Brasil o Presidente da República foi à sede da UNE.
Foi um momento altamente significativo, porque a irreverência que tem hoje os
estudantes também se expressava naquele momento. Lembro-me que eu, um garoto
de 23 anos, subi na mesa da UNE para falar ao Presidente da República e todo o seu
Ministério – Tancredo Neves era primeiro-ministro do Jango. Estavam lá os
ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Diante de todo o Ministério, eu
cobrava do Presidente da República os compromissos dele com o povo brasileiro.
Lembro-me que o Ministro do Exército cochichou para a pessoa do programa A Voz
do Brasil que estava controlando o microfone, pois eu estava falando em rede
nacional, que me dissesse para terminar. Eu vi e denunciei ao vivo: “Querem
impedir que o Presidente da UNE, dentro da sede da UNE, fale livremente.” O fato é
que, naquele momento, a massa se mobilizou e eles tiveram, enfim que abrir mão
daquela tentativa de cerceamento.4

A posse foi negociada com o Congresso Nacional, diante de uma emenda


parlamentar que limitava o Poder Executivo. O governo de João Goulart iniciava com grandes
expectativas entre trabalhadores, camponeses, movimentos sociais e estudantes. Esses setores
percebiam que a derrota do golpe era a prova de sua força política.5
Assim, perpetraram uma intensa luta por demandas, fazendo greves, manifestações,
ocupações. Buscavam as Reformas de Base, vendo nelas as soluções reformistas de demandas
históricas das classes populares. Seus cânones eram as reformas agrária, urbana, bancária,
financeira, universitária, educacional. Esses movimentos percebiam que o lucro do surto
desenvolvimentista dos anos 1950 não fora distribuído, ficando restrito aos setores
capitalistas, aumentando a concentração de renda. A reforma de políticas públicas decorria da
necessidade de controlar os capitais estrangeiros, muitas vezes responsáveis pela péssima
distribuição de renda, acarretando um sentimento nacionalista, antiimperialista e estatista. A
busca por melhores condições de trabalho foi latente nos anos de 1961 a 1963. Ocorreram 430
paralisações e mesmo diferentes organizações sindicais foram criadas em nível nacional e
regional.
O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) teve grande atuação junto a essas novas
organizações, apesar da proibição da legislação sindical, era uma busca por melhores
condições de trabalho e ampliação da cidadania dos trabalhadores urbanos e rurais. Entre

4
BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma História de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994, p. 28.
5
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In. REIS FILHO, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar. 40 anos depois
(1964-2004), Bauru: EDUSC, 2004, p. 34.
17

outras reivindicações estava o direito de voto aos analfabetos, direito a cargos eletivos dos
setores subalternos das forças armadas e a legalidade dos partidos comunistas, restrita desde
1947.
Afrontavam, dessa maneira, os setores de direita, pautados por uma tradição política
autoritária e de privilégios representados pela União Democrática Nacional (UDN), membros
radicais de direita do PSD, do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Estes setores logo rearticularam forças a fim de
organizar oposição às reformas e a conquistas das bases populares. Em 1962, os
conservadores elegeram representantes em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, além de
lugares na Câmara e no Senado Federal, alargando sua área de influência política. 6
O governo de João Goulart tinha amplo apoio da CGT, pois suas iniciativas políticas
convergiam com a ideologia nacional-desenvolvimentista presente na central de
trabalhadores. No entanto, Goulart tinha preferência por lideranças e organizações sindicais
independentes de ideologias partidárias que lhe permitiam maior autonomia, enquanto tendia
a controlar as lideranças sindicais autônomas como as do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), que agia dentro da clandestinidade, e do PTB. No campo, as Ligas Camponesas
aprofundaram as lutas e resistências de setores agrícolas, de pequenos proprietários e não-
proprietários em busca de distribuição de terras pela Reforma Agrária, carro-chefe das
reformas de base pronunciadas por Goulart. Enquanto esses grupos se politizavam, os
latifundiários percebiam a necessidade da reforma agrária dentro da perspectiva nacional-
desenvolvimentista, ou seja, seria essencial para manutenção do crescente capitalismo
industrial e para a ampliação do mercado interno de bens manufaturados, além de diminuir os
conflitos rurais, marcados por confrontos armados. 7
O momento ainda contava com elementos de tensão externa como a Revolução
Cubana e a Guerra Fria entre Estados Unidos e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS). No Pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos conquistaram liderança
hegemônica no Ocidente, esvaziando o poderio Europeu e do Japão dos centros decisórios.
Ao mesmo tempo, avançava o socialismo sobre o Leste da Europa, além dos movimentos de
libertação nacional que se intensificaram com o final da Guerra. Polarizaram-se
declaradamente as potências econômicas mundiais entre capitalistas e socialistas, num
movimento que se intitulou Guerra Fria (LOPES, 1989, p. 181).

6
Ibidem, p. 37.
7
Ibidem, p. 73.
18

Para assegurar seus mercados consumidores, os Estados Unidos mudaram sua tática
intervencionista no Ocidente, principalmente na América Latina (Idem, p. 181). O combate ao
comunismo 8 deixava de ser uma questão interna, tornando-se um problema externo que
segundo julgavam, tinham compromisso em combater a fim de defender o “mundo livre” da
ameaça do Leste. Forjando uma ideologia anticomunista, ao mesmo tempo avançavam com o
capitalismo monopolista sobre outros países. Qualquer manifestação contraria a essa ideologia
era vista como ameaça.
Para a defesa do “mundo livre”, foram criados, em 1946, no Panamá, centros de
treinamento militar pelos Estados Unidos. Era a Escola das Américas, lugar, na qual militares
de todos os países latino-americanos aprendiam a doutrina da ideologia anticomunista e
formas de repressão (Idem, p. 182).9 Dentro dessa instituição, foram treinados muitos dos
militares que mais tarde deram início aos golpes de Estado em países como o Brasil. Dessa
maneira, os Estados Unidos e suas forças armadas ficariam encarregados de assegurar a
defesa externa da América Latina, enquanto os exércitos continentais fariam a manutenção da
ordem interna. A defesa, no entanto, não era somente contra os países socialistas, mas para
assegurar seus interesses comerciais, verdadeiros monopólios de exploração em países latinos,
como a United Fruit, por exemplo.
Com o mundo polarizado, aparecia o conceito de Terceiro Mundo, definindo aqueles
que estariam se posicionando como um elemento de conciliação entre as duas hegemonias. 10
Juntando-se a isso, em uma pequena ilha caribenha ocorreu uma Revolução, em janeiro de
1959, no qual o governo aliado aos Estados Unidos foi deposto pela força armada de civis
camponeses. Três anos depois, os revoltosos encaminharam a revolução para um caráter
socialista, expulsando os capitalistas americanos e estatizando todas as multinacionais e
empresas estrangeiras. Havana trouxe esperança para as esquerdas latinas, vislumbrando uma
meta de chegar ao socialismo em guerrilhas teorizadas e postas em prática por Ernesto “Che”
Guevara. Portanto, a pequena ilha tornara-se, deste então, uma pedra no sapato capitalista,
sofrendo um bloqueio comercial imposto pelo vizinho do norte, em 1962. A justificativa para
tal bloqueio foi a alegação, por parte dos Estados Unidos, da instalação de mísseis soviéticos
em Cuba, fato que concretizava a polarização em torno das duas ideologias. O Brasil, dentro

8
A palavra comunista ou comunismo era usada sem rigor teórico para definir qualquer medida que fosse contra
as iniciativas liberais. De forma pejorativa, governos eram acusados de serem comunistas mesmo que suas
características fossem de outra ordem. Dentro dessa perspectiva, o governo de Jango fora colocado dentro dessa
mesma pejorativa.
9
LOPES, Luiz Roberto. História da America Latina. 2 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, p. 181.
10
Ibidem, p. 182.
19

dessa conjuntura, ocupou o primeiro lugar entre os países latino-americanos que se aliançaram
com o capital internacional, dando o pontapé inicial contra os avanços democráticos.
A Igreja Católica entendia que os movimentos populares eram comunistas e ateus,
na sua concepção, e contra a propriedade privada, acusando o Presidente de ser partidário de
uma revolução que expurgaria as liberdades democráticas.
Os altos comandos das forças armadas perdiam controle sobre seus subordinados,
tendo havido insurreição dos sargentos de Brasília, em setembro de 1963, e no Rio de Janeiro
com insubordinação da Associação dos Marinheiros, em 1964.
Milhões de pessoas ligadas a setores de diversas naturezas contrários a João Goulart
expressavam suas opiniões em comícios e nas Marchas da Família com Deus e pela
Liberdade. Pediam uma atitude militar que estancasse os avanços e conquistas dos direitos
sociais e ampliação das liberdades políticas dos trabalhadores e demais setores populares.
Deu-se o Golpe Civil-Militar. Os militares contaram com apoio de civis conservadores e
liberais capitalistas, membros da UDN, IPES, IBAD, ou seja, o Golpe foi arquitetado pelas
classes dominantes através de suas forças políticas perpetuadas através dessas entidades
citadas. Tendo a benção da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), em março de
1964.11
Dentro desse contexto, no Rio Grande do Sul, estado marcado pela liderança
trabalhista de Leonel Brizola, a cidade de Santa Maria, na qual é ambientado este trabalho,
estava dividida entre apoio e resistência ao Golpe. De um lado, as greves do setor ferroviário,
cuja relevância era estrutural, pois nesta cidade localizava-se o principal centro ferroviário do
estado. No “campo” da resistência, porém não articulados entre si, estavam trabalhadores,
intelectuais e estudantes agindo de forma isola, pouco dialogavam e raras vezes acordavam.
Portanto, não havendo unidade entre as categorias não foi possível organizar e politizar a
resistência. Sendo esta fraca e desordenada diante dos golpistas.
Enquanto nos quartéis, o alto contingente militar de caráter conservador, organizava-
se, tornando-se ponto nevrálgico para os golpistas. Foi por ordem do Comando da terceira
Divisão de Exército e do general Mário Pope de Figueiredo que, em 1º de abril, Santa Maria
sofreu a vitória da articulação contrária ao governo da República. 12

11
Ibidem, p. 38.
12
As referências abaixo podem ser vistas em: KONRAD, Diorge Alceno. Seqüelas de Santa Maria: Memórias
do apoio e da resistência ao Golpe de 1964. In. PADRÓS, Enrique Serra (org.). As ditaduras de segurança
nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura/CORAG, 2006.
20

Em nome da “democracia” estavam proibidas manifestações e incitações contrárias


aos novos donos do poder, inclusive reuniões em vias públicas, com mais de cinco pessoas,
sendo vistas como ameaça.
Os golpistas trataram de assegurar o seu feito através do Ato Institucional nº 1.
Caracterizou-se uma Ditadura, pois o AI-1 permitia ao Executivo o direito de cassar mandatos
e limitar direitos políticos em até 10 anos para os que discordassem de suas medidas. Além
disso, poderiam agir sem consentimento parlamentar no caso de decretar Estado de sítio,
enquanto assumia a Presidência da República o general Humberto de Alencar Castelo Branco,
o qual ficaria no cargo até 1965, quando fora marcada próxima eleição.
Podemos perceber duas formas distintas de entender democracia, uma que se fazia
através de um processo de lutas e conquistas de direitos civis. A crescente politização dos
setores populares em movimentos sociais ou partidos políticos davam vazão a diálogos que
contestavam a tradição paternalista, autoritária, além das questões econômico-sociais, como
acesso a terra e moradia em contraposição à concentração de renda, todos esses elementos
rechaçados entre os conservadores. Como democracia compreendemos “simultaneamente um
espaço e uma luta, ou melhor, a democracia constitui-se na ‘luta por um espaço de luta”.13
Além disso, nas palavras de Wasserman

a democracia é o espaço real e possível de articulação de projetos de sociedade e


Estado, onde os sujeitos sociais e as forças politicas lutam por orientar o sentido de
processo histórico. Na medida em que os sujeitos sociais e políticos mostrem
capacidade para expressar-se e tenham o reconhecimento de suas forças para
negociar, assim como a opção de constituírem-se como poderes alternativos,
questionando o sentido político e a orientação econômica social daqueles que detêm
o poder, se poderá identificar um espaço de profundo conteúdo democrático (2007,
p. 102).

