Aburrice do "juridiquês"
Alternavam-se várias expres-
Marcelo Dolzany da Costa
Juiz federal em Belo Horizonte
onvidado para uma cerimônia de formatura no Instituto Rio
C
Branco, centro de excelência de nossa diplomacia, esperava
mais uma das solenidades onde um infindável blablablá seria
mero pretexto para aumentar a sede e a fome dos ouvintes.
Mais tarde, frustrado - e também faminto - pela distribuição
de uma prosaica água gelada em elegantes taças, pelo menos saí conforta-
do com os discursos que ouvi.
O paraninfo lembrou que o grande funil em que se transformara o con-
curso para a carreira diplomática se explicava pela baixa aprovação nas
provas de conhecimentos lingüísticos. Não se referia aos idiomas estran-
geiros impostos nos programas; falava de nossa língua portuguesa. tão
maltratada e desconhecida. ''Aqui no ltamaraty não se fala itamaratês; fa-
la-se o bom português. Mesmo Guimarães Rosa, gênio das construções es-
tilísticas mirabolantes, jamais permitiu que seus escritos de diplomata
perdessem a objetividade e clareza que sempre pregamos a nossos
alunos", lembrou o orador.
Essa advertência soa familiar. Advogados, juíze~. procuradores e serven-
tuários acabamos criando um idioma paralelo à língua pátria. Esconde-
mo-nos sob um palavrório dito rebuscado e acabamos num "juridiquês"
tão vazio quanto inútil. Ensinaram-nos que "escrever bonito é usar pala-
vras difíceis para impressionar". Burrice pura.
Avelha regra "mínimo de palavra com o máximo de informações" deve
ser urgentemente aplicada. Já perceberam como tem gente escrevendo
ruim nas petições, arrazoados, sentenças e acórdãos? Um ceno desembar-
gador não escondia o orgulho de escrever "a peça que dá sustentáculo ao
ergastulamento" ao conceder habeas corpus. Será que ele já tinha ouvido
falar em pedido de prisão preventiva?
Em plena ditadura , presid ia o STF o ministro Victor Nunes Leal,
imortalizado mais por ter lançado a toga ao chão no dia em que o Al-5
o atingira do que por ter sumulado a jurisprudência do STF. O ministro
também não escondia seu amor pela objetividade e pela clareza da lin-
guagem. Durante o julgamento de um recurso extraord inário, ouvia
atentamente um colega seu no relatório.
sões para nominar o recurso. Ora se dizia "apelo raro", ora "irresigna-
ção extrema", sem falar no "recurso constitucional", "súplica der-
radeira" e "argüição última". Aborrecido de tantos gongorismos, Nunes
Leal interpelou o colega:
- \~ Ex• poderia me esclarecer se esse tal de "apelo raro", "súplica ex-
trema", "recurso constitucional" e outras denominações é o mesmo recur-
so e:maordinário de que fala nossa Constituição?
Sim, é o mesmo recurso extraordinário-consentiu o relator.
-Pois então, Excelência, diga: recurso e>.1raordinário. Está lá na Consti.
tuição! Não fique inventando nome para quem já foi batizado!
E assim se multiplicam os exemplos no nosso dia-a-dia. Acabei de ler
um "peço vênia para informar ao douto juízo de V. Ex•". Afinal de contas, 0
que quer dizer mesmo o tal de "vistos etc."? E por que tanta tinta parao
"hei por bem condenar (ou absolver), como agora o faço" em vez de "con-
deno" ou "absolvo"? Nem falo das fórmulas "faz saber", "que outro tanto fa-
rá qua_ndo deprecado for", "especial mercê de V. Ex•"...
Um outro desembargador lançou a seus pares um desafio. Alfinetou:
-Pouco se me dá que a onagra claudique. O que me apraz, com efeito,
é poder acicatá-la!
Todos concordaram e resolveram decretar ponto facultativo no expe-
diente forense. Talvez nem tenham compreendido a frase, que em bom
português seria: "Não estou nem aí que a mula manque; o que eu quero é
rosetar!"
Os casos citados apontam em sua comicidade que "difícil não é
difícil; di[ícil é escrever fácil".
Essa mania de "escrever difícil" acaba contaminando até nossas
des fora do "juridiquês". Na próxima vez que o leitor assistir a uma
rência jurídica, perceba o comportamento do orador. Advogado, juiz ou
promotor, todos, com raríssimas exceções, descumprirão o tempo estabe-
lecido. Se o conferencista dispuser de 50 minutos para sua exposição, can·
sará a todos com mais meia hora de referências inúteis a pessoas da mesa,
depois de agradecer o convite, dizer que o tema é complicado e não
à altura de seus "modestos co nhecimentos'~ Com certeza, ao final,
com deslavado cinismo) "'Tinha ainda muitdb que falar, mas deLxarei
os debates". , ' ':l .
E assim nos iludimos que o mundo mudará ao som de nossas
Agora mesmo vejo que excedi em exatos 22 toques o espaço que me foi da·
do...