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Cadernos de Estudos Leirienses – 5 * Setembro 2015

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Resgatando a memória de um lugar: 3
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dados preliminares da intervenção 5
arqueológica na Capela de S. Sebastião, 6
Ourém 7
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Seara Rei* 10
Sandra Assis** 11
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Resumo 16
No âmbito da iniciativa “Férias Arqueológicas” da responsabilidade da 17
Câmara Municipal de Ourém decorreu, entre os dias 4 e 18 de Agosto de 18
2014, uma intervenção arqueológica inédita na capela de São Sebastião, em 19
Atouguia, Ourém. Nas sondagens realizadas detetaram-se valiosos elemen- 20
tos, tais como estruturas até então desconhecidas, espólio artefatual e vestí- 21
gios osteológicos humanos. Dos vestígios materiais detetados, sobressaem 22
as moedas e as várias cerâmicas, objetos essenciais na obtenção de uma 23
baliza cronológica, para a ocupação deste espaço. No domínio antropológico 24
foram identificadas duas inumações primárias - o Enterramento 1 e 2 (dois 25
adultos, provavelmente do sexo masculino), e vários elementos ósseos de- 26
sarticulados. A profusão de ossos descontextualizados e a identificação de 27
uma redução de corpos sugere a reutilização do espaço sepulcral. A análise 28
sumária do espólio ósseo desarticulado permitiu identificar 17 indivíduos (11 29
adultos, 6 subadultos). Os trabalhos desenvolvidos permitiram recolher tes- 30
temunhos da presença de uma comunidade associada à capela, lançando 31
luz sobre a história da edificação do templo, os seus intervenientes diretos, e 32
os modos de ocupação do espaço. 33
34
* Arqueóloga, licenciatura em História, Variante de Arqueologia, pela Universidade de Coimbra. 35
** Doutorada em Antropologia Biológica pela Universidade de Coimbra. Professora auxiliar convidada
da FCSH - Universidade Nova de Lisboa. Investigadora integrada do CIAS - Centro de Investigação
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em Antropologia e Saúde da UC. 37

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1 Palavras-chave: Capela de São Sebastião, sondagens arqueológicas,


2 enterramentos primários, paleobiologia
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5 Enquadramento Geográfico e Histórico:
6 Estado Atual dos Conhecimentos
7
8 A Capela de S. Sebastião localiza-se no concelho de Ourém, na fregue-
9 sia de Atouguia, num pequeno lugar denominado S. Sebastião. O templo alvo
10 de estudo, insere-se num território de cariz rural, no sopé do monte onde se
11 encontra o Castelo de Ourém e a Vila Medieval, próximo da confluência entre
12 a Ribeira da Alvega e o Ribeiro da Silveira.
13 A informação histórica sobre a Capela de São Sebastião (CSS) é escas-
14 sa e nem sempre fidedigna, muitos dos dados bibliográficos obtidos, basei-
15 am-se na tradição oral e não em fontes documentais. A sua data de fundação
16 e de abandono são ainda desconhecidos. As primeiras referências bibliográ-
17 ficas reportam ao século XIII. Na tradição oral é referido que Santa Teresa de
18 Ourém, nascida nesta freguesia (1220-1266), teria orado nesta Capela. Con-
19 tudo ainda não foram encontrados documentos que o comprovem (Ourém,
20 Comemorações do 8.º Aniversário do 1.º Foral, 1980 e http://www.cm-
21 ourem.pt).
22 A passagem das tropas do Rei D. João I e de D. Nuno Álvares Pereira,
23 3.° Conde de Ourém, pelas terras de Atouguia, quando se dirigiam para
24 Aljubarrota, encontra-se documentada nas crónicas da época. Estes estive-
25 ram acampados no “sopé da vila, voltado para Atouguia”, local onde um vea-
26 do fugido, se refugiu no interior da tenda do rei D. João I. Acontecimento que
27 os soldados profetizaram como, a vitória de Portugal, sobre o Rei de Castela
28 (BAPTISTA, 2001, p. 29). Em 1868, José ELYSEU refere que, nas “Crónicas
29 de Fernão Lopes” se alude a este local: “D. Nuno Álvares Pereira na carreira
30 maravilhosa de seus triunfos militares, passando com o seu exército a Ourém
31 par dar batalha ao rei castelhano, havia saído de Thomar, e foi na primeira
32 jornada acampar à vista das muralhas d´aquella villa, sitio de Alveijar e
33 Athouguia em 11 de Agosto de 1385, onde teve o presságio feliz da vitoria”
34 (ELYSEU, 1994, p. 50). Outro autor, José FLORES (1894), no “Album da Vila
35 d´Ourém”, escreve que “N´este campo bivacaram El-Rei D. João I e o
36 condestável D. Nuno, com as suas tropas, em 11 de Agosto de 1385, quando
37 seguiam para a batalha d´Aljubarrota” (FLORES, Joaquim,1994, p. 259). Nes-

