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GUERRA E AçÚcARz

A FORMAÇÃO DA ELITE POLÍTICA NA


cAPITANIA DA PARAÍBA
(sEcULOs xvI E xvn)

Regina Célia Gonçalves

m agosto de 1585, no Sanhauá, afluente da margem direita do


rio Paraíba, teve lugar um acordo de paz entre portugueses e
Tabajara, que representou a primeira grande vitória das forças
coloniais no território localizado ao norte da Capitania de Pernambuco,
no Estado do Brasil. No entanto aquele acordo ainda não significaria
a vitória decisiva sobre os Potiguara. Esses, os naturais senhores da
terra, só reconheceriam a derrota militar naquelas paragens quinze anos
mais tarde, em 1599. Até lá, e mesmo após, mas com menor impacto,
o cotidiano daquela que viria a ser a Capitania Real da Paraíba foi
marcado pela violência do estado de guerra permanente.
A história da conquista do Paraiba relaciona-se diretamente com a
das Capitanias de Pernambuco e de Itamaracá, mais especificamente
com a necessidade de garantir a segurança necessária para o
desenvolvimento da colonização daquelas áreas. Para tanto, fazia-se
necessário estender a linha da fronteira com os índios não-aldeados,
no caso os Potiguara, que habitavam o território que se estendiam do
rio Paraíba até o Jaguaribe, já no Ceará, para o local mais distante
possível das fazendas, currais e povoações já estabelecidas.
Parte do território do que viria a ser a Capitania Real da Paraiba,
especificamente a área situada entre o rio Goiana, ao sul, e a baía da
Traição, ao norte, que correspondia a cerca de 23 léguas, foi
desmembrada da Capitania de Itamaracál. Na época em que se
processaram as primeiras expedições de conquista do rio Paraíba, no
início dos anos setenta, essa faixa de terra, com exceção da região
localizada ãs margens do rio Goiana, permanecia praticamente
despovoada pelos portugueses. Era terra dos Potiguara e porto dos
franceses, mercadores de pau-brasil, seus aliados.

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A Capitania de Itamaracá foi uma das que fracassaram com a


implantação do sistema, por D. João III, em 1534. Os recursos
financeiros do primeiro donatário, Pero Lopes de SousaZ, e de seus
herdeiros, foram insuficientes para bancar os altos custos da empresa
colonial que incluía não apenas o povoamento e a exploração econômica
da data de terra doada pela Coroa, mas também os custos da guerra
contra os índios. Além disso, do que se pode apreender dos poucos
dados biográficos encontrados sobre o primeiro donatário, os seus
principais interesses estavam situados nas águas dos oceanos, e não nas
terras do Novo Mundo. Nunca se estabeleceu, de fato, em qualquer
de suas capitanias, que sempre foram governadas por prepostos,
especialmente depois de sua morte, em 1539, quando retornava de
mais uma viagem ãs Índias Orientais.
Tais prepostos passaram a ser nomeados, em Portugal, por D. Isabel
de Gambôa, sua viúva. Datam dessa época as reclamações de Duarte
Coelho, donatário de Pernambuco, contra os moradores de Itamaracá,
a quem acusava de acoitarem toda sorte de bandidos, a exemplo de
traficantes de brasil e salteadores de índios, principalmente aqueles que,
fugindo da justiça por ele aplicada, encontravam abrigo na ilha de
Itamaracáõ. As desavenças entre eles tornaram-se freqüentes a ponto
de serem relatados casos sérios de violência, como a tentativa de
assassinato, a mando de Duarte Coelho, de Francisco de Braga, que
havia sido colocado no governo de Itamaracá pelo próprio Pero Lopes
de Sousa, quando este partira para a corte. Conhecido como “grande
língua do Brasil” e como amigo dos Potiguara, o principal negócio do
governador em Itamaracá era, certamente, a exploração do pau-brasil.
Ferido de uma cutilada no rosto e sem possibilidade de vingar-se,
Francisco de Braga abandonou a Capitania, partindo para as Indias de
Castela1. A partir desse episódio, acontecido por volta de 1539, a
capitania ficou praticamente abandonada, até a nomeação de um novo
governador, o Capitão João Gonçalves. Abriu-se, a partir daí, segundo
as palavras de Frei Vicente, a “era dourada” de Itamaracá.
íÍEproenraoa [o eeyäitão] o anrnento desta sna eegãitania, não eonsentindo
ane aos índios sefizesse algnrn agraoo, rnas earia'ando a todos, eorn ane
eles andaoarn tão eontentes e dorne'stieos ane de sna liire nontade se oferea'arn
a seriir os braneos e l/oes enltioaoarn as terras de graçea, on porponeo

