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ATO 1:

Cena 1: Era noite. Fazia escuro no vagão superlotado de trem; o chão, sujo de feno espalhado. Tudo parecia úmido, muito ácido ,
muito sufocante. Pessoas se acotovelavam entre os animais e bagagens que levavam; gerando muito desconforto a todos. Nem
todos choravam, mas todos ali, sem exceção, estavam assustados.

Em um dos vagões, a situação era ainda mais extrema: uma mulher estava dando à luz. Os pobres coitados que dividiam o espaço
ali tentavam dar espaço para a velha metida a parteira que tentava fazer algo. Um homem, provavelmente o pai da criança, estava
com a mão brutalmente fixa sobre a boca da esposa, ao tentar impedi-la de emitir qualquer ruído; mesmo assim, um gemido seco
escapava. Você tem de fazer silencio, ele dizia volta e meia como se ela fosse esquecer.

Sangue escorreu pelas tábuas do chão do vagão e finalmente a parteira pegou a criança recém-nascida no colo: um neném
minúsculo tão quieto que parecia um filhote natimorto de vira-lata. Neste momento, todos no vagão olhavam para a situação como
se tudo fosse um espetáculo horroroso. O homem largou a boca da mulher e esta esticou os braços para segurar a criança.

Velha: ele não está chorando...

Homem: por tudo o que é sagrado, não deixa a criança chorar.

Velha: toma cuidado, é tão miudinha! Entregou-a para a mãe e o pai se tranquilizou.

Homem: tudo bem Asma, estamos quase em segurança. Disse para a esposa, mas esta parecia estar tão focada na criança que nem
deu a mínima. Ele ainda tirou o casaco e colocou sobre os ombros dela para tentar conforta-la de alguma forma.

Cena 2: O trem parou e os refugiados começaram a desembarcar. A estação está em alerta máximo: há muitos guardas, soldados,
além de dois ninhos de metralhadora em lugares estratégicos e um gigante de tocaia. Havia muitas pessoa s doentes, mutiladas,
sofrendo com feridas abertas. Os soldados tentavam ajudar como podiam, traziam macas e chamavam por médicos, mas tudo ficou
caótico rapidamente.

O homem e a mulher, esta com a criança escondida por baixo do casaco, desceram do trem. Imediatamente, viram que havia um
gigante. Cobre a criança, esse demônio pode fareja-la, o homem disse. Ela apertou mais ainda o casaco contra si, tentando disfarçar
o volume que a criança no colo dela fazia.

Soldado 1: Porque pararam? Circulando, agora. Um dos guardas os repreendeu; o coração do homem pareceu parar quando ouviu
a voz se dirigindo a ele.

Homem: Tudo bem, senhor; já estamos indo. Agarrou a mulher pelo braço e tentou despista-lo entre a multidão.

Os refugiados estavam sendo conduzidos para uma espécie de acampamento improvisado distribuído em tendas compartilhadas.
Toda a ocupação parecia muito antigo e muitas pessoas já moravam ali; nos barracos que mais pareciam galinheiros. Havia també m
algumas instalações entre as pocilgas: algo que parecia um hospital de campanha, algo que parecia o local onde se fazia o sopão
comunitário, outra coisa que parecia (e realmente era) um prostibulo. Muitos desses lugares utilizavam das construções
abandonadas da estação ferroviária.

Homem: não podemos ficar nesses barracos. Precisamos de um lugar mais reservado...

A mulher cambaleava e volta e meia tropeçava. Ainda havia sangue escorrendo por suas pernas. Perambularam um tanto, desviando
o olhar das pessoas e dos soldados que eventualmente passavam por eles, até que encontraram um lugar mais ou menos escondido:
um espaço de pouco mais que dois metros entre um barracão e o que restou de um muro de pedras enegrecidas por uma fogueira.

Homem: aqui, aqui está bom. Ele puxou a mulher para o canto escuro.

Mulher: tá doendo muito. Ela reuniu forças para falar enquanto ele a ajudava a se sentar com as costas apoiadas no muro.

Homem: eu sei que tá doendo, Asmav. Disse e deu um beijo na testa suada e suja dela; depois puxou levemente o casaco que ela
vestia para conseguir ver a criança. Como está nossa filha?

Ela puxou a criança que dormia tranquila ainda mais para si em um movimento instintivo. O homem deu uma olhada e ficou
pensativo durante alguns segundos, depois voltou a falar:

Homem: preciso ver se consigo algo pra você comer. Vai ficar bem?

Mulher: sim, acho que sim. Com a vau dela, ele não disse mais nada e deu um pulo para fora do beco, deixando-as sozinhas ali.

Cena 3: a mulher acordou, uma vez que aparentemente havia caído no sono. A primeira coisa que ela fez é olhar para baixo e
constar que o bebé ainda está em seus braços, e de fato estava. No segundo seguinte, percebeu um calor muito grande, e estava
muito claro (a julgar já que ainda era noite); era fora, muito fogo. Entre os barracos, as pessoas corriam desesperadas contra o fogo
que se alastrava largamente. Havia gritaria, e também sons de tiros. A reação assustada da mulher foi rastejar pelo chão beco a
dentro feito um rato desorientado no canto da cozinha.

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Então o homem voltou, correndo, e tão assustado quanto ela, tropeçou no muro do beco e foi rastejando até ela.

Mulher: o que está acontecendo? Tentou perguntar com a voz já fraca.

Homem: esse lugar tá condenado! Vamos, agora! Levantou-se e logo tentou ergue-la, mas ela caiu no chão novamente alguns
passos adiante. Se acalma, tudo bem, segura bem a nossa filha. Então pegou a mulher no colo.

O homem foi andando pelo acampamento, agora praticamente vazio, o mais rápido que as duas que ele carregava permitiam. Havia
corpos no chão, alguns pobres desesperados correndo de volta para os trilhos e soldados gritando.

Mulher: para onde vamos? Perguntou baixinho e choramingando.

Homem: não se preocupe, sei onde podem se esconder.

Ele subiu para uma espécie de zona de carga e descarga da estação ferroviária e colocou-as no chão, próximo ao que parecia um
gerador a diesel. Abriu a escotilha de chumbo no chão que dava para o maquinário abaixo do solo. Depois pegou a esposa e a filha
e a colocaram lá embaixo.

Homem: ficarão bem aí. Disse, já fechando novamente a escotilha.

Mulher: você não vem também?

Homem: não tem espaço pra mim aí, mas não se preocupa, vou ficar bem. Adeus Asma, te amo. E fechou a escotilha novamente,
tudo ficou escuro.

Cena 4: a rainha estava no carro blindado do exército, que se dirigia para a estação ferrovia e arredores em ruínas. Através da
pequena abertura na porta de aço, ela percebe muita presença militar na estrada.

Infante Babi: não é seguro estarmos aqui, Vossa Majestade.

Rainha Marta: eu decido aonde devo ou não ir, garoto. Você não opina.

Infante Babi: com certeza, Vossa Majestade. Ele pareceu ficar magoado com a resposta.

O carro parou e ambos saltaram para serem imediatamente recepcionados pela escolta real. A rainha, ao passar do ambiente escuro
do veículo para o sol intenso, abaixou a cabeça momentaneamente para se proteger da luz, mesmo estando com o boné militar na
cabeça; ela também vestia o sobretudo preto dos altos oficiais e o colete a prova de bolas. Sua pistola estava no coldre em sua
cintura. Tudo isso combinado conferia á rainha uma aparência quase que assustadora. Ela se viu em uma espécie de posto de
observação no terreno mais acima da estação ferroviária. Lá embaixo havia muita fumaça e muitos focos de incêndio ainda de pé;
viaturas do corpo de bombeiros estavam estacionados em fila na estrada íngreme entre o terreno superior e inferior.

Secretário da Guarda Real: Primeiro Infante Babi! Montamos um cordão defensivo para Sua Majestade com duzentos homens.
Apresentou-se com uma centena de homens atrás de si.

Infante Babi: duzentos homens? Estamos escoltando a rainha, não o mordomo real, entendeu?

Secretário da Guarda Real: sim, senhor, eu compreendo...

Infante Babi: só duplique o efetivo e saía da minha frente, AGORA. Deu um empurrão no homem para que fosse logo.

O secretário saiu correndo e começou a gritar ordens para seus homens. Babi voltou-se novamente para a rainha.

Infante Babi: mil perdões, Vossa Majestade, estamos cercados de incompetentes.

Rainha Marta: pare de se exibir, Babi. Não há mais perigo por aqui. Não deu mais atenção para o irmão do rei e virou-se para um
coronel que estava ali com eles: então, o que aconteceu aqui?

Coronel: terroristas atacaram o acampamento de refugiados durante a noite. Ainda estamos investigando.

Rainha Marta: sobreviventes...

Coronel: pouquíssimos. Bom, na verdade só sobraram dois; um bebe recém-nascido e a mãe.

Rainha: um bebe? A palavra claramente chamou sua atenção, voltou a falar: leve-me até essa criança.

Cena 5: a rainha, sem o sobretudo e pistola (mas ainda de colete) deu o primeiro passo para dentro da ambulância, mas a mulher,
deitada na maca, assustou-se e olhou para o bebe enrolado nos panos bem ao lado dela.

Rainha: calma, calma, está tudo bem. Retrocedeu alguns passos para fora da ambulância. É sua filha, não? Ela então tirou um r elógio
do bolso onde havia a foto de uma criança: eu também tenho um filho, veja; o nome dele é José Carlota. Tentou se aproximar mais
uma vez, desta vez mais amigavelmente; sentou-se ao lado da maca.

Mulher: você é a rainha.

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Rainha Marta: sim, e estou aqui para ajudar. Está em segurança agora.

Mulher: não, em segurança não. Ela começou a ficar apreensiva novamente, obrigando a rainha a segura-la delicadamente pelos
ombros para que não levantasse da maca. Estava tão debilitada que caiu no sono.

Cena 6: a rainha saltou para fora da ambulância, pegou de volta a pistola com Babi e a recolocou no coldre enquanto os homens ali
fora observavam apreensivos. Também pegou o sobretudo e vestiu-o novamente.

Rainha: qual o quadro dela, doutor? Perguntou ao médico da guarnição.

Médico Marlão: tentamos controlar a hemorragia interna, mas sem sucesso; e a infecção...perdoe-me Vossa Majestade, ela não
tem muito tempo.

A rainha parou por alguns instantes para pensar, como se estivesse arquitetando algo. Esse momento deixou a todos apreensivos.

Rainha Marta: vou levar esse bebe comigo. Deu o veredito.

Médico Marlão: como desejar, Vossa Majestade.

Infante Babi: vai o que? Vossa Majestade, o que pretende...

Rainha Marta: cale a boca Babi, pare de questionar ordens. Cortou-o.

Cena 7:

Rei Dom João II: você fez o que? Perguntou, sem ao menos digerir a informação.

Ele e a rainha estavam no gabinete real. era uma sala relativamente pequena, mas o pé era alto para acomodar as estantes de livros
jurídicos. De um lado, projetava-se do pedestal o busto de O Primeiro Rei e do outro lado não havia parede, e sim um grande vidro
pelo qual podia-se ver todas as instalações centrais do serviço de inteligência do país, cujo piso era cinco metros abaixo. Entre o
vidro e o busto, havia a robusta mesa do rei. José, o príncipe que devia ter pouco mais de um ano de idade, brincava próximo a
porta. O rei, ao contrário da rainha, não vestia malha, e sim uma camisa social com uma gravata meio-froixa.

Rainha Marta: ela pode fazer companhia ao José. Referia-se ao bebe que havia trago consigo e naquele momento estava no berço
de mão sobre a cadeira.

Rei Dom João II: você é inacreditável; quer mesmo colocar uma filha de estrangeiros dentro de casa?

Rainha Marta: sim, dará credibilidade a nossa política pacificadora, concorda? Ela se aproximou da mesa para dizer isso e apoiou as
duas mãos na madeira nobre.

Rei Dom João II: faz diferença se eu discordar?

Rainha Marta: é o tipo de resposta que eu esperava.

Cena 8: a sala real era gigantesca. O centro era um jardim circular abaixo de uma cúpula de vidro; além disso, somente uma me sa
cumprida para dez pessoas próxima a uma pilastra. José, com seus cinco anos de idade, estava dentro do limite do jardim, tentando
desembrulhar uma barra de chocolate. Eva, mais uns poucos metros à frente no pequeno jardim, metia as mãos na terra e puxava
as minhocas, imediatamente colocando-as na boca.

Rainha Marta: filha, o que você está fazendo? Ela, vestindo roupas de jardinagem, chegou por trás e se abaixou para perguntar.

Eva pegou uma minhoca e enfiou na boca da mãe. A rainha não repudiou aquilo, só riu e mastigou. Durante essa ação, José se
cansou do embrulho e mordeu o chocolate com papel e tudo.

O Rei estava sentado na mesa com uma xicara de chá na mão, observando aquilo tudo com um ar de estranheza. Babi, entretido
ao ler o jornal, estava ao lado dele, mas em dado momento fitou o jardim novamente e largou o jornal na mesa.

Infante Babi: essa mulher trata a criança como se fosse filha legítima de vocês. Chegou com o rosto mais próximo ao rei para dizer.

Rei Dom João II: você fala demais, Babi.

Infante Babi: João, cara, isso tá manchando a imagem da família. Você devia tentar tirá-la daqui...

O rei não disse nada, só pegou Babi pela gola da malha e o jogou no chão fazendo sua cadeira voar em trajetória parabólica até o
chão enquanto o infante capotava sobre a madeira escura e cara.

Rei Dom João II: saí da minha casa. Ordenou, somente, como se estivesse (e estava) se segurando.

