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A SEGREGAÇÃO COMO NEGÓCIO E A PRODUÇÃO HOMOGÊNEA E

DESIGUAL DO ESPAÇO DA METRÓPOLE: ALGUNS APONTAMENTOS1

Eduardo Henrique Freitas Braga2


ehfreitasbraga@usp.br

RESUMO

O presente texto tem como objetivo ser instrumento final de avaliação da


disciplina “FLG5167 - A tese da cidade como negócio”, ministrada no
Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana (PPGH-USP) pela
Professora Dr.ª Isabel Aparecida Pinto Alvarez e pelo Professor Dr. César
Ricardo Simoni Santos. O artigo em questão busca mobilizar parte da
literatura utilizada na disciplina em conjunto com reflexões sobre a pesquisa
de doutorado em desenvolvimento pelo discente, então intitulada “Outro
endereço desse mesmo lugar: Manaus na trilha da cidade como negócio e
segregação”, sob orientação da Professora Dr.ª Ana Fani Alessandri Carlos.
Ainda em desenvolvimento, o texto busca trazer uma compreensão da
cidade como negócio como sentido da segregação, e portanto, da periferia
como horizonte social do processo de reprodução do urbano atualmente.
Além disso, a noção de desigualdade aparece como uma possibilidade
teórica na tentativa de, futuramente, poder compreender a capital
amazonense em um processo transescalar no território brasileiro, na
consolidação da cidade como negócio como realidade hegemônica na
produção do espaço hoje.

Palavras-chaves: A tese da cidade como negócio; Segregação; Periferia;


Manaus-AM; Produção desigual do espaço.

1
Trabalho final referente à disciplina “A tese da cidade como negócio” (FLG5167).
2
Doutorando em Geografia Humana (PPGH/FFLCH/USP) sob orientação da Prof.ª Dr.ª Ana
Fani Alessandri Carlos.
INTRODUÇÃO

A urbanização brasileira corresponde a um processo de natureza


desigual no tempo e no espaço. O território nacional é, antes de tudo, locus
de um capitalismo que constrói formas diferenciais dentro de uma
acumulação capitalista acelerada, entre o agrário e a indústria, entre o
moderno e o contemporâneo, entre o centro e a periferia. É desse modo que
a complexidade urbana brasileira aponta para um ponto comum: a cidade
como negócio, que se mostra hoje, na face da segregação como negócio. A
urbanização desigual é, também, um espelho que nos permite vínculos
próprios a uma urbanização crítica, desumanizante e consolidada na
problemática da moradia como principal imagem.
Por isso, o texto aqui procurará se dividir em 3 partes, mais como um
ensaio do que propriamente um texto de aprofundamento investigativo - o
qual ainda não é seu propósito e possibilidade.
A primeira parte buscará, no interior de uma reflexão baseada nas
leituras realizadas em sala durante a disciplina, estabelecer “emergências
teóricas” que nos ajude a situar-se na discussão da urbanização crítica e da
cidade como negócio e segregação. Com o intuito de localizar-se na
discussão, o empreendimento filosófico aqui reconhece suas limitações,
ainda que busque, com elas, posicionar-se.
A segunda parte, mais extensa, situa-se na discussão da periferia e da
segregação como elementos fundamentais - inerentes - à cidade como
negócio, apresentando a cidade de Manaus-AM como lugar de análise
possível.
A terceira e última parte dedica-se à possibilidade teórica do
desenvolvimento espacial desigual como fonte de entendimento da
urbanização brasileira no momento atual, aproveitando-se de observações
anteriormente realizadas.
É, acima de tudo, um ensaio que busca reconhecer-se como uma
reflexão embrionária, talvez potente, da cidade como negócio no seio da
urbanização crítica brasileira - trazendo a metrópole manauara como campo
de investigação.

