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Exemplo de explicação de texto (exercício: estudos da narrativa)

“As baratas”, de José Cardoso Pires:


anotações sobre uma representação distópica

Flávia Falleiros – Universidade Estadual Paulista

O artigo aqui divulgado faz parte do material didático preparado pela Professora Flávia Falleiros para seus alunos.
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Esta explicação de texto foi elaborada a partir dos seis últimos parágrafos do conto “As baratas”, de José Cardoso
Pires, publicado na coletânea A República dos corvos, Lisboa, Dom Quixote, 1999. Esse trecho (p. 69-71) foi
reproduzido em aula divulgada no Canal Literatura e cercanias, da Professora Flávia Falleiros; a aula pode ser
vista aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=7zvJUa2Oom0

Referências:
José CARDOSO PIRES, “As baratas”, em A República dos corvos (1ª ed. 1988), Lisboa, Dom Quixote, 1999, p.
47-70.
Gérard GENETTE “Discours du récit: essai de méthode”, em Figures III, Paris, Seuil, 1972, p. 65-274 (em
português: Discurso da narrativa: ensaio de método. Lisboa: Editora Arcácia, 1979. Tradução de Fernando Cabral
Martins).

I. Introdução

O trecho estudado contém os seis parágrafos finais de um conto relativamente curto do


escritor português José Cardoso Pires (1925-1998), intitulado “As Baratas” e publicado na
coletânea A República dos Corvos (1988, 1a ed.). Esses parágrafos são um momento da
narrativa em que o destino do personagem K se encaminha para o fim. K, ou Kapa, personagem
principal da narrativa, é um engenheiro de minas, judeu da Europa do leste que, ao fugir dos
nazistas, chega a Portugal, onde é contratado, numa mina situada na aldeia de Castro Alvor,
para comandar os trabalhos de extração de volfrâmio (um minério empregado na indústria
bélica); nesta localidade, ele se dedica também ao estudo e extermínio de baratas, que invadem
primeiramente sua casa e depois, tornando-se mais numerosas, toda a aldeia, já abandonada
pelos que antes viviam ali.

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O conto narra detalhadamente a luta incessante de K contra esses insetos invencíveis,
desde a sua chegada àquela localidade, até o momento em que, metamorfoseado numa barata,
por força, talvez, de uma espécie de delírio, ele é vencido pelos insetos e, sepultado por eles,
morre. O trecho que será objeto de estudo contém, portanto, o clímax narrativo1 deste conto,
em que ocorre a solução final para o destino do personagem K (a morte), um homem perseguido
por sua condição étnica e religiosa. A história é contada por um narrador heterodiegético (ele
não participa da ação, nem como personagem, nem como testemunha); esse narrador emprega
uma narração ulterior, o que lhe dá certo distanciamento em relação aos fatos narrados.

II. Desenvolvimento

O trecho se inicia com um parágrafo curto, de uma única frase, pela qual o leitor
compreende que K – cujos óculos se quebraram – encontra-se “cego como o inseto mais negro
e mais subterrâneo” (p. 69). O motivo da cegueira é reforçado pelo emprego da cor “negra”
(ausência de luz) e pela alusão ao mundo subterrâneo (onde não há luz), que domina o universo
diegético desta narrativa. Por meio de uma comparação (um símile: “como”), o narrador iguala
o personagem a um inseto que vive nas entranhas da terra, o que encontra um eco em sua
condição de prisioneiro da mina, onde havia se trancado para tentar fugir dos insetos, do mesmo
modo como, antes disso, havia se tornado prisioneiro da própria aldeia, para fugir dos campos
de concentração. A comparação de K ao inseto anuncia uma “metamorfose” (embora este
vocábulo não seja empregado no trecho analisado, ele aparece em outros trechos).
No 2° parágrafo, o motivo da escuridão é reforçado pela condição de cegueira, solidão
e desespero em que se encontra K. Contudo, aparece também, em oposição a este campo
semântico, outro motivo importante da narrativa, que é o da luz: os óculos quebrados são
evocados como a “luz dos (...) olhos” de K, então perdida. Ao mesmo tempo, começam a
aparecer os indícios da “metamorfose”: a capa negra que usava constantemente havia se
tornado “rígida” e se transformara em “casca” (p. 69), o que mais uma vez o assimila, agora
indiretamente, a uma barata; sua boca é desprovida de dentes, como a dos insetos.
No parágrafo seguinte (3°) o tempo se alonga e K definha pouco a pouco:
“Ficou horas assim. A definhar, a perder consistência, face aos vultos confusos
que o ameaçavam nas paredes com uma ferocidade de patriarcas.” (p. 69).