Infante Babi: certo, certo, irmão. só precisava pedir...Levantou-se desconcertado e caminhou cambaleante até a porta enquanto o
rei continuava estável diante a mesa, terrivelmente pensativo, como se fosse claro que algo passasse em sua mente, mas era
impossível distinguir o que.

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Cena 9: o céu estava azul, sem nuvens, porém colunas de fumaça erguiam-se da capital até o céu a partir dos focos de incêndio que
se alastravam pela capital. Logo acima do país, os bombardeios estratégicos passavam largando suas bombas. Ao longe das grandes
formações de aviões inimigos, os caças Me 262 se aproximavam para interceptá-los e logo entraram em conflito com a escolta. Era
o maior Dogfight que um dia sobrevoou uma cidade.

Cena 10: a instalação central de inteligência estava um caos generalizado. Havia muita correria e o chão tremia a cada vez que uma
bomba caía perto. A rainha e os filhos estavam esquecidos no banco próximo a escada enquanto o rei estava logo a frente, cercado
por seus generais. José estava mais distante, encostado no corrimão de ferro da escada.

Rei Dom João II: como assim ficarão cercados dentro de 24 horas? ele gritava no telefone enquanto seus homens esperavam as
ordens que viriam a seguir. Recuem para a próxima cidade! Tenho que dizer tudo?

General: Vossa Majestade...recebemos uma mensagem da base aérea, disseram que nunca viram nada igual. A informação fez com
que o rei caísse para trás e se apoia-se na cadeira, exausto.

Eva: mãe, eu não quero ficar aqui embaixo. Abraçou-a com seus braços curtos.

Rainha Marta: precisamos ficar aqui até as coisas melhorarem, ok?

O rei chegou e sentou no banco bem ao lado delas.

Rainha Marta: o que está acontecendo?

Rei Dom João II: não tem como saber, os cretinos cortaram todas as comunicações antes de atacarem...a cidade está isolada do
mundo externo.

Príncipe José Carlota: mas a gente vai pegar eles, não é, pai? Tentou se animar.

O rei nada respondeu a aquilo, só ficou pensativo, sabia que na realidade nada era tão fácil assim.

Rei Dom João II: olhem, as coisas vão ficar difíceis daqui para frente, para todos nós.

A rainha encostou o rosto no ombro grande do rei, ele retribui o gesto abraçando-a e Eva ficou entre os dois. José continuava
afastado.

Cena 11: o lugar era frio, escuro e seco. o teto era altíssimo e dele se espaçava algumas poucas lâmpadas que tremulavam lá em
cima. Ali, naquele setor, havia seis grandes docas (buracos sobre o concreto cru que se estendiam quarenta metros abaixo do nível
do chão) para a acomodação dos gigantes durante os testes. Para cada doca, havia um posto de controle para os técnicos e militares.

Doutor Lazaro: por favor, Vossa Majestade, já vamos começar, pode se aproximar mais do vidro? Indicou a grande janela blindada
da doca para o rei, que obedeceu com alguma relutância.

Naquela doca havia um gigante sendo preparado para um teste, atrás dele haviam outros dois gigantes vestidos com roupas de
contenção biológica fazendo alguns ajustes. Em algum momento, um dos gigantes deu um “joia” em direção ao vidro, dando sinal
verde para começar. O cientista no painel de controle girou um interruptor e a escotilha do gigante se fechou acolhendo o pil oto
que estava pendurado do lado de fora para dentro de si.

O gigante abriu os olhos, mas se descontrolou alguns segundos depois e os outros dois atrás dele tiveram que o conter A escotilha
se abriu novamente e os paramédicos correram em socorro ao piloto. Um dos cientistas bateu de punho serrado na mesa cheia de
plantas de construção biomecânicas e outro pôs as mãos no rosto em derrota. Todos ali não ficaram muito felizes com a falha.

Doutor Lazaro: o sistema imunológico está lutando contra a armadura novamente.

Rei Dom João II: isso é inútil! Cancele o projeto, já vi o bastante. Saiu andando para as escadas, decepcionado.

Estagiário: precisa de um coração puro. Um cientista muito jovem no canto da doca disse, sequestrando todos os olhares do
ambiente.

Rei Dom João II: o que disse, rapaz? Ele parou e se virou, interessado.

Estagiário: para um gigante vestir a armadura, é preciso ser bom e justo.

O rei se voltou para o doutor.

Rei Dom João II: há embasamento cientifico nisso, doutor?

Doutor Lazaro: não, mas podemos tentar. Não resta mais opções.

O rei ficou pensativo por algum tempo e todos estavam paralisados, esperando a sua resposta. Ele deu alguns passos, encostou na
parede, coçou a barba.

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Rei Dom João II: uma garota, 15 anos. servirá? perguntou ao novato.

Estagiário: se for boa e justa, sim.

o rei não disse mais nada e foi embora, deixando um ambiente muito negativo na doca.

Cena 12: o rei entrou na instalação central de inteligência e todos ali pararam o que estavam fazendo para prestar-lhe reverencia.

Rei Dom João II: voltem ao trabalho! Finjam que não estou aqui! Gritou, atravessando os corredores entre as mesas de
planejamento estratégicos a passos largos. A rainha estava em uma das mesas, repreendendo algum oficial qualquer por um motiv o
qualquer.

Rei Dom João II: Marta, aonde está Eva? Perguntou assim que chegou até ela.

Rainha Marta: Eva? Treinando. Voltou aos papéis, não prestando tanta atenção nele. Inclusive, José anda faltando a escola, devia
falar com ele...

Rei Dom João II: Marta, eu preciso dela. Cortou-a.

A rainha elevou a cabeça novamente até ele.

Rainha Marta: como assim?

Cena 13: rei e rainha estavam agora no escuro e vazio gabinete do andar de baixo na tentativa de terem a discussão em um luga r
mais reservado.

Rainha Marta: nossa filha não é nenhum rato de laboratório. Ela foi irredutível naturalmente, que mãe não seria.

Rei Dom João II: será bom para que ela exercite os poderes, ou acha que poderá controla-la para sempre?

Rainha Marta: mas é nossa filha.

Rei Dom João II: não, você sabe que não é. Ele foi muito duro, deixando a rainha arrasada. Houve algum momento de silêncio.

Rainha Marta: você nunca a aceitou de verdade.

Rei Dom João II: nem entra nisso. Agora, é hora de tomar as decisões difíceis.

Rainha Marta: e o que os homens sabem sobre decisões difíceis?

O rei retrocedeu alguns passos e respirou fundo.

Rei Dom João II: vamos a deixar escolher.

Rainha: ela só tem 15 anos... Ela já estava cansada de contra-argumentar.

Rei: ela vai escolher e vai escolher servir este país.

Cena 14: a floresta era uma área provisória para treinamento de gigantes. Não haviam construções elaboradas, somente barracas
que serviam de todo tipo de instalação: dormitório, salas de aparelhos e locais donde os oficiais do exército e figurões do Estado
podiam ver o treinamento. Estava chovendo. A lama havia se tornado um monstro angustiante e todo tipo de pessoa ali tentava
escapar da sujeira com botas e capas de chuva, mas mesmo assim tudo estava muito molhado. Junto com o som da água, o barulho
dos gigantes lutando no terreno mais abaixo havia se tornado o som ambiente do lugar naquele dia.

Um coronel escoltava seus dois suseranos supremos pelas instalações. A rainha estava de malha e sobretudo, embora sem colete
à prova de balas e usando um boné militar ao invés do quepe; já o rei tentava acompanha-la para protege-la sob o guarda-chuva,
embora ele mesmo estivesse encharcado. Outros muitos soldados os acompanhavam.

Aproximaram-se da luta, parando ao lado de uma ribanceira protegida da chuva por um tronco. Viram um gigante semi-
descontrolado (sem armadura) batendo em outro (este e todos os outros de armadura) com vontade até que caísse desorientado
no chão pedregoso e continuou chutando-o. Um gigante instrutor tentou detê-lo, mas levou uma mordida na mão, para a surpresa
de todos. Outros dois chegaram e pressionaram a aberração desgovernada contra o barranco para imobiliza-la enquanto o instrutor
sem uma parte da mão xingava para os quatro cantos. O coronel que acompanhava os monarcas fez uma cara de espanto e nojo. A
rainha virou-se ameaçando vomitar, sendo afagada pelo rei.

Rainha Marta: não se preocupe comigo.

O gigante afogado aquietou e os outros puderam solta-lo; a membrana no ventre dele se abriu e Eva pulou lá de dentro dele antes
que os paramédicos pudessem subir e puxa-la para fora. Ela estava desorientada e escorregou pelos pedregulhos até que um dos
homens a apanhou para que não descesse até o fim da arena.

Paramédico: Vossa Alteza! Vossa Alteza! Se acalma! Segurou-a.

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Eva: Me solta! Livrou-se dele e começou a subir a ladeira. Por que me detiveram? Eu tava vencendo! Gritou, irritada. Quando chegou
ao topo, deparou-se com os pais e esqueceu o aborrecimento. Correu até eles e deu um abraço apertado na rainha. Pai! Mãe! Vocês
vieram me ver lutar? Já derrotei dois hoje!

Rainha Marta: muito bem, meu bem.

Rei Dom João II: Eva, nós precisamos conversar. A rainha olhou para ele com ódio, ainda com a cria nos braços.

Eva: o que aconteceu? Perguntou olhando para ele, mas a rainha a forçou a olhar para si novamente com a mão.

Rainha Dom João II: seu pai precisa da sua ajuda, mas não vamos te forçar a nada...

Eva: e o que é? Falem de uma vez! Afastou-se dos dois. Eles não responderam imediatamente, mas a rainha tentou explicar.

Cena 15: José entrou na grande real. Estava muito escuro, só um pouco de luz de fim de tarde entrava pela cúpula de vidro do
jardim interno.

Príncipe José Carlota: mãe, cheguei! Gritou, mas ninguém respondeu. Ele continuou andando e encontrou a mãe sentada frente a
mesa próxima à pilastra, quando se aproximou, viu que ela esvaziava uma garrafa de uísque, copo por copo. Ele, assustado, pux ou
uma cadeia e se sentou. Mãe, o que aconteceu?

A rainha continuou concentrada no uísque, sem ao menos olhar para o rosto do filho.

Rainha Marta: Eva vai ficar fora por um tempo.

Príncipe José Carlota: o que? como assim?

Rainha Marta: ela quis fazer o que tinha de ser feito e eu não impedi. Se algo de ruim acontecer com ela...

Príncipe José Carlota: aonde ela está?

(...)

Cena 16 (DESPEDIDA ENTRE JOSÉ E EVA)

Cena 17: dois anos depois, 1943. Uma bomba-foguete deu um rasante sobre a colina e caiu em uma área periférica da cidade. A
capital estava com uma aparência horrível: multidões se reuniam para recolher os entulhos da rua com as próprias mãos, havia filas
quilométricas por comida nos mercados e o sentimento geral era de medo.

Dentro da casa real, as coisas não estavam melhores. Os médicos montaram um leito de UTI completo para a Rainha dentro do
quarto real, mas ela já estava mortalmente além da salvação. Havia alguns parentes no quarto, também pessoas importantes do
Estado e da Igreja; mas José Carlota estava encolhido sobre a cadeira nalgum canto. A aparência do príncipe era deplorável: o cabelo
longo e mau cuidado, a barba por fazer e a malha suja de cinzas de cigarro.

Uma garota de jaleco que parecia ter a idade dele passou da porta para o leito. José fitou-a ao passar, mas desviou o olhar quando
viu que ela olhava de volta para ele.

Cena 18: Já era parte da noite e todos os convidados já haviam ido embora da casa real. Doutor Marlão também se preparava para
partir quando José Carlota o abordou.

Príncipe José Carlota: doutor, minha mãe... quanto tempo ela ainda tem?

Doutor Marlão: não pense nisso, Vossa Alteza. Deu um tapa no ombro dele. Só procure passar o máximo de tempo o possível com
ela.

Príncipe José Carlota: tudo bem. Olhou por além da porta a partir do corredor e viu a garota de jaleco sentada ao canto enquanto
anotava algo em uma prancheta de forma estranhamente concentrada. Quem é ela? Parece nova para ser médica.

Doutor Marlão: é Maria. Ainda cursa medicina, mas está acompanhando o leito. Fez a reverência e foi embora. Preciso voltar pa ra
o hospital, adeus. Disse, quando já estava longe.

José voltou para o quarto, onde havia somente a mãe acamada, Maria bem ao lado e o doutor escrevendo algo no prontuário num
ponto mais distante do grande quarto. Uma outra enfermeira esterilizava tudo. O príncipe se sentou ao lado da mãe e pegou na
mão dela.

Maria: perdão, Vossa Alteza. Posso fazer uma pergunta?

Príncipe José Carlota: faça.

Maria: como a rainha era...antes de adoecer?

Príncipe José Carlota: bem...ele sorriu, desconcertado. Ela tratava todo mundo como se todos fossem seus filhos. Eu sou José
Carlota...desculpa, você já deve saber.

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Maria: sou Maria.

Cena 19: a comitiva fúnebre passava pela Avenida Central da capital. Todas as janelas estavam fechadas e haviam bandeiras
completamente negras hasteadas nos prédios. Poucas pessoas andavam pela rua, e estavam desoladas.

José estava sentado na poltrona do quarto dos pais e embora fosse possível ver a movimentação pela janela, não se esforçava nem
um pouco para tal. Agazaú chegou na porta, que estava aberta.

Secretário Agazaú: Vossa Alteza, há alguém que quer te ver.