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tes relatos, não existe qualquer referência direta a esta Capela e que, ela já 1
se encontrava erguida. 2
A primeira fonte documental à CSS advém do final do século XVII, onde 3
é mencionado que, já em “1682 as suas paredes ameaçavam ruína, como 4
consta da vezita que n´esse anno fez o Bispo de Leiria D. frei José de 5
Lencastre, dizendo que a mandaria arrasar se as pessoas, por conta de quem 6
devião correr os reparos não tratassem de a concertar; vê-se por tanto que 7
náquelle tempo era velha e foi depois reedificada com a segurança e a soli- 8
dez que ainda agora apresenta no estado de lamentável destruição; era 9
fabricada por uma confraria e todos os anos se fazia ali uma grande feira” 10
(FLORES, José, 1994, p. 219). Pouco tempo decorrido, “em 1703 o Bispo D. 11
Álvaro de Abranches mandava rasgar a fresta da ermida por ser pequena e 12
dar pouca luz” (FLORES, José, 1994, p. 219). Estas fontes históricas, por seu 13
turno, já mencionam a existência de um templo degradado, cuja cronologia 14
se situa entre a segunda metade do século XVII e início do século XVIII. 15
Sobre o lugar de “S. Sebastião”, subsiste uma lenda que, faz referência, 16
à origem do nome que lhe foi atribuído. Aquando as invasões francesas, no 17
início do século XIX, as tropas francesas, de regresso ao seu país, pararam 18
de frente para a Capela e, tentaram derrubar-lhe a porta, de forma a saqueá- 19
la. Conta-se que, o sacerdote assustado, se pôs em fuga, por uma porta late- 20
ral, não sem antes, colocar a imagem de S. Sebastião junto da porta principal. 21
Milagrosamente, as tropas não conseguiram executar o seu intento. Por este 22
motivo, a população resolveu alterar o nome do lugar, para São Sebastião 23
(http://www.jf-atouguia.pt). 24
Com base na documentação do final do século XIX, é referido que: 25
“Adeante na vasta planície dos Alveijares, estão as ruinas da capella de S. 26
Sebastião, incendiada pelos francezes em 1810, junto da ponte do mesmo 27
nome” (FLORES, 1894, p. 260). 28
Votada ao abandono, a CSS chegou aos tempos coevos em avançado 29
estado de degradação. As pilhagens a que esteve sujeita ao longo dos anos 30
ditaram o desaparecimento da quase totalidade dos elementos decorativos e 31
alfaias religiosas, apresentando-se atualmente desprovida de elementos tais 32
como o altar, a pia batismal, o púlpito, os azulejos, as imagens religiosas, 33
entre outros. 34
Este imóvel, hoje propriedade da Câmara Municipal de Ourém, perten- 35
ceu até há pouco tempo, à Quinta de S. Gens (RAMOS, n.º 14, 2004, p. 26). 36
Em 2003, a Câmara adquiriu esta Capela, bem como o terreno circundante, 37

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1 de cerca de 400 m2 (Revisão do PDM de Ourém, 2011, p. 22). No decorrer


