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Crónica [longa] de um desastre anunciado:

A guerra pela ÁGUA

Acusados de privilegiarem o sector dos frutos vermelhos na atribuição de água, e depois de terem
estado debaixo de fogo nas últimas semanas no que respeita à crise hídrica que assola o
Perímetro de Rega do Mira (PRM), o Ministério da Agricultura e Alimentação (MAA) e a sua
Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) contra-atacaram esta semana
num artigo muito duro no jornal Público.

Voltando um pouco atrás, perante a seca gravíssima por demais prevista e instalada há anos no
Sudoeste, assim como a cada vez menor reserva de água da albufeira de Santa Clara,
entendemos que sucederam três coisas (ou muitas mais que não entendemos):

1 - A DGADR manifestou recentemente a intenção de destituir a direcção da Associação de


Beneficiários do Mira (ABM) acusando-a de vários incumprimentos, entre os quais a conivência
com negociatas ilegais de venda de direitos de água, situação por demais conhecida, e a não
apresentação de um plano de contingência contra a seca que plasmasse as diretivas da DGADR.
E quais eram?
Em 2021 a ABM foi mandatada em assembleia geral para pedir autorização à DGADR para
suspender novas inscrições de áreas, ao que a DGADR respondeu que legalmente não era
possível negar a qualquer beneficiário do Mira o acesso à água e que esta era distribuída de igual
forma por todos.
Já no final de 2022 veio a DGADR mudar de posição, acenando com um plano de seca do
Governo de 2017, requerendo volumes de água diferentes para culturas diferentes, uma “nova
lógica” de culturas permanentes, que culmina na classificação da framboesa cultivada em vaso
como cultura permanente em vez de temporária, e a interdição de regar a quem não regou em
2022.
Recentemente a ideia seria também substituir a direcção da ABM nomeando uma “comissão
administrativa” da confiança da DGADR e sabe-se lá mais de quem, até que existam eleições.

2 - Pouco tempo depois, a ministra da Agricultura publicou um despacho


(https://dre.pt/dre/detalhe/despacho/5084-2023-212438544) para mitigar (com 4 anos de atraso)
as consequências gravíssimas da seca, no qual:
- Insiste no mito irresponsável das "magníficas condições edafoclimáticas" desta região.
- Promove frutos vermelhos cultivados em vaso debaixo de estufas (e frigoríficos) a "culturas
permanentes", apoiando-se na portaria publicada no final de Fevereiro
https://dre.pt/dre/detalhe/portaria/54-q-2023-207942911 que contraria um despacho normativo
também do seu ministério https://dre.pt/.../det.../despacho-normativo/6-2015-66547565 que no
entanto ainda se reflecte tanto na página do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas
(IFAP) como na página da DGADR (https://www.dgadr.gov.pt/.../fruta-e-horticolas/legislacao).
- Mais escandaloso ainda, promove floricultura e plantas ornamentais, obviamente não
alimentares, a "culturas permanentes” num parque natural e em contexto de seca extrema.
- Exclui das culturas permanentes - que o são e assim se chamam - os “prados e pastagens
permanentes”, essenciais para os criadores de gado, assim como para os ecossistemas da
região.
- Interdita novas estufas e culturas permanentes no PRM, excepto as que tenham investimentos,
devidamente comprovados, em curso - à luz do que se tem passado, alguém consegue levar isto
a sério?

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- Não especifica quem fiscaliza tal coisa, sabendo que um quadro de ilegalidade tomou conta do
Sudoeste, parecendo praticamente um endemismo.
- Persiste na interdição do acesso a água a quem não regou no ano passado, sim, penalizando
quem VENDEU ÁGUA ILEGALMENTE, mas também quem a poupou ou quem queira voltar a
cultivar o seu terreno ou dar de beber aos seus animais. E "esquece-se" de penalizar quem
COMPROU ÁGUA ILEGALMENTE, sabendo-se quem o fez.

3 - Por altura da publicação deste despacho veio a ABM defender-se oficial e publicamente, nos
meios de comunicação social, afirmando agir dentro dos limites da lei e acusando o MAA de
querer destituir a sua direcção para aí colocar um fantoche qualquer que privilegie o lobby dos
frutos vermelhos que, por sua vez, toda a gente já tinha percebido que andava em Lisboa a tentar
salvar a pele, “queimando a restante agricultura em lume brando”. A ABM insiste que, seguindo a
lei evocada pela DGADR (Regime Jurídico das Obras dos Aproveitamentos Hidroagrícolas), se
bate pela equidade na distribuição de água, para que todos os agricultores, pequenos e grandes,
de todos os tipos de culturas, tenham direito à mesma dotação por hectare e que a partir daí
trabalhem mais ou menos terra (ou mais ou menos vasos no caso dos frutos vermelhos), de
acordo com o rácio entre necessidades hídricas e disponibilidade do recurso.