Príncipe José Carlota: tanto faz, mande entrar. Ele nem sequer olhou para o rosto do homem.

Maria então entrou e José ficou surpreso por ver ela. Ela, também vestindo roupas fúnebres, parou em frente a poltrona e fez a
reverência.

Maria: meus pêsames, Vossa Alteza.

Príncipe José Carlota: meus pêsames para você também, ela também era sua rainha, afinal. Voltou a olhar para algum ponto fixo
na parede.

Maria: me desculpa te incomodar, Vossa Alteza, já vou me retirar. E foi indo embora, mas o príncipe a chamou de volta.

Príncipe José Carlota: Maria, espera.

Maria: pois não.

José olhou para a janela alta. Acima dos prédios, o céu estava azul, não havia nuvens, nem fumaça, nem as explosões semanais.
Tudo realmente (e estranhamente) calmo.

Príncipe José Carlota: obrigado por ter assistido minha mãe nos últimos momentos dela, mesmo.

Maria: é uma honra, Vossa Alteza. Obrigada. Deu um sorriso reconfortante, fazendo o príncipe suspirar.

Príncipe José Carlota: és muito bonita, Maria. Queria ter lhe falado isso na última vez.

Maria: quer falar sobre isso agora, Vossa Alteza?

Príncipe José Carlota: caralho, por que não? Deu um suspiro sarcástico.

Maria: tenho que ir agora, Vossa Alteza. Ficou sem graça, virou-se e foi caminhando para a porta.

Príncipe José Carlota: eu fui indelicado? Levantou-se da poltrona, alarmado. Me perdoa...Tentou se desculpar, mas foi ignorado.

Cena 20: a casa de Maria era pequena, mas aconchegante. Quando entrou e fechou a porta atrás de si, pendurou o casaco e pôs os
sapatos junto aos outros. O som do rádio ligado na sala era exageradamente alto. As tropas a volta de Compostela conseguiram
contra-atacar, mas sofreram muitas baixas...A vovó estava sentada ante a mesa da cozinha, organizando as contas acumuladas.

Maria chegou perto sorrateiramente, mas a vovó a percebeu chegando.

Vovó: querida! Que bom que chegou. A neta chegou mais perto e viu as bulas bancárias.

Maria: estamos sem dinheiro este mês de novo?

Vovó: não se preocupe com isso. Vamos superar...Disse, ainda emotiva.

Cena 21: Maria estava no pátio interno do quarteirão, ajudando o avô com o trabalho de manutenção dos prédios. O velho
trabalhava arduamente, mesmo que sua idade não permitisse a empreitada. Maria tentava acompanhar o ritmo dele. Os dois
cobriam um dos canos soldados do sistema de água abaixo do piso do pátio com as placas de concreto.

Vovô: não precisa mais me ajudar no trabalho. Você tem a faculdade pra se preocupar. O velho argumentou vulgarmente, mais
recusando a ajuda do que sendo complacente com a neta (ele não falava daquele jeito devido a maldade e sim pela simplicidade da
personalidade grosseira).

Maria: mas eu quero ajudar, vovô. Precisamos de dinheiro, não é? Ela trouxe mais uma placa pesada para ele. Estava tão suja e
cansada quanto o avô, e ele notou isso.

Vovô: olha o seu estado! Assustaria qualquer homem...como vai arranjar um marido assim?

Maria: não está falando sério, está? Riu do conservadorismo do velho enquanto ia buscar outra placa. Mas o velho caiu no chão de
cansaço e ela teve que correr para socorre-lo. Vovô, você está bem?

Vovô: não tenho mais idade pra isso. Disse, ofegante ao chão. Preciso descansar.

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Maria: pode parar por hoje, eu termino o trabalho. Ela o deixou ali e correu para pegar a última placa e encaixa-la ao lado das outras
dentro do fosso.

Vovô: obrigado. Subiu um pouco e sentou no canteiro. Você é um anjo.

Cena 23: Maria acordou com o sol batendo na cara dela e pegou o despertador, mas a hora não importava. Jogou o despertador
pela janela e levantou o rosto amassado da cama. Ainda cambaleando de sono, saiu do quarto. Do corredor, ouviu uma voz na sala.
Foi andando para ver do que se tratava, curiosa.

José estava sentado em frente ao piano da sala e conversava com o vovô. A vovó estava atrás deles, sentada no sofá, ouvindo a
conversa entre os dois.

Príncipe José Carlota: bom, já tive algumas aulas...Falava com o velho.

Vovó: Maria! demorou a acordar. Disse quando viu a neta, cortando a fala do príncipe.

José se levantou desajeitadamente da cadeira e ficou em forma.

Príncipe José Carlota: bom dia, senhorita.

Maria: o que faz aqui, Vossa Alteza? Ela realmente não entendia o que estava acontecendo.

Vovó: Maria, seja gentil.

Príncipe José Carlota: bom, eu...Caminhou em direção a Maria. Eu quero me desculpar pela minha indelicadeza.

Maria: aquilo não foi nada. Não precisava vir aqui.

Príncipe José Carlota: precisava sim. Eu não queria ter dito...daquela forma.

Maria corou de vergonha. O silêncio a seguir foi constrangedor.

Príncipe José Carlota: bom, melhor eu ir embora. Olhou para os velhos e quebrou o silêncio.

Vovô: está terrivelmente cedo, garoto. Ao menos tome café conosco.

Príncipe José Carlota: é...sim! Por que não? Acho que não há problema.

Cena 24: os quatro estavam sentados na pequena mesa da cozinha, conversando e comendo. José realmente estava encantado
com a graça da casa.

Vovó: o que você faz, garoto?

Príncipe José Carlota: coisas de príncipe. Mudando de assunto, vocês têm uma bela casa... Fitava o papel de parede florido da
cozinha.

Maria: que tipo de coisas de príncipe? Ela perguntou quase como se o confrontasse.

Príncipe José Carlota: bom...Ajeitou-se na cadeira. Aulas, línguas, lutas, treinamento de tiro e combate, balé...

Maria: balé? Deu uma risada levantando as sobrancelhas à surpresa.

Príncipe José Carlota: balé é sério, a conduta do príncipe é a seriedade. Respondeu, todo cheio de si.

Vovó: Vossa Alteza é um verdadeiro cavaleiro! Não é Dráuzio? Perguntou ao velho.

Vovô: sim. Tomou um gole de café. Maria, trate de se casar com ele.

Então veio mais uma onda de silêncio, pior do que a primeira. José ficou surpreso, mas quando fitou Maria, ela desviou o olhar. Ela
levantou às pressas, morta de vergonha e correu para o corredor.

Maria: preciso voltar para a universidade, tchau!

Vovó: Dráuzio! Porque disse isso? A velha ficou inconformada, mas ele não pareceu se importar.

Príncipe José Carlota: já são seis e meia! Também preciso ir. Também levantou após olhar o relógio e foi embora.

O vovô e a vovó ficaram sozinhos na mesa.

Vovó: você os deixou constrangidos.

Vovô: e daí? pros jovens de hoje tudo tem que ser difícil. Lembra da nossa época?

Vovó: esquece nossa época, já somos fósseis.

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Cena 25: José Carlota estava no gabinete real, sentado na cadeira frente à escrivaninha do pai. O Rei estava de pé, encostado na
parede, olhando para todas as movimentações além da janela. Fumava um charuto caro e a fumaça batia no vidro diagonalmente e
deslizava até se dissipar no ar.

Rei Dom João II: rapaz, sua mãe está morta, e eu também vou morrer um dia. Você vai ser coroado cedo ou tarde. Disse, ainda
virado para o vidro.

Príncipe José Carlota: e?

Rei Dom João II: é melhor você aprender como as coisas funcionam.

Príncipe José Carlota: e?

Rei Dom João II: uma esposa.

Príncipe José Carlota: quer que eu me case?

Rei Dom João II: sim, com uma mulher de alguma família nobre. E rápido.

Príncipe José Carlota: com licença. Queria parecer calmo, mas a mistura de fúria e tristeza invariavelmente transpareceram.
Levantou e saiu do gabinete, de punhos serrados e um semblante destrutivo.

Rei Dom João II: você não tem escolha, rapaz. Disse, enquanto o filho saía irado do gabinete.

Cena 26: José estava encostado no gramado da Universidade Real. Ali era um dos pátios internos do que anteriormente era um
mosteiro, as paredes eram de tijolos vermelhos e se estendiam até o alto de telhas de carvalho que pareciam novas. Dali também
ainda era possível se ver a torre do Templo. Não havia ninguém ali, e se houvesse não haveria importância. O príncipe fitava a grande
janela procurando por Maria na aula, até que a encontrou exprimida em um canto. O professor disse alguma coisa e virou a atenção
para a mesa enquanto os alunos se levantavam para ir embora.

José correu através do pátio, entrou no prédio pelo corredor e alcançou Maria na porta do outro lado.

Príncipe José Carlota: Maria!

Maria: Vossa Alteza, como entrou aqui? Os dois pararam no corredor enquanto o local se enxia de universitários transitando.

Príncipe José Carlota: estou disfarçado, não vê? O disfarce se resumia ao sobretudo e uma boina que cobria alguma coisa do seu
rosto, mas de qualquer forma, provavelmente ninguém o reconheceria como o príncipe. Aliás, felizes férias de junho.

Maria: férias universitárias, mas ainda preciso ir para o hospital.

Príncipe José Carlota: sério? de qualquer modo, tem tempo para o almoço...

O príncipe parou de falar e se encolheu quando viu duas equipes de agentes convergindo no corredor logo a frente.

Primeiro agente: ele não deve estar aqui.

Segundo agente: procure no próximo corredor...

Príncipe José Carlota: porra, são da guarda real. Eu saí do palácio sem avisar.

Maria: precisa se esconder?

Príncipe José Carlota: claro.

Maria: venha comigo. Pensou rápido e o conduziu pelo sentido contrário ao que estavam os agentes, dispersando-se entre os
estudantes.

Cena 27: Maria abriu a porta de um antiguíssimo laboratório literário do Mosteiro (parecia remontar a Idade Média) e José foi
impelido para dentro. O local era realmente velho, e realmente aparentava que permanecia vazio por longos espaços de tempo, já
que as prateleiras de pergaminhos medievais estavam um pouco empoeiradas e os equipamentos, parados.

Maria: não vão nos achar aqui.

José correu até a pequena janela, desenhada estreitamente na parede de pedra expressa, além da qual podia ver os carros pretos
da guarda estacionados na frente da universidade. Depois de um tempo, viu os agentes voltando para os veículos e indo embora.

Príncipe José Carlota: estão indo embora.

Maria: você não pode sair do palácio na hora que quiser?

Príncipe José Carlota: na hora que eu quiser? Não posso sair nunca.

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Maria: deve ser horrível.

Príncipe José Carlota: muito. Saiu da janela e andou apressado para a porta. Gostei de te ver, Maria, até a próxima.

Maria: espera. José parou, surpreso.

Príncipe José Carlota: oi?

Maria: eu vou almoçar agora, quer ir comigo?

Príncipe José Carlota: almoçar? Claro, claro. Imediatamente, ficou mais feliz.

Cena 28: José e Maria estava na beira do terraço de um dos prédios mais antigos do que antes era dependência do mosteiro, séc ulos
atrás. Não havia ninguém no telhado, mas pessoas ainda podiam ser vistas lá embaixo: alguns poucos monges restantes, quase
todos já muito velhos, dividindo espaço com os professores.

Maria: eu nunca achei que comeria uma coisa dessas. Os dois dividiam um pacote de ração militar, embora José pudesse facilmente
comer tudo sozinho.

Príncipe José Carlota: é isso que eu geralmente como, ou acha que eu vivo de caviar? Respondeu, mas estava concentrado mesmo
era na lata de feijão. Ele também olhava lá para baixo constantemente, curioso, observando as pessoas.

Ela não disse nada, pelo menos não em sequência.

Maria: por que veio me ver, Vossa Alteza? Enfim, perguntou.

Príncipe José Carlota: bem...eu não tenho muitos amigos aqui fora.

Maria: então quer que sejamos amigos? Ótimo! Foi sarcástica, rindo da situação, ou rindo dele, talvez. Era uma vez, dois grandes
amigos, o príncipe e a estudante...

Príncipe José Carlota: já chega. Imperou, muito sério.

Maria: me desculpe. Imediatamente, ficou apreensiva. Afinal, ele era o príncipe.

Príncipe José Carlota: também não precisa ficar séria. Não vou te jogar em uma masmorra. Voltou para olhar para a extensão do
antigo mosteiro, lá embaixo. Quando ele virou, ela não tinha mais nada o que dizer, criando um momento de silêncio.

Maria: bom, eu preciso ir para o hospital.

Príncipe José Carlota: certo; até a próxima, Maria. Continuou olhando para o mosteiro, até que ela lhe estendeu a mão para que se
cumprimentassem. De fato, apertou a mão dela.

Maria: até a próxima, Vossa Alteza. José realmente ficou surpreso com aquilo e nem sequer notou que a observava enquanto a via
ir embora.

Cena 28: o hospital estava completamente em silêncio. Um homem enfaixado dormia numa das cadeiras do corredor enquanto
uma enfermeira escrevia ao lado escrevia algo em uma prancheta. Maria havia adormecido de sono ainda sentada, de caneta na
mão e na frente de um livro de medicina gigantesco.

Doutor Marlão: Maria, seu plantão acabou há 4 horas, o que faz aqui? Balançou-a para que acordasse.

Maria: já é de manhã? Perguntou, tentando abrir os olhos inchados de sono.

Doutor Marlão: sim, sim, agora é hora de você ir, e leve isso. Tirou o livro da mesa do prontuário e entregou na mão dela.