1
Clímax: aqui entendido como a parte da história em que os acontecimentos centrais ganham o máximo de
tensão para o protagonista (Franz Kapa), prenunciando o desfecho da narrativa.

2
K, envolto em sombras, se encontra em condição de vulnerabilidade, quase moribundo,
sentindo-se ameaçado pelos desenhos de insetos que tinha feito nas paredes da mina. Essa
situação expressa sua condição verdadeira, de judeu perseguido em plena Segunda guerra
mundial. Logo a seguir, alguns elementos vêm reforçar a ideia da “metamorfose”, por exemplo
a “baba” que lhe escorria da boca “até ao chão”, bem como a “linha cristalizada que o dividia
ao meio na vertical” (p. 69); esses elementos descritivos lembram visualmente uma barata, cujo
abdômen, do qual se desprende uma gosma no momento da morte, é de fato cortado ao meio
por uma linha divisória; a assimilação ao inseto aponta para a desumanização de que é vítima
o personagem.
No 4° parágrafo inicia-se um movimento ascendente, uma passagem do mundo escuro
e subterrâneo da mina para o mundo aberto, solar, exterior, acima dela. O deslocamento se
cumpre no parágrafo seguinte (no 5°): o personagem, movido pelo desespero, consegue
“atravessar a escuridão rochosa” e se desloca rumo à saída da mina, cujos portões abre. Ao sair,
é atingido pela violência do sol, que o subjuga, fazendo-o cair sobre um “cascalho vivo” (p.
70). O leitor compreende que se trata de baratas. Elas haviam estacionado diante dos portões
da mina, ali querendo penetrar em busca de umidade. K oferece resistência ao assalto dos
insetos, mas, devido à enorme quantidade deles, acaba sucumbindo e seu corpo se funde às
baratas. Assim, ele mergulha novamente na escuridão de uma “nuvem negra e rumorejante”:
“em pouco tempo estava afogado numa massa leitosa de insectos esventrados,
queimado, ressequido pelo terrível cheiro das baratas no meio dum amontoado de
destroços, cartilagens, asas crespas, vibrações” (p. 70).

O 6° parágrafo traz o desfecho da narrativa. O personagem, agora semelhante a “um


bicho decrépito” (p. 71), consegue desvencilhar a cabeça já enterrada na massa de insetos e
encarar o sol em seus momentos finais de agonia. Ele será sepultado pelas baratas (“pequenos
seres o sepultavam apressadamente”, p. 70). Porém, já entregue a uma espécie de alucinação,
Franzisko Kapa cessa de sentir os insetos e de ver a planície da aldeia de Castro Alvor, para
mergulhar num “prado de girassóis” em que domina “um coreto dourado a cintilar no horizonte”
(p. 70). O motivo da luz, que retoma um sonho recorrente do personagem (narrado em trecho
anterior), encerra o conto: é pela morte que Franz Kapa passa da escuridão à luz.

III. Conclusão

Nos parágrafos anteriores fez-se referência à oposição entre luz e escuridão, central no
trecho estudado e, para além dele, no próprio conto. O local em que se passa a ação é