No meio deste fogo cruzado de acusações, que classificamos de uma irresponsabilidade


inominável em vias de matar uma região à sede quando há muito se bradavam alertas, o nosso
movimento Juntos pelo Sudoeste foi recebido pelo Secretário de Estado da Agricultura e já
esperava que houvesse um contra-ataque nos meios de comunicação social por parte de uma
DGADR acossada. E assim chegamos ao artigo do Público que fala sobre:
- O negócio associado à venda ilegal de água entre detentores de direitos de água, do
conhecimento da ABM (e de tanta gente dos mais diversos quadrantes).
- A incapacidade desta para completar candidaturas para investimentos no AHM/PRM.
- As anomalias supostamente detectadas nas áreas regadas em 2021 e 2022, em vez de seguir o
"Plano de Contingência para Situações de Seca, adaptado às condições actuais de reduzidas
disponibilidades de água, de forma a reduzir o impacto económico e social na área beneficiada
pelo AHM”. (perguntamos nós, reduzir o impacto económico exactamente de quem, e sacrificando
quem?…)
- E finalmente fala de um tema curioso: que “poderão advir consequências extraordinariamente
gravosas para a actividade das empresas agrícolas instaladas no perímetro de rega” que poderão
ser “geradoras de responsabilidade civil extracontratual para a entidade gestora e para o Estado
português."
(É interessante surgirem constantemente ameaças de consequências para as empresas - e
consequentemente para o Estado português - mas não para pequenos agricultores. Ainda para
mais sabendo que o contrato de concessão do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira afirma que
cada ano de rega é um ano de rega e obviamente depende da disponibilidade hídrica, não
estamos a ver que São Pedro tenha assinado contratos de chuva para o PRM ou que o Estado
fosse tão incompetente que se obrigasse contratualmente a manter privilégios de rega em anos
de seca dramática como os que estamos a viver… Ou seria?)

(Do contrato de concessão:


"Cláusula 9ª/Artigo 9
Pode a Concedente impor à Concessionária, em épocas de estiagem ou no caso de definir de
disponibilidade hídrica, para assegurar os volumes destinados aos usos prioritários, o regime de
exploração que se mostre adequado e necessário.
Cláusula 10/Artigo 6
A Concedente poderá determinar, temporariamente e sem direito a qualquer indemnização,
alterações ao regime de exploração que visem assegurar a salvaguarda do ambiente , do meio
aquático e ecossistemas dependentes, os interesses de todos os utilizadores dos recursos

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hídricos, incluindo os da Concessionária, assim como promover os benefícios decorrentes da
utilização dos recursos hídricos disponíveis.
Cláusula 11/artigo 1
Em situações excepcionais, nomeadamente seca, cheias e acidentes, podem ser
temporariamente suspensos os usos ora atribuídos (…)
Cláusula 12
No caso de conflito de usos, a Concessionária fica obrigada a conceder prevalência ao uso
considerado prioritário nos termos do disposto no artigo 64ª da Lei 58/2005.”)

Finalmente é de registar que nos dois últimos anos, já em forte stress hídrico, a cultura da
framboesa tenha aumentado de 12 para 19% da área regada no PRM e a floricultura e plantas
ornamentais tenham no mínimo duplicado, quando a falta de água já era uma realidade
sobejamente conhecida. Neste caso o risco é do investidor ou do Estado português, ou seja, de
cada um de nós?

Enfim, apesar de muitas leituras, cruzamento de informação e troca de impressões, o caos


instalado é de tal ordem que não é fácil entender tudo o que está em causa, mas é muito fácil
entender o que de mais importante está em causa: a sobrevivência de Odemira e a possibilidade
de aqui viver e trabalhar.

Por fim, de acordo com o referido Plano de Prevenção, Monitorização e Contingência para
Situações de Seca, de 2017, deveria ter sido declarado o Nível 3 de Emergência quando o
armazenamento da albufeira de Santa Clara desceu abaixo dos 50% em Setembro de 2019 e
implementadas medidas de carácter excepcional em vários quadrantes, que nunca foram
accionadas. Agora, assistimos a um mais do que óbvio e lamentável processo de “passa-culpas”,
em que não há inocentes nem soluções imediatas e onde já se “sente” tanto LODO como no
fundo da barragem.

Link para o artigo: https://bit.ly/3NNSMP1

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