UMA EMERGÊNCIA, ANTES DE TUDO, TEÓRICA

O movimento que parte e sinaliza para uma geografia urbana radical


é produto de duas dimensões: uma teórica e outra prática. Nascida da
metrópole, a crítica ao urbano encontra no capitalismo periférico um terreno
fértil onde a práxis revela e o conhecimento apreende um conceito concreto,
em movimento, em vias de formação - a cidade como negócio.
É o negócio, nesse sentido, a possibilidade da cidade ser vendida
como uma mercadoria - fragmentada, desarticulada de sua apropriação
coletiva, mas sim sacralizada enquanto propriedade privada.
A mercadoria, então, atravessa o espaço, marcando-o e tornando-o
um adjetivo imediato do capitalismo, o espaço-mercadoria. Ao totalizar o
processo de produção do espaço, a cidade surge não como uma forma
renascida com outros significados, mas como a forma da modernidade, uma
forma tão desfigurada do sentido coletivo que acaba se transformando em
valor de troca, onde o contraditório toma o sentido de estranho. O que está
posto no fundamento do espaço-mercadoria é, portanto, a contradição entre
a produção social do espaço e sua apropriação privada e mediada pela
propriedade (ALVAREZ, 2015).
É nesse sentido que a cidade como negócio torna-se virtualidade e
realidade absoluta3 do espaço da metrópole, pondo-a sob um processo
homogêneo e desigual, simultaneamente.
Partindo da ideia de que a produção desigual do espaço encontra-se
na base da reprodução das relações sociais de produção fundadas no
processo de acumulação, a metrópole ganha força como potência
elucidativa do mundo moderno, e como expressão maior da vida urbana

