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MAN TIAN GUO HAI

PRIMEIRO ESTRATAGEMA

Enganar o céu para atravessar o mar

Defendendo-se em todas as frentes, a vigilância se


descuida; um espetáculo familiar não desperta sus-
peitas. O oculto está no coração do manifesto e não
em seu contrário. Nada está mais escondido do que
o mais aparente.
Comentário:
Não devemos executar nossos planos em mo-
mentos indevidos ou em locais afastados. Assaltar
uma casa na calada da noite ou apunhalar um ho-
mem na curva de uma estrada é feito de bruto, não
de estrategista.
Quando Kong Rong foi cercado, seu general
Taishi Ci precisou cruzar as linhas inimigas para
buscar reforços. Ele concebeu o seguinte plano: com
o chicote na mão e o arco a tiracolo, atravessou os
portões da cidade escoltado por dois cavaleiros que
carregavam alvos, causando estupor tanto entre os
sitiados quanto entre os sitiantes. Ele chegou ao aterro
abaixo dos muros, mandou que os alvos fossem ins-
talados e exercitou-se no tiro ao alvo. Depois de usar
todas as flechas da aljava, voltou para a cidade. No
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dia seguinte, repetiu o exercício; somente metade dos
sitiantes levantou-se para vê-lo. Depois de vários dias
dessa manobra, ninguém mais prestava atenção nele.
Numa bela manhã, feitos os preparativos e terminado
o desjejum, ele montou em seu cavalo, esporeou-o e
cruzou as linhas inimigas a galope. Antes que o ini-
migo percebesse, já estava longe.

***

A expressão proverbial quadrissilábica chinesa tra-


duzida como “enganar o céu para atravessar o mar”
inspirou-se no famoso episódio histórico em que
Taizong, general do imperador Tang, conseguiu em-
barcar seu mestre numa expedição marítima contra
a Coreia fazendo-o acreditar que visitava um nobre,
apesar de, graças a uma hábil camuflagem, ele estar a
bordo do navio-almirante navegando sobre as ondas.
A palavra tian não designaria o céu, portanto, mas “o
filho do céu” – o imperador da China –, e uma tradu-
ção fiel seria: “enganar o imperador para atravessar o
mar”, ou melhor, “conduzir o imperador de barco”.
No entanto, é comum haver mudanças de sentido
nas locuções proverbiais em relação a seu contexto
original, por isso não podemos ter certeza de que era
assim que o autor e o comentarista dos estratagemas a
compreendiam. Para eles, ela decerto tinha o sentido
mais amplo de uma ação realizada sob o nariz e às
barbas de todos.

A fórmula “O oculto está no coração do mani­


festo e não em seu contrário. Nada está mais escon-
dido do que o mais aparente” remete ao sistema geral