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significativo disso: um povoado fronteiriço com Espanha, situado no extremo sul da Europa e,
por isso, uma região quente e clara (p. 48). É uma localidade em que se extrai minério para
armamentos (p. 50), portanto “assente sobre galerias subterrâneas na maior parte abandonadas
e batido pelos ventos quentes do sul” (p. 48); um lugar, portanto, com espaços de escuridão,
com poucas habitações (as casas dos mineiros) e uma pequena igreja; é um povoado antigo,
pois a casa ocupada pelo engenheiro é “histórica” (p. 49), tendo servido outrora de Casa de
Despacho do Santo Ofício. Castro Alvor é um lugar aberto e iluminado e, ao mesmo tempo,
sombrio e mortífero.
Viu-se como o personagem Franz Kapa passa do mundo subterrâneo e escuro da mina
à superfície da aldeia, inundada por um sol cruel; viu-se, ainda, que esse deslocamento coincide
com sua paradoxal libertação da condição de prisioneiro, pela morte; chegado a Portugal como
fugitivo em busca de escapar da prisão e da morte nos campos de concentração nazistas, o
engenheiro Kapa continua na verdade prisioneiro, obrigado, para sobreviver, a trabalhar,
indiretamente, para a indústria bélica nazista. Nesta condição de prisioneiro permanece por sete
anos, sendo paradoxalmente libertado pela morte, assimilada no conto à luz vista pelo
moribundo em sonhos (sonhos de liberdade, talvez?) e durante a alucinação que tem nos
momentos finais, quando ergue a cabeça ao sol. Para compreender melhor a importância da
oposição escuridão e luz nesse conto, é preciso se deter um pouco sobre o sentido do nome da
aldeia de Castro Alvor. Esse topônimo é fictício (não existe um povoado exatamente com este
nome em Portugal) e condensa a oposição entre luz e escuridão, o que se percebe pelo exame
da etimologia dos dois vocábulos que o compõem. “Castro” deriva do latim castrum [castelo,
fortaleza] e evoca, portanto, o enclausuramento da mina, ao passo que o vocábulo “alvor” tem
como primeira acepção a luz do amanhecer (a alvorada) e significa, figurativamente, “brancura,
alvura”. Assim, esse topônimo é uma imagem em que se condensa o destino do personagem
principal do conto; ela é formada a partir da junção de dois campos semânticos que funcionam,
no contexto desta narrativa, como opostos; um deles evoca a escuridão das minas e a condição
de prisioneiro do personagem central, outro a luminosidade ensolarada do Sul (espaço aberto)
e sua morte. O topônimo Castro Alvor sintetiza, portanto, a trajetória do personagem e seu
destino trágico. E poderia ser “traduzido” como “Entrincheiramento da luz”.
O universo diegético deste conto de José Cardoso Pires evoca e tematiza a opressão dos
sistemas totalitários. A ação transcorre num dos períodos mais terríveis da história do século
XX, a Segunda Guerra mundial (1939-1945) e, no caso de Portugal, a ditadura salazarista
(1933-1974). Outros elementos, no conto, acentuam esses aspectos, por exemplo a referência
ao tribunal da Inquisição, que teria funcionado na casa em que vai morar Kapa ao chegar à

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aldeia. O tema do extermínio da vida está sempre subjacente na matéria de que é feita a
narrativa, seja direta ou indiretamente: extermínio da guerra, extermínio do povo judeu
promovido pelos nazistas, ódio aos comunistas e antissemitismo presente na fala episódica de
um personagem (o padre da aldeia); há, também, a ameaça de contaminação por poeira
radioativa; a obsessão do engenheiro em exterminar as baratas também reforça o clima geral de
destruição, colocando-o numa posição em que, de vítima e perseguido, passa, em dado
momento, a algoz e perseguidor. Contudo, as baratas no final do conto, acabarão vencendo o
engenheiro em sua luta pela vida: elas o matam.
A construção desse universo diegético se faz por recurso à intertextualidade2, pois a
presença do escritor tcheco Franz Kafka paira sobre o conto, a começar pelas iniciais do
personagem principal – F. K. – e mesmo por seu nome, Franz; também é preciso mencionar o
fato de ambos (o personagem e Kafka) serem judeus. Cardoso Pires transpõe vagamente
elementos da matéria de algumas ficções de Kafka para o seu conto: assim, o título “As Baratas”
evoca A Metamorfose, narrativa em que o herói Gregor Samsa se transforma num enorme inseto
que, embora não nomeado como barata, assemelha-se a uma delas. Em Cardoso Pires, as baratas
– também personagens importantes da narrativa – se tornam plurais e a “metamorfose” é uma
transformação simbólica (semelhante a uma alucinação), de que diversos trechos dão conta,
entre outros a assimilação da capa preta usada pelo engenheiro em “casca”. Também se pode
pensar em outra novela de Kafka, O Processo; nela, o personagem principal, também chamado
K., se vê às voltas com um infindável e incompreensível processo cuja razão de ser desconhece
por completo (K. morrerá preso, na ignorância dos motivos que o levaram à clausura). A
intertextualidade é difusa, pois as histórias são diferentes, embora compartilhem alguns
elementos. O certo é que o sombrio universo kafkiano se amolda perfeitamente à história do
engenheiro judeu chefe da mina de Castro Alvor.
Uma das funções do narrador, nesse conto, é aquela que Genette denomina “ideológica”.
Ela se expressa por meio de diversas intrusões extra-narrativas do narrador na história. Por
exemplo, quando ele cita, numa nota de rodapé (p. 50), um personagem real, Walter Friedrich
Schellenberg (1910-1952), que foi oficial nazista da SS (Schutzstaffel, em português “Tropa de
proteção”), uma organização paramilitar ligada ao Partido Nazista; também quando ele faz