Diante dessas atribuições, negamos que o Golpe que instaurou a Ditadura em 1964
tenha sido perpetrado sob quaisquer elementos de ordem democrática. Ocorreu que:

as classes dominantes sentiram a necessidade de sufocar a terrível ameaça. Para isso,


o Estado constitucional será substituído por um Estado militar, movido
essencialmente pelo objetivo de obter a “segurança nacional”, através da guerra aos
“inimigos internos” (SADER, 1982, p. 34).

A “terrível ameaça”, citada por Sader, era justamente o enfrentamento político, uma
dinâmica revolucionária das massas, que se perpetuava na América Latina.

13
WASSERMAN, Claudia. Democracia na América Latina: limites e possibilidades. In WEBER, Beatriz
Teixeira; KONRAD, Diorge Alceno. (orgs) Visões do Mundo Contemporâneo: caminhos, mitos e muros.
Santa Maria: FACOS-UFSM, 2007, p. 102.
21

Do lado dos apoiadores, houve comemorações como homenagens às Forças


Armadas. Em 7 de abril, foi convocada pelo Bispo Diocesano Dom Luiz Vitor Sartori, uma
marcha para agradecer aos “salvadores da democracia” por terem tomado iniciativa frente ao
“avanço comunista”. Entre os convocados estavam todas as classes sociais, entidades
estudantis e juvenis e a Frente Agrária Gaúcha (FAG).
Entre os estudantes, o apoio não foi uníssono. A Federação dos Estudantes
Universitários de Santa Maria (FEUSM) mostrava sua insatisfação com a nova situação no
primeiro momento. Liderados por Renan Kurtz, então vereador do PTB, muitos estudantes
universitários reuniram-se na Sala João Belém14 para discutir estratégias de resistência
política (CORRÊA, 2004, p. 34).15 Renan Kurtz, juntamente com outros vereadores do
mesmo partido, Homero Behr Braga e Eduardo Rolim, produziu uma contestação na primeira
sessão da Câmara de Vereadores, em seis de abril. Obtiveram resposta do vereador Eroni
Panis, em defesa do novo governo, o qual conclamava diversos setores a agradecer aos
militares.
A entidade logo se dividiu, quando o Centro Acadêmico e os estudantes da
Faculdade de Direito posicionaram-se a favor do Golpe. Notável também foi a adesão do
ensino secundário a nova causa, mesmo que foi nesse setor dos estudantes que tenha ocorrido
a maior resistência inicial à Ditadura em Santa Maria. Logo a resistência foi esvaziada, em
nome da nova ordem. Sob o aval do seu próprio Presidente, Jaime Goar Pasa, no dia 8 de abril
a FEUSM foi colocada sob a responsabilidade do Comando da 3ª DI. 16 Ainda em abril,
ocorreram em Santa Maria manifestações públicas em comemoração ao Estado autoritário. Os
discursos se referiam aos militares como os salvadores, guardiões da ordem e principalmente
dos “perigosos” comunistas.
Mesmo havendo dentro das instituições militares membros de orientação nacionalista
e comunista, não houve entre eles articulação capaz de fazer oposição eficaz (KONRAD,
2006, p. 107).17 Na medida em que os golpistas percebiam resistência, fechavam o cerco com
os Atos Institucionais, resultando em 1968 no AI-5, que, segundo Lopes, era o “documento
máximo do arbítrio e que autorizava o presidente a suspender direitos políticos, cassar
mandatos e fechar qualquer instituição por tempo indeterminado”. 18 Foi através do AI-5 que o

14
Voltaremos a falar sobre a importância dessa sala mais adiante.
15
CORRÊA, Roselâine Casanova. Cenário, cor e luz: amantes da ribalta em Santa Maria (1943-1983). Santa
Maria: Editora da UFSM, 2005.
16
KONRAD, op. cit., p. 104.
17
Ibidem, p. 107.
18
LOPES, Luiz Roberto. História do Brasil Contemporâneo. 5 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990, p.
118.
22

Congresso Nacional fora fechado por um ano, de dezembro de 1968 até o segundo semestre
de 1969 (LOPES, 1990, p. 118), marcando assim um novo período de autoritarismo absoluto.
Em torno da resistência armada, houve depois do Golpe o surgimento de grupos de
vanguarda como a Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), entre outros. Eram grupos de
esquerda que buscaram nas armas uma maneira de lutar contra a violência do Estado ditatorial
no sentido de derrubá-lo19.
A seguir abordaremos a trajetória artística de grupos teatrais que buscaram a
transformação e democratização dessa arte. Percebendo a possibilidade de mudanças diante
da situação brasileira, esses grupos tomaram o rumo do engajamento pelo progresso social,
posicionando-se politicamente através de um teatro de caráter nacional e popular. Aspectos
internacionais, citados acima, foram decisivos para a movimentação e formação desses
grupos. A postura crítica tomada por eles, acerca da realidade, tornou-se logo fator
proeminente das suas produções, traçando os rumos para a inauguração de uma explicita
concepção de teatro engajado, até então incipiente na dramaturgia brasileira.

1.1 O Teatro Brasileiro Revolucionando-se

O cenário teatral brasileiro passou por um período longo de mudanças. Entre as


décadas de 1940 e 1970, temos a formação de companhias e grupos responsáveis por
transformar o panorama teatral brasileiro, sendo transformações de natureza estética e na
orientação ideológica dos textos. A conjuntura política nacional que citamos anteriormente foi
percebida por vários artistas, os quais passaram a utilizar a arte no sentido de contribuir para a
criação de um projeto de emancipação social que traria as diferentes realidades brasileiras
para a cena cultural, no momento, bastante marcada por influências estrangeiras. A principal
preocupação dos grupos e companhias criados nesse ínterim (exceto o Teatro Brasileiro de
Comédia) era o desenvolvimento de uma dramaturgia nacional e a formação de laboratórios
de interpretação nos quais fosse possível fazer experiências e formar atores dentro de um
padrão brasileiro de interpretação.
Anteriormente a década de 1960, artistas brasileiros da arte teatral dividiam-se diante
da conjuntura social e política. Segundo Miliandre Garcia, os principais grupos podem ser
divididos em quatro eixos temáticos que

19
Discute-se, atualmente, entre os pesquisadores se teria existido um projeto socialista na proposição deles,
porém esta é uma discussão da qual não tomaremos parte dentro deste trabalho.
23

fundaram as matrizes do teatro moderno: a primeira, o Teatro Brasileiro de Comédia


(TBC) e a Escola de Arte Dramática (EAD), em seguida, o Teatro de Arena, a
terceira, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes
(UNE) e o Grupo Opinião e, por último, o Teatro Oficina.20

Entre estes, havia também formações de Teatros do Estudante em vários estados


brasileiros. O embaixador Paschoal Carlos Magno, incentivador da área teatral, fundou o
Teatro do Estudante do Brasil (TEB), em 1937, após 18 anos arrecadando recursos para o
intento. Foi dramaturgo, romancista e poeta, além de produtor cultural. Devido ao seu
empenho em promover o teatro estudantil, foi nomeado como responsável pelo setor cultural
e universitário, pelo então Presidente Juscelino Kubitschek. Com tal responsabilidade,
Paschoal Carlos Magno, percorreu vários estados, criando e dinamizando as iniciativas
teatrais de grupos estudantis. Foi organizador, em 1958, do primeiro Festival Nacional de
Teatro de Estudantes, em Recife. Em 1962, recebeu o cargo de Secretário Geral do Conselho
Nacional de Cultura e novamente deslocou-se pelo Brasil com a Caravana da Cultura, projeto
artístico que levou jovens artistas do teatro, dança e música para Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas, além de realizarem exposições de artes plásticas. 21
O objeto desse trabalho, o Teatro Universitário de Santa Maria, está diretamente
ligado aos investimentos culturais dele. Nesta cidade, havia no final dos anos 1950 uma
grande agitação teatral no meio estudantil, em sintonia com os demais grupos estudantis
formados em outras capitais, com ou sem a mão de Magno, como veremos a seguir.
Criado em São Paulo, em 1948, por Franco Zampari, o TBC, enquadrava-se nas
exigências da expansão do mercado de trabalho, com preocupações de caráter técnico e
estético do espetáculo. A companhia alterou padrões estéticos do teatro brasileiro, sendo que
suas “comédias ligeiras” concorriam com as montagens de clássicos trazidos por grupos
estrangeiros.22
Respondendo a demanda do mercado de trabalho, criou-se a Escola de Arte
Dramática (EAD), oferecendo a oportunidade de profissionalização e produções

20
GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: Teatro e censura na Ditadura Militar (1964-1985). Rio
de Janeiro: 2008, UFRJ, p. 96. Tese de Doutorado. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp056609.pdf. Acesso em 28 de novembro de 2010.
21
Cf. Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia
&cd_verbete=823. Acesso em 02 de fevereiro de 2011.
22
Ibidem, p. 96.
24

experimentais que acabaram estimulando o movimento modernista dentro da área teatral. 23


Através do desenvolvimento técnico da produção teatral, foi possível a formação de grupos
profissionais e, portanto, a criação de uma linguagem e padrões estéticos nacionais. Para esses
grupos:

O grande desafio residia na criação de uma produção de dramaturgia com


características próprias e de um modo de interpretação com feições nacionais, que
não sucumbissem aos interesses de mercado, reproduzissem os padrões culturais dos
países desenvolvidos ou, então, imitassem as vanguardas européias. 24

Dentro dessa perspectiva, Garcia destaca três grupos: o Teatro de Arena, criado em
1953; o Teatro Oficina, em 1958 (São Paulo) e o Grupo Opinião, formado em 1964, no Rio de
Janeiro.
Neste trabalho, interessa-nos, assim como o incentivo de Magno, especificamente a
abordagem histórica de dois desses grupos, pois foram os que mais se destacaram dentro da
perspectiva nacional em influência teatral, inclusive para o objeto de análise desta
monografia, sendo eles o Teatro de Arena e o CPC da UNE.

1.2 Uma Nova Estrutura Cênica: a Arena

Para falarmos sobre o Teatro de Arena, antes devemos destacar a importância do


Primeiro Congresso Nacional de Teatro, que ocorreu de 9 a 13 de julho de 1951. Nesse
Congresso, foram apresentados os fundamentos teóricos e as vantagens econômicas do teatro
em arena. Três foram seus defensores: Décio de Almeida Prado, José Renato e Geraldo
Matheus. Estes mostraram que, para a realidade brasileira, o teatro em arena seria uma
alternativa producente diante dos baixos orçamentos e do público restrito. Décio de Almeida
Prado e José Renato orientaram essa experiência como uma atividade da EAD, montando uma
peça apresentada em arena com os atores no centro da sala e os espectadores ao redor do
círculo.25
Nos primeiros anos do grupo, o Teatro de Arena não se destacou no cenário teatral,
não fez críticas às peças estrangeiras tampouco se opôs ao TBC. Com a contratação de
Augusto Boal e a agregação ao Teatro Paulista do Estudante (TPE), grupo amador
influenciado pelo ideário político do PCB, em 1956, o grupo passou a analisar criticamente a
produção vigente e ler os clássicos sob a ótica nacional. Era um novo exercício que opunha o
23
Ibidem, p. 97.
24
.Ibidem, p. 100.
25
Ibidem, p. 97.
25

grupo ao TBC, criticando-o pelas influências estrangeiras e o esteticismo acrítico nas


produções.26
Neste processo, a importância de Augusto Boal foi a de principal teórico,
fundamentando suas premissas nos ensinamentos trazidos da Universidade de Columbia, nos
Estados Unidos. Lá aprofundou seus estudos sobre as técnicas e métodos artísticos teatrais de
Konstantin Stanislavski 27.
Muitos dos membros do Teatro de Arena eram militantes ou simpáticos à ideologia
marxista. Esse fator contribuiu para a criação de uma identidade nacionalizante e também
para o anseio politizador do repertório do grupo. Não é por acaso que Gianfrancesco
Guarnieri escreveu a peça Eles não usam Black-tie, em 1958.
Também em 1958, promovem o Seminário de Dramaturgia, com a finalidade de
pesquisar a brasilidade. Dessa forma, com o Teatro de Arena, o autor nacional ganhava uma
casa, um laboratório de interpretação e experimentação teatral que buscava encontrar uma
identidade temática própria, ou seja, o estilo brasileiro de interpretação. Até então os
personagens comuns das classes subalternas, a doméstica, o operário, etc., não recebiam
destaque na dramaturgia. Guarnieri nos fala sobre esse contexto:

a partir de 1954, 1955, houve uma mudança muito grande, principalmente na área de
teatro. Quer dizer, uma deselitização (sic). Essa coisa de achar que estava havendo
uma revolução teatral no país era verdade. Estava mesmo. Com Os Comediantes,
com o TBC... criou-se o Teatro Maria Della Costa, o Sérgio Cardoso... Tudo se
concentrando muito em São Paulo. Naquele momento foi São Paulo que teve a
hegemonia desse processo. O TBC era uma força, só que dentro da intelectualidade,
da classe A, de toda a grande burguesia. E correspondia mesmo à necessidade
cultural artística da burguesia paulista. A gente dizia, brincando, que em vez de eles
pegarem um avião e assistirem no exterior, eles queriam que a peça fosse feita aqui.
É a época da contratação de muitos profissionais que vinham de fora. Só que,
imediatamente a isso, começou a haver também um outro processo de querer
democratizar o teatro. E quem começou com essa coisa toda? O pessoal do
movimento estudantil, já na época tudo estava muito polarizado. Tinha a esquerda,
que abria essa discussão – o Partidão -, e o outro lado, que eram os integralistas, o
pessoal remanescente das ideias integralistas [...]. Toda a intelectualidade
progressista da época estava se mexendo, e já começava um período de
democratização mesmo. [...]. O que a gente não admitia, mesmo, era a possibilidade
de um golpe de direita. Isso não era possível. Parecia que se abria diante de nós uma
estrada que não tinha obstáculos. Então, era mais ou menos isso: nós vamos saber
percorrer esse caminho, e está tudo certo. Era uma certeza... Aquele negócio de
procura de identidade é verdade. Parece que a gente fala nisso de forma empolada.
Mas era uma procura mesmo: quem sou eu, o que estou fazendo aqui, afinal de
contas? Há todo um país rico para fazer, não tem nada feito (In. BARCELLOS,
1994, p. 226)

26
Ibidem, p. 101.
27
Konstantin Stanislavski foi um dramaturgo russo que criou um método de interpretação baseado no realismo.
O ator deve transmitir através da emoção a realidade da cena para o espectador.
26

Podemos perceber, através desse relato, o espírito vanguardista do grupo, além da


influência marxista, não só de Guarnieri, mas também de Oduvaldo Viana Filho. 28 Essa
influência caracterizou o grupo no sentido de criar um público fixo e dentro das camadas
populares, sendo também responsável por uma produção dramatúrgica nacional de conteúdo
crítico e analítico da sociedade, com linguagem em português coloquial, mesclando “tu” e
“você” nas falas dos personagens. Na forma de arena era possível que todos os espectadores
olhassem a cenas de vários ângulos, nenhum deles em posição privilegiada, uma forma,
portanto, de democratizar a cena entre todos. Em torno desse novo formato cênico,
concentrou-se um núcleo de discussões entre a intelectualidade engajada.
Logo depois de estrear Eles não usam black-tie, o Teatro de Arena passou a encenar
outros espetáculos de autores brasileiros, dando inicio à sua jornada estética em busca da
brasilidade dramatúrgica. Todo trabalho dentro do grupo era realizado pelos seus integrantes -
figurinos, cenários, produção dos textos ou produção de espetáculos, desta maneira
eliminando a figura do ator principal. Todos estavam incorporados, engajados no objetivo de
transformar a realidade nacional numa sociedade mais justa e igualitária.
Esse sentimento entrou nos anos 1960 com força e o Teatro de Arena, mesmo
passando por dificuldades financeiras, não poupava esforços para continuar seu projeto. O
repertório produzido por dramaturgos nacionais e montado pelo grupo tinha como
protagonistas personagens que até então não seriam mais do que coadjuvantes, como citado
por Guarnieri 29.
Não tardou para que, em outros lugares, essa nova força cultural tomasse terreno, pois

o projeto cultural do Teatro de Arena influenciou a produção teatral da década de


1960 e a montagem de autores nacionais assumiu conotações distintas: podia
significar engajar-se às causas nacionalistas, adequar-se às leis de fomento ou
atender à demanda do público que consumia peças teatrais de caráter nacional-
popular (GARCIA, 2008, p. 105)

A contradição dentro do Teatro de Arena se deu por que não houve realmente a
popularização das apresentações. Segundo Garcia, nacionalizar a dramaturgia foi o ponto
forte dos anos 1950 e 60, porém o problema do público não fora solucionado. O grupo

28
Oduvaldo Viana Filho, conhecido como Vianinha, foi uns dos grandes críticos do TBC, pois para ele se tratava
de uma arte consolidada, sem autenticidade. Também por que a companhia TBC tratava somente de um
repertório composto por textos dramáticos estrangeiros de autores famosos. Vianinha construiu sua postura
política e cultural sob a influência do pai, Oduvaldo Vianna, membro do Partido Comunista Brasileiro.
Participou do Arena e foi idealizador, na concepção e criação, do CPC. Para ele, a arte não poderia estar
desvinculada da realidade. Defendia a necessidade de uma arte política que conscientizasse gerando protesto e
transformação social.
29
Sobre a importância dada a personagens considerados marginais e marginalizados pela dramaturgia, temos o
fundador do teatro social no Brasil, Joracy Camargo. Trataremos de sua contribuição mais adiante.
27

possuía um teatro para 150 lugares e expectadores restritos. Algumas das produções ficavam
meses em cartaz e foram montadas por grupos teatrais amadores de muitas faculdades, como a
Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. A dificuldade que
existia dentro do Arena era devido a forma administrativa e empresarial adotada por José
Renato, também diretor teatral (GARCIA, 2008, p. 108), causando muitos atritos entre os
componentes.
A partir de 1962, o grupo iniciou nova fase, através da nacionalização dos clássicos.
Montaram nesse ano peças de autores estrangeiros como Bertolt Brecht. Essa mudança não
foi bem vista pelo público do Arena, o que os levou a uma crise financeira. Não foi somente o
Teatro de Arena que mudou seu repertório, pois outras companhias teatrais também passaram
a montar mais peças estrangeiras do que de autores nacionais. Enquanto isso foi feita uma
pesquisa de opinião em vários organismos, como “nos Departamentos de História, História
Natural e Geografia e nas Faculdades de Direito e Engenharia Industrial da Universidade de
São Paulo” (GARCIA, 2008, p. 108) nas quais ficava evidenciada a preferência dos
estudantes universitários pelos autores nacionais.
Anteriormente, em 1961, um dos mentores intelectuais do Teatro de Arena,
Oduvaldo Viana, desentendeu-se com o rumo que o grupo vinha tomando, porque não
conseguia alcançar o objetivo do popularizar as montagens para o grande público. Outro
membro do Arena, Francisco de Assis, diretor de A mais-valia vai acabar, seu Edgar (que
reuniu em oito meses em cartaz, no Rio de Janeiro, cerca de quatrocentos espectadores)
desligou-se no mesmo período. Ambos juntaram-se na formação do CPC que trataremos a
seguir (GARCIA, 2008, p. 107).
Passando a fase de nacionalização dos clássicos, o Arena passou a produzir muitas
peças experimentais, até que Boal terminou a sua teoria do Sistema Curinga de interpretação.
Com o Golpe Civil-Militar, muito do que vinha sendo colocado em cena de forma explícita,
não poderia mais ser dito claramente. Fato que deu início a um novo período dentro do Teatro
de Arena.
Com o Sistema Curinga, aplicado na criação do espetáculo Arena conta Zumbi, em
1965, o autor mesclava o distanciamento (ou estranhamento) de Brecht como o método de
Konstantin Stanislavisk, além de incorporar princípios fundamentais do teatro grego, como o
coro. O recurso da música completava a fusão entre todos esses elementos e dava a liberdade
de dizer o que não era permitido pelos censores. Constava que cada ator, usando máscaras,
podia representar o mesmo personagem, tornando o vínculo ator-personagem ínfimo ou
inexistente. Dessa maneira, esse sistema visava colocar todos os elementos da ideologia no
28

Teatro de Arena dentro das falas de todos os personagens ao mesmo tempo. O espectador iria
ver na representação o que os integrantes do grupo pensavam e almejavam. Dentro da
conjuntura de Golpe, a liberdade de falar dramaturgicamente ficou ameaçada. Portanto, as
linguagens surrealista e simbólica eram mescladas com a realista, tornando a peça Arena
conta Zumbi um marco dentro da dramaturgia, não somente do Arena, mas de toda a
dramaturgia brasileira. Com esse espetáculo, o grupo, dava novo impulso a sua trajetória
sendo que:

Um ano depois do golpe de 1964, Arena Conta Zumbi destacou-se pela viabilidade
de aplicação da técnica do coringa e pela crítica contundente à ditadura militar.
Desse modo, a montagem de Zumbi reafirmou a liderança do grupo na pesquisa
teatral, consolidada na década de 1950, e também na luta do setor contra a ditadura
militar, instaurada em 1º abril de 1964 (GARCIA, 2008, p. 111)

O texto de Arena conta Zumbi não era meramente histórico, pois na verdade buscava
na História de Zumbi30 uma alegoria para criticar o tempo presente. Era, no entanto, um texto
mais político e moral do que histórico. A questão da resistência de Zumbi era justamente o
ponto onde se equiparava com o movimento de oposição contra a ditadura que se impunha.
O engajamento do Teatro de Arena nessa empreitada ia além das suas montagens. O
espaço físico sede do teatro, na Rua Theodoro Bayma, era utilizado para reuniões políticas,
assembleias gerais que conspiravam culturalmente contra o Estado golpista.
Em 1966, o Teatro de Arena organizou o Segundo Seminário de Dramaturgia, em
São Paulo, quando os artistas reunidos realizaram protestos contra os empresários que só
patrocinavam espetáculos de autores estrangeiros. Em manifesto, lembravam que havia uma
lei que estipulava a obrigatoriedade das companhias teatrais de representarem peças
nacionais. Mais para o final da década, em 1967, o Arena fundou um segundo núcleo, o
Areninha.
Com a censura cada vez mais acirrada, a prática do grupo tomou um sentido de
denúncia, formando uma nova estratégia, o Teatro-Jornal. Experiência que Augusto Boal
trouxe de suas especializações no estrangeiro. Era uma forma de denunciar a manipulação da
imprensa, encenando noticias cotidianas. Estes, foram os últimos trabalhos inéditos do Arena,
antes que Boal fosse exilado (GARCIA, 2008, p. 115).

30
Líder do Quilombo dos Palmares (comunidade criada por escravos africanos fugidos e marginalizados durante
o Brasil Colônia) que comandou a resistência contra as tropas da Capitania de Pernambuco, sendo morto em
vinte de novembro de 1695. Nesta data, se comemora atualmente a Consciência Negra, luta por direitos iguais e
contra o racismo.
29

Mesmo passando por muitos reveses, entre crises financeiras e crises internas por
divergências ideológicas, o Arena foi o grande idealizador e propulsor do teatro social no
Brasil, dando uma função social e política para a arte. As palavras de Paulo Pontes explicam
melhor a importância do Arena para o momento:

Em qualquer lugar do Brasil, até na Paraíba, a penetrante influência do Arena


despertava novos autores, atores, críticos, poetas, etc. Quando o pessoal do Arena
viajava pelo interior do país criava, em torno de si, em cada cidade, durante seis,
oito, dez dias, um verdadeiro centro de estudos, debatendo, transmitindo
experiência, motivando, vendo de perto as condições de vida dessa abundante
geografia humana do Brasil e recolhendo material vivo para a sua dramaturgia (In.
BARCELLOS, 1994, p. 16).