2 dos últimos anos, o Município de Ourém, efetuou neste imóvel trabalhos de
3 estabilização de emergência visto que a CSS se encontrava em risco emi-
4 nente de ruína.
5
6 Descrição Arquitetónica da Capela de São Sebastião
7
8 Este templo apresenta um estilo maneirista, com planta longitudinal e é
9 composto por uma única nave e capela-mor, sacristia e um anexo, adossado
10 à fachada lateral esquerda (Revisão do PDM de Ourém, 2011, p. 22 e
11 www.monumentos.pt). O edifício apresenta três entradas que permitem o
12 acesso ao interior deste edifício. A primeira localiza-se na fachada (Oeste) e
13 dá comunicação direta à nave, a segunda, permite a entrada para o anexo
14 (Oeste) e a terceira para a sacristia (Norte). No interior da CSS, encontram-
15 se ainda duas entradas na capela-mor, a primeira liga à sacristia e a segun-
16 da, dá passagem ao anexo (fig. 1).
17 A CSS encontra-se orientada no sentido Nascente – Poente, com a sua
18 fachada principal estruturada a Oeste. A fachada deste templo apresenta um
19 portal retangular emoldurado com cantaria calcária. Sobre o portal, encontra-se
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37 Fig. 1: Foto da fachada da Capela de São Sebastião

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o vestígio de um antigo frontão triangular, por cima do qual, é visível um óculo 1


em forma de cruz. Acima do óculo, um espaço vazio, deixa perceber o local 2
onde se encontrava o brasão (referido pela população como da Quinta de S. 3
Gens). A envolver o “brasão”, ainda se podem admirar volutas em calcário. 4
No interior, a Capela possui apenas uma nave, com cobertura em abó- 5
bada que, assenta sobre uma cornija. Um arco triunfal sobre pilastras lisas e 6
capitéis coríntios, permite alcançar a capela-mor. Na sacristia, destaca-se a 7
sua abóbada de arestas, com fecho. Este ainda apresenta vestígios de 8
policromia, podendo ser quinhentista. O anexo, com configuração de corre- 9
dor, tem uma cobertura em abóbada plena e moldura retangular (Revisão do 10
PDM de Ourém, 2011, p. 22/3 e www.monumentos.pt). 11
Relativamente aos seus elementos construtivos, este edifício apresenta 12
paredes de grandes dimensões e de aspeto estrutural resistente, onde se 13
podem presenciar diversos tipos de materiais, como sejam a pedra de canta- 14
ria em calcário, a alvenaria ordinária em pedra e também, pontualmente, al- 15
guns materiais construtivos em cerâmica. Estes podem ser visualizados so- 16
bre os vãos das portas e janelas onde se pode encontrar o tijolo burro, for- 17
mando o tradicional arco e na composição tridimensional das abóbadas. O 18
tijolo também é utilizado no preenchimento de vãos e a telha, pode ser vista, 19
inserida no reboco. Como elemento construtivo de ligação e de reboco, en- 20
contramos a argamassa de cal e areia. 21
22
A Intervenção Arqueológica: Metodologia e Procedimentos 23
24
Dadas as escassas informações históricas relativas à fundação, funcio- 25
namento e abandono do tempo, houve a necessidade de se empreender uma 26
investigação inédita sobre o edifício e a sua envolvente, de forma a colmatar 27
lacunas e a esclarecer dúvidas. A investigação supramencionada iniciou-se 28
com a realização de sondagens arqueológicas de diagnóstico, com o objetivo 29
de: (1) obter cronologias alusivas à fundação e à cessação de funções do 30
templo religioso; e (2) avaliação do potencial arqueológico no espaço de im- 31
plantação da Capela de São Sebastião, e áreas limítrofes, de forma a garantir 32
a salvaguarda de eventuais vestígios arqueológicos. 33
Nesta intervenção foram realizadas três sondagens arqueológicas (di- 34
mensão: 1mx2m), localizando-se uma no adro (Sondagem I ou SI: junto da 35
fachada, a Oeste) e duas no interior da Capela (SII: anexo Norte e SIII: nave). 36
No decorrer dos trabalhos na SIII, a deteção de uma sepultura motivou o seu 37

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37 Fig. 2: Planta da Capela, com localização das sondagens arqueológicas (Camara Municipal de Ourém)

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alargamento a Este (dimensão: 1mx1m, SIV) e a Oeste (dimensão: 1mx1m, 1