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de interpretação da realidade fornecido pelo Livro das
mutações. Uma tradução literal da expressão daria algo
como: “o yin está dentro do yang, não em seu oposto.
O extremo yang é o extremo yin”. Na China, não há
mediação nem excesso no enfrentamento dialético
entre as duas modalidades antagonistas e comple-
mentares do ser – yin e yang –, o excesso é a própria
negação, ou melhor, o excesso é a negação levada ao
paroxismo. E isso simplesmente porque cada um dos
dois modos abriga em seu núcleo o princípio contrário
que lhe confere eficiência e que, ao mesmo tempo,
constitui a condição de sua mutabilidade. Assim,
o “Grande Comentário” do I Ching faz a seguinte
afirmação: “Os trigramas yang contêm uma maioria
de linhas yin; os trigramas yin, de linhas yang; por
isso os primeiros são ímpares e os segundos, pares”.
Na ordem cósmica, da mesma forma, os princípios
celestes e terrestres geram os elementos opostos a suas
virtudes: o Céu, masculino, dá origem à água, femi-
nina e, portanto, yin; a Terra, yin, produz emanações
ígneas, masculinas e, portanto, yang, à imagem do
trigrama do fogo, que contém a água, e do trigrama
da água, que envolve o fogo. As ordens natural e hu-
mana são criadas e produzidas pela alternância do yin
e do yang, que se sucedem por inversão dos extremos:
o yang no apogeu já começa a extinguir-se em yin,
e, inversamente, o yang em sua fase ascendente é o
yin no apogeu. O apogeu de um marca seu próprio
eclipse e o grau de maior potência da força comple-
mentar: a paz é a guerra em seu ponto culminante, a
clemência é a punição no ponto de maior brutalidade.
Assim, o nec plus ultra da arte da guerra consiste em
nunca combater, e a perfeição dos suplícios consiste
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em nunca eles serem aplicados; do mesmo modo, o
oculto reside na aparência mais evidente, tanto que
a maior artimanha se apresenta sob o aspecto da
mais perfeita ingenuidade. Ao recorrer aos conceitos
de yin e de yang para formalizar os mecanismos do
logro, Os 36 estratagemas se inscrevem na mais antiga
tradição estratégica chinesa. Com tons quase líricos,
Sun Tzu equipara a ação do grande senhor de guerra
ao movimento cósmico manifestado no ciclo dos
cinco elementos colocados em movimento por meio
da interação entre o yin e o yang:
“Aquele que sabe usar meios extraordinários é
infinito como o céu e a terra, inesgotável como a água
dos grandes rios. Ele é o sol e a lua, que desaparecem
e reaparecem alternadamente, ele é o ciclo das esta-
ções, que morrem e renascem numa ronda sem fim!
Apesar de existirem apenas cinco notas, cinco cores
e cinco sabores fundamentais, nem o ouvido, nem o
olho, nem o palato podem esgotar as infinitas combi-
nações. Apesar do dispositivo estratégico se resumir
a duas forças, regulares e extraordinárias, elas geram
combinações tão variadas que o espírito humano é
incapaz de abarcá-las todas. Elas produzem umas às
outras para formar um anel que não tem começo nem
fim. Quem então poderia contorná-lo?”
A explicação de Os 36 estratagemas parece man-
ter-se afastada das implicações metafísicas da fórmula
hexagramática, limitando-se à constatação bastante
banal de que uma cena familiar acaba por adormecer
a desconfiança, de modo que por trás do véu do coti-
diano podem se urdir estratagemas insólitos.
Os comentaristas modernos gostam de sugerir
como aplicação particularmente vitoriosa desse
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estratage­ma o conto “A carta roubada”, de Edgar Allan
Poe. Também poderíamos citar um conto de Borges
publicado em Ficções e intitulado “O jardim de veredas
que se bifurcam”. Yu Tsun, um agente secreto chinês
que trabalha para os alemães durante a Primeira
Guerra Mundial e está prestes a ser detido, foi à casa
de um certo Stephen Albert, que ele não conhece, e,
depois de conversar com ele, mata-o. O espião é preso
e condenado à forca. Na verdade, Yu Tsun consegue
cumprir sua missão: seus chefes descobrem, lendo os
jornais, que o ponto de concentração da artilharia
aliada é a cidade de Albert. Essa é uma primeira apli-
cação do estratagema: nada é menos secreto do que
a seção de variedades de um jornal. Mas trata-se de
um primeiro grau da manobra, trivial porque policial
ou militar. A história vem acompanhada de outro
relato, sobreposto a essa trama policial à qual con-
fere uma dimensão alegórica. Descobrimos que esse
Albert, pelo maior dos acasos – um acaso borgeano,
entenda-se –, era um sinólogo que estudara o enigma