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/nais de nadayârindpalrnente nin ano ane /oonoe de ninitafonze na Paraiba


[grande seea de 7545], donde so'pelo eonier se iin/oani nieterpor snas
easas a serei-los. E assirn não /oaiia oraneo, porpoore anefosse, nesta
eapitania, ane não tioesse iinte on trinta negros destes, de ane se seriiani
eo/no de eatioos, e os rieos tin/oani aldeias inteiras. ”5

Essa passagem reafirma o fato de que a garantia de paz e, portanto,


da estabilidade necessária para o incremento da atividade econômica
na colônia, naqueles tempos iniciais do povoamento, dependia
diretamente da política dos conquistadores em relação aos nativos.
Nessa primeira e breve fase, a habilidade dos colonos quanto ã
apreensão dos valores vigentes no interior das sociedades indígenas, a
exemplo do seu código de guerra e de sua política de alianças, era
fundamental para a defesa dos interesses da implantação da colonização.
Em um segundo momento, com a posse da terra já garantida, em
decorrência do sucesso do povoamento branco e das atividades
agrícolas que haviam sido introduzidas, a relação com os índios mudaria
de patamar. A demanda por mão-de-obra, expandida na medida em
que a agromanufatura açucareira se desenvolvia nas várzeas de
Pernambuco, fez crescer o negócio e a prática do cativeiro e, com eles,
a violência.
Frei Vicente do Salvador, no trecho acima transcrito, ao falar em
“carinho do governador com os índios” e na “boa vontade” desses
em trabalhar “de graça” para os conquistadores, dilui o conflito existente
nas relações cotidianas entre as sociedades indígena e colonial, mesmo
em tempos de paz. Conflito esse que não podia ser evitado e que a
frase final do trecho revela, ao afirmar que, por mais pobre que fosse
o morador, ele haveria de ter índios cativos a seu serviço.
A relativa paz na Capitania de Itamaracá, no entanto, duraria apenas
até a morte do governadoró, conhecido como “capitão velho”. A partir
de então, os que se ocupavam do negócio do cativeiro indígena
passaram a ter a liberdade de ação de que, freqüentemente, se queixava
Duarte Coelho em sua correspondência ao rei, que se estendeu até o
final de 1550. Mas esta atividade, após sua morte (1554), se tornaria
um grande negócio na Nova Lusitãnia (e provavelmente em Itamaracá)
sob o comando de seus herdeiros.

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O fato é que, embora as terras de Itamaracá se estendessem