SV) (fig. 2). 2
No decurso da intervenção foi tido em consideração o potencial arqueo- 3
lógico do local, seguindo os métodos determinados por Barker e Harris. Em 4
conformidade, utilizou-se a matriz de Harris e o diagrama de seriação, des- 5
crevendo a sucessão temporal de contextos arqueológicos surgidos ao longo 6
da escavação. A estratigrafia do subsolo foi analisada e numerada, através 7
de um levantamento sequencial, da ocupação do local, conforme o surgimento 8
das diferentes unidades estratigráficas. 9
Os procedimentos antropológicos de campo incluíram a escavação e a 10
exposição dos enterramentos, o registo digital e documental em ficha própria e 11
a exumação do espólio osteológico. O estudo antropológico preliminar centrou-- 12
se na descrição dos elementos funerários, na avaliação das alterações tafonó- 13
micas e na análise paleodemográfica, morfométrica e paleopatológica (tab. 1). 14
Com base nalguns ossos longos desarticulados (ex., mandíbulas, apófises 15
mastoides, fémures) tentou-se inferir o número mínimo de indivíduos (NMI) se- 16
guindo a proposta metodológica de HERRMANN et al. (1990). 17
Tabela 1. Descrição sumária do métodos aplicados na análise antropológica 18
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1 A Capela de S. Sebastião: resultados preliminares


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3 A intervenção arqueológica na CSS teve uma duração de dez dias, com
4 início a 4 de Agosto e com término a 18 de Agosto de 2014, e decorreu afeta
5 à iniciativa “Férias Arqueológicas” organizada pelo Município de Ourém. O
6 projeto “Férias Arqueológicas” visou fomentar a relação entre a comunidade
7 e o património local. Paralelamente permitiu a participação numa escavação
8 arqueológica, sensibilizando os participantes para a necessidade de salva-
9 guarda da memória edificada, enquanto identidade coletiva. Esta iniciativa
10 contou com a participação de 16 voluntários, de ambos os sexos e com ida-
11 des compreendidas dos 13 anos aos 64 anos, com resultados muito positi-
12 vos. No decorrer dos trabalhos foi ainda estimulado o contato com os habi-
13 tantes locais, cuja permuta de informações foi determinante para resgatar
14 alguns laivos da história recente da Capela de São Sebastião.
15
16 Os dados da Arqueologia
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18 A intervenção arqueo-
19 lógica efetuada na Capela e
20 no seu adro permitiu auferir
21 dados arqueológicos rele-
22 vantes para a construção da
23 sua história. De seguida
24 apresentam-se, sumaria-
25 mente, os achados mais re-
26 levantes na área delimitada
27 por Sondagem (S).
28 Na SI identificaram-se
29 cinco Unidades Estratigrá-
30 ficas (UE), tendo uma delas,
31 a UE2, revelado a presen-
32 ça de estruturas localizadas
33 a Norte e a Este da Sonda-
34 gem. As estruturas cons-
35 truídas em alvenaria de pe-
36 dra assentam sobre o geo-
37 lógico e, começam a surgir Fig. 3: Foto dos trabalhos finais na Sondagem I

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a cerca de 7 cm de profundidade. A localização desta estrutura, sob o frontão 1


triangular da fachada, pode pressupor que esta, poderia fazer parte de uma 2
antiga parede, já desaparecida que, servisse de apoio ao frontão que, se 3
prolongaria, como um alpendre sobre o portal de entrada (por hora, esta não 4
passa de uma suposição, que ainda requer estudo) (fig. 3). 5
A análise estratigráfica da SII, permitiu a observação de sete UE, des- 6
tacando-se a UE5 que, revelou uma estrutura localizada sob a parede da 7
CSS, surgida a cerca de 30 cm de profundidade. Esta estrutura, assenta 8
sobre o geológico e compõe-se das fundações de edificação deste templo, 9
construído com um aparelho de construção, em pedra calcária irregular e 10
argamassa, de maiores dimensões que a parede do templo. A abertura da 11
vala de construção para o alicerce, foi detetada no decorrer da escavação, 12
como UE3, junto da parede da Capela, posteriormente preenchida com 13
entulhos (fig. 4). 14
A SIII e os respetivos alargamentos, SIV e SV, exibiram uma sequência 15
estratigráfica análoga (composta por sete UE), evidenciando um contexto 16
deposicional semelhante. Destacou-se a presença de vestígios osteológicos 17
humanos descontextualizados na UE6 e, a identificação de uma sepultura 18
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Fig. 4: Foto dos trabalhos finais na Sondagem II 37

