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Leia o seguinte texto de Mia Couto e descubra os neologismos nele presentes.

Escrevências desinventosas

Estava já eu predisposto a escrever mais uma crónica quando recebo a ordem: não se pode
inventar palavra. Não sou homem de argumento e, por isso, me deixei. Siga-se o código e calendário
das palavras, a gramatical e dicionárica língua. Mas ainda, a ordem era perguntosa: "já não há
respeito pela língua-materna?"
Não é que eu tivesse intenção de inventar palavras. Até porque acho que palavra descobre-
se, não se inventa. Mas a ordem me deixou desesfeliz. Primeiro: porquê meter a mãe no assunto?
Por acaso sou filho de língua, eu? Se nasci, mesmo inicialmente, foi de duplo serviço genético, obra
inteira. Segundo: sou um homem obeditoso aos mandos. Resumo-me: sou um obeditado. Quando
escrevo olho a frase como se ela estivesse de balalaica, respeitosa. É uma escrita disciplinada:
levanta-se para tomar palavra, no início das orações. Maiusculiza-se deferente. E, em cada pausa, se
ajoelha nas vírgulas. Nunca ponho três pontos que é para não pecar de insinuência. Escrita assim,
penteada e engomada, nem sexo tem. Agora acusar-me de inventeiro, isso é que não. Porque sei
muito bem o perigo da imagináutica. Ás duas por triz basta uma simples letra para alterar tudo. Um
pequeno «d» muda o esperto em desperto. Um simples «f» vira o útil em fútil. E outros tantíssimos,
infindáveis exemplos
Afinal de contas, quem imagina é porque não se conforma com o real estado da realidade. E
nós devemos estar para a realidade como o tijolo está para a parede: a linha certa, a aresta medida.
Entijole-se o homem com tendência a imaginescências.
Voltando à língua fria: não será que o português não está já feito, completo, made in e tudo?
Porquê esta mania de usar os caminhos, levantando poeira sem a devida direcção? Estrada civilizada
é a que tem polícia, sirenes serenando os trânsitos. Caso senão, intransitam-se as vias, cada um
conduzindo mais por desejo que por obediência.
Estraga-se a decência, o puro sangue do idioma. E porquê? Por causa dessas contribuições
dispérsicas que chegam à língua sem atestado nem guia de marcha. Devia exigir-se, à entrada da
língua um boletim de inspecção. E montavam-se postos de controlo, vigilanciosos.
Se forem criados tais posto eu mesmo me voluntario. Uma espécie de milícia da língua, com
braçadeira, a mandar parar falantes e escreventes. A revistar-lhes o vocabulário, a inspeccionar-lhes
o saco da gramática.
-Vem de onde essa palavra?
E mesmo antes da resposta, eu, arrogancioso:
-Não pode passar. Deixa ficar tudo aqui no posto.
Os queixosos, nas cartas dos leitores, reclamando. E eu, abusando dos abusos, rindo-me
deles. Mas não me divertindo de alma inteira, não. Porque a vida é uma grande fábrica de
imagineiros e há muita estrada para poucos postos vigilentos.
Mas, em escrevendo «deter gente» eu me lembro de «detergente». Sim, escrevo sério. Um
produto que lavasse a língua de sujidades e impurezas. Pegava-se no idioma, lavava-se bem,
desinfectava-se. Depois, para não apodrecer, guardava-se no gelo, frigorificado.
Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro das margens. Como um rio manso e leve,
tão educado que não acorde poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparência que,
verdade autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela
conservada.

Mia Couto, Cronicando

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