Maria, meio acordada, saiu do hospital e foi andando até em casa, já que ficava no quarteirão seguinte ao trabalho. Havia
amanhecido e algumas pessoas já estavam saindo para seus afazeres diários. Cumprimentou o leiteiro quando passou por ele na
calçada e se deparou com um jarro de flores quase do tamanho dela quando chegou à portaria do prédio. No topo, havia um bilhete
escrito: para a amiga do amigo príncipe.

Inacreditável, pensou, sorrindo.

Cena 29: Maria abriu a porta de casa, desengonçada por ter que carregar um jarro daquele tamanho, passou e fechou novamente
a porta com o pé; olhou de um lado para o outro, mas deixou as flores mesmo na mesa da sala. Tirou o casaco e encostou os sapatos,
depois caminhou cansada pelo corredor. Já puxou o encanamento? Estranhamente, ela começou a ouvir vozes vindas lá de fora e
andou mais apressadamente até a porta de trás. Podemos limpar.

Ela foi até a área externa e vislumbrou a cena do avô dentro do foço aberto do prédio e José. Consertavam o encanamento, pelo
que parecia, e ambos estavam imundos por ócio do ofício. Maria simplesmente não conseguia entender a situação.

Maria: o que tá acontecendo aqui?

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Príncipe José Carlota: seu avô me chamou pra concertar o encanamento.

Maria: vovô...

Vovô: o que? Ele é muito prestativo! E disse que ajudaria se precisasse.

Maria: vovô...Ela repetiu a palavra, já ficando vermelha, tanto por raiva quanto por vergonha.

Príncipe José Carlota: tudo bem, eu gosto de ajudar. Disse enquanto continuava concentrado no que fazia. Pegou o cano de ferr o
novo e colocou na beira do foço, já com a soldadora elétrica de baixo do braço.

Vovô: soldou isso com a bunda, rapaz? Desprestigiou o trabalho do príncipe.

Príncipe José Carlota: só queria unir os dois canos, vou soldar mesmo quando já estiverem aí embaixo. Mesmo assim, o velho fi cou
desconfiado com o proceder do príncipe. Enquanto isso, Maria ainda observava a situação.

Vovô: tanto faz, só não faz besteira. José o ajudou a sair do foço, então ele mesmo entrou, pegando os canos soldados logo em
seguida.

Maria: expendido. Suspirou, ainda desconfortavelmente desentendida. É muito atencioso, Vossa Alteza. Coçou a nuca, falando mais
por educação.

Príncipe José Carlota: não precisa mais me chamar de 'Vossa Alteza', Maria. Chega de formalidades. Disse, já com a cabeça dentro
do foço, soldando o cano encaixado dos dois lados.

Vovô: cuidado pra não soldar os dedos.

Príncipe José Carlota: eu sei o que tô fazendo. Acha que sou idiota?

Cena 30: a dupla dinâmica já havia terminado o trabalho antes do meio-dia, já que Maria também ajudou. Estavam todos cansados,
normalmente, embora o velho tivesse se esforçado menos do que a idade lhe permitia.

Maria: acabamos? Preciso de um banho...Enquanto ela falava, um jato violento de água acertou o príncipe, que andava
despretensiosamente enquanto guardava as ferramentas, fazendo-a se calar com o susto.

Príncipe José Carlota: o que foi isso? Perguntou, nervoso. Depois, viu que era o velho, com a imensa mangueira de pressão, que
provavelmente era uma utilizava pelo corpo de bombeiros e sabe-se lá o porquê de estar ali, apontando para ele.

Vovô: você está imundo, precisa se lavar. Ligou a mangueira novamente; o príncipe tentou desviar, mas o jato o perseguiu. Bom...já
está melhor! Riu sarcasticamente, e finalmente largou a mangueira. Obrigado pela ajuda, rapaz. Disse seu parecer final e saiu de
cena ao entrar em casa.

José, derrotado, pegou a mangueira largada no chão para guardá-la.

Maria: me desculpe pelo meu avô.

Príncipe José Carlota: desculpa? Perguntou, sério, e então apontou a mangueira para ela. Sorriu levemente e ligou-a. O jato forte,
embora não tão forte o quanto tinha o atingido, acertou-a em cheio. Ela tentou se virar, mas tudo o que conseguiu foi proteger o
rosto. Tá desculpada.

Maria: idiota! Estremeceu com a junção da fúria e do frio.

Príncipe José Carlota: idiota? Você finalmente está me tratando com igualdade! Festejou o avanço.

Maria: e isso é bom? Perguntou, quase gritando, ainda muito brava.

Príncipe José Carlota: sim. Você me faz esquecer que sou o príncipe. O argumento a desarmou, deixando-a corada; imediatamente,
José também ficou desconfortável. Não quiz te deixar constrangida.

Maria: esquece isso, ok? Puxou uma toalha e jogou para ele. Se seca, rápido. Ele obedeceu, e se sentou ao sol. Havia deixado a
malha real e o sobretudo no varal para não sujar. Obrigada pelas flores.

Príncipe José Carlota: as flores? Aquilo não foi nada. Ela veio, sem dizer nada, e se sentou ao lado dele.

Maria: eu definitivamente preciso descansar. Fiquei a noite toda no hospital. Esfregou o rosto, realmente cansada.

Príncipe José Carlota: bom! Então, não quero te atrapalhar. Levantou em um pulo e puxou a malha real do varal. Já está na minha
hora de ir.

Maria: vamos nos ver de novo?

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Príncipe José Carlota: claro, claro, assim que possível. Saiu apressado, já com a boina que lhe escondia parte do rosto e col ocando
o sobretudo enquanto caminhava para o beco do pátio interno do quarteirão. Maria continuou sentada, vendo ele ir embora, e
pensava em algo profundamente.

Cena 29: haviam dois casais ao redor da mesa perto da porta; pareciam ter saído direto do trabalho para o restaurante a julga r
pelas roupas sociais de escritório e estavam bastante descontraídos. José os fitou, desconfiado já que não estava acostumado com
aquele tipo de espontaneidade na corte.

Príncipe José Carlota: eu não devia estar aqui, e se alguém me reconhecer? Ele estava desconfortável; Maria estava do lado dele.

Então um chinês que parecia ter mil anos de idade chegou com dois pratos de kantici.

Chinês: aqui está. Entregou aos dois e deu uma olhada em José. Quem é esse, Maria? Seu novo namorado?

Maria: não, não; não é nada disso. Ela ficou envergonhada, naturalmente.

José nem se quer se importava com a conversa dos dois. Pegou os dois palitos e os examinou como se fossem objetos extraplanares;
largou-os e esticou o braço para pegar um garfo atrás do balcão.

Príncipe José Carlota: como essa gente come macarrão com palito? deu uma garfada e mastigou. Nossa, isso é muito bom.

Maria riu da ação dele, mas não disse nada. Separou os palitos e também começou a comer. Os dois comeram em silencio. Quando
José Carlota terminou, começou a fitar as pessoas ali nas mesas, observando como elas conversavam e riam de forma tão natural .

Príncipe José Carlota: aqui as pessoas são verdadeiras, não artificiais como na corte.

Maria: sério? acho que os nobres deviam conhecer melhor o povo, ir às ruas, tornar-se gente...

Príncipe José Carlota: não. Cortou-a. O povo e a corte são coisas diferentes e assim deve permanecer. Falou de forma dura. Ela o
olhou com indignação pelo discurso imprevisível, levantou-se pegando o casaco e foi saindo para a rua.

Príncipe José Carlota: não, não, não; não estava falando de você. Embolou-se, levantando também, mas lembrou de pagar e colocou
uma nota no balcão. Pelo macarrão estranho. Disse para o chinês.

Chinês: mil talentos? arregalou os olhos quando viu o valor do papel-moeda. Rapaz, cada prato só custa três! Mas José não lhe deu
atenção.

O príncipe alcançou Maria quando ela teve de parar na calçada até um carro passar.

Príncipe José Carlota: Maria, eu não queria ter dito aquilo. Tentou se explicar.

Ela não disse nada a princípio, só deu alguns passos pela rua e subiu alguns degraus da escadaria se equilibrando nas beiradas feito
uma criança. Voltou-se para encarar o príncipe.

Maria: você gosta de mim.

Príncipe José Carlota: sim, gosto.

Maria: como uma mulher.

Príncipe José Carlota: sim, Maria. Deu alguns passos, receoso.

Ela olhou para a extensão cheia de escombros do outro lado da rua, pensativa.

Maria: nós dois...não tem jeito. Você é o príncipe, e eu nada.

Príncipe José Carlota: por favor, não fala desse jeito.

Maria: não sei como poderia falar isso, me desculpa. Virou-se novamente e voltou a subir os degraus. Eu preciso ir, até mais.

O príncipe não insistiu em falar ou em ir atrás dela.

Cena 30: José caminhava para a ala nobre do cemitério; era uma área relativamente pequena, e a parte superficial da tumba rea l
se estendia estreitamente entre as covas e sepulcros de famílias ricas e poderosas.

Ele se aproximou da entrada e os guardas armados ali fizeram uma reverencia assim que abriram espaço para o deixar passar. A
escada da tumba era estreita e longa; as únicas fontes de luz eram a pequena porta lá em cima e as escassas lâmpadas lá embaixo.
As câmaras mortuárias dos reis e rainhas ficavam de ambos os lados do corredor da tumba, que tinha dezenas de metros de
comprimento. Estava tão escuro que era impossível ver o que estava mais à frente.

José caminhou pelo ambiente sufocante até encontrar a entrada da mãe. Sobre o chão do orifício com paredes de marfim onde se
colocou o caixão havia um busto em escarara dela e alguns buques de flores.

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Príncipe José Carlota: olá, mãe. Encostou na parede oposta. Devo tá ficando louco para ter de conversar com um cadáver.
Engraçado, não?

Ele fitou o busto, mas obviamente ele não respondeu. O rosto do príncipe entristeceu.

Príncipe José Carlota: eu amo uma pessoa, pronto, falei. Cruzou os braços; ficou cabisbaixo. Mas...eu não gosto da minha vida de
príncipe e não quero submeter ela a isso também.

Ele levantou os olhos, mas o busto continuava estático.

Príncipe José Carlota: queria que você estivesse aqui comigo. Largou da parede e foi embora.

Os guardas fizeram reverencia novamente quando o príncipe voltou da tumba. Ele não prestou atenção e saiu cabisbaixo do
cemitério. Foi para o estacionamento, onde uns trabalhadores d macacão jogavam cartas descontraidamente ao lado do caminhão,
além deles não havia ninguém, somente a Harley estacionada.

José colocou um cigarro na boca ao mesmo tempo em que caçava as chaves nos bolsos da malha. Puxou o isqueiro e tentou acender
o cigarro quando começou a ouvir um zumbido distante vindo do alto. Olhou para cima e deixou o cigarro cair com o que viu.
Bombardeios estavam chegando, centenas deles.

Cena 31: Maria e o vovô estavam sentados a volta da mesa da cozinha, esperando o chá que a vovó já estava terminando de
preparar. Maria, pensativa, ainda não havia comido nada.

Vovó: que bom que conseguiu um tempo para tomar chá conosco, Maria. Raramente o faz.

Maria: ah, sim. Terei algum tempo livre até as aulas voltarem. Disse, ainda olhando dispersamente para a janela.

Vovó: no que está pensando, querida? Não me diga que no príncipe.

Maria: o que, não! Esquece ele, vovó, semana que vem ele já deve estar atrás de outra. Pegou a xícara de chá.

Vovó: será mesmo? Eu dizia a mesma coisa sobre o seu avô; não é, Dráuzio? Fitou o velho bebendo chá, alheio a conversa.

Vovô: o chá tá frio. Maria riu do comentário, já acostumada com o coroa rabugento.

De repente, as luzes se apagaram e a cozinha passou a ser iluminada somente pelo sol de fim da tarde. Os velhos e a neta não se
assustaram de início, mas logo se ouviu um som abafado de explosão ao longe. O barulho de novos estouros se sucedeu quando
Maria ainda corria para a janela da sala; espiou pela cortina e viu prédios do quarteirão seguinte em chamas.

Vovó: Maria! Fique longe da janela! Veio logo atrás dela e a puxou.

Cena 32: os aviões quilômetros acima despejavam fogo sobre a cidade. José corria com a Harley até a Casa Real, mas era difícil
desviar da maré de pessoas correndo para algum lugar seguro nalguns pontos. Seguiu da Avenida Central para uma via secundária ,
quase atropelando um policial na curva fechada.

José viu então que a rua estreita estava praticamente obstruída por um incêndio, mas acelerou mesmo assim e passou pela colun a
de fumaça às cegas. Depois da rua era uma praça e um estacionamento, ambos a poucos metros das dependências reais.

Guarda: é o príncipe! Deixa passar! Um soldado em uma guarita gritou para o camarada de arma em mãos ao lado dele.

O príncipe quase caiu da moto quando subiu no meio-fio, largou-a perto das árvores no quintal circundante da Casa Real e foi
correndo o resto a pé, já que estava a poucas dezenas de metros da segurança. Foi aí que ele ouviu a explosão que o fez se jogar na
grama com as mãos na cabeça, conforme o treinamento militar. Viu a coluna de fogo se levantando sobre metade da Casa Real.

Príncipe José Carlota: pai...

Cena 33: o rei estava no Gabinete Doméstico, discutindo com um de seus oficiais.

Oficial: Vossa Majestade, por favor! Precisamos descer para o bunker... Ele estava bastante nervoso, gritando transpassado pela
porta aberta.

Rei Dom João II: e aonde está meu filho? Acha que vou descer sem ele? Ele permaneceu irredutível em frente à mesa, de costas
para a janela.