Como dissemos acima, outros grupos foram trilhando caminhos em busca dessa
conscientização, com caminhos diversos, mas com a mesma finalidade: a transformação do
Brasil num país mais justo, menos desigual.

1.3 A Arte como Instrumento Para a Revolução: o CPC da UNE

A criação do CPC deu-se em 1961, porém o seu projeto vinha de uma grande
discussão entre uma juventude de artistas e intelectuais sobre a concepção de arte pela arte e
sobre a cultura popular. Naquele contexto, ocorreu uma associação de interesses de jovens
artistas e jovens militantes políticos que “descobriram a atividade artística como um
instrumento de luta politica” (In. BARCELLOS, 1994, p. 27). Este fenômeno ocorreu em dois
lugares primeiramente, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Segundo Marcelo Ridenti,
em outras capitais como Belo Horizonte , houve a criação de um CPC onde havia um teatro
experimental e um teatro universitário. Porto Alegre e Salvador também viveram a
efervescência político-cultural de esquerda dos anos 1960. Outro importante movimento em
prol de uma cultura nacional era realizado no Recife, com o Movimento de Cultura Popular, o
qual fazia um trabalho de alfabetização da população carente. Ligado ao governo do Estado,
através da Secretaria de Educação, tinha amplo apoio do governador Miguel Arraes, sendo
que participava ativamente dessa empreitada o pedagogo Paulo Freire. 31 Ridenti (2000, p. 82)
nos fala sobre esse movimento que:

a partir dos anos 50, militantes animados com os ideais comunistas – formalmente
integrantes ou não do PCB e outras organizações – ajudaram a criar movimentos
artíticos e culturais importantes, autônomos e diversificados, como o Teatro

31
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 74.
30

Paulista do Estudante e o Teatro de Arena em São Paulo, os CPCs em todo o


Brasil (o mais destacado no Rio de Janeiro), o Cinema Novo e as publicações da
editora Civilização Brasileira, do comunista Ênio Silveira.

Ao mesmo tempo, Ridenti complementa: “nenhum desses movimentos culturais teve


uma diretiva preestabelecida por qualquer organização de esquerda”. Porém, não podemos
esquecer que muitos dos idealizadores desses movimentos estavam diretamente ou
indiretamente ligados a movimentos estudantis ou partidos políticos, exemplo que Guarnieri
nos relata em entrevista à Jalusa Barcellos, afirmando que a militância partidária embasava
sobre estratégias de organização e abordagens de temas sociais, aspectos dos quais os
membros militantes já tinham certa experiência.
No Rio de Janeiro, a idealização veio de uma conjuntura na qual os centros
acadêmicos e associações de estudantes, como a Juventude Universitária Católica (JUC),
foram conquistados por lideranças de esquerda. Outros grupos criados nesse ínterim
contribuíram para a idealização e prática do CPC, entre eles a Ação Popular (AP). 32
Naquele período, havia grande disputa de hegemonia dessas lideranças no meio
estudantil, inclusive na UNE.33 Isso nos mostra como a livre fluência de ideias e discussões
acerca da realidade levava muitos jovens a ver no marxismo e na experiência cubana um
exemplo de teoria e prática respectivamente.
Vinculado a UNE, o CPC do Rio dividia-se em vários departamentos artísticos,
sendo eles de artes plásticas, musical, e teatral. Para este trabalho, interessa-nos
especificamente a experiência teatral da entidade. Essa vinculação do CPC a UNE foi uma
estratégia do movimento para consolidar-se dentro da instituição, açambarcando sua força e
atuação em vários níveis políticos.34 Não podemos esquecer que a pretensão do CPC foi
política e que a sua atuação artística esteve a serviço de um fim político. Diante disso, é
compreensível que muitos dos artistas que participavam faziam também parte da militância
em partidos políticos, principalmente o PCB, mas a atuação era mesmo dentro do movimento
estudantil. Dessa maneira, as produções de espetáculos e outras formas artísticas, como
filmes, recebiam verba da entidade para serem executadas.
Em São Paulo, houve a criação de um CPC, porém ligado ao PCB. Nesse caso, a
juventude militante de dentro do TPE, depois de agregar forças e fundir-se com o Arena,

32
Com a entrada de muitos militantes de esquerda dentro da JUC, houve uma radicalização de sua atuação. A
entidade entrou em conflito com a ordem da Igreja Católica e muitos membros da JUC, de orientação
progressista, foram expulsos, entre eles o presidente da UNE no momento, Aldo Arantes. A partir dessa ruptura,
iniciou a construção do movimento que culminou na Ação Popular.
33
Ibidem, p. 26.
34
Ibidem, p.237.
31

pretendeu ir mais a frente nas suas convicções de arte política. Foram os militantes jovens,
entre secundaristas e universitários, que tomaram o caminho artístico para levar a revolução
para a arte. Porém, não havia um apuro técnico em como desempenhar tal papel. Portanto,
toda a bagagem do Arena mostrava o que poderia ser feito e o que não interessava para a nova
experiência. Até porque, muitos dos artistas que fundaram os CPCs foram integrantes
remanescentes do Arena. Isso fica claro quando, em entrevista, Guarnieri relata que dentro do
Arena havia discussões sobre estética e política e quando se tratava da segunda, somente os
militantes participavam, sendo que Boal, por exemplo, não participava. 35 Mesmo tendo várias
manifestações artísticas, o teatro foi a mais representativa por ser uma arte genuinamente
social, podendo alcançar mais pessoas. Iria ao encontro da proposta que vinha sendo
perpetrada dentro desse grupo de intelectuais, “um movimento integrado nacionalmente,
tendo em cada estado um núcleo” (In. BARCELLOS, 1994, p. 83).
Sobre a produção artística do CPC, houve uma forte idealização na criação dos
personagens que pretendiam representar o homem simples, camponês, operário, etc. A crítica
teatral do período chegou a dizer que a idealização era tal que se tornava caricata (RIDENTI,
2000, p. 85). Essa dificuldade em tornar os espetáculos realmente populares e ao gosto da
maioria do público foi recorrente. Havia mesmo os textos mais intelectuais, voltados para
público universitário, que não chegava “às massas” (In. BARCELLOS, 1994, p. 293). Ao
mesmo tempo, textos como o Auto dos 99%, quando apresentado no formato de teatro de rua,
tinha grande aceitação pelo público, mesmo não sendo feito por populares, sendo ainda
considerado popular.36
Esses fenômenos dizem respeito ao que seria considerada cultura popular no período.
A busca por um ponto em comum que definisse o que seria genuinamente brasileiro era pauta
de muitas discussões entre essa juventude incorporada nesse ínterim. Muitas vezes, as
definições tornavam-se sectárias, tornando cultura popular um conjunto de elementos
limitados pelas concepções baseadas na militância política. A influência da política foi
bastante pertinente para todo esse processo artístico. Um exemplo desse sectarismo está no
que diz respeito à individualidade artística. Ocorreu que alguns cineastas, como o diretor de
cinema Cacá Diegues, partissem para uma experiência individual por não partilharem das
mesmas concepções sobre cultura popular hegemônica nos CPCs. Para esse cineasta “da idéia
de uma cultura nacional-popular, a posição hegemônica dentro do CPC evoluiu para uma

35
Ibidem, p. 236.
36
Ibidem, p. 304.
32

instrumentalização da cultura como braço da luta política” 37, o que deixava, em sua
concepção, a liberdade de expressão comprometida.
Essa estratégia de fazer luta política através da arte não foi por acaso e nem mesmo é
negada pelos ex-integrantes dos CPCs. A função era juntar a vontade artística com a
necessidade de transformação social. Um dos meios de formação dos grupos CPCs pelo País
foi a UNE Volante. Era uma caravana de estudantes que utilizava as verbas do setor cultural
da UNE destinado a promover espetáculos teatrais, musicais e logo divulgar a postura política
que havia na entidade estudantil, sendo que grupos iam surgindo nos subúrbios e em outros
estados.38
Entre as diferenças dos CPCs de São Paulo e Rio estava a questão financeira.
Enquanto o CPC do Rio de Janeiro, ligado diretamente a UNE, recebia verbas dessa entidade,
o CPC de São Paulo não tinha fonte dessa natureza e precisava agir de maneira mais
empresarial, cobrando entradas para os espetáculos para manutenção do grupo. Carlos
Estevam nos fala sobre a UNE Volante (In. BARCELLOS, 1994, p. 84)

A UNE recebia financiamento do governo e, então, ela conseguiu financiamento


para fazer a UNE Volante, que seria, basicamente, uma viagem da diretoria da UNE
pelos vários estados da Federação, um contato melhor com as Uniões Estaduais de
Estudantes. Mas como a UNE achava cada vez mais importante que o CPC fosse
junto, ela tinha que pagar por isso. Uma coisa é certa: se a gente não atuasse como
empresa, ‘tava frito. Veja o caso da UNE Volante. Um negócio que levava dois, três
meses. Quer dizer, passar três meses viajando com um elenco – e de graça!

Outro relato importante é do ator Carlos Vereza, em torno do alcance da UNE


Volante (In. BARCELLOS, 1994, p. 131)

O CPC irradiou pelo Brasil inteiro. Praticamente em cada estado havia um CPC e, a
cada ano, fazíamos uma viagem por todo o país, levando uma peça e um show. Era a
UNE Volante. A programação era a seguinte: fazíamos o show à tarde, na rua ou
numa faculdade, e a peça à noite.

Como vimos pelos relatos, a profusão cultural estava sendo percebida em todos os
cantos, através dos debates políticos elencados pelos movimentos sociais, assim como pelos
movimentos culturais desses jovens estudantes. O momento de construção democrática estava
acontecendo no âmbito cultural com os espetáculos e as demais manifestações artísticas.

37
Ibidem, p. 41.
38
Ibidem, p. 83.
33

2. A CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO ESTUDANTIL E O TEATRO


UNIVERSITÁRIO DE SANTA MARIA

Depois de termos discorrido brevemente sobre o panorama acerca das


transformações que vinham tomando o teatro no Brasil, passamos para experiência ocorrida
no mesmo período na cidade da qual esse trabalho toma parte, Santa Maria.
O teatro em Santa Maria foi uma atividade cultural de muitos adeptos.39 Entre os
adoradores dessa arte estava a Escola Teatral Leopoldo Fróes (ETLF), com direção de
Edmundo Cardoso. Cardoso foi, durante muitas décadas, um grande incentivador dessa arte
que, além de ter uma escola para formar atores, ficou durante muitos anos promovendo
espetáculos na cidade. 40
Nos anos 1950, momento em que a televisão e o cinema ainda eram formas
midiáticas de pouco alcance social no Brasil, o teatro era a forma artística mais difundida
como arte representativa. No caso dos jovens, era uma forma de interagir com outros jovens,
através das peças e dos teatros estudantis. Outra forma de integração eram as entidades
estudantis que surgiram a partir das faculdades e das agremiações secundaristas. A UFSM,
como unidade, ainda era um projeto que seria posto em prática somente em 1960.
Ao longo do século XX, foram fundadas muitas faculdades no estado do Rio Grande
do Sul. O primeiro curso a ser oficializado pelo Governo do Estado, na cidade de Santa Maria,
foi o de Farmácia, anexado a Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Em 1947, a
Universidade de Porto Alegre passou a ser do Rio Grande do Sul – UFRGS. Um ano depois, a
Faculdade de Farmácia de Santa Maria foi incorporada por esta. Em 1954, foi aprovada em
Conselho Universitário a criação da Faculdade de Medicina em Santa Maria. Logo, a
Faculdade de Farmácia foi o primeiro passo para a Universidade de Santa Maria. Em 1959,
foi fundado o curso de Direito e no ano seguinte o conjunto dos cursos existentes formaram a
Universidade41. Outros cursos foram sendo criados no decorrer da década de 1960.