3
Aqui, o sentido de absoluto não procura ignorar a existência de tensões ou resíduos no
interior do urbano, mas entende que a própria contradição nasce da tendência
homogeneizante do espaço-mercadoria.
cada vez mais homogênea. O processo a partir da metrópole, portanto,
estabelece novas problemáticas quando pensadas a partir do lugar e de
como desigualmente esta é produzida a cada tempo, mas mais ainda, cada
espaço, atravessando escalas e iluminando as problemáticas das dinâmicas
socioespaciais - o urbano como negócio e a propriedade privada da terra
como ponta do processo.
O espaço urbano da metrópole ganha centralidade no momento da
análise, assume lugar de destaque na conjuntura socioespacial que se
realiza - o que já consolida uma determinada tradição na geografia urbana
brasileira. É preciso, entretanto, assinalar algumas superações:
A primeira, a superação do tempo pelo espaço, evidencia o
deslocamento da problemática do mundo moderno que põe no centro o
urbano, e o espaço da cidade como lugar que totaliza a vida - o cotidiano, os
ritmos, os símbolos. Produto do processo de valorização, o reposicionamento
da dialética se firma sob a tensão posta pelo espaço-mercadoria, resultado
de uma determinada atividade produtiva útil e complexa (CARLOS, 1982). Ao
mesmo tempo em que se identifica o recrudescimento de uma dialética
espacial, o tempo não assume posição marginal na compreensão da
modernidade, mas sim se localiza como um dado fundamental nas
transformações do próprio espaço, como um eixo que permite o testemunho
das mudanças na extensão do social (tanto na dimensão da paisagem
quanto na dimensão dos ritmos da vida cotidiana). É preciso, entretanto,
compreender agora o movimento da sociedade a partir de sua imposição
como sociedade urbana, portanto, na intensificação das formas capitalistas
de cooptação do humano que se realizam pelo e no espaço.
Outra superação que sugerimos realizar no plano do pensamento é a
do fragmento como recorte ao fragmento como elemento revelador da
totalidade. Comum à Geografia de tradição monográfica e posteriormente
quantitativa, convencionou-se a pôr a descrição como fim em si, provocando
confusões entre procedimento e método, instrumento e pensamento,
exposição e compreensão. O fragmento, em uma perspectiva crítica e
radical que se pretende a partir do escopo do materialismo dialético e de
uma leitura lefebvriana do espaço, guarda os elementos da totalidade, ou
seja, os fundamentos globais dos processos que se materializam localmente.
A compreensão da cidade a partir da cotidianidade permite o alcance da
compreensão de processos ainda em movimento, como a periferização (e
sua redefinição na cidade capitalista do século XXI), a constituição de eixos
imobiliários voltados a diferentes rendas, entre outros.
Mais um importante movimento é o que desloca a metrópole como
lugar do negócio a ela em si como o negócio. A leitura da cidade e do urbano
a partir da virada do século se localiza no superlativo metropolitano que
configura às metrópoles do capitalismo (também central, mas
predominantemente periférico) um lugar privilegiado na reprodução das
relações capitalistas. É na metrópole que se materializam as demandas do
capital e sua incessante necessidade de redução do tempo de giro (SIMONI
SANTOS, 2011).
Nesse sentido, o reposicionamento do urbano - e da metrópole em si -
dentro da análise de geografia urbana se dá como um elemento central na
emergência teórica aqui proposta. Tal emergência se dá, justamente pela
transformação nas metrópoles brasileiras nas últimas décadas, o que se
observa tanto nas metrópoles “centrais”, como São Paulo, quanto nas
metrópoles “periféricas”, como Manaus.
Talvez um dos mais recentes movimentos aqui sinalizados tenha sido a
superação da periferia como forma da exclusão à periferia como forma total
(tendencial) da urbanização. De antiga tradição na literatura social
brasileira, a periferia ainda é ponto de disputa no plano das políticas
públicas tanto quanto no campo semântico. Martins (2001) identifica certa
tensão na ideia de periferia, apontando-a ora como o negativo do urbano,
no sentido de uma degradação material, ora como lugar de
instrumentalização de políticas populistas de esquerda e direita. De todo
modo, a periferia desponta como o sentido homogêneo da urbanização do
território, para onde se voltam as políticas habitacionais, os
empreendimentos imobiliários de alto padrão e as ocupações informais,
mediadas muitas vezes por um complexo e confuso conjunto de alianças
entre o Estado e outros sujeitos econômicos, políticos e/ou sociais.
Em um último momento, este de concepção ainda embrionária, surge
o desenvolvimento espacial desigual como possibilidade teórica na tentativa
de compreender a urbanização crítica brasileira, tendo a cidade como
negócio como sua principal imagem e conceito. A cidade como negócio
torna-se, no curso da urbanização contemporânea, uma realidade
homogênea, real e virtual. Os diversos estudos sobre a Grande São Paulo e
sua dinâmica metropolitana colocam-a no ponto do processo de reprodução
das relações sociais de produção capitalistas, o que - também por configurar
uma centralidade nesse sentido - possui diversos feixes de observação dessa
realidade.
É certo, porém, que algumas das características observadas na
metrópole paulistana também se estendem a outros lugares do território
brasileiro, ainda que em um espaço-tempo diferente - desigual. É nesse
sentido que se faz necessária uma emergência do pensamento urbano
crítico radical que contemple também outras realidades urbanas, outras
práxis, para que uma outra teoria seja construída - mais potente, por sinal.
É a partir destas sinalizações - que não pretendem-se novas ou mesmo
despercebidas, mas sim emergentes para a virada teórica da análise - que o
texto aqui envereda, colocando a periferia urbana na centralidade das
discussões.