oficialmente até a baía da Traição, a sua exploração nunca foi efetuada
pelos donatários. Os contemporâneos dos acontecimentos são claros
ao dizerem que, na primeira metade da década de 80, em decorrência
da guerra dos Potiguara, a capitania estava praticamente abandonada.
Anchieta afirma que contava com “úproximadameníe 50 iizinbosporlngneses;
íem sen mga'rio; e eonsaponea e pobre e bai se desjooooandow. No Snma'rio das
Armadas8 é informado que, em 1585, havia apenas 32 moradores,
encurralados na ilha, sustentando a capitania. Ou seja, a situação era
desesperadora e, do ponto de vista dos moradores de Pernambuco,
muito perigosa, pois os próximos alvos seriam, com certeza, os seus
povoados e fazendas que estavam situados além da margem direita
do rio Igarassu, o marco divisório entre as duas capitanias.
Ao cabo da ocupação inicial da Paraíba, a Capitania de Itamaracá
foi reduzida ao território compreendido entre a Ilha e a desemb ocadura
do rio Goiana. Segundo Erei Vicente do Salvador9, as demais terras
foram retomadas pelo rei, que as incorporou ã Capitania Real da
Paraíba, porque fora ele a conquistá-las e a libertá-las do poder dos
inimigos, ã custa de sua fazenda e de seus vassalos. Essa é a mesma
explicação que aparece nos Dia'logos das Grandezas do Brasil, quando o
autor afirma que, originalmente, o distrito da Paraiba fazia parte da
Capitania de Itamaracá, “de ane Sna Majeslade a desmembron, por bai'er
poi'oado a sna enstamo. Ou seja, entendemos, a partir de tais afirmações,
que, depois de efetivada a conquista do Paraiba, em 1585, a Coroa
despojou os donatários de Itamaracá das terras que ainda não haviam
sido exploradas. Procedimento, aliás, que já era previsto no Regimento
do Primeiro Governo Geral, de 1548.
Os motivos que levaram o rei D. Sebastião a ordenar a conquista
dessa área foram o levante potiguar, iniciado na década de 1560,
provocado pelos interesses dos portugueses envolvidos com o cativeiro
de índios, e o receio de que os franceses se instalassem e se fortificassem
no rio Paraíball. Além desses, os contemporâneos dos acontecimentos
destacaram, ainda, as vantagens que a Coroa teria com a conquista e
povoamento dessas terras, entre elas, as que seriam auferidas da
exploração do pau-brasil, sem o inconveniente da concorrência dos
franceses, e as decorrentes da introdução da cultura de cana-de-açúcar.

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Esse é o teor da narrativa e dos argumentos de Gabriel Soares de


Sousa, em 1587:

“eporane entravam em eada ano neste rio [o Paraiba] nansfraneesas a


earregar o pan-da-tinta, eom ane abatia o ane iapara o reino das mais
eeaâitaniaspor eonta dosportngneses; eporane o <gentio Pitignar andava
mnito levantado eontra os moradores da Capitania de Itamaraea e
Pernambneo, eom o favor dos franeeses, eom os anais fizeram nestas
eapitaniasgrandes danos, aneimando engenbos e ontras mnitasfazendas,
em ane mataram mnitos bomens braneos e eseravos, assenton Sna
Mea'estade de o mandarpovoar efortifiear...(...) Este rio da Paraiba e'
mnito neeessariofortifiear-se, a nmapor tirar esta ladroeira dosfraneeses
dele, a ontra por se povoar, pois e' a terra eapaz para isso, onde se
podemfazer mnitos engenbos de açenear. m2

Quanto ã qualidade do pau-brasil extraído nas capitanias do norte,


o autor do Snma'rio das Armadas indica aspectos importantes:

“esta Capitania de Parabyba,possnindo mais va'rzeas ) ane todas as


ontras eeaaitanias; e eom isso e eom ter maispao brasil ane Pernambneo,
e' mnito melbor,'porane ananto mais para o norte, e'preferivel: e eom
todo o da Parabyba se ebamar de Pernambneo, se-tirara mnito melbor
pela Parabyba, eom a ea'nda d ,aanelles rios no inverno, ane em
Pernambneo, onde o earreto d l elle fiea mnito longe e mnito enstoso e
dijjienltoso ) Dizem ane o pao d ,esta eapitania da Parabyba e' a
mereadoria, mais de lei ane todas as ontras, por não padeeer eorrnpçeão
de tempo nem de a'gna; antes a do mar o-afina. Na boeea e' doee anase
eomo aleaçenz. Por respeito d ,este pao, traetaram e proenraram tanto os
franeezespermaneeer na terra. “3
A extração de pau-brasil já era uma atividade econômica consolidada
e, ao conquistar a Paraíba, a Coroa estaria, portanto, passando a
controlar, efetivamente, o tráfico em uma área que produzia dos
melhores paus-de-tinta da colônia.
Há ainda a destacar, nesse texto, a referência ao fato de que todo o
pau-brasil extraído das áreas situadas no que hoje é o Nordeste do
Brasil, era conhecido também como “pau de Pernambuco”, pois a
América portuguesa era associada, na Europa, ã bem sucedida capitania