39
A experiência teatral de Santa Maria é longínqua, remontando ao século XIX. Para melhores esclarecimentos
sobre o período anterior a essa pesquisa, recomenda-se a leitura do livro de Getúlio Schilling: A arte fotográfica
e o teatro em Santa Maria. O recorte temporal para o tema teatro vai de 1888, quando é fundado um teatro
(palco) no Clube Caixeral e finda na década de 1930. O autor demonstra ínfima esperança sobre a produção e
formação de atores de teatro em Santa Maria, no momento em que concluiu sua obra. Consultar: SCHILLING,
Getulio. A arte fotográfica e o teatro em Santa Maria. Santa Maria: Pallotti, 2005.
40
Outra obra que tem por temática a vida teatral de Santa Maria é Cenário, cor e luz: amantes da ribalta em
Santa Maria (1943-1983). O livro mostra a evolução da Escola Teatral Leopoldo Fróes além de outros grupos
que surgiram nesse recorte temporal. Consultar: CORRÊA, Roselâine Casanova, op. cit.
41
OLIVEIRA, M. M. Freitas de. “ O Movimento Estudantil Universitário de Santa Maria de 1960 a 1968.” In.
QUEVEDO, Júlio Ricardo; IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Movimentos sociais na América Latina: desafios
teóricos em tempos de globalização. Santa Maria: MILA-CCSH-UFSM, 2007, p. 217.
34

O movimento estudantil universitário foi precedido pelo secundarista, tendo sido


bastante atuante na História da cidade. A entidade chamava-se União Santa-Mariense de
Estudantes (USE)42, sendo que, ligado a ela, existia desde 1956 um Teatro do Estudante
(CORRÊA, 2005, p. 32).
Assim que foi fundada a Universidade, em 1961, alguns acadêmicos reuniram-se
para criar um órgão estudantil que gerisse as necessidades dos universitários. Segundo
Oliveira (2007, p. 219), foi em 24 de março, na sede do Centro Acadêmico da Faculdade de
Ciências Políticas e Econômicas que se realizou uma assembleia para a criação da entidade
máxima e autônoma de representação, defesa e coordenação dos assuntos estudantis de ensino
superior: a Federação dos Estudantes da Universidade de Santa Maria (FEUSM). Em seguida,
foram escolhidos os seus representantes: Carlos Renan Kurtz (presidente) e Sérgio Gilberto
Bonocielli (vice-presidente). Esta entidade compunha os centros acadêmicos que
representavam os estudantes dos diversos cursos da instituição, entre eles Direito, Medicina,
Ciências Políticas e Econômicas, etc.
Pela lei Municipal nº 1021, de abril de 1962, a entidade foi considerada de utilidade
pública pelo Prefeito Municipal, Dr Miguel Sevi Viero. Mesmo antes de configurada a
FEUSM, pelos centros acadêmicos, os estudantes atuavam na História de Santa Maria. Um
exemplo é a adesão dos estudantes do Centro de Estudantes da Faculdade de Medicina de
Santa Maria (CEMSM) à paralisação das entidades dos ferroviários, juntamente com quase
todos os sindicatos da cidade, em 1960, sendo que, ao mesmo tempo, tomou parte dos
protestos dos trabalhadores os estudantes da Faculdade de Farmácia (OLIVEIRA, 2007, p.
220). Esse movimento teve consonância com as reivindicações que vinham ocorrendo em
outros lugares do País inteiro, nas quais havia espaço para possíveis conquistas trabalhistas e
cidadãs. Os estudantes sensíveis e percebendo sua importância dentro da conjuntura,
buscavam atuar na manutenção dessa nova fase de possibilidades que se apresentava no
Brasil. Como dissemos anteriormente, entre os estudantes havia os que apoiavam as
estratégias dos trabalhadores por melhores condições de vida e os que se colocavam contra,
coadunando com a ideologia anticomunista que se propagava.

42
Atualmente subtraiu-se o “m”, onde temos a sigla USE para designar a mesma entidade. Ao tratarmos do
período onde ela era reconhecida como USME, por questões metodológicas, seguiremos a chamá-la por seu
nome atual.
35

2.1 O Teatro do Estudante: uma Arena de Ideias

Em Santa Maria, houve, assim como em outras cidades, a criação de um Teatro do


Estudante ligado a USE. Nascendo dentro do movimento estudantil secundarista, esse teatro
tinha como fundo as discussões acerca do momento histórico pelo qual passava o País, como
veremos pela escolha de seu repertório.
Era um grupo de atores amadores que realizavam experiências dramatúrgicas, no
Teatro do Estudante e no Teatro de Arena de Santa Maria, de 1958 a 196043, segundo
CORRÊA (2005, p. 32), citando Pedro Freire Junior, foi a partir do amadurecimento desse
grupo que foi possível o surgimento posterior do Teatro Universitário, em 1961.
Andando lado a lado, movimento estudantil e teatral, Santa Maria refletia o
fenômeno que ocorria nos demais estados brasileiros. A busca por uma atuação artística que
tivesse cunho político agregava muitos estudantes, entre secundaristas e universitários. Nas
palavras de CORRÊA (2005, p. 32) “havia uma juventude inquieta sintonizada com a agitação
cultural das grandes capitais brasileiras e isso se revelou na organização dos grupos teatrais”.
Também em Santa Maria a experiência teatral em estrutura de arena manifestou-se como
forma ideológica com a finalidade de “fazer um teatro mais engajado politicamente e que
contrariasse o modelo tradicional de se fazer teatro no Rio Grande do Sul” (In. Documentário,
2008).
Anteriormente a criação de um espaço físico apropriado para apresentações teatrais,
os espetáculos eram representados nas salas de cinema da cidade. Eram grandes espaços para
projeções de filmes que sediavam também lugar para a arte teatral das companhias existentes.
Não podemos deixar de citar a fundação do Teatro Treze de Maio, por iniciativa de João
Daudt Filho, ainda no século XIX. Este teatro foi bastante utilizado, porém com o passar do
tempo sua estrutura não permitiu que ele comportasse os muitos espetáculos das companhias
que se apresentavam na cidade.44 Na década de 1930, houve a expansão das salas de cinema
em Santa.Maria, como na remodelação do Cine Independência, localizado na Praça Saldanha
Marinho, o qual fora inaugurado em 1922, bem como o Cine-Teatro Imperial, inaugurado em
35. Ainda havia o Teatro Coliseu Santa-mariense de 1911, com capacidade para mil lugares,

43
Há pouca informação sobre esse Teatro de Arena que atuou de 58 a 60. Entre as fontes que dispomos para esta
pesquisa, ora ele aparece como Teatro do Estudante, ora como formato estrutural cênico. É necessário que se
busque mais informações a esse respeito, a fim de melhores esclarecimentos de sua contribuição cultural. Como
primeira impressão, percebemos que essa nova estrutura vinha sendo difundida a partir do Primeiro Congresso
Nacional de Teatro, ocorrido em 1951, como citamos no primeiro capítulo.
44
HESSEL, Lothar. O teatro no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1999, p. 126.
36

na década de 1930, que fora demolido dando espaço para o Cine Glória, fundado em 1950
(CORRÊA, 2005, p. 29).
Entre os grupos teatrais que existiam na época estava o de João Belém, nascido em
Porto Alegre em 1874, o qual começou suas atividades teatrais em 1902, escrevendo diversas
peças entre dramas e operetas. Mudou-se para Santa Maria onde formou um grupo amador,
sendo o primeiro teatrólogo da cidade, apresentando suas produções nas salas de cinema
(CORRÊA, 2005, p. 28). Este, segundo HESSEL (1999, p. 126), esteve na direção do corpo
cênico criado a partir da Associação Protetora do Hospital de Caridade. Como vemos, a
atividade teatral era latente na cidade de Santa Maria, existindo muitas entidades que se
dedicavam a formar grupos e fazer espetáculos. Apesar do teatro ser bastante difundido na
cidade, pela constatação de CORRÊA (2005, p. 23) percebemos que: “a vida cultural era
constituída de espetáculos de entretenimento, bailes e mundanidade. Entendemos que, por
muito tempo, o espaço teatral seria principalmente este. A sublime arte era meramente a do
espetáculo e do encontro refinado”.45
Foram os estudantes, preocupados com a conjuntura nacional, que transformaram
esse panorama. A arte passou a ser parte de uma estratégia para mostrar uma realidade muitas
vezes não reconhecida pela maioria da sociedade. Portanto, para que fosse percebida, era
latente que se tornasse popular em linguagem e temática.

2.2. O Teatro Universitário de Santa Maria: as Duas Facetas de um Movimento Cultural

A preocupação com a profissionalização teatral dos grupos passava muito distante da


maioria dos atores e demais envolvidos com o teatro em Santa Maria. Vista como uma arte
sublime, a profissionalizá-la seria colocá-la ao nível de outras profissões consideradas de
menor ilustração. A maioria das pessoas envolvidas não se dedicava estritamente ao teatro,
este era atividade secundária em suas vidas, sendo eles profissionais de outras áreas.
Entretanto, dentro da Escola de Teatro Leopoldo Fróes, Setembrino Souza46,
enquanto administrador pretendeu profissionalizar o grupo, motivo de divergência com
Edmundo Cardoso, terminando na saída do primeiro dessa escola. Porém Setembrino não se
desligou da atividade. Sua experiência foi muito importante na criação do Teatro do
Estudante, sendo ele seu primeiro diretor.

45
Grifos da autora.
46
Setembrino de Souza era ator e fora, juntamente com Edmundo Cardoso, organizador e fundador da Escola de
Teatro Leopoldo Fróes. Em 1946, afastou-se da Escola por ter divergências com Cardoso referentes a
administração da mesma.
37

Já nos primeiros espetáculos, percebe-se uma inclinação para um teatro mais voltado
para as temáticas sociais. A estreia do grupo é com uma peça de Joracy Camargo 47, O bobo do
rei. Essa peça de 1931, fundava no Brasil, a título de modernidade 48, o teatro social. Uma
livre adaptação de Rei Lear, de William Shakespeare, essa comédia possuía elementos que
ainda não haviam interessado os autores; as personagens marginalizadas na sociedade
refletiam essa posição na dramaturgia. Até aquele momento, não existiam peças onde um
proletário, um mendigo ou uma empregada doméstica fossem protagonistas. Ao tratar de
temáticas como proletariado, Joracy Camargo utilizava interpretações marxistas, fato
desagradável para as autoridades, mas que abria uma porta para a modernidade nessa arte.
Alguns autores e críticos afirmam que a dramaturgia de O bobo do rei fora, no princípio, ou
esboço de um teatro social, mas que sua principal obra, na qual os elementos marxistas estão
mais definidos, é Deus lhe pague.49 Em artigo para Terra Roxa, Medeiros (2008, p. 43) afirma
que:

Joracy Camargo escreveu Deus lhe pague, comédia em três atos, estreada em 1932.
Com essa peça, o dramaturgo inaugura uma nova fase da dramaturgia brasileira ao
abdicar da comédia ligeira e lançar mão de tendências marxistas em seu diálogo, o
que conferiu à peça um caráter inédito. [...] permeada de tiradas socialistas e
marxistas, vingará por muito tempo como o grande texto revolucionário da nova
dramaturgia brasileira.50

Apesar das visões diferentes, consideramos que ambas as peças são respectivamente
fenômenos de um processo que vinha se manifestando também na arte. Porém, mesmo que se
identificassem novos assuntos na dramaturgia, a forma estética da configuração do cenário e
da estrutura do palco alcançou a modernidade somente anos mais tarde. Dessa forma, a
estrutura continuava a reproduzir o palco italiano, com a tradicional disposição cênica: o
público distante. Outra peça apresentada pelo grupo, em 1956, foi A vida brigou comigo, de J.