O LUGAR DA PERIFERIA NA CRÍTICA DA URBANIZAÇÃO CRÍTICA

É preciso repensar o lugar da periferia na metrópole, ou seja, sua


natureza enquanto espaço privilegiado de investidas do capital. A periferia
se revela, em um momento mais imediato e sem quaisquer derivações, como
uma dimensão morfológica da metrópole moderna - revela-se, portanto,
como segregação. Optando por uma compreensão que busque a
constituição da natureza da periferia da metrópole na urbanização crítica4, o
movimento do pensamento aqui empreendido busca sinalizar a cidade como
negócio como a figura hegemônica do urbano, apontando na precariedade
seu sentido: da mobilidade, das formas da habitação, do trabalho, e das
próprias políticas urbanas como amenidades no interior do espaço da
metrópole.
A cidade como negócio assume na segregação sua forma mais
acabada, abstraindo do urbano o conteúdo da coletividade pertencente a
ele. Ao ser vendida em fragmentos no mercado, a cidade assume a forma do
espaço-mercadoria - objeto de necessidade e de desejo, portanto de luta e
elemento mobilizador de tensões e contradições.
Nesse momento, a periferia surge como o lugar que reúne os
elementos constituintes do urbano contemporâneo, atuando como um locus
privilegiado de reprodução do capital. A sua imagem, entretanto, é a da
clássica oposição ao centro. Tal relação, tradicional nas ciências humanas,
apresenta-se como morfologia, o que já se dá como insuficiente para a
compreensão dos espaços periféricos em uma geografia urbana crítica
radical. Essa relação de oposição, como afirma Grespan (2002), se dá pois

[...] as coisas diferentes o são porque estão numa relação que as


diferencia, isto é, que as reúne e, por outro lado, separa. Daí que a
diferença surja de seu oposto, da unidade enquanto regulação dos
diferente; e que a unidade, por sua vez, não dependa de uma
igualdade ou identidade absoluta de algo consigo, sendo, ao
contrário, a unidade dos diferentes - a oposição. Os opostos têm
cada qual no outro o seu negativo determinado, o seu outro, e não
um outro qualquer (p. 36).

A natureza da noção clássica de periferia em oposição ao centro,


parece, portanto, passar por uma crise. A transformação teórica da periferia
e do sentido da periferização nos últimos anos passa, então, é estimulada,
entre outras coisas, pela transformação das periferias urbanas das grandes
metrópoles brasileiras. A forma-periferia não é mais uma exceção, mas uma

4
A urbanização crítica carrega aqui o sentido trazido por Damiani (2009), de destituição da
humanidade, do homem-habitante e da crise do trabalho contida na crise do capital.
regra - um elemento constitutivo máximo da urbanização atual. Como traz
Rizek (2022), a periferia passa por uma crise - no pensamento e na prática,
por abrigar um rico terreno de elaborações sobre o urbano brasileiro, assim
como também a crise da moradia, do direito e da justiça espacial como
parte inextinguível da dignidade humana. As periferias, segundo a autora,
sinalizam que

[..] um conjunto de afirmações sobre as desigualdades urbanas que


se delineiam especialmente (mas não só) nas grandes extensões
periféricas toma corpo. Assim, ora as periferias são consideradas e
pensadas como expressões equivocadas da pobreza já que, na
verdade, dizem respeito a bairros consolidados; ora ainda se tornam
objeto de discurso qualificado como catastrofista e miserabilista que
falseia a realidade urbana (p. 51).

Nesse sentido, cabe trazer a realidade manauara ao texto, como uma


tentativa de viabilizar as reflexões aqui realizadas. A capital amazonense,
comumente tratada como a metrópole da Amazônia ocidental, carrega em
sua imagem a herança da industrialização tardia do território brasileiro.
Sem, de modo algum, cair em um regressismo vazio, é importante, porém,
entender a trajetória da periferia em Manaus5.
Com infraestrutura consolidada da economia gomífera, a indústria
como modelo produtivo arrebata a cidade de Manaus ao final da década de
1960, e de imediato produz espacialidades estranhas ao modo de vida
caboclo. A destituição da chamada cidade flutuante é talvez a
representação mais forte de tal período, onde no ano de 1966 abrigava
11.400 moradores.