O oficial viu algo pela janela e saiu correndo; o rei, curioso, virou-se para ver o que era. Uma bomba-foguete vinha em direção a
Casa Real; não houve tempo para que o rei reagisse. A explosão veio.

Cena 34: as coisas já haviam se silenciado quando Maria ouviu alguém bater na porta e foi atender.

Vovô: garota, saí de perto da porta! Berrou lá do quarto. Tá o inferno lá fora!

Maria: tudo bem vovô, as bombas já pararam de cair.

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Quando ela abriu, veio a surpresa, era José. Ele estava sujo de poeira da ponta dos pés até o cabelo e terrivelmente abalado.

Maria: José? O que tá fazendo aqui? Perguntou em tom repreensivo e foi para o corredor do prédio, fechando a porta atrás de s i.
E olha o seu estado...

Príncipe José Carlota: me desculpa, eu não sabia mais para onde ir. Começou a chorar copiosamente e com isso o rosto de Maria
se tornou mais compreensivo.

Maria: tudo bem, tudo bem, pode chorar. Abraçou-o, pouco se importando por ele estar sujo feito um soldado na trincheira e
igualmente fedido. Vamos entrar, ok? Abriu a porta para ele.

Príncipe José Carlota: obrigado. Soluçou.

Cena 35: José estava sentado na cozinha da casa de Maria, estático, quase que em choque. Maria estava ao lado dele, olhando-o
fixamente enquanto um milhão de perguntas passavam por sua cabeça, ao mesmo tempo que ela não queria sobrecarrega-lo muito
com elas.

Maria: então o rei está morto.

Príncipe José Carlota: não, eu sou o rei agora e estou bem vivo. Ela pegou na mão dele.

Maria: mesmo assim, veio para cá...

Príncipe José Carlota: eu não quero voltar pra lá agora, preciso colocar minha cabeça no lugar.

Maria: certo, pode passar a noite aqui, se ajudar.

Príncipe José Carlota: vai me ajudar sim, obrigado. Ele parecia estar se acalmando.

Cena 36: José, agora limpo e mais integro, saiu do banho e foi andando despretensiosamente pelo corredor e encontr ou Maria se
preparando para dormir no quarto dela.

Maria: José, você pode dormir no antigo quarto do meu irmão, é a porta ao lado.

Príncipe José Carlota: acho que não vou conseguir dormir. Encostou no portal da porta.

Maria: eu também não. Mesmo assim, ela se jogou na cama. Boa noite; apaga a luz quando sair, por favor.

Príncipe José Carlota: bom...tá certo. Boa noite. Apagou a luz e saiu para o quarto do irmão de Maria; que era um cômodo pequeno
e cuja maior parte dos pertences do antigo dono não estava mais lá. Sentou-se na cama, ainda tenso, e ficou na mesma posição
durante bastante tempo, sendo impossível imaginar no que ele pensava. Depois de alguns minutos, Maria surgiu na porta.

Príncipe José Carlota: oi?

Maria: oi. Eu disse que não conseguiria dormir, mas acho que vai ser pior do que eu imaginava. Os dois riram timidamente.

Maria sentou-se ao lado dele e não disseram mais nada. Beijaram-se ao mesmo tempo, começando contidamente e depois se
tornando mais acalorado. Ela limitou-se a deitar para trás e José, mais carnal e ansioso, seguiu-a ficando por cima. Se dependesse
dele, aconteceria de tudo ali mesmo.

Maria: José, espera. Espera, espera. Empurrou a cabeça dele com as mãos. Para.

Príncipe José Carlota: o que...o que aconteceu? Tudo parou de repente.

Maria: desse jeito...não. Ficou receosa, quase assustada.

Príncipe José Carlota: achei que você quisesse.

Ela deu um tapa na cara dele. José não entendeu absolutamente nada.

Maria: me perdoe! Arrependeu-se imediatamente. Eu só não quero tão rápido, José Carlota, só isso.

Príncipe José Carlota: certo, certo, eu entendo, de verdade. Pousou a cabeça exausta pelo momento no peito ofegante dela e Maria
começou a acariciar seu cabelo. Eu te amo.

Maria: eu também te amo.

Cena 37: (...)

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Cena 38: Ainda faltava alguns minutos para amanhecer e José já estava acordado, se é que ele havia dormido. Estava sentado e
pensativo, vendo Maria dormir. Levantou-se então e começou a vestir novamente a malha real. Saiu do quarto discretamente e
deixou o prédio pela saída de trás; que dava para uma espécie de pátio interno do quarteirão e para um beco na rua lateral. Uma
figura que estava sentada no banco do pátio se levantou e interceptou José na saída.

Infante Babi: bom dia, Vossa Majestade. Fez a reverência real. Bom saber que está bem.

Príncipe José Carlota: Babi, como soube que eu estaria aqui?

Infante Babi: sabemos de todos os seus passos, Vossa Majestade. Pensei que soubesse.

Príncipe José Carlota: meu pai está morto... Ele só queria confirmar o que já sabia.

Infante Babi: não se preocupe com isso agora. Continuou andando impassível até ele, até que puxou o revólver e deu-lhe uma
coronhada. José iniciou o movimento para revidar, mas não teve chance e caiu desmaiado com o impacto. Os soldados chegaram
para carregar José, mas Maria observava tudo pela janela. Ela desceu até o pátio e foi correndo em socorro ao amado.

Maria: quem são vocês? Deixem ele em paz! Abraçou-o no chão, tentando protege-lo.

Babi dei um chute brutal no rosto de Maria, fazendo-a cair para trás.

Infante Babi: levem ele. Disse para os soldados; estes obedeceram e carregaram José até o carro. Alguns ficaram ali, com Babi .

Homem: Babi, ela viu o príncipe. Um dos soldados, que parecia mais importante, disse.

Infante Babi: eu sei. Foi até Maria, no chão, ainda em choque. Sem mais e nem menos, ele mirou para ela e disparou, matando-a
na hora. Depois, virou-se para os soldados que continuavam ali com ele. Fiquem aqui e destruam todas as evidências.

Soldado: sim, Vossa Alteza. Dois homens, de armas em mãos, entraram no prédio enquanto outros dois recolhiam o corpo de Maria.

Antes de partir, Babi deu uma última olhada para trás, verificando o corpo de Maria no chão.

Cena 39: era noite naquele fim de mundo. Os homens encapuzados conduziram José até próximo ao córrego; ele lutou contra as
amarras, mas o agarraram e o levaram a força. Aquela parte da cidade parecia estar abandonada haviam anos a considerar os
entulhos amontoados.

Além dos soldados fazendo o trabalho sujo, Babi estava logo atrás, próximo à escada da barragem e também haviam alguns nobres
na parte de cima que estavam ali para atestar a execução. Opuseram-lhe o saco preto na cabeça e colocaram-no de joelhos. Um
soldado virou-se para Babi já com a pistola na mão.

Soldado: Vossa-Excelência... De repente, José Carlota parou de gritar, sentindo a presença do cano acima de sua cabeça.

Infante Babi: faça.

O soldado não pestanejou e deu dois tiros no peito de José, cujo corpo caiu no córrego.

Nobre: está feito, vamos dar um fora desse buraco. Um dos figurões disse enquanto ia embora e os outros seguiram-no. Babi ainda
ficou um tempo, vendo o corpo ir embora.

Cena 40: os gigantes de Dagoberto e Eva, exaustos, deram de costas, um se tornando a retaguarda do outro, e analisaram a situação.
Ainda estavam cercados por três adversários, embora dois já houvessem nocauteados. No nível superior da pedreira, todos os
soldados e técnicos do exército observavam o combate com aflição. Até os oficiais haviam paralisado o que estavam fazendo.

Eva: eu não consigo...mais nada. Disse através do rádio, enquanto seu gigante apoiava um dos joelhos no chão já que o ferimento
lhe impedia de se suportar de pé muito livremente.

Dagoberto não respondeu, só respondeu o ataque do primeiro gigante que veio para cima dele, arremessando-o meia arena, só
para se virar meio segundo depois e se deparar com o segundo atacante em cima de Eva. Em um único pulo, agarrou o miserável
pelo torço e ambos caíram no chão. Dagoberto ainda tentou segura-lo, mas o terceiro gigante chegou por trás e o arrancou de cima
do companheiro. No segundo seguinte, Eva surgiu, mesmo ferida, e desuniu o terceiro gigante de seu mestre com o soco de baixo
para cima verdadeiramente brutal. Então ela ficou livre para lutar contra o segundo gigante.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: cuide desse. os outros dois são meus. Referia-se aos dois inimigos que já haviam se
recomposto e estavam a volta dele. Enterrou a mão com força na terra pedregosa, jogou contra o rosto do mais próximo e se
projetou o mais rápido possível para cima dele, inclusive tendo de desviar de um soco que teria sido certeiro vindo do advers ário
do lado. Conseguiu o efeito desejado e agarrou o desgraçado pelo pescoço, descendo ao chão imediatamente para dobrar a coluna
dele da maneira mais dolorosa o possível. Lá no chão, o piloto não aguentou a pressão e ejetou. O retrofoguete o projetou em
trajetória balística pela arena até que o paraquedas lhe conferiu uma descida suave.

Piloto do outro gigante: Tenente, isso não vale!

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Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: cala a boca e luta. Puxou o soco inglês direito e conduziu o adversário até a área alagada da
pedreira.

(...)

Dagoberto e Eva saíram ao mesmo tempo de seus respectivos gigantes e foram andando para a trilha da pedreira até que o caminho
dos dois se encontrou. Os dois ignoravam toda a movimentação que havia se formado no nível da arena.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: bom trabalho. Embora não parecesse mais velho, estava com a barba por fazer.

Eva: chama um combate cinco contra dois de bom trabalho? Ela sim estava muito diferente; mais esguia e bonita.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: assim que se fala. Permaneceu sério, embora sarcástico. Cumprimentou-a com a saudação
única dos dois; inspirando companheirismo.

Cena 41: já era noite. Não havia mais toda aquela movimentação na pedreira e os únicos soldados que haviam por ali eram alguns
poucos guardas noturnos. Dagoberto e Eva estavam em alguma espécie de dormitório razoavelmente iluminado num dos bunkers
que servia de gabinete para Dagoberto. Ele, cercado por plantas de construção, trabalhava sentado e assinava coisas em pilhas de
papeis (utilizava-se de óculos para tal, curiosamente). Já ela fazia de uma grande caixa de munição ao lado da mesa dele de cama e
de um saco de pólvora como travesseiro; lia alguma besteira já que normalmente custava a dormir.

Dagoberto aparentava ser um sujeito concentrado nas tarefas, mas nunca se deixava permitir que Eva saísse de vista. Olhou para
trás mais uma vez e fitou-a distraída. Ele podia ver a curva do seio saindo da camisa dela. Isso certamente lhe despertava alguma
luxúria.

Eva: o que foi? Percebeu-o.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: o que? não, não é nada. Voltou para os afazeres, mas voltou a falar ainda olhando para algo
sobre a mesa. Já chega de ler, você não pode dormir tarde.

Eva: para de me tratar como uma criança. Rebateu, ainda prestando atenção no livro.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sei que você já é uma mulher adulta; só fico preocupado. Continuou fixo na tarefa, mas
claramente ficou receoso antes de falar. Eva ficou surpresa em ouvir aquilo, mas não disse nada; largou o livro ali e saiu an dando
para a saída do gabinete, se é que aquilo podia ser chamado de gabinete. Eu disse alguma coisa de errado? Me desculpa...Pergunt ou
enquanto ela já atravessava o limite do corredor.

Eva: não foi nada; já vou dormir. Respondeu a partir do corredor, onde já estava longe do alcance da visão dele.

Cena 42: a noite já havia se transformado em madrugada. Tule apagou as luzes e andou pelo corredor até o dormitório onde só ele
e Eva dormiam, afinal, boa parte do bunker não estava sendo mais operado pelo exército. A cama de Eva estava desarrumada, mas
ela não estava lá.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: Eva? Ninguém respondeu. Ele caminhou através do pequeno espaço entre as camas até a
porta de aço no final levemente aberta. Atravessou a porta e encontrou-a acima dele, no nível do solo (a porta ficava abaixo do
chão, sendo necessário subir uma escada para atingir o terreno). Ela estava fumando um cigarro, pouco se importando quando o
percebeu. Eva! Pareceu zangado, pulou o desnível, arrancou o cigarro da boca dela e apagou-o com o coturno. Cigarro não é pra
você, ok?

Eva: e ainda fala que não me trata como criança... Continuou encostada na parede fria do bunker.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: o que está fazendo aqui fora?

Eva: não consigo dormir.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: bom, eu também não consigo, quase nunca. O Dagoberto complacente retornou,
esquecendo-se do aborrecimento. Vamos entrar, está frio aqui fora. Saiu andando na expectativa de que ela o seguisse, mas isso
não aconteceu.

Eva: Dagoberto...

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: oi?

Eva: posso te pedir uma coisa?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: o que? Ele franziu a testa, curioso pelo que viria a seguir.

Eva: você pode me levar até a capital? ele suspirou, acenando com a cabeça.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: entendo. Podemos ir lá sim.

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Cena 43: já era de manhã, mas bem cedo. Boa parte da movimentação a volta do Palácio Real já havia se dissipado, a execução de
alguns poucos guardas distraídos e os carros da polícia civil estacionados próximos aos escombros. Os tratores ainda recolhiam os
entulhos, e o buraco feito pela explosão da bomba V-4 ainda estava destacado no prédio. Eva e Dagoberto andaram por boa parte
do descampado entre os prédios governamentais, mas ela não quiz se aproximar muito.