representado pelas obras de Ts’ui Pên, ancestral de Yu
Tsun e autor de um romance indecifrável e inventor
de um labirinto impossível de ser encontrado, e que
conseguira resolvê-lo: o labirinto e o livro eram uma
única e mesma coisa, o romance O jardim de veredas
que se bifurcam. Assim, o mistério deve-se ao fato de
que “o mais oculto é o mais manifesto”. O labirinto
não pode ser encontrado porque se apresenta sob
a forma evidente, disponível aos olhares de todos,
de uma obra destinada a um amplo público – pois
tal é a vocação desse gênero literário. No entanto,
se considerarmos que a atividade romanesca, na
medida em que é ficção e, assim, arte do engodo, se
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conforma a regras estratégi­cas, o conto inteiro do
escritor argentino revela-se uma narrativa em abismo
da fórmula “enganar o céu para atravessar o mar”. O
romance de Ts’ui Pên nada mais faz que reproduzir
toda a história que o engloba: esse Jardim de veredas
que se bifurcam escrito por Borges não coloca em
cena, de fato, histórias que não são mais que o reflexo
divergente de uma única e mesma intriga em que a
realidade não apresenta outro segredo senão o de ser
seu próprio segredo? E é isso que torna seu mistério
propriamente abissal.
E já que estou mencionando intrigas romanescas
como aplicações ou ilustrações possíveis de combi-
nações estratégicas, os mais belos exemplos da ação
desse procedimento que consiste em “enganar o céu
para atravessar o mar” sem dúvida não deveriam ser
buscados em Borges, cuja sofisticação e virtuosidade
por demais evidentes imediatamente revelam seus
meios, mas em certos contos de Henry James. Tenho
em mente, entre outros, “A fera na selva”. O drama
de “A fera na selva” reside na incapacidade de o herói
compreender que o acontecimento que deve transfi-
gurar sua existência e dar-lhe razão de ser acontece
sob seus olhos, enquanto ele está preso à estéril espera
de sua vinda, de modo que toda a sua vida – e toda a
vida de sua amiga – não passa de um imenso vazio,
vazio de uma espera nunca atendida, porque o milagre
esperado – o amor – acontece nas profundezas de um
segredo ilusório, sem que ele, à espreita onde este não
pode ocorrer, perceba.
Em outro âmbito, o estratagema é uma das coisas
a que as mulheres recorrem com mais naturalidade
para enganar os maridos, tanto na China quanto no
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Ocidente; e temos a surpresa de ver tal expediente
narrado por um autor chinês do século IV a.C., Han
Fei, em seu texto “Charadas interiores”, encontrado
quase palavra por palavra em Boccaccio. O filósofo
do legalismo, querendo ilustrar os perigos da delega-
ção de poder aos inferiores, relata a seguinte anedota
inspirada na vida cotidiana:
“Apesar de não sofrer de problemas mentais, um
habitante do Yan lavou-se em urina de cachorro. Eis
como se deu o fato:
Um homem chamado Li Ji viajava com frequên-
cia para longe, e sua mulher aproveitou para arranjar
um amante. Certo dia, o marido chegou em casa
enquanto o galanteador ainda estava ali. A adúltera,
em pânico, não sabia para que santo rezar. Sua criada
tomou as rédeas da situação:
– Diga a seu amigo que tire a roupa, solte os ca-
belos e saia correndo. Diremos que não vimos nada.
Diante do espetáculo do amante surgindo nu à
porta de sua casa, Li Ji exclamou:
– Quem é esse energúmeno?
As mulheres da casa gritaram numa única e
mesma voz:
– Onde? Não há ninguém!
– Então vi um espectro!
– Estou com medo – disse a mulher.
– O que faço?
– Tome um banho de urina de cachorro, meu
tesouro.
– Você tem razão!
E o marido fez suas abluções de urina.”
Como não lembrar das apimentadas novelas da
sétima jornada do Decameron, em que uma esposa
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hábil faz um marido crédulo duvidar dos próprios
sentidos, exibindo embaixo de seu nariz, completa-
mente a descoberto, o corpo de delito, por assim dizer.
Tal foi a brincadeira de mau gosto que a astuciosa
Peronella pregou no marido, que teve a má ideia de
voltar cedo para casa. Ela o fez entrar no barril de onde
o amante acabara de sair, a fim de que o limpasse para
um pretenso comprador, pelo qual ela teve a presença
de espírito de fazer o amante passar, e, sem que o céu
percebesse – o marido, ocupado em raspar o interior
do barril, atravessava um mar de felicidade –, foi pos-
suída por trás pelo amante “como um garanhão faz
com as éguas persas”, enquanto, com a cabeça dentro
do barril, orientava o esposo para que este fizesse um
bom serviço.

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