47
Joracy Camargo nasceu no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1898. Foi jornalista, cronista, professor e
dramaturgo brasileiro. Primeiro dramaturgo a abordar as questões do proletariado. Faleceu no Rio de Janeiro, em
1973, com 74 anos.
48
Como modernidade compreendemos uma nova orientação na concepção dos assuntos elencados pelos autores
primeiramente que iam de encontro a formas clássicas das criações dramatúrgicas. Logo em seguida a
transformação se deu ao nível estético consolidando uma modernização efetiva no teatro brasileiro com a peça
Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues em 1946.
49
Na comédia Deus lhe pague (1931), o dramaturgo colocou dois mendigos como protagonistas. Um deles faz
uma crítica à sociedade de consumo, a exploração pelo trabalho e as relações capitalistas que acabam levando os
indivíduos a perderem a sua noção real de liberdade e das reais necessidades humanas, que para o autor são:
respirar, comer, beber e dormir.
50
MEDEIROS, Elen. O teatro brasileiro e a tentativa de modernização. In. Terra roxa e outras terras –
Revista de Estudos Literários, São Paulo, v. 14, verão 2008.
38

Wanderley. Em 1958, apresentaram Os inimigos não mandam flores, de Pedro Block


(CORRÊA, 2005, p. 32).
A montagem de O bobo do rei, com direção de Setembrino de Souza, marcou a
estreia de um importante ator e posteriormente diretor teatral, Pedro Freire Junior, estudante
de Direito. Após ter atuado nesse espetáculo, ele envolveu-se diretamente na vida teatral de
Santa Maria. Atuou juntamente com Wilde Quintana51 no primeiro espetáculo montado no
formato de Arena no Rio Grande do Sul. O espetáculo foi O homem da flor na boca, de Luigi
Pirandello, e sua apresentação foi na Galeria Chami. 52 Em 1961, Freire Junior foi convidado a
participar da ETLF. Nesta escola, ele participou de uma única montagem, pois suas
convicções a respeito da arte teatral eram incompatíveis com o estilo dramatúrgico do
repertório escolhido pelo diretor Edmundo Cardoso. A escola “não abrigava os
questionamentos da juventude estudantil engajada, tanto nas lutas políticas quanto em uma
discussão dos costumes em andamento” (CORRÊA, 2005, p. 34). Nesse momento,
configuraram-se mais explicitamente as intenções preteridas por Freire e logo ele pode
colocar seu projeto de um teatro engajado socialmente em prática. 53
Renan Kurtz, como presidente da recém criada FEUSM, também via na arte um
instrumento para conscientização dos estudantes. Em depoimento ao documentário sobre a
trajetória de Pedro Freire Jr. ele nos conta que:

nós precisávamos urgentemente conscientizar os nossos alunos das universidade e


nisso surge a figura do Pedro Freire, que já era conhecido em Santa Maria como
grande intelectual, como grande diretor de teatro, declamador premiado em muitos
lugares, e eu escolhi o Freire para ser o diretor do nosso teatro. 54

O projeto de reunir arte e política era latente. Para tal, com patrocínio da FEUSM,
em 1962, os estudantes envolvidos nessa entidade iniciaram a construção de uma sala para
representações em formato de Arena, a qual recebeu o nome de Sala João Belém,
homenageando o dramaturgo. A estrutura foi construída onde atualmente é a Casa do
Estudante, na Rua Professor Braga e abriga a Sede e a boate do Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da UFSM. A inauguração da Sala João Belém contou com a presença
daquele cujo nome citamos a cima, considerado o patrono ou mecenas dos teatros estudantis,
o embaixador Paschoal Carlos Magno.

51
Ator santa-mariense.
52
No local, atualmente, situa-se o Café Galeria. Cf. o documentário sobre Freire Jr.
53
Cf. Documentário sobre Freire Jr.
54
Idem.
39

Seguidamente, as movimentações estudantis eram assunto em artigos e jornais na


cidade, entre eles o jornal A Razão. A estreia dessa sala foi de considerável repercussão, como
podemos ver nas fontes encontradas. Nelas podemos ver a expectativa pela chegada do Carlos
Magno e a presença de outras autoridades que fizeram presença na inauguração 55.
A sala fora construída em formato de Arena e comportava aproximadamente cento e
cinquenta espectadores. A primeira peça dirigida por Freire Jr., no Teatro Universitário, foi
Eles não usam black-tie. Essa escolha se deve a abordagem social do texto de Guarnieri.
Segundo Renan Kurtz56, referindo-se a escolha, a felicidade de Freire ao escolher a peça Eles
não usam Black-tie, uma “peça de conotação política que prega a solidariedade, que prega a
unidade do movimento social” (In. Documentário Freire Jr.)
Podemos perceber, através das palavras de Renan Kurtz, que havia um entendimento
de que o teatro era um meio de conscientizar os estudantes. Freire Jr (apud CORRÊA 2005, p.
33) afirma que “o Teatro Universitário acabou se transformando, na realidade no QG da
agitação e as palavras de Guarnieri [...] se transformaram em palavras de ordem do
movimento político em Santa Maria” (apud CORRÊA 2005, p. 33). Dessa forma, podemos
perceber a relação intrínseca do teatro com o movimento estudantil. Nesse mesmo veículo, ele
afirmou que o Teatro Universitário havia se transformado num centro de discussões e de
mobilização política dos estudantes.
A estreia desse espetáculo foi aguardada com grande expectativa como sugere
matéria no Jornal A Razão, principalmente pela temática da peça sobre a qual o articulista faz
referência:
(a montagem) vem a se constituir numa das mais arrojadas iniciativa cênicas em
Santa Maria, pela importância da obra [...], pela atualidade do tema, pelo lançamento
de quinze novos elementos teatrais todos universitários e pelo sentido popular da
divulgação de arte. [...] Tratando dum (sic) momentoso, o direito de greve, as
misérias nas favelas, a dificuldade financeira das classes proletárias, recebeu
especial carinho da direção, com fiel entendimento da temática a que se propôs o
autor [...].57

No mesmo artigo, temos a descrição do número limitado de lugares, (cento e


cinquenta) vendidos na Galeria Chami pelos respectivos acadêmicos das faculdades de
Odontologia: Leonir Setti; Farmácia: Itiberê Braga; Direito: Luezir Pociúncula; Enfermagem:
Enilda Lopes; Medicina: Nilso Zafari; Filosofia: Suelí Welang; Veterinária: Joni Cavalheiro;
Agronomia: Fernando Kappel; Engenharia: Gilberto Moresco; Economia: Wilson Alano.

55
As imagens que temos dos jornais do período foram extraídas do documentário sobre Freire Jr. de Luiz Carlos
Grassi, produzido em 2008.. Ver Anexo A.
56
Cf. o documentário sobre Freire Jr.
57
Ver Anexo B.
40

Podemos observar que havia envolvimento de acadêmicos de vários cursos, o que nos dá certa
dimensão do alcance dessa arte dentro do meio estudantil universitário.
Não podemos afirmar que o TUSM, ao trazer para à cena a peça Eles não usam
Black-tie, tinha os mesmos propósitos do autor, Gianfrancesco Guarnieri, que
reconhecidamente acreditava na transformação da sociedade rumo ao socialismo. Porém,
esses jovens estavam na busca por uma arte que expressasse suas inquietações a respeito da
conjuntura política que os cercava. E dessa maneira buscaram nos textos dramatúrgicos, não
necessariamente uma resposta, mas compartilhar as incertezas com os demais, levando com
irreverência a característica da juventude a um ponto de tensão.
No mesmo ano, depois das apresentações da peça de Guarnieri, foi a vez de A
margem da vida, de Tennesse Williiams. A peça estreou em 26 de outubro, na Sala João
Belém. Escrita para quatro atores, teve no elenco Romeu Eugênio Saccol, Arloy Bernardes,
Pedro Freire Jr. e Maria Estela Motta. Na equipe técnica estavam: Sergio Finkelstein, Itiberê
Braga, Antônio Quevedo e Amaurí Baldissera, sob a direção de Freire Jr. O enredo se passa
nos anos 1930 na cidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, abordando a frustração dos
jovens que, em meio a Depressão, resultado da crise de 1929, pressentiam a proximidade da
Segunda Guerra e temiam a destruição dos seus sonhos.58 É interessante observar que essa
temática pode ser percebida entre os jovens em períodos diferentes e, certamente não possui a
gravidade polêmica do proletariado, mas trazia à cena um conflito que acometeu muitos
jovens em momentos como a conjuntura anterior ao Golpe.
Apesar da Campanha da Legalidade, o avanço da democracia estava ameaçado e as
reformas de base constituíam o principal ponto de discórdia política. As notícias de jornais do
período traziam indícios dos fatores desse processo.59 Para ilustrar o engajamento político de
alguns universitários, podemos citar a adesão do curso de Odontologia da UFSM em um
movimento grevista universitário, o qual eclodiu no Brasil, ainda em 1962. O mote era a
reivindicação de um terço dos universitários na composição dos Conselhos Universitários. 60
Assim, a instabilidade política se manifestava na sociedade e entre os estudantes.
Além dos assuntos de cunho nacional, a preocupação com assuntos estudantis eram correntes
nas reivindicações dos universitários. Ainda na gestão de Renan Kurtz, uma assembleia
buscou melhorias para o Restaurante Universitário frente ao Reitor Mariano da Rocha Filho.
Ligado a FEUSM, o TUSM era ligeiramente determinado pela orientação dos acadêmicos que

58
Consultar anexo C.
59
Ver anexo D.
60
Cf. anexo E.
41

estavam na liderança da entidade representativa dos estudantes. No ano seguinte, a entidade


empossou novo presidente, Nilson Zaffari; e seu vice-presidente Alberico Peccinin; em uma
solenidade na sala do Conselho de Representantes, assistiram mais de duas centenas de
universitários. 61
Não encontramos, até o presente momento, fontes que trouxessem informações a
respeito de montagens ocorridas no ano de 1963. Ao mesmo tempo, não podemos afirmar que
não houve atividades do TUSM. Também é necessário encontrar esclarecimentos acerca do
afastamento de Freire Jr. 62 do grupo. O que temos são indícios de que sua saída tenha tido
motivação política. A nossa avaliação dessas conjecturas parte da observação de sua postura
política, muito similar a da antiga gestão. Como dissemos anteriormente, o TUSM reunião em
torno de si uma confluência de ideias e práticas visando, além de promover o teatro, chamar
atenção do público para questões sociais. Como toda prática traz em si o princípio de sua
própria negação, é muito provável que essa postura incomodasse aqueles estudantes que não
partilhavam da percepção dos integrantes do grupo. Isso fica explícito quando, em 1964, essa
divisão de postura tornou-se clara entre os estudantes que tomaram partido pelos golpistas,
enquanto outros se reuniram na tentativa de criar estratégias de resistência política à Ditadura.
Os estudantes que tomaram essa atitude encontravam-se na Sala João Belém quando
tiveram seu teatro lacrado, pregado com tábuas, sendo que, alguns desses artistas responderam
processos na justiça militar (CORRÊA, 2005, p. 35). Segundo A Razão (2 de abril de 1964,
apud OLIVEIRA, 2007, p. 223), a FEUSM partilhava da mesma posição da UNE em relação
ao Golpe, o que a fez dirigir-se aos universitários, em 2 de abril, com o seguinte manifesto:

A Federação dos Estudantes da Universidade de Santa Maria, como representação dos


estudantes universitários, tendo presente a sua grande responsabilidade diante dos
graves acontecimentos que acometem a Nação Brasileira, vem de público manifestar a
sua posição: A – Conclama aos universitários santa-marienses para que tomem
consciência do momento histórico que está vivendo a Nação, procurando ditar as suas
atitudes como reflexo de suas convicções nos verdadeiros valores humanos. B –
Conclama a todos os brasileiros para que, num clima de fraternidade nacional,
resguardem as instituições democráticas e os poderes constituídos. C – Manifesta seu
respeito à Constituição Brasileira, base atual do nosso sistema democrático e os
poderes constituídos.