Eva: como isso aconteceu? Ela ficou abalada ao tentar recriar a cena em sua mente.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: seu pai morreu imediatamente e seu irmão segue desaparecido; o corpo dele provavelmente
está entre os escombros.

Eva: então só sobrou eu. Ela começou a andar levemente inquieta para oxigenar a cabeça.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sinto muito.

Eva: tudo bem, eu não os vejo a tanto tempo que nem mesmo lembro de como eles são.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: não sente saudades?

Eva: não. Deu meia volta e começou a fazer o caminho de volta no descampado.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: Eva...Seguiu-a.

Eva: eu estou bem, ok? Vamos sair desse buraco. Continuou andando, mas Dagoberto a parou pegando-lhe gentilmente pelo braço.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: é meu trabalho certificar que você está bem. Está tudo ok mesmo? Foi intransigente, como
se sentiu obrigado a ser, mas Eva arrancou o braço.

Eva: que inferno...Suspirou. Eu só quero ir embora, por favor.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: certo, me desculpe. Acompanhou-a. Vamos, mas se importa se pararmos em um lugar antes?

Eva: aonde?

Cena 44: Dagoberto parou o carro frente a uma caminhonete estacionada em uma casa. Estavam em uma zona rural um pouco
afastado da capital, onde havia uma produção bovina muito grande. Eva estranhou o lugar onde estavam, mas seguiu Dagoberto
quando ele saiu do carro.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: quanto tempo, eh? disse para a mulher suja de graxa que fazia alguma coisa no motor de
um trator parado no terreno da grande casa.

Osvaldina: Dagoberto! reconheceu, surpresa por vê-lo ali, e os dois se abraçaram. Você nunca aparece! Como tem passado? Eva
observava toda a cena confusa com o que estava acontecendo e nem sequer sabia o que fazia ali. Mas, um tempo depois, a mulher
a notou ali e ficou espantada. Minha nossa! É ela?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sim. (...)

Osvaldina: prazer, Vossa-Alteza, sou Osvaldina, irmã de Tule. Cumprimentou-a.

Eva: ah, sim, vocês são irmãos.

Osvaldina: vamos! Papai e mamãe estão em casa. Conduziu Dagoberto e Eva seguiu atrás, ainda desconfiada.

Foram para a área atrás da casa, onde haviam algumas pessoas. Todos ficaram alegres quando viram que Dagoberto havia voltado,
principalmente os sobrinhos dele. Imediatamente depois que Eva apareceu nos fundos, uma dúzia de pastores alemães dos mais
variados tamanhos tomaram-na de assalto, fazendo com que ela recuasse para o muro.

Eva: misericórdia! De onde vem tantos cachorros? Perguntou, sendo acudida por Osvaldina.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: meus pais têm um canil aqui! Respondeu, rodeado de parentes exaltados.

Mãe de Dagoberto: então você é a Eva! Resgatou-a dos cães. Tule me falou muito sobre você.

Eva: falou? Ficou surpresa com a informação inesperada, enquanto os cachorros se dispersavam.

Mãe de Dagoberto: sim! E também me falou de como você é bonita.

Eva: ele falou que eu sou bonita...Fitou-o com um semblante sentido.

Mãe de Dagoberto: vamos, vamos, querida. Conduziu-a apressadamente. Todos nós vamos comer agora, está com fome, não está?

Eva: sim, senhora, seria ótimo.

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Cena 45: estava anoitecendo e muitos parentes e vizinhos haviam se reunido na casa de Dagoberto, como geralmente ocorria de
vez em quando. As crianças haviam soltado grande parte dos cachorros do canil e brincavam todas juntas. Os homens falavam sobre
o rumo da guerra e as mulheres falavam sobre coisas de mulheres. Uma garota havia puxado conversa com Eva; era provavelmente
uma das primeiras vezes que ela tinha contato com alguém da sua idade.

Garota da idade de Eva: você parece um homem vestida desse jeito. Realmente, Eva estava de coturno e calça militar.

Eva: o que faz alguém parecer homem é ter um pênis. A garota ficou desconcertada, mas Osvaldina riu bastante.

Enquanto isso, o pai de Dagoberto conversava mais afastado com os tios até que Dagoberto chegou mais perto.

Pai de Dagoberto: ei filho, você fez bem em trazer a garota pra cá um pouco. É bom ela se distrair.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sim, sim. Eva passou por muita coisa e geralmente não interage muito... eu fico muito
preocupado com o que vai acontecer com ela quando a guerra acabar.

Pai de Dagoberto: isso tudo é amor?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: não! Foi defensivo. Eu acho que...sim? O pai riu, obviamente. Parecia ser um sujeito que ria
de tudo. Tule fitava Eva o tempo todo e estranhou quando a viu se afastando do grupo, então foi atrás dela. Eva! Aconteceu alguma
coisa?

Eva: não, só quero caminhar um pouco. Se importa?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: tudo bem. Na verdade, eu também preciso tomar um ar. Acompanhou-a pela lateral do
terreno, onde não havia mais ninguém. Estava muito escuro, tornando a propriedade uma ilha de luz cercada de um breu quase
total, a não ser pelas luzes das distantes casas dos vizinhos, distribuídas muito esparsamente.

Eva: sua família é maravilhosa.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sabia que você ia gostar deles. Vou te trazer aqui mais vezes, se quiser. Pararam frente ao
limite entre a cerca de madeira e o muro, que era o último lugar iluminado antes da casa vizinha. De repente, Eva começou a chorar
muito, tendo de se apoiar a cerca de madeira, mas não disse nada. Tule a consolou. Tudo bem, pode chorar, chora tudo o que for
preciso.

Eva: não, eu tenho que superar isso.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: mas não sozinha, eu estou aqui com você, ok? Ela tentou enxugar as próprias lágrimas como
podia enquanto ainda era consolada, então deu um abraço nele com bastante força. Dagoberto não estranhou a ação e só a abraçou
de volta.

Cena 46: era dia novamente, e um dia bem quente. Dagoberto e Eva voltavam para as instalações de treinamento, mas o Tenente
precisou parar para abastecer em um posto de estrada. Mesmo próximo do meio-dia, o lugar estava calmo, só estando no local o
velho dono do posto, dormindo sentado do lado de uma das bombas, e o filho dele, alheio ao trabalho. Enquanto o tanque enchia,
Eva estava do lado de fora, brincando com o filhote de pastor que havia ganhado dos fazendeiros. Ver Eva feliz dava satisfaçã o a
Dagoberto, de certa forma.

De repente, um jipe do exército surgiu na estrada e parou no posto. Sargento Garbalde saltou do veículo e andou apressado em
direção a Dagoberto.

Sargento Garbalde: Tenente, finalmente achei o senhor. Por onde esteve?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: eu tive que sair um pouco. O que aconteceu?

Sargento Garbalde: o Vice-Rei chama o senhor, agora.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: certo. Virou-se para Eva, que estava um pouco longe. Eva! Precisamos ir, e já. Disse em um
tom sério.

Eva: já estou indo.

Sargento Garbalde: ele está esperando, vamos. Virou-se, voltando para o jipe. Dagoberto ficou apreensivo com o que pudesse estar
acontecendo.

Eva: o que houve? Notou a preocupação de Dagoberto.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: só entra no carro, precisamos ir. Disse, e deixou uma nota de cem cruzeiros em cima da
bomba enquanto o cachorro lambia o coturno dele e Eva entrava no carro. Entraram todos e partiram.

Cena 42: Dagoberto estava agora no gabinete do Vice-Rei, um lugar baixo, porém extenso, e escuro, já que as únicas luzes vinham
das janelas que cobriam três das quatro paredes. O Vice-Rei era para Dagoberto somente uma silhueta de um homem grande e com

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uma cabeça careca e redonda atrás da pequena mesa de carvalho antigo. A malha e luvas totalmente negras donde se destacavam
somente o nome e tipo sanguíneo do nobre lhe conferia uma aparência ainda mais tenebrosa.

Vice-Rei Augusto: então, rapaz, como vai Eva?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: evoluindo bem, Vossa Vice-Majestade. E a armadura experimental lhe é plenamente
compatível.

Vice-Rei Augusto: não foi isso que perguntei, Dagoberto! Ela está pronta para combate?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: como assim, combate?

Vice-Rei Augusto: como assim! o exército quer vê-la operacional na guerra, e já.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: mas ela é uma criança. Além disso, o que o rei diria...

Vice-Rei Augusto: o rei está morto, a rainha também e o príncipe segue desaparecido. Cortou-o, inclinando-se para frente sobre a
cadeira. Agora, faça o que eu mando.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: como quiser, Vossa Vice-Majestade. A cara dele de preocupação ao se retirar era antológica.

Cena 43: já era de manhã na pedreira, e alguns oficiais já perambulavam pelas instalações com cantis com café nas mãos. Eva estava
se exercitando na barra quando viu Dagoberto voltando e retornou ao chão com uma cambalhota para se exibir.

Eva: Dagoberto! vamos treinar hoje? sempre se animava com a possibilidade de pilotar novamente.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: esqueça um pouco a luta, criança. Puxou um banco de madeira e se sentou; Eva notou a
expressão apreensiva dele.

Eva: o que aconteceu? tem algo a me falar?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sim, na verdade não sei como dizer...vamos para a frente de combate.

Eva: é óbvio que isso aconteceria. Disse, após um silencio bem longo para a situação. Bom! Ainda podemos treinar bastante antes
do despache, não é? Estendeu a mão para que se levantasse.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: sim, sim, claro. Coçou a cabeça, cansado. Só vou me trocar.

Lá na parte mais inferior da pedreira, como sempre, os gigantes dos dois estavam estacionados.

Cena 43: o avião de carga finalmente pousou, e foi imediatamente recepcionado por soldados apressados na pista. Ao longe, a
cidade de Compostela enfrentava extensos focos de incêndio em decorrência da batalha que se transcorria naquele exato momento.

Vamos, liberem a pista! um oficial no chão gritou para os praças dentro do cargueiro enquanto a comporta de desembarque descia.
Mais atrás na pista de pouso, a tripulação de outro avião já corria para o hangar do aeroporto transformado em base aérea. Enfim,
Eva saltou do avião, assustada com aquela nova realidade.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: Eva! não fique aí parada, vamos, venha comigo. Surgiu do hangar e a conduziu através da
pista enquanto os outros soldados corriam em fileiras. Voltou com ela para o hangar.

Lá dentro, dentre os militares fazendo uma infinidade de tarefas apressadas, haviam quatro pilotos esperando pelos dois.

Segundo-Tenente Matilda: Tenente Dagoberto! já estava começando a sentir saudades. Fitou Eva ao lado dele, prostando-se. Vossa
Alteza...

Eva: pode parar com isso, ninguém me trata dessa forma. Levantou a mão em negação, deixando a tenente desconcertada.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: chega de falação, vamos dar um fora daqui. E todos o seguiram.

Enquanto andavam, o cabo do grupo, um sujeito largo que parecia ser o mais velho de todos ali, cumprimentou Eva.

Cabo Indústria: olá, Vossa Alteza. O pessoal me chama de 'Indústria', o desnutrido atrás de mim é o Alcatra. Referia-se ao magrelão
do grupo de quase dois metros de altura.

Soldado Alcatra: dá pra parar de me chamar de desnutrido? Eva riu dos dois.

Garbalde estava logo atrás, mas era desconfiado como sempre e não disse nada. E estava sério, quase nunca o fazia.

Cena 44: o galpão do exército era gigantesco e abrigava dezenas de gigantes adormecidos, alguns de pé entre as plataformas dos
técnicos, alguns deitados sobre os vagões móveis em que geralmente eram transportados quando inativos e outros estavam
simplesmente sobre o concreto. já era noite, e a única luz no local vinha de um bar instalado próximo ao corredor para os dormitórios
onde a maioria dos pilotos estavam reunidos. Alguns estavam jogando sinuca enquanto outros só bebiam e conversavam.

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Eva: eu não sabia outras mulheres que são gigantes. Achei que fosse a única! Matilda também se sentou e lhe entregou uma garr afa.
Obrigada.

Segundo-Tenente Matilda: bom...somos muito raras; uma em mil, talvez. Mas esse não é o maior dos problemas.

Eva: qual é o problema, então?

Segundo-Tenente Matilda: oras pois! Achar um homem que esteja a nossa altura, é claro...

Dagoberto sempre era muito reservado e naquele momento estava longe dos grupos no galpão, fumando um charuto na parte
escura, onde mau se podia vê-lo. Observava Eva, como sempre. De repente, Garbalde apareceu das sombras e lhe deu uns tapas
nas costas.

Sargento Garbalde: Tenente, quem diria.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: como assim, sargento?

Sargento Garbalde: como assim? O senhor passou os últimos dois anos naquele com Eva e agora fica olhando-a pelos cantos.

Dagoberto ficou quieto pensando em uma resposta, mas não havia motivo para esconder nada. Fechou os olhos e reabriu-os ao
suspirar de nervosismo.

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: eu preciso ser o mestre de Eva e só serei isso; não posso misturar as coisas. Saiu para a luz,
deixando o resto do charuto pelo caminho.

Sargento Garbalde: espera aí! Sabe que é brincadeira, não é?

Dagoberto não deu ouvidos e continuou seu percurso, mas Eva percebeu que ele ia embora e foi atrás, alcançando-o abaixo de uma
lâmpada solitária do galpão.

Eva: Dagoberto! aconteceu alguma coisa?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: não se preocupa comigo; vá dormir. Também não quis saber dela e continuou andando para
a saída, mas Eva correu para frente dele e o parou.

Eva: podemos lutar amanhã?