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1 oval com uma inumação in situ na UE7. As UE 2, 4 e 5, podem ter resultado


2 de uma alteração no uso do espaço da capela, sendo que a UE5, poderá
3 corresponder a um estrato que terá selado a área de inumação, após obras
4 de recuperação do espaço ou resultantes da proibição dos enterramentos, no
5 interior dos templos cristãos.
6 O espólio arqueológico compõe-se essencialmente por materiais em
7 cerâmica de pequena dimensão (construção, doméstica comum, vidrada,
8 faiança e azulejo) e, alguns vidros, pedras de cantaria, argamassas e metais
9 (moedas e pregos). A faiança poderá pertencer a pratos e é visível a decora-
10 ção com um ou dois filetes, a cobalto e decoração a manganês que, poderá
11 ser datada entre o século XVII / XVIII. Os azulejos detinham um papel impor-
12 tante no revestimento das paredes e na arte decorativa portuguesa, pelo menos
13 desde o século XV. Estes apresentam em geral, uma paleta de cor, composta
14 por cobalto sobre branco, com raros elementos com amarelo, sem painéis ou
15 desenhos visíveis. O tipo de cor utilizado era comum nos séculos XVI a início
16 do XVIII (Henriques, 2005). Os pequenos fragmentos de azulejo e faiança
17 detetados não permitem a atribuição de cronologias precisas, nem a localiza-
18 ção das fábricas de origem mas, tal como o restante material arqueológico,
19 composto por cerâmica doméstica e de construção, parecem inserir-se no
20 período da Época Moderna (1453 a 1789), podendo estender-se ao final da
21 Idade Média e início da Idade Contemporânea.
22 No conjunto de
23 materiais, detetaram-
24 se ainda nas SIII / IV e
25 V, três fragmentos de
26 peças em cerâmica co-
27 mum, decoradas com
28 formas naturalistas:
29 animal (lobo ou cão),
30 rosto humano (anjo ou
31 criança) e de santo com
32 cruz e criança ao colo
33 (Santo António?). Por
34 fim, na SV, sobressaí-
35 ram três objetos perfu-
36 rados em madeira ou Fig. 5: Fotos de alguns dos vestígios materiais das Sondagens
37 osso (máximo de 3,5 III-V e ceitil da SII (canto inferior direito)

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cm comprimento) que, poderão ser adornos de vestuário (botões) ou parte 1


decorativa de um rosário ou escapulário. 2
Finalmente, é pertinente mencionar a recuperação de sete moedas em 3
cobre, um “ceitil” na UE2 da SII e as outras, na SIII / IV e V. Não obstante a 4
ilegibilidade da maioria das moedas, duas permitiram uma aferição cronológi- 5
ca inserida no período moderno. O “ceitil”, tem no anverso um castelo de três 6
torres sobre ondas marinhas e no reverso parece ter as quinas de Portugal e 7
terá começado a circular no reinado de D. Afonso V (1433) até ao de D. Se- 8
bastião (1578) (QUEIRÓS, 2010). Na SIII, recuperou-se uma moeda de “III Reis”, 9
de D. Pedro II (1683 – 1706) que, terá circulado entre 1699 e 1703 (fig. 5). 10
11
Os dados da antropologia 12
13
De entre as sondagens intervencionadas, apenas a SIII e respetivos alar- 14
gamentos, revelou a presença de vestígios osteológicos humanos: duas 15
inumações primárias – o Enterramento 1 ou E1 (fig. 6) e o Enterramento 2 ou 16
E2, e inúmeros ossos desarticulados. A análise preliminar do espólio ósseo 17
recuperado permitiu identificar um total de 19 indivíduos (N=19), dois 18
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Fig. 6: Fotos do E1 inumado em decúbito dorsal numa sepultura ovalada escavada em substrato 36
calcário compactado, nas Sondagens III, IV e V 37