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Aqui entendida sumariamente como um diálogo entre textos literários. O termo “intertextualidade” foi proposto
pela crítica francesa Julia Kristeva, em 1969 (para formulá-lo, ela se inspirou de algumas reflexões do teórico
russo Bakhtin). Na perspectiva de Kristeva, a intertextualidade resume uma das mais importantes características
da literatura, que o é o diálogo perpétuo que ela entretém consigo mesma; não se trata de um simples fenômeno
entre tantos outros, mas sim de um movimento principal na literatura. Gérard Genette, por sua vez, adota o termo
geral “transtextualidade” para se referir às variadas relações de empréstimos entre textos literários.

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alusão à “desnazificação”, termo que designa a iniciativa dos Aliados após a vitória na Segunda
Guerra Mundial, e que consistiu num esforço para livrar a sociedade, a cultura, a imprensa, a
justiça e a política da Alemanha e da Áustria de toda influência nazista. O narrador insere na
narrativa elementos retirados da história real e os utiliza como estratégia de autenticação do
relato, indicando que, por trás daquele universo de ficção, desvenda-se uma página terrível da
história mais recente da Europa. Juntam-se a esses exemplos marcas do discurso que têm a
mesma função, por exemplo, a utilização de termos científicos, como Blattae blattidiae e bursa
copulatrix, as referências a livros de ciência, como o Handbuch der Entomologie, de Schröder
e o Código dos Insectos, de Bank, a referência a cientistas como Lineu (1707-1778), célebre
botânico, zoólogo e médico sueco que é o inventor da taxonomia moderna. Essas alusões
aparecem vinculadas ao personagem central, como a apontar difusamente para outro fato real
relacionado à perseguição nazi: a fuga de capital humano (a chamada fuga de cérebros), que é
a emigração em massa de indivíduos altamente qualificados, como Franz Kapa, competente
engenheiro e entomologista amador, obrigado a fugir para não morrer.
Ao término desta análise, que interpretação podemos propor para o conto “As Baratas”?
O que quis dizer, com ele, José Cardoso Pires? Trata-se certamente de um conto de denúncia,
como deixa claro o uso da função ideológica, empregada pelo narrador para autenticar o relato
e reiterada por uma focalização narrativa que oscila entre “zero” e “interna” (Genette); a
alternância de focalização permite ao narrador dar a ver um pensamento coletivo fortemente
marcado pelo antissemitismo, como na formulação racista e xenófoba em que Franz Kapa é
assimilado a alguém que “não tinha linguagem de gente”? (p. 47) Assim, nessa narrativa em
que sequer a luz do sol é benfazeja e na qual se esboçam perspectivas sombrias, configura-se
uma distopia3 cujo sentido principal é o de uma dura crítica aos regimes totalitários de todos os
tempos e a sua coleção de horrores, dentre os quais a perseguição étnica é um dos exemplos
mais terríveis. O conto “As baratas”, que começa e acaba mal, sugere uma cruel lição sobre o
destino trágico dos homens prisioneiros desses regimes: a “luz” da morte, terrível sol negro,
como única libertação possível.

3
Entenda-se aqui « distopia » como um discurso de ficção em que se representa a antítese de uma utopia, uma
utopia negativa.

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