5
Tal ideia não se esgota neste texto, pela necessidade de maior aprofundamento, o que não
cabe no presente trabalho.
Figura 1: A Cidade Flutuante, em Manaus-AM6

Fonte: Instituto Durango Duarte (IDD)

Deslocados para a atual zona sul da cidade, então área mais periférica
de Manaus, os moradores da cidade flutuante inauguraram uma das
paisagens decorrentes do assalto da indústria à cidade, para usar a
expressão de Henri Lefebvre.
A extensão da periferia manauara durante as décadas de 1960, 1970,
1980 e 1990 prosseguiu em direção às zonas norte e leste,
predominantemente. A criação do BNH fomentou a construção de diversos
conjuntos habitacionais nas franjas da cidade, o que se seguiu nas primeiras
décadas do século XXI: foram 28 conjuntos habitacionais construídos entre
2001 e 2016, totalizando 34.118 unidades habitacionais.
Além da expansão dos conjuntos habitacionais promovidos pela
política pública de provisão de moradias, a periferia manauara também se
constituiu como lugar da autoconstrução, abrigando a população
pauperizada que migrava do interior do estado e de outros lugares como o
estado do Pará e Ceará, principalmente.
6
https://idd.org.br/reportagens/exotica-cidade-flutuante-de-manaus2/
Figura 2: Extensão da mancha urbana de Manaus - AM em 1984.

Fonte: Google Earth

Figura 3: Extensão da mancha urbana de Manaus - AM em 2020.

Fonte: Google Earth


Pode-se reconhecer, portanto, três grandes eixos de ocupação da
periferia manauara: conjuntos habitacionais financiados pelas políticas
públicas; as ocupações informais; os condomínios fechados voltados a uma
população de renda mais alta. Estes últimos mais recentes, começam a criar
na metrópole manauara eixos bem específicos, como a Avenida Torquato
Tapajós (também compostas pela presença de indústria do setor alimentício,
de bebidas e outros ramos variados), o bairro Tarumã (que abriga algumas
das principais ocupações informais da cidade nos últimos anos) e a Avenida
Coronel Teixeira, que liga à região do bairro da Ponta Negra, um dos mais
caros da cidade.
Mas é nas periferias que também se localizam diversos
empreendimentos imobiliários menores, como apontado por Melo (2020),
além, e tem sido lugar de investimentos do poder municipal, através de
projetos como o ProUrbis I e II, que tem a participação do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Agência Francesa de
Desenvolvimento (AFD).7
É na periferia, portanto, que o poder público e privado se voltam neste
momento, materializando em sua forma mais acabada - adaptando-se às
particularidades de uma cidade como Manaus - a cidade como negócio. No
horizonte periférico, seu reposicionamento dentro da ordem econômica
urbana

[...] estão expostas com maior evidência as raízes da reprodução do


capital mais do que no próprio centro. Com o desenrolar de suas
contradições, o capital que durante muito tempo aparecia como
ondas irradiando dos centros apresenta hoje uma inflexão de sua
planetarização e a consolidação do mercado mundial, não podendo
a imagem do futuro ser outra, exceto a da periferia que aperta o
mundo com um cerco cada vez mais avançado (CANETTIERI, 2022,
p. 2-3).

O espaço da metrópole manauara, nesse sentido, parece se constituir


dos mesmo procedimentos que outras capitais brasileiras, onde a extensão

7
https://bncamazonas.com.br/municipios/prourbis-1122-milhoes-moradias-manaus/
das periferias se revela como um dado interessante não do ponto de vista da
expansão morfológica da cidade, mas como uma volta ao interior da
metrópole.
Em Manaus, que possui uma região metropolitana em crescimento há
10 anos, voltar-se à periferia da capital parece uma contratendência após os
investimentos feitos na construção da Ponte Rio Negro (Ponte Philipe Daou)
e nos diversos empreendimentos imobiliários na rodovia AM-070, verificado
em trabalho anterior (BRAGA, 2019).
De todo modo, a periferia manauara avança sobre espaços verdes e
mesmo culturais, como na recente ocupação do cemitério indígena
localizado no bairro Nova Cidade, na zona norte da capital.8 Assim, “a
reprodução de territórios-reserva, e sua posterior liberação para
investimentos futuros do imobiliário pressupõe a aniquilação de sua história
e conteúdos sociais anteriores” (SIMONI SANTOS, 2006, p. 121).
Outra característica da periferia manauara é a ausência de “favelas”
nas áreas centrais da cidade, sendo este um dos pontos que a difere de
cidades como o Rio de Janeiro. Em Manaus, a característica predominante é
a ocupação das margens dos igarapés, que cortam todo o território da
capital.
Tal paisagem foi objeto de intervenção do estado em projetos como o
Prosamim (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus), tentativa
já realizada por governos anteriores, mas com insucesso, devido à volta dos
moradores às habitações de palafitas.