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1 respeitantes aos enterramentos e 17 identificados no espólio ósseo desarti-


2 culado. Para o conjunto descrito verificou-se uma maior frequência de indiví-
3 duos adultos (n=13, 68,4%), quando comparados com os indivíduos subadultos
4 (n=6, 31,6%). Refira-se a recuperação de um fragmento de úmero pertencen-
5 te a um individuo em fim de gestação (38-40 semanas), e a presença de
6 peças ósseas e dentárias que apontam para dois indivíduos com uma idade
7 à morte compreendida entre o nascimento e os 3 anos. No subconjunto dos
8 adultos, três serão possivelmente, do sexo masculino e um do sexo feminino.
9 No capítulo das variações morfológicas destacou-se a presença de abertura
10 septal, nó vastus simétrico e faceta de Poirier. Da análise paleopatológica
11 sobressaiu a existência de alterações da entese (tendão de Aquiles) e das
12 articulações (osteoartrose cervico-torácica); a presença de um caso de espi-
13 nha bífida semi-oculta; e a observação de uma possível fractura na extremi-
14 dade distal de um perónio. De salientar a profusão de afeções da cavidade
15 oral, designadamente: um abcesso, cáries, e perda antemortem de dentes
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Fig. 7: Fotos das alterações da cavidade oral observadas no E1. A: Desgaste dentário no incisivo e
34 canino superior, direitos. B: Abcesso periapical no alvéolo de suporte do Pm1 superior esquerdo,
35 eventualmente perdido postmortem. C: Cárie severa com destruição da coroa do Pm1 inferior
36 direito e cárie interproximal no Pm2 contíguo. D: Perda antemortem da dentição posterior com
37 remodelação completa dos alvéolos

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Tabela 2. Sumário da análise antropológica preliminar de campo

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1 (fig. 7, ver p. 294). O consumo de alimentos ricos em hidratos de carbono e


2 uma insipiente higiene oral podem potenciar o desenvolvimento de cáries e,
3 secundariamente, conduzir à formação de abcessos e subsequente perda
4 antemortem de dentes (ROBERTS e MANCHESTER, 2005). Nalgumas pe-
5 ças dentárias também se observou desgaste dentário, eventualmente asso-
6 ciado a uma dieta abrasiva e/ou à ingestão de alimentos fibrosos, crus ou
7 insuficientemente cozinhados (tab. 2, ver p. 295).
8
9 Considerações Finais
10
11 Apesar da exiguidade do espaço intervencionado, os resultados obtidos
12 permitem lançar luz sobre a cronologia da capela, a dinâmica da necrópole e,
13 eventualmente, sobre o período em que terá cessado funções. Analisando,
14 os dados bibliográficos sobre a Capela de São Sebastião, apenas se encon-
15 trou a sua referência em 1682 (paredes quase a ruir) e em 1703 (Bispo man-
16 da alargar a fresta da ermida). A lenda sobre o lugar de “S. Sebastião”, refere
17 que as tropas francesas, não conseguiram derrubar a sua porta, graças à
18 estátua de São Sebastião. A documentação do final do século XIX, refere que
19 esta capela foi vandalizada, aquando as invasões francesas de 1810. Estes
20 dois relatos, revelam incongruências. A destruição da Capela, deve-se ou
21 não, às terceiras invasões francesas ocorridas em 1810? Existe também a
22 possibilidade de em 1807, aquando a primeira invasão, as tropas não destru-
23 írem a CSS mas, três anos decorridos, o terem conseguido. A ruína da Cape-
24 la pode dever-se a outros fatores que, não tenham a ver com motivos bélicos
25 mas, com fatores naturais. As constantes cheias na área e os prejuízos por
26 elas provocadas, tanto no imóvel, como na sua envolvente, associado à
27 edificação de outro templo, num local mais povoado, podem ter proporciona-
28 do o afastamento da população e o desinteresse pelo local.
29 Sobre a arquitetura do edifício, apenas se podem referir dois elementos:
30 a abóbada de arestas, com fecho, na sacristia que, poderá ser quinhentista e
31 a fachada do edifício em estilo arquitetónico maneirista, apontado pelo me-
32 nos entre meados do século XVI a meados do século XVII. Já os dados ar-
33 queológicos, tendo por base a cerâmica (XVI a XVIII) e as moedas (XV a
34 início do século XVIII), descrevem uma baliza cronológica situada entre os
35 séculos XV e início do século XVIII - final do período Medieval / Época Moder-
36 na. Considerando os resultados descritos, pode-se considerar que esta Ca-
37 pela já se encontrava edificada no século XV e terá estado em uso, pelo