O novo presidente da FEUSM, Jaime Goar Pasa (KONRAD, 2007, p. 104), em 11


de abril, colocava-se em favor do Golpe, declarando que por justiça acreditava necessário o
apoio às Forças Armadas que livraram o Brasil do eminente perigo comunista, enquanto

61
Consultar anexo F.
62
Freire, ao ser afastado da direção do teatro, formou novo grupo chamado Presença. Continuou até o fim de
sua vida, em 2007, na carreira artística, tendo grande importância na promoção da arte teatral de Santa Maria.
42

conclamava os demais estudantes a aderirem à nova causa. Não podemos esquecer que outras
entidades estudantis passaram a ter intervenção militar, como a UNE, tendo muitos de seus
componentes perseguidos e presos.
Com sua sede fechada pelos militares, os remanescentes do TUSM reuniram-se na
formação de outro núcleo teatral de vanguarda cultural, somando-se a eles estudantes
secundaristas, preocupados com a questão cultural, além de outras instituições, formando a
Tríplice Aliança Cultural (TAC).
Eliezer Pacheco, ex-presidente da USE, conta que, além do teatro “esse grupo foi
responsável pela revista Vanguarda Cultural, pelo Teatro da USE, por uma página que nós
tínhamos no jornal A Cidade. Era um show musical que na esteira do sucesso do Opinião 63,
nós organizamos aqui em Santa Maria chamado Resolução. Fez um grande sucesso na época
pela sua qualidade”. 64
O ex- presidente da USE, Dalcione P. Rambo, ao assumir a gestão de 1964/65, tinha
como plataforma o reerguimento do teatro estudantil. A USE entrou em contato com Freire
Jr., o qual se encarregou da construção do teatro e direção 65 do novo grupo.66 Essas
afirmações nos levam a crer que houve uma ruptura nas atividades do TUSM, no sentido que
vinha tendo.
Dessa maneira, 1964 encerra uma etapa desse teatro, sendo que outro indício forte a
respeito desse encerramento são as fontes que encontramos marcando o inicio das atividades
do TUSM, no mesmo ano do Golpe, que conflitam com a marca inaugural de 1962 em outras
fontes.67
1964 marca também o início de outro diretor no TUSM, Clênio Faccin. Este iniciou
sua atividade teatral três anos antes, como ator ainda secundarista. A postura do novo diretor
era mais voltada na projeção na formação de oficinas e experimentações, imbuído de
pragmatismo. Ao entrar em contato com o Teatro Universitário ele conta que

notava que no teatro faltava organização e aproveitando a Universidade eu tirei a


Faculdade de Administração de Empresa [Faccin].68

63
Opinião foi um grupo de teatro de resistência criado, logo após o golpe de 1964, com muitos remanescentes do
CPC, que havia sido colocado na ilegalidade. Era, além disso, um núcleo de estudos e de difusão da dramaturgia
nacional e popular.
64
Ver documentário sobre Freire Jr.
65
Idem.
66
Os espetáculos encenados pela TAC foram A prostituta respeitosa. de Jean Paul Sartre. Esse espetáculo causou
polêmica entre o grupo e as autoridades religiosas de Santa Maria, conflito que foi suspenso quando o nome foi
trocado para apenas A Respeitosa. em 1965; Do tamanho de um defunto, de Millor Fernandes, e Procura-se uma
rosa, de Pedro Bloch.
67
Ver Anexo G.
68
Entrevista realizada dia 23/06/2010 no Hotel Itaimbé situada na Rua Venâncio Aires.
43

Através dessa afirmação, podemos perceber o grau de importância que o teatro


representava na vida desse artista. O momento havia se transformado bruscamente, mas havia
antes mesmo do ocorrido o temor desse desfecho:

Porque na época Santa Maria era um centro ferroviário [...] fortíssimo, eles tinham
uma indústria muito forte. Então tinha muita greve na época, e as guarnições do
quartel aqui eram muito grandes tinham oito, tinha acho que umas dez mil unidade
era fortíssima em termos de quartel. Então começou a ficar difícil em 64, começou a
ficar complicado a área da cultura que aí em março eles fizeram um golpe militar, os
militares tomaram e aí aim eles largaram o AI5. O teatro era muito difícil nessa
época [Faccin].

As peças dirigidas por Faccin, enquanto esteve a frente do TUSM, foram: Figueira
do inferno, de Joracy Camargo (1964)69; Vestir os nus, de Luigi Pirandello ( 1965) e Arena
conta Zumbi, de Guarnieri e Boal (1968).
No Brasil desse período havia o Serviço Nacional do Teatro (SNT), encarregado de
políticas de incentivo e fundos de auxílio. Esse órgão era um gestor dos assuntos culturais e
podia destinar verba para projetos artísticos. O diretor, Clênio Faccin, pretendeu melhorar as
condições do teatro:

Nesse meio tempo eu mandei para o Serviço Nacional do Teatro um projeto pedindo
dinheiro. Que equivale, mais ou menos, hoje a cem mil reais. Que nós recebemos
para reformarmos o teatro e melhorarmos as condições do teatro [Faccin].

Notamos que, juntamente com a conjuntura, a postura do TUSM mudou. O segundo


texto montado, por exemplo, se aproxima mais de um ensaio psicológico do que da política,
porém não se isenta disso. O enredo se passa em Roma, através da personagem principal,
Ercília Drei, uma garota sem família ou parentes e muito pobre. Ela é envolvida em uma rede
de intrigas no momento em que faz uma declaração mentirosa para a imprensa sobre os
motivos que a levaram a tentar suicídio. Sobre a escolha dos textos havia a preocupação de
que tivessem um conteúdo, compreendemos que fosse instigante, que levantasse discussões:

Nos tentamos sempre montar espetáculos primeiro dando preferência a autores


nacionais. Por exemplo, o Arena Conta Zumbi era do Gianfrancesco Guarnieri e
Boal. Guarnieri é um autor de grande conceito no Brasil. Boal também, não precisa
nem falar. Eu sempre dei preferência ao que tivesse conteúdo. [...] então eram textos
políticos, que eu montava na época, que falassem alguma coisa para os brasileiros
[Faccin].

69
Figueira de inferno é uma comédia de costumes em três atos. Escrita na década de trinta, trás no enredo o
dilema de uma mulher que, após fazer uma inseminação artificial, apaixona-se pelo doador sem ao menos
conhecê-lo. Seu marido passa a sentir ciúme do doador e tenta desesperadamente achar sua identidade.
44

Mas a questão do engajamento tinha se transformado. Não era mais de forma tão
direta como a postura do diretor anterior, Freire Jr., determinava. Em entrevista, João Luiz
Beck70 nos deu uma noção de como era o novo perfil dos integrantes do TUSM, quando foi
integrante em 1968:

Naquela época fui convidado para um teste por intermédio de uma atriz amiga Maria
Helena que já atuava no TUSM. Fui, e aprovado, iniciei os ensaios no então Teatro
da Casa do Estudante Universitário. Éramos um grupo bastante unido e sem uma
função muito definida além de atores. Conforme as necessidades lá estávamos no
batente. Me recordo de alguns colegas, como Jaime Pereyron, Joara Menna Barreto,
Maria Helena, Ana Gaiger (acho que era Gaiger) o Grande Demétrio Menna
Barreto, Cenógrafo e figurinista da peça. Caso fosse necessário fixar ou distribuir
folhetos lá estávamos nós [Beck].

(...) não estávamos muito ligados à situação política mesmo porque representávamos
culturalmente a UFSM. Se um ou outro participante do grupo era mais afoito com a
situação não demonstrava muito claramente. Tínhamos clareza da situação mas não
nos envolvíamos ou declarávamos abertamente, A situação era muito nova, não
dominávamos muito bem [Beck].

Pela fala de Beck, podemos perceber que o teatro na Casa dos Estudantes, ainda era
um ponto de encontro cultural e integração estudantil. Porém, se na fase de 1962 a 1964 o
TUSM era concatenado como parte do movimento estudantil, nessa nova conjuntura, ele
passava a ser um departamento da FEUSM, chamado desde então de DCE, não mais movido
pelo movimento estudantil, mas um meio de promover e popularizar o teatro entre os
universitários, preparar atores em oficinas em laboratórios de artes cênicas entre os
estudantes. A seguinte passagem é esclarecedora sobre isso:

Nós oferecíamos para o ensino universitário laboratórios no próprio teatro, na época,


hoje a gente chama de oficinas, chamávamos de laboratório, [...] nós oferecíamos
esse tipo de trabalho para os universitários. E era interessante que como não tinha (o
curso de artes cênicas), os alunos eram universitários da área da medicina, eram de
várias áreas que participavam do teatro, não é como hoje que só atuam profissionais
das artes cênicas [Faccin].

A verba solicitada por Faccin ao SNT, com o intuito de reformar o teatro,


coincidentemente chegou quando os artistas e técnicos do TUSM retornavam de um festival
de teatro no exterior. Em 1968, em Manizales, na Colômbia, ocorreu o Primeiro Festival
Latino-Americano de Teatro Universitário. O grupo fora selecionado a participar com o

70
João Luiz Beck, 62 anos, é professor aposentado, reside em Porto Alegre. Formado em Filosofia Pura com
licenciatura em Psicologia e Sociologia na UFSM. Começou a trabalhar como ator no TUSM sob direção de
Clênio Faccin, onde atuou em um único espetáculo que foi Arena conta Zumbi. Depois, foi compor o elenco do
grupo Presença, fundado e dirigido por Freire Jr.
45

espetáculo Arena conta Zumbi.71 Para a montagem, Faccin, usou recursos como máscaras e
fez dele um espetáculo musical, incluindo músicos na comissão. A repercussão no festival foi
grandiosa, tendo o grupo ficado com o terceiro lugar, além do prêmio do júri popular. Entre os
jurados estavam Pablo Neruda72, Miguel Ángel Asturias73 e Jacques Lang. 74 Apesar de ter
alguns problemas na constituição cênica do espetáculo, segundo Facin:

teve uma grande repercussão esse espetáculo porque é um espetáculo musical [...] eu
inovei. Nós usávamos naquela época metade do rosto preto metade do rosto branco.
Porque era um espetáculo que se referia a escravidão, principalmente no nordeste e
era um espetáculo histórico muito belíssimo tanto que fizemos sucesso tirando
terceiro lugar em toda América. E isso projetou um grande impulso para o meu
trabalho no teatro [Faccin].

(...) Não resta dúvida que a repercussão foi das melhores possível, mas também vez
que outra tinha os que davam contra. Sabíamos das nossas limitações quanto a
montagem da peça. Tivemos problemas em montar o espetáculo como o texto pedia.
O júri popular em Manizales nos aplaudiu no todo mas o júri oficial percebeu nossa
falhas não no sentido de representar mas como disse na montagem do todo. Faltaram
objetos de cena (projeções) que o texto pedia e que por falta de verba não
conseguimos levar. Lembro que "Pablo Neruda" membro do júri fez ótimos elogios
ao espetáculo mas salientou algumas faltas. Mas sem dúvida foi um grande
acontecimento para Sta. e para UFSM. Lembro agora que nos apresentamos com o
espetáculo no Festival da Uva em Caxias sendo esse meu último contato com a peça
[Beck].75

Enquanto estiveram no festival, os integrantes do TUSM envolveram-se nas


discussões a respeito da organização do mesmo. Vários grupos de teatros universitários
pretendiam fazer uma passeata para que as entradas para assistir aos espetáculos não fossem
cobradas do público. O grupo manifestou-se contrário à passeata, propondo que, ao invés de
serem cobrados os ingressos, fossem feitas apresentações extraordinárias em diversos lugares
da cidade, cuja população residente em bairros periféricos não tivesse acesso aos espetáculos.
Em oficio feito ao retornar da Colômbia, Faccin se refere ao fato:

a maioria dos grupos participantes seguiam nitidamente de esquerda, tentando, em


certas ocasiões, subverter a ordem reinante no festival, incentivados pelo próprio
Grupo que representava o país anfitrião[Faccin].76

71
Consultar anexo H. Portfólio do festival em anexo. Outro grupo a representar o Brasil em Manizales foi a
Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará, com o espetáculo A pena e a lei, de Ariano Suassuna.
72
Poeta chileno.
73
Escritor e diplomata guatemalteco.
74
Político francês.
75
Entrevista realizada com João Luiz Beck, em 11 de novembro 2010. Concedida via e-mail.
76
Anexo I.
46

A partir dessa fonte, fica mais explicita a mudança que ocorrera na constituição do
TUSM, evidenciada na resposta ao questionamento sobre se os integrantes participavam da
militância política do DCE:

não, normalmente não era ligado porque era eu que escolhia os atores para o
espetáculo [Faccin].