Segundo-Tenente Dagoberto Almeida: lutar? lutar, lutar e lutar; você não pensa em outra coisa. Coçou o rosto. Quer saber...vamos
treinar agora?

Eva: agora? vamos, vamos. Não to com sono mesmo! Respondeu com uma alegria quase infantil.

Primeiro-Tenente Dagoberto Almeida: certo, certo, vai pra pista que eu vou mover os gigantes para fora.

Eva: agora mesmo! Deu um pulo de alegria e saiu apressadamente para a comporta do galpão enquanto Tule tomava o caminho
contrário.

Cena 45: já era dia, embora ainda muito de manhã e ainda não havia sol. Eva e Dagoberto, em seus gigantes, treinavam ao lado da
pista de pouso, longe o suficiente dos caças parados e dos mecânicos que trabalhavam no local para não provocar um acidente.
Matilda estava sentada em cima de um canhão desmontado e tomava café enquanto observava os dois. Já Garbalde estava disperso,
fumando um cigarro enquanto perambulava pela grama que circundava a pista.

Após receber o revide de um golpe certeiro em igual peso, Dagoberto cambaleou para trás, retomou posição e tomou impulso
novamente, agarrando-a pelo torso e a derrubando com uma facilidade que não devia ser tão grande.

Primeiro-Tenente Dagoberto Almeida: torso exposto, de novo. Levanta, vamos. Denunciou a falha enquanto ela ainda estava no
chão.

Eva: espera. Já chega, Dagoberto. Pra mim já deu. Pressionava a região da lateral das costas cujas placas de material composto da
armadura experimental haviam sido entortadas pelos golpes anteriores.

Primeiro-Tenente Dagoberto Almeida: não era você que queria treinar? então levanta!

Eva: tá bom, calma. Respondeu a contragosto. só preciso de um pouco de café.

Os dois saíram de seus respectivos gigantes e foram caminhando juntos para a região elevada do terreno (no nível da pista) em que
Matilda e Garbalde estavam. Aqueles conversavam enquanto vinham, embora estes ainda não pudes sem ouvir pela distância.

Segundo-Tenente Matilda: Tenente, todos já estão à sua espera. Levantou-se para dizer quando já estavam mais perto.

Primeiro-Tenente Dagoberto Almeida: já? eu devo ter perdido a noção do tempo. Vamos lá. Todos seguiram para o galpão.

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Cena 46: Dagoberto, de frente para a ilha de bebidas e de costas para todos os gigantes reunidos na área do bar, deu uma drag ada
no charuto e circulou a cidade de Compostela no mapa grande destacado na parede. Virou-se para a apreensão de todos e soltou a
fumaça.

Primeiro-Tenente Dagoberto Almeida: camaradas, o Vice-Rei quer mais dois pelotões de gigantes no front. Comandarei o primeiro
e a Matilda comandará o segundo. Deu mais uma olhada no mapa e lhe apontou. Compostela é um lugar barra pesada, vai nos dar
muito trabalho. Deu mais uma dragada antes de voltar a falar. É só por agora, camaradas.

Segundo-Tenente Matilda: vamos, pessoal! Arrumem tudo que partiremos hoje ainda! Ordenou e todo mundo se levantou para
fazerem o que deviam.

Primeiro-Tenente Dagoberto Almeida: prepare tudo para partimos.

Segundo-Tenente Matilda: deixa comigo.

Tenente Tule: aonde tá Garbalde? Não o vi hoje ainda.

Tenente Matilda: não sei, ele aparece e desaparece quando quer.

Cena 46: Garbalde estava na ponte do antigo aeroporto que havia se tornado a ponte da força aérea na região. O sujeito com qu em
ele conversava era claramente um nobre, pela malha negra com contornos dourados que v estia. Fora eles dois, não havia mais
ninguém ali, somente lá embaixo, na pista.

Sargento Garbalde: vocês já mataram o príncipe?

Nobre: já nos livramos dele, não se preocupe. Agora, tome, receberá o resto depois do serviço. Entregou um pacote; Garbalde abriu
e viu que havia um bolo de dinheiro.

Sargento Garbalde: acha que vai ser fácil matar Eva?

Nobre: vai, pra você vai. Nós já planejamos tudo, você só precisa apertar o gatilho.

Sargento Garbalde: neste caso...pagando bem, que mal tem! Levantou-se da cadeira, balançando o pacote. Vou fazer hoje ainda.
Andou para a saída.

Nobre: Garbalde...

Sargento Garbalde: fala, sócio. Virou-se para atendê-lo.

Nobre: tem que parecer real.

Sargento Garbalde: e vai.

Ele voltou a andar, saiu e desceu as escadas enquanto guardava o envelope na jaqueta. Quando chegou lá embaixo, topou com
Tule, meio-enfurecido. Garbalde ficou imediatamente tenso.

Tenente Tule: Garbalde! Eu estava te procurando a manhã toda, aonde estava?

Sargento Garbalde: no banheiro. Não posso cagar em paz?

Tenente Tule: e que cara é essa? aconteceu alguma coisa?

Sargento Garbalde: a bosta tava muito dura e rasgou o meu cu. Tá bom assim? Seguiu seu caminho, deixando Tule constrangido e
parado ali.

Cena 47: o vestiário feminino estava vazio, a exceção de Eva, afinal haviam poucas mulheres no recinto. Ela guardava seu unif orme
de cadete com todo carinho do mundo, já que não sabia se voltaria a vesti-lo ou se ao menos voltaria; deixou também o coldre
habitual no armário de ferro e colocou a pistola na cintura enquanto não vestia o coldre da jaqueta de combate.

Enquanto Eva estava distraída, Garbalde surgiu com uma garrafa de uísque nas mãos e se dirigiu à privada mais próxima.

Eva: aqui é o vestiário feminino.

Sargento Garbalde: sim. Deu uma golada de uísque ao mesmo tempo que mijava.

Que nojo, Eva pensou. Depois de descarregar, Garbalde foi se dirigindo novamente à saída, tendo para isso que passar por Eva e o
fez tranquilamente, mas quando estava perto o suficiente, puxou a pistola da cintura dela com uma mão e pressionou-a contra o
armário pela cabeça. Sem nem sequer um segundo para reação, Garbalde empurrou o cano contra o queixo dela, mas a arma travou.
Com o instrumento da morte inutilizado, ele simplesmente o descartou e começou a enforca-la com toda a força que tinha.

Eva regrediu ao estágio primal do medo. A garganta impossibilitada não a deixava respira, quem dirá gritar. De repente, Garba lde
largou sua garganta, mas continuou apertando sua boca para que não gritasse. Seguidamente, enfiou a mão na calça dela na

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tentativa de puxar tudo para baixo com o antebraço e o medo se tornou pânico. Pressionou a si próprio contra ela, prendendo -a
por complexo. A mão dele agarrava a boca dela como se tivesse força para a esmagar.

Antes que fosse tarde, Eva pensou rápido e lançou cegamente a mão dentro de seu armário aberto e milagrosamente alcançou um
revólver que mantinha ali. Me fudi. Foi a única na qual ele conseguiu pensar antes de levar um tiro na barriga.

Garbalde caiu para trás de dor e ela, quase que em choque, deslizou as costas no armário até o chão largou o revólver. No momento
seguinte, Eva se recobrou de seu choque e correu segurando as calças pela saída. Garbalde ainda conseguiu levantar o rosto para
vê-la partir.

(...) Cena 48

Cena 49: José Carlota acordou com um barulho metálico muito forte e levantou com um repelão, imediatamente levantando a
camisa para ver se haviam buracos de bala ou se tudo não passava de um duro pesadelo. Os buracos estavam ali, embora
avançadamente cicatrizados. Realmente muito bizarro. Sem tempo para ficar pensando, ele ficou de pé e percebeu que estava em
um vagão de carga, mas não se tocou de que estava vestindo uma farda de soldado raso. Deu uma olhada em volta, tudo o que viu
foi caixas de munição e um tanque de guerra com o canhão desmontado.

Mecânico: tá fazendo o que aqui? Um sujeito de macacão segurando uma prancheta perguntou. Volta pro seu vagão!

José Carlota não deu ideia para ele e foi correndo para a comporta de aço na parte de trás e a abriu, dando uma boa olhada para
fora enquanto se segurava nas barras de proteção do vagão atrás de si. Tudo era uma paisagem desoladora; parecia não haver um
único prédio de pé, somente destroços e pó. O vagão logo atrás carregava canhões antiaéreos e o tre m dos trilhos ao lado estava
parado, descarregando tanques de guerra na cidade.

Mecânico: enlouqueceu? Fecha essa porta! Tentou puxar José Carlota para dentro.

O príncipe virou-se abruptamente e pegou o homem pela gola do macacão.

José Carlota: aonde estamos? Gritou.

Mecânico: pra...guerra. Respondeu, assustado.

José Carlota o largou e tentou correr para a locomotiva do trem, de vagão em vagão. Passou de um em um, em cada um dos quais
parecia haver uma centena de soldados. Atropelou os que estavam de pé nos estreitos corredores, até que um soldado armado no
vagão seguinte viu o que estava acontecendo e chamou a atenção de José Carlota.

Soldado da frente: ei, você aí! Chegou a levantar a arma. Parado agora m...

Sua voz foi interrompida quando uma explosão no vagão irrompeu e as chamas a engoliram. José Carlota, a poucos metros do
choque, caiu para trás. A explosão foi seguida pela segregação de todos os vagões anteriores do corpo principal do trem e o
acionamento dos freios. José Carlota levantou a cabeça e viu o trem se afastando cada vez mais pela estrada de ferro enquanto os
demais vagões desaceleravam.

Soldado de trás: todo mundo pra fora! Agora! Gritou e deu um empurrão no príncipe para que desimpedisse o corredor.

Os soldados começaram a pular dos vagões paralisados para a estrada e correram pelo terreno aberto até os prédios próximos,
mas a maioria estava desorientada e muitos foram pegos pelos tiros de carros de combate inimigos que se aproximavam lentament e
dos tanques das Nações Unidas na rua ao lado da linha férrea.

José Carlota, de mãos vazias, corria de cabeça baixa no meio da batalha em pleno curso. Era um longo percurso da estrada até a
rua mais próxima, mas ele conseguiu vencer o percurso em segurança e correu para trás de um tanque que aparentemente era
aliado. O tanque foi quase imediatamente destruído por uma RPG inimiga e um dos tripulantes em chamas abandonou-o na
esperança de se salvar, mas foi baleado alguns metros depois.

Um pelotão de amigos vinha virando a esquina e um membro seu esbarrou em José Carlota quando este levantou e correu em
sentido contrário ao inferno que se desenrolava. O príncipe chegou em uma espécie de avenida bem larga, e continuou correndo.
Pelos cantos, um ou outro civil tentava se esconder. Viu alguns carros de combate passando, mas depois destes não viu mais
ninguém na rua, só ouviu os sons ensurdecedores atrás dele mesmo. Parou na calçada, morto de cansado; olhou a sua volta e não
viu absolutamente ninguém naquela cidade devastada. Em um dado instante, ouviu passos vindos da esquina, e aproximando-se
rápido. José Carlota ficou paralisado por um instante antes de perceber que eram inimigos vindo.

Pelo menos três pelotões de iraquistaneses vinham dobrando a rua. O primeiro deles que chegou na esquina chego u a mirar em
José Carlota, mas ele foi mais rápido e desviou, pulando para dentro de uma confeitaria com o vidro arrombado.

O príncipe ficou ali, escondido atrás do balcão, na esperança de que o soldado tivesse uma memória de peixe e simplesmente
esquecesse que o tinha visto. José Carlota pegou um tijolo do chão e atirou-o contra o inimigo assim que entrou na confeitaria. O
tijolo bateu bem na testa do coitado de uma maneira tão violenta que caiu para trás; dando tempo para que José Carlota pulass e
nele por cima do balcão e arrancou-lhe a metralhadora: uma PPSH de pente circular. Tomou-a e disparou uma rajada contra o
homem no chão. O sangue espirrou nos destroços.

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Abandonado o lugar pela porta de trás, José Carlota se deparou com uma sala em comum a todas as lojas do andar, além de ter a
escada para o segundo andar. O príncipe tentou sair pela loja de artigos de caça, mas também haviam inimigos encrostados lá
enquanto se protegiam do fogo aberto vindo da rua. De repente, a loja de caça desapareceu com uma explosão, provavelmente
vinda de um disparo de tanque, e a sala do prédio se empesteou de uma fumaça densa que não deixava José Carlota sequer abrir
os olhos direito. Ele se apoiou na parede, ainda com a PPSH em mãos, e disparou quando dois inimigos atordoados passaram pela
porta. Depois ergueu-se novamente e saiu correndo para a rua. Ele passou pelos tanques das Nações Unidas, que avançavam
lentamente contra o inimigo.

Correu, e correu muito, seguindo o curso contrário dos soldados amigos que se encaminhavam para o tiroteio. Largou a PPSH e
pulou um muro de madeira, dando de cara num jardim onde alguns soldados que fugiram do trem conseguiram se esconder. José
Carlota ficou em choque ao ver aqueles homens ali.

Tenente Junqueira: acalme-se, rapaz, estamos em segurança aqui. Colocou a mão sobre o ombro dele amistosamente.

José Carlota: tira a mão de mim! gritou na cara dele. Você sabe quem eu sou? Eu sou o rei! Infern...

Um capitão surgiu repentinamente e deu um soco nele. José Carlota tombou e caiu em cima de um outro pobre coitado que estava
sentado ali.

Capitão Falecimento: cala a boca, caralho.

O sujeito no qual José Carlota caiu em cima estava futucando o nariz, pouco se importando com o que acontecia e achou engraçado
quando o príncipe saiu rápido de cima dele.