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de Estudos Capela de –S.5 Sebastião,
* SetembroOurém
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menos, até ao início do século XIX. Sobre quem a terá mandado edificar, os 1
motivos e a data da sua construção, ainda existe muito para dizer mas, pode- 2
rá estar associada ao desejo de perpetuar a memória da passagem do Rei D. 3
João I e de D. Nuno Álvares Pereira, pelo seu neto, D. Afonso, 4.º Conde de 4
Ourém (1422 – 1460). 5
Os dados antropológicos permitiram traçar duas considerações sobre a 6
dinâmica da CSS: 7
(1) A profusão de material osteológico desconexo pressupõe que a ca- 8
pela terá sido utilizada, frequentemente, ao longo do tempo. A presença de 9
casos de redução de corpos e ossos descontextualizados traça o retrato de 10
uma necrópole de média ou longa duração refletindo «(...) a exiguidade e o 11
anonimato das sepulturas, a reutilização das fossas e o amontoar de ossos 12
em ossário» (ARIÈS, 1975 in BRAIZOT, 1996, p.149) o seu uso intensivo até 13
à saturação, talvez coincidente com períodos de grande mortandade. Segun- 14
do BRAIZOT (1996, pp.5-12) a gestão de um cemitério assenta na capacida- 15
de de conciliar o fluxo de enterramentos com o espaço disponível à superfí- 16
cie. Nos casos em que o fluxo de corpos ascende os espaços disponíveis, 17
facilmente as necrópoles entram em rutura. Como resultado assiste-se à 18
reutilização total ou parcial das sepulturas, com todas as consequências que 19
daí advêm: um elevado número de sepulturas primárias incompletas; agrupa- 20
mentos de ossos em situação secundária; ossários e ossos dispersos nos 21
enchimentos das sepulturas e inexistência de unidades estratigráficas crono- 22
logicamente homogéneas. 23
(2) A presença de peças ósseas em distintos estados de maturação e 24
pertencentes a indivíduos de ambos os sexos revela que a capela foi espaço 25
de inumação para diferentes membros da comunidade local. 26
No que diz respeito à cessação de funções da CSS enquanto espaço fune- 27
rário, é possível que a mesma tenha ocorrido em meados do século XIX, após a 28
emissão do Decreto-Lei de 1844 que veio proibir a inumação no interior das 29
igrejas e adros, e a sua substituição por cemitérios públicos. Por exemplo, para 30
a freguesia vizinha de Vila Nova de Ourém é referido que a criação do novo 31
cemitério terá ocorrido em meados do século XIX: «o cemitério d’esta frequezia 32
recebeu a bênção do respectivo parocho no dia 9 de setembro de 1856, dando- 33
se em seguida sepultura, a Claudia Maria, viúva de Luiz da Cruz, que foi uma 34
das victimas da cholera morbus que n’esse tempo grassou.» (ELYSEU, 1994, 35
p.121). Uma conclusão pode, no entanto, ser aventada: o Enterramento 1 terá 36
sido um dos últimos a ser inumado no interior da CSS. 37

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1 Bibliografia
2
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13 – CARREIRA, José Nunes – “As Invasões Francesas na Comarca de Ourém. Tradição e História”,
14 Viver Ourém, Câmara Municipal de Ourém, ViverOurém, Ano 2, n.º 9, Primeiro Trimestre 2003,
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Coadjutor da Colegiada, colecção Estudos e Documentos, Câmara Municipal de Ourém, 1999,
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19 impresso na Tipografia Lusitana, em Braga, reeditado nos anos oitenta do Séc. XX.
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30 – HAUSER Gertrud, DE STEFANO Gian Franco – Epigenetic variants of the human skull. Stuttgart:
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