Mesmo não tendo uma postura politicamente combativa, Faccin nos relata seus
problemas com a censura que se acirrava em torno das diversões públicas:

Depois de 68 eles queriam que escolhessem inclusive os textos que eu queria


montar. Lógico [...] que existem vários motivos para eu ter deixado a nossa sede que
era o teatro de arena do TUSM. Um dos motivos foi esse, outro motivo foi a
censura, outro motivo foi o golpe político. E depois do golpe eles queriam escolher o
texto que eu iria montar, aí também não, era absurdo escolher texto pra você montar
[Faccin].

Outro motivo, talvez o mais latente para que o TUSM tivesse suas atividades
encerradas definitivamente, foi o uso da verba recebida do SNT para as melhorias na Sala
João Belém e na construção da Boate do DCE, a qual existe até os dias atuais. Esse fato
deixou muitas mágoas nos envolvidos com o TUSM. Faccin esclarece que o DCE, em 1968,
decidiu sobre o destino da verba à revelia do projeto de reforma. Em ofício ainda com o
holograma da instituição estudantil, o TUSM declarou que para 1969 estaria promovendo
mudanças na sua constituição.77 Nas palavras de Faccin:

Quando voltei da Colômbia veio esse dinheiro do Serviço Nacional do Teatro e o


presidente do DCE na época disse assim pra mim: olha é o seguinte teatro não dá
dinheiro, eu vou transformar o teatro numa boate [Faccin].

Além disso, Faccin pondera:

Mas como naquela época era ditadura, realmente não tinha o que fazer, não tinha,
não tinha poder político para alterar o que DCE (decidia), porque o TUSM era um
departamento do DCE, eu não tinha força politica naquela época da ditadura. Foi por
isso que eu fundei o TUI. Porque que eu botei independente, Teatro Universitário
Independente, para que se fosse independente de tudo e de todos. Principalmente na
época que a censura era terrível. Eu passei por toda essa época da ditadura eu passei
entendeu? Eu tenho vários textos comigo lá no TUI, todo eles com carimbo da
censura [Faccin].

Ao desvincular o TUSM do DCE, Faccin formou novo grupo, dessa vez


independente, assim podendo continuar suas pesquisas teatrais, além de investir no Teatro
77
Anexo J. Oficio com holograma do DCE.
47

Infantil, uma linguagem pouco explorada no teatro do período. A intenção era burlar a
censura que havia se agravado com o AI-5. Para esse evento, ele escreveu peças nas quais
fazia de forma lúdica uma crítica social, culminando com uma linguagem didática própria
para crianças. Nesses dois momentos, tanto no TUSM quando no TUI, Faccin contribuiu para
a vida cultural teatral da cidade de Santa Maria.
Sobre o aspecto da censura, compreendemos que 1968 foi um momento depois do
Golpe, os debates sobre reforma agrária e a questão da resistência eram levadas aos palcos
pelos grupos teatrais. Primeiramente não houve mudança na dinâmica dos grupos. Mesmo que
a censura estivesse presente anteriormente, ela assumiu outro marco de um processo que
vinha sendo instituído desde 1964, no que se refere às diversões públicas. Desde sua criação
em 1945, o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) fora um departamento de
setores estaduais até a década de 1960, quando sua sede foi transferida do Rio de Janeiro para
Brasília (GARCIA, 2008, p. 12). Ocorreu por parte dos novos donos do poder um esforço no
sentido de tornar esses departamentos setoriais estaduais em um órgão centralizado e
organizado para ser o principal ponto de diagnóstico das diversões públicas.
O teatro não foi a única forma artística a sofrer com a censura. Porém, o alcance
social dessa arte teve sua parcela de responsabilidade sobre si mesmo. O ato de atuar é
imprevisível. Isso torna a arte teatral como uma prática subversiva por natureza. Foi
proposital que essa arte fosse deslocada do centro para a periferia, onde outras formas de
intervenção artística relacionadas aos meios de mídia de massa fossem alocadas. Não há
controle total sobre o fazer do ator. Mesmo a censura talhando textos quando seu julgamento
o considerava perigoso, a capacidade de decidir sobre o personagem e a improvisação é do
ator. Ele é o responsável por sua atuação que estará sob seu próprio poder decisório,
relacionada às suas convicções e criatividade. Um exemplo desse aspecto é exposto por Beck:

Época que a censura existia mesmo e com muita força. Cenas mais fortes picantes,
palavrões não eram permitidas. Lembro que para cada estreia tínhamos que
apresentar o espetáculo pronto para a censura. No tempo do Grupo Presença e por
minha culpa, o Pedro (Freire Jr.) vez que outra era chamado por que eu era o rei do
"caco"78 e do palavrão. Lembro também. que durante as apresentações sempre tinha
alguém da censura na plateia. Na verdade isso não incomodava. Queríamos era nos
divertir [Beck].

78
O termo “caco” é bastante comum no meio teatral e se refere às improvisações do ator que foge da estrutura
oficial do espetáculo. Podem ser para complementar uma fala ou para dar um aspecto mais realista e natural ao
texto original quando falado. Os cacos não são formas fixas. Dependem em absoluto do ator, pois o diretor
poderá interferir somente depois de o espetáculo ter sido apresentado, advertindo o ator sobre a sua atitude
quando esta compromete a estrutura dramatúrgica.
48

Outros fatores encaminharam para tal situação. As novas formas de diversão pública
como o cinema e a televisão foram tomando espaço cada vez maior. Isso se deu, na medida
em que o seu acesso e a sua linguagem empreendiam relações comerciais mais condizentes
com a ordem capitalista que se fortalecia com o governo golpista.
Atualmente, como já dissemos, no lugar onde era o teatro de arena do TUSM, existe
a boate do DCE da UFSM, importante ponto para integração dos universitários e para
manutenção econômica da entidade estudantil. Fora um sinal dos novos tempos, em que a
necessidade capital não estava mais na arte, mas na agregação de mais indivíduos com
finalidade financeira. A estrutura da boate pode ser um testemunho razoável desse processo.
49

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tivemos a oportunidade de constatar na História de Santa Maria, não um


correspondente, mas uma experiência particular de um movimento cultural e político que teve
aspectos semelhantes com outros do mesmo tipo na formação sócio-histórica brasileira.
Consideramos que os aspectos similares são a conjuntura de construção democrática, os
indivíduos envolvidos serem jovens e a arte teatral como articuladora. As peculiaridades que
os afasta são: o lugar, Santa Maria e a condição de atrelamento ao movimento estudantil
universitário em formação.
Ainda verificamos as condições que esse movimento encontrou para sua criação. O
primeiro momento fora não somente de articulação, mas de uma instrumentação da arte.
Percebemos que a relação de engajamento na arte pode ter várias faces, sendo de
silenciamento diante da situação ou de contestação crítica do status quo. Silenciar não implica
concordar.
O primeiro grupo a compor o TUSM se declarava engajado e o era. O que não torna
a segunda formação, de 1964 a 1968, menos engajada. Pelas suas montagens, percebemos que
levava em consideração o momento histórico por meio da estética e não por meio direto da
orientação política. Porém, através de suas escolhas estéticas é possível atestar que foi levado
por suas posturas política, sendo dessa maneira a arte uma prática política.
Compreendemos que não se pode prever a dimensão e o alcance da proporção de
mudanças que pode provocar uma prática artística sem levar em conta que toda uma nova
orientação social e política estavam ocorrendo concomitantes. Uma não se dava sem a outra.
É dessa maneira que situamos o TUSM, formado lado a lado com o movimento estudantil
universitário, contemporâneo ao fechamento pelos militares em 1964, com direção de Pedro
Freire Jr., bem como sua nova formação com a direção de Clênio Faccin, neste mesmo ano e
sua extinção permanente em 1968.
Fruto de uma conjuntura específica, não é difícil de compreender que uma nova
situação política muito diversa o levasse ao seu fim. Temos então o seu nascimento dentro de
um movimento estudantil universitário e sua extinção também por um movimento estudantil
universitário.
50

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma História de paixão e consciência. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1994.
BENTLEY, Eric. O teatro engajado. São Paulo: Zahar, 1969.
CORRÊA, Roselâine Casanova. Cenário, cor e luz: amantes da ribalta em Santa Maria
(1943-1983). Santa Maria: Editora da UFSM, 2005.
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=perso
nalidades_biografia&cd_verbete=823. Acesso em dois de fevereiro de 2011

GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: Teatro e censura na Ditadura Militar
(1964-1985). Rio de Janeiro: 2008, UFRJ, p. 96. Tese de Doutorado. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp056609.pdf. Acesso em 28 de novembro de
2010.

HESSEL, Lothar. O teatro no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1999.
HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
- KONRAD, Diorge Alceno. Seqüelas de Santa Maria: Memórias do apoio e da resistência ao
Golpe de 1964. In. PADRÓS, Enrique Serra (org.). As ditaduras de segurança nacional:
Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura/CORAG,
2006.
LOPES, Luiz Roberto. História da America Latina. 2 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1989.
______. História do Brasil Contemporâneo. 5 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
MEDEIROS, Elen. O teatro brasileiro e a tentativa de modernização. In. Terra roxa e outras
terras – Revista de Estudos Literários, São Paulo, v. 14, verão 2008.
OLIVEIRA, M. M. Freitas de. “ O Movimento Estudantil Universitário de Santa Maria de
1960 a 1968.” In. QUEVEDO, Júlio Ricardo; IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Movimentos
sociais na América Latina: desafios teóricos em tempos de globalização. Santa Maria:
MILA-CCSH-UFSM, 2007, p. 215 - 234.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In. REIS
FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a
Ditadura Militar. 40 anos depois (1964-2004) Bauru: EDUSC, 2004.
51

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da


TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. pg 74.
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. In. REIS
FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a
Ditadura Militar. 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004.
SCHILLING, Getulio. A arte fotográfica e o teatro em Santa Maria. Santa Maria: Pallotti,
2005.
WASSERMAN, Claudia. Democracia na América Latina: limites e possibilidades. In.
WEBER, Beatriz Teixeira; KONRAD, Diorge Alceno. (orgs) Visões do Mundo
Contemporâneo: caminhos, mitos e muros. Santa Maria: FACOS-UFSM, 2007.

Documentário

Freire Jr. Direção de Luiz Carlos Grassi. Santa Maria: 2008. 1 DVD (27 min), son., color.,
MINIDV.

Entrevistas

Clênio Faccin. Entrevista cedida à Karina Maia Dick no Hotel Itaimbé situada na Rua
Venâncio Aires, Santa Maria em 23 de julho 2010.

João Luiz Beck. Entrevista cedida à Karina Maia Dick Entrevista em 11 de novembro
2010. Realizada via e-mail.
52

ANEXOS
53

ANEXO A- Reportagens sobre inauguração da Sala João Belém.

ornal de 1962, do acervo pessoal de Luiz Carlos Grassi.


54

ANEXO B - Reportagem sobre a estreia do espetáculo Eles não usam black-tie.

Fonte: Jornal de 1962, do acervo pessoal de Luiz Carlos Grassi.


55

ANEXO C - Reportagem sobre a estreia do espetáculo À margem da vida.

Fonte: Jornal de 1962, do acervo pessoal de Luiz Carlos Grassi.


56

ANEXO D - Reportagem sobre Reformas de Base.

Fonte: Jornal do acervo pessoal de Luiz Carlos Grassi.


57

ANEXO E - Reportagem sobre a adesão à greve dos universitários.

Fonte: Jornal/ 2 de junho de 1962, do acervo pessoal de Luiz Carlos Grassi.


58

ANEXO F - Reportagem sobre a posse do presidente da FEUSM.

Fonte: acervo pessoal de Luiz Carlos Grassi.


59

ANEXO G – Ofício com data da criação do TUSM.

Fonte: Acervo documental do Teatro Universitário Independente.


60

ANEXO H – Portfólio do I Festival Latinoamericano de Teatro Universitário

Fonte: Portfólio/ acervo documental do Teatro Universitário Independente.


61

ANEXO I – Primeira parte do relatório sobre o Festival.

Fonte: Relatório/ acervo documental do Teatro Universitário Independente.


62

ANEXO J – Segunda parte do relatório sobre o Festival.

Fonte: Relatório – acervo documental do Teatro Universitário Independente.


63

ANEXO K – Ofício.

Fonte: acervo documental do Teatro Universitário Independente.

Você também pode gostar