Houve, ainda, reclamação de moradores de uma área desapropriada


do PROSAMIM, em 2017, mas pelas baixas indenizações, alegando
que o preço ofertado pelo Estado não condizia com a realidade do
mercado imobiliário, no que concerne ao bairro Presidente Vargas,
no Centro de Manaus. Segundo um total de 100 moradores, as casas
foram avaliadas pela Superintendência Estadual de Habitação
(SUHAB) em preços entre R$ 13 mil e 15 mil. Contudo, a Defensoria
Pública do Amazonas afirmou que os moradores não poderiam
receber indenizações com valores inferiores a R$ 35 mil, valor
indicado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),

8
https://reporterbrasil.org.br/covamedida/historia/manaus-am/
como o piso para as indenizações das casas envolvidas no
PROSAMIM (MOTA, 2019, p. 151).

A intensificação do crescimento periférico na cidade de Manaus é


marcada temporalmente pelas duas últimas décadas do século XX,
principalmente. A expansão para as zonas leste e norte da cidade apenas
encontram obstáculos quando em contato com a Reserva Florestal Adolpho
Ducke, entre as duas zonas.
A constituição da periferia nestes dois espaços se deu com todos os
clássicos elementos das periferias metropolitanas brasileiras: ocupação de
terras, autoconstrução, e posterior legitimação das ocupações com status de
bairro, reconhecidos pelos planos diretores.
Loureiro (2022) discute brevemente acerca da constituição
populacional dessas periferias, que no contexto nacional correspondia a uma
política de integração econômica da região às áreas mais industrializadas. A
precarização do trabalho, os baixos salários, a expulsão de famílias
indígenas e que posteriormente buscavam a cidade, formaram a periferia
manauara, ajudando sua consolidação como maior parte do território
ocupado da capital.

A coroa suburbana apresenta-se como frente pioneira e de


colonização da urbanização. Esta leitura manifesta sua atualidade
inconteste. O urbano espelha e reproduz o aspecto crítico da
economia capitalista: no limite, “o enorme contraste de renda entre
classes dirigentes e proprietárias, e a massa da população sem
poder aquisitivo, que vive, no sentido próprio do termo, o dia a dia
(GEORGE, 1993, p. 165 apud DAMIANI, 2009, p. 330-331).

Reproduzia-se, portanto, o modelo centro-periferia, convertendo-o da


escala internacional à escala nacional. Nesse sentido, Damiani (2016) parece
acertar quando observa a relação centro-periferia como uma centralidade
em construção, mais do que como uma área de exclusão do processo e
instante de reprodução da urbanização crítica sob o capitalismo.
Há o tempo todo sendo posta a dialética entre centro e periferia no
urbano, o que num dado momento é a periferia abrigo da população
pauperizada, noutro momento é uma centralidade em constituição,
produzida e reproduzida economicamente e politicamente
(DAMIANI, 2016, p. 19).

Com tais características aqui expostas, mas longe de serem


exploradas com o devido aprofundamento que só uma pesquisa maior o
faria, cabe uma compreensão articulada à urbanização nacional,
fundamentada na cidade como negócio?