Soldado Batista: calma aí rapaz. José Carlota se apoiou na parede de pedra do quintal atrás de si. Qual é o seu nome?

José Carlota: José Carlota, o rei.

Soldado Batista: sério? li no jornal que ele explodiu. Fez chacota da situação, naturalmente. Quem é você, afinal? Enquanto
conversavam, os oficiais ficavam de olho para ver se alguém, amigo ou inimigo, aparecia na rua.

José Carlota: José Carlota, o rei. O rei, porra. Eu sou o rei. Ficou irritado.

Soldado Batista: até que você se parece com ele, eu acho.

José Carlota viu que de nada adiantaria para convence-lo e então desistiu de argumentar. Deslizou as costas pela parede e se sentou
no chão, exausto com o que acontecia.

De repente, uma cabeça surgiu por cima da cerca de madeira.

Soldado estrangeiro: vocês são os caras que estavam no trem? Perguntou para o Falecimento. Do outro lad o, na rua, um cabo
esperava no jipe que acabou de estacionar.

Capitão Falecimento: somos sim.

Soldado estrangeiro: que dia agitado! Venham comigo.

Cena 49: a base das Nações Unidas na cidade era numa antiga fábrica próxima a área de embarque e desembarque da estação
férrea. Pouco menos de duzentos soldados do trem que estavam ali caminhavam em fila para um dos galpões de armas. Havia muita
correria e a maioria dos veículos não estava ali. As explosões e a fumaça podiam ser vistas por cima dos prédios e muitas macas com
feridos chegavam.

Soldado estrangeiro: podem se equipar aqui! Peguem o quanto precisarem. Aí gritando para os soldados à medida que vinham
chegando no galpão. José Carlota pegou um fuzil de assalto STG, o jeito como ele sabia usar aquilo era evidente.

Soldado Batista: nossa, você é bom com armas!

enquanto isso, Falecimento estava uma mesa estratégica com os oficiais estrangeiros da base.

Coronel estrangeiro: os cretinos bloquearam a linha férrea bem aqui. Deu a indicação no mapa. Se contra-atacarmos conjuntamente
com o resto da brigada, eles serão obrigados a recuar.

Capitão Falecimento: certo, certo. E o que nós teremos que fazer?

Coronel estrangeiro: você precisa chegar o mais próximo possível dos blindados inimigos e mandar a posição exata por rádio, daí a
artilharia faz o resto. Consegue chegar lá com alguns pelotões?

Capitão Falecimento: é pra isso que sou pago. Ambos se cumprimentaram.

Coronel estrangeiro: boa sorte.

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Cena 51: Falecimento foi até ao galpão, onde seus homens já estavam devidamente equipados. Todos olharam para ele quando
chegou segurando o rádio (do tamanho de um micro-ondas doméstico).

Capitão Falecimento: certo, rapazes! Precisamos levar esse rádio até a boca do inferno. Alguma pergunta?

Soldado Batista: posso levar o rádio? Levantou a mão para perguntar, com uma empolgação quase infantil. José Carlota achou
aquilo estranho.

Capitão Falecimento: à vontade. Largou o aparelho na mão do soldado, que o colocou nas costas. Agora, vamos dar o fora daqui.

Cena 52: os carros ligeiros de combate saíram da base das Nações Unidas aceleradamente para a avenida. Havia um aeroporto que
estava servindo de base aérea ali, mas a maioria dos helicópteros já havia sido evacuada e no lugar deles muitos tanques em c hamas
estavam espalhados pela pista. Na estrada, os carros também precisavam desviar de alguns outros veículos de combate
abandonados.

Quando se aproximaram de um cordão de árvores antes de uma praça, perceberam o tiroteio acontecendo a pleno vapor do outro
lado. Um tanque inimigo disparou, o projétil passou por entre as árvores e atingiu em cheio o veículo da frente. Os outros dois que
restavam desviaram da estrada e seguiram entre as árvores, derrubando algumas. Passaram por cima da mureta de pedra e
atingiram a rua lateral, longe da zona mais acalorada de combate.

Nas ruas laterais, os soldados inimigos lutavam contra os da ONU entrincheirados dentro das casas. Ao dobrar a esquina, o veículo
da frente derrubou um poste e atropelou alguns desgraçados na calçada. Na rua seguinte, havia um tanque inimigo se movendo
lentamente para o combate.

Tenente Junqueira: ele vai pegar a gente! desvia!

Motorista: confia no pai!

O carro passou entre a traseira do tanque e a esquina, o carro de trás o seguiu repetindo a manobra. Por fim, foram se afasta ndo
da zona de combate. O tenente fez uma cara de alívio.

Cena 53: os dois veículos pararam em frente a um segundo cordão de árvores, maior e sem estrada. O que restou do pelotão saiu
dos veículos, só ficando os três das metralhadoras embarcadas. Ficaram protegidos entre a fuselagem dos veículos e o muro de uma
delegacia de polícia. Os inimigos se aproximavam com carros ao longe, tornando o tempo escasso.

Capitão Falecimento: temos que ir a pé agora! Puxou o mapa enquanto o tenente corria para perto dele. Atravessamos o rio e
corremos pela fábrica até a ferrovia.

Tenente Junqueira: são pelo menos três quilômetros... Ele tomou um tiro na cabeça e a frase foi interrompida, para o espanto do
capitão. O sangue espirou no muro.

As metralhadoras dos veículos começaram a cantar contra os inimigos que continuavam a espreitar caminho pela rua. Eles também
apareceram na rua, cercando o grupo. Capitão Falecimento pegou o primeiro sargento que viu pela frente e começou a gritar no
ouvido dele.

Capitão Falecimento: leva o rádio pra ferrovia! Nós seguramos eles!

Sargento que só apareceu para morrer: entendido! Foi até Batista (que ainda estava com o rádio nas costas). Precisamos ir, agora!

Batista obedeceu, José Carlota e os outros oito do grupo de combate do sargento seguiram em fila indiana. Seguiram rente ao m uro
e entraram na delegacia. Haviam ali cadáveres ainda sentados nas cadeiras, como se as pessoas houvessem sido mortas enquanto
realizavam atividades corriqueiras. O grupo de soldados seguiu até o corredor quando deu de cara com uma dúzia de inimigos.

O sargento que só apareceu para morrer foi instantaneamente fuzilado. Batista pulou no chão atirando enquanto José Carlota
saltava para a sala do outro lado do corredor utilizando do sargento sendo alvejado de escudo. José Carlota apoiou-se na parede e
pegou uma granada, lançou-a e a fumaça inundou o corredor; depois se levantou dando tiros avulsos contra a fumaça na expectativa
de acertar algum inimigo. Por fim, chegou na porta no final do corredor; estava fechada, portando a arrombou com um chute. Do
outro lado, deu com o que devia ser o gabinete do chefe do polícia. Dois oficiais da nação inimiga estavam de pistolas em mãos e
protegidos atrás de uma mesa virada, mas se abaixaram quando José Carlota entrou atirando em tudo.

Um soldado que estava escondido atrás da porta pulou em cima do príncipe, que acabou largando a arma.

José Carlota: desgraç... Tentou gruir enquanto era estrangulado, mas conseguiu jogar o infeliz no chão.

Batista finalizou-o assim que entrou. Os demais soldados também entraram. Alguém fitou os corpos dos oficiais atrás da mesa e
outro pegou a arma do chão e devolveu a José Carlota.

José Carlota: obrigado. Pegou-a e recarregou.

Cabo genérico: certo, vamos lá. Precisamos continuar.

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O grupo seguiu até uma sala de reunião onde havia uma janela aberta que dava para a rua; pularam um a um. A área externa era
um jardim e já dava de frente para o cordão de árvores (maior que o primeiro, chegando a ser um bosque). Havia uma criança morta
próxima a um canteiro. Seguiram mato adentro.

Cena 54: já era possível ver as chaminés e silos indústrias se erguendo dezenas de metros sobre a visão das árvores. Passaram por
uma linha de ferro secundária antes do rio.

José Carlota: quer que eu carregue um pouco? perguntou a Batista enquanto passava pelos trilhos, percebendo que já estava
carregando o rádio a bastante tempo.

Soldado Batista: obrigado. Entregou o rádio; José Carlota o colocou nas costas.

Depois do trilho, começaram a travessia do rio. Não era caudaloso, mas era relativamente largo. Era um momento de t ensão, já
que estavam em pleno território inimigo. Os tiros começaram, para variar.

Cabo genérico: saíam da água! Agora! E levou um tiro no ombro, mas não morreu. Outros dois soldados não tiveram a mesma sorte
e a correnteza levou seus corpos ensanguentados. Alguns ainda no início do percurso conseguiram voltar, enquanto José Carlota e
Batista arrastavam o cabo baleado para fora d´água na outra margem.

Cabo genérico: porra, porra, porra! Me soltem! José Carlota e Batista pousaram-no em um lugar seguro. Vão! Levem o rádio!

Soldado mais genérico ainda: tudo bem, podem ir! Eu cuido dele.

Batista ainda ficou receoso, mas José Carlota o agarrou pela farda, chamando-o.

José Carlota: vão bora, cara! Só sobrou a gente! E foram.

Cena 55: José Carlota e Batista corriam pelo complexo industrial. Viram dois helicópteros passando e se deitaram no meio-fio da
estrada.

Soldado Batista: será que nos viram?

José Carlota: isso já não importa, vamos continuar. Levantaram-se e voltaram a correr.

Entre grandes galpões, puderam ver um tanque se movendo. Continuaram andando cautelosamente e entraram numa espécie de
instalação para descarregamento de minério de ferro num dos galpões bem na frente da linha férrea bloqueada. Subiram as escadas
que davam para os níveis superiores do maquinário e olharam pela abertura de ventilação. O trilho estava bloqueado por vagões
de minério de ferro tombados. O local era protegido por pelo menos vinte tanques de guerra pesados, uma dúzia de blindados leves
e muitos caminhões.

Soldado Batista: caralho...

José Carlota: não fica ai parado, vamos colocar isso pra funcionar. Colocou o rádio sobre a plataforma. Como se usa essa coisa?

Soldado Batista: deixa comigo. Fica vigiando se não chega alguém.

Enquanto Batista dava as coordenadas á artilharia, José Carlota ficou deitado na plataforma com a mira na entrada de trás. Em um
dado momento, dois soldados inimigos chegaram despretensiosamente.

Soldado um: leu o jornal hoje?

Soldado dois: sim! Matamo o filho da puta, né?

José Carlota e Batista ficaram estáticos, rezando para que eles não olhassem para cima.

Operador do rádio: confirmar posição? 0051... Falou pelo comunicador.

Soldado dois: o que? Olhou para cima, mas tudo o que viu foi a arma de José Carlota disparando. Foram dois tiros perfeitos, cada
um atingindo o topo da cabeça de um.

José Carlota: já sabem que estamos aqui!

Soldado Batista: sim! posição confirmada! Fogo! Gritou contra o rádio, depois se jogou na grade da plataforma para se proteger. As
bombas caíram.

Cena 56: já era de manhã novamente. A ONU havia retomado o trilho, mas ainda estava sendo desbloqueado pelas máquinas dos
engenheiros militares. Trens de ambas as mãos aguardavam para passar e centenas de soldados esperavam do lado de fora para
entrar. Batista estava perto da plataforma, aproveitando todos os louros da vitória que recebia dos oficiais, mas José Carlota estava
sentado bem longe e melancólico.

Soldado Batista: o que há com você? Somos heróis! Foi falar com ele. José Carlota não prestou atenção nele, continuando a olhar
para os guindastes operando os vagões. Ainda não sei seu nome.

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José Carlota: vai ver eu não tenho um.

Soldado Batista: você é meio maluco, não é?

José Carlota não respondeu nada novamente. Lá embaixo, um oficial chamou o resto dos praças espalhados pelo local para voltar
ao trem. José Carlota se levantou.

José Carlota: vamo embora desse inferno. Saiu andando para a fila, ainda cabisbaixo. Batista ficou encucado com o comportamento
do recém-conhecido.

Cena 57: Maria estava encostada na janela da grande biblioteca universitária, observando dois sujeitos vestidos de preto
conversando ao lado de um carro aparentemente do governo estacionado na garagem quase vazia. O olho dela ainda estava roxo e
um pouco inchado devido ao golpe de Babi.

Doutor Marlão: Maria! por onde esteve? Surgiu do corredor e a viu, fazendo uma cara de alívio, mas quando chegou mais perto,
viu o estado dela. Ficou sério. Maria, o que aconteceu?

Maria: me desculpa; já vou pro hospital. Não respondeu objetivamente a pergunta após alguns segundos de silencio letárgico. Ela
parecia bastante abatida, mas mesmo assim se levantou e foi andando pelo corredor, deixando Marlão ali, confuso com o que
acabara de ocorrer.

Maria saiu pelo grande portal de frente para o busto em bronze de algum santo, bem no meio do corredor aberto pelos contrafortes
góticos. Quando saiu, não percebeu um homem encostado na parede, que a abordou.

Secretário Agazaú: senhorita...

Maria: o que: Ela se virou, assustada. Quem é você?

Secretário Agazaú: sou Agazaú, secretário da Guarda Real. Mostrou o distintivo da instituição policial. Estou investigando o
desaparecimento de Sua Alteza, o Príncipe.

Maria: ele deve estar morto. Disse, tremula.

Secretário Agazaú: talvez ele não esteja., e mesmo que esteja, os culpados devem pagar pelo crime.

Maria: me desculpe, acho que não posso ajudar. Me deixa em paz. Virou-se novamente e continuou seu caminho.

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