OUTRO ENDEREÇO DESSE MESMO LUGAR

Uma “Grande Manaus” apresenta diversas diferenças em relação a


uma “Grande São Paulo” ou “Grande Belo Horizonte”, por exemplo.
Entretanto, permanecem os fundamentos da reprodução. E no momento
atual, além da extensão territorial das periferias juntamente ao recebimento
de investimentos por todos os lados, uma característica parece surgir: a
presença do narcotráfico nas negociações de lotes em ocupações ilegais nos
espaços periféricos.
Cabe aqui mencionar que tal característica ainda não foi estudada in
loco, o que não parece ser também, uma tarefa em vias de concretização,
dadas as questões de segurança que envolvem estes espaços no interior da
metrópole manauara.
Entretanto, nos últimos anos, observou-se através de outros estudos o
crescimento da periferia na metrópole manauara, dando-se de modo acima
da média nacional.9 O aumento proporcional das áreas urbanizadas em
favelas teve, em Manaus, o índice de 44,9% de crescimento - o que totaliza,

https://mapbiomas-br-site.s3.amazonaws.com/MapBiomas_Area_Urbanizada_2022_03_11.
pdf /
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/11/04/manaus-foi-a-capital-do-pais-que-
mais-registrou-crescimento-de-favelas-em-37-anos-diz-estudo.ghtml /
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/11/04/area-de-favelas-de-favelas-dobrou
-em-35-anos-aponta-levantamento.ghtml.
em 2021, cerca de 9.549 hectares, dentro de uma área urbanizada que
aumentou 274% de 1985 a 2021.
Tais quantitativos servem apenas para identificarmos a dimensão
espacial do processo de periferização da metrópole de Manaus. Como dito
anteriormente, o que parece estar no horizonte do problema é a associação
do tráfico de drogas com a venda ilegal de lotes em ocupaçõs nas franjas da
cidade.10
Os grupos, que também possuem atuação nacional, como o Primeiro
Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), se tensionam com
poderes locais e regionais, como a Família do Norte (FDN) e Comando do
Norte (CDN).
A combinação entre o crime organizado (tráfico de entorpecentes) e a
venda de lotes na periferia da metrópole já tem sido observada, ainda que
com outros alinhamentos, em São Paulo, especialmente na zona sul da
capital paulista (SIMONI SANTOS, 2020b).
As similitudes na produção da periferia manauara e paulistana
parecem apontar para um acúmulo de elementos que, ao final, demonstram
o processo de urbanização contemporâneo em seu fundamento mais crítico:
a centralidade da periferia como o lugar de realização máxima da cidade
como negócio.

VIAS ENTREABERTAS

A cidade como negócio não é uma categoria trans-histórica (ALVAREZ,


2015). Ela se realiza na cidade capitalista que tem como lógica final a
realização da mais-valia e manutenção da sacralidade da propriedade
privada da terra.
Nesse sentido,

10

https://todahora.com/em-quatro-anos-manaus-teve-163-invasoes-maioria-e-liderada-por-e
nvolvidos-com-trafico/
O que parece estar posto é que a contradição entre a produção
social do espaço e sua apropriação privada e mediada pela
propriedade, bem como as necessidades e os interesses de classe,
fundamentam o processo de produção da cidade capitalista
(ALVAREZ, 2015, p. 66).

Soma-se a isso, os intensos processos de valorização e desvalorização


impostos às periferias das metrópoles nacionais, o que nos coloca uma
questão já feita por Volochko (2015):

Por que, em especial, a produção capitalista do espaço tem revelado


uma expansão dos investimentos em direção ao tecido urbano das
periferias? O que isto pode nos revelar sobre o momento atual da
urbanização, e que implicações vêm sendo produzidas nesse
processo (p. 105)?

Sob qualquer circunstância, um caminho para essa descoberta parece


não poder evitar uma leitura da urbanização brasileira que se não se
desarticule de um “desenvolvimento espacial desigual” na escala do
território, apontando a cidade como negócio como a realidade hegemônica.

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