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de Duarte Coelho. Sendo assim, parece-nos natural que, aos produtos


provenientes dessa região, se dissesse serem de Pernambuco. Por outro
lado, a qualidade do pau-de-tinta da Paraiba, elogiada pelo cronista do
Sn/nario, estava certamente associada ao fato de que, ali, as matas eram
mais fechadas e as árvores mais antigas, portanto, de maior porte do
que as que podiam ser encontradas nas capitanias ao sul, onde o
crescimento da agromanufatura açucareira fez aumentar a demanda e,
portanto, a derrubada das matas, e não apenas as do brasil, tanto para
atender ao mercado europeu quanto as necessidades dos engenhos. O
autor ainda destacava um outro aspecto que, nos séculos que se seguirão,
e até os dias de hoje, se coloca na pauta dos problemas a serem
resolvidos para que o desenvolvimento econômico da Paraíba seja
possível: a questão do escoamento da produção. Informando que o
pau-de-tinta da capitania deveria ser embarcado pelo rio Paraíba, que
não tinha problemas com a estiagem, afirmava que, se isso acontecesse
por Pernambuco, o custo seria mais alto e o deslocamento mais difícil.
Em 1574, depois da destruição, pelos Potiguara, do Engenho
Tracunhaém, que se situava na fronteira norte da Capitania de Itamaracá,
e diante do fato consumado de que nem os donatários nem os
moradores daquela capitania ou da de Pernambuco teriam condições
de completar, com sucesso, a ocupação das terras até o rio Goiana,
sem que o levante dos Potiguara fosse contido, a Coroa portuguesa,
finalmente, resolveu tomar para si as rédeas da situação. Se bem
sucedida tal ação também garantiria, por outro lado, a manutenção e o
reconhecimento internacional da sua soberania sobre aqueles territórios,
na medida em que os franceses fossem expulsos e que se promovesse
o povoamento português.
Essa preocupação estava na base da ordem, dada pelo rei D.
Sebastião, ao Governador-Geral D. Luiz de Brito d1Almeida, em 1574,
para que este fosse, pessoalmente, ver e resolver a situação, além de
eleger “nrn sz'tioparapoooaeão 1114. Impedido de ir, o governador mandou
em seu lugar o Ouvidor-Geral e Provedor-Mor da Fazenda do Estado,
Dr. Fernão da Silva, que, baseado em Pernambuco, reuniu ígente depe e
de eaoallo da dita eapitania, e rnnitos indios, ane ainda então batia ”para castigar
os Potiguara. Essa foi a primeira expedição de conquista e o primeiro
fracasso português, já que os homens do Ouvidor-Geral foram

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obrigados a fugir pelas areias da praia, perseguidos de perto pelos


nativos. O fracasso fez com que o Governador-Geral se decidisse a
partir pessoalmente para o rio Paraíba. Para tanto, equipou, na Bahia,
ao custo de muitos mil cruzados da fazenda d,el-rei, “nma armada de
doze telas, eom toda agente aneponde ea'nnetar, leoando toda a nobreza da eidade,
ojjieiaes dajnstiçea efazenda, eom todos ospetreeloos e mantimentos neeessdrios, enfim
eom o maior apparato de eapitães e soldados, e reeado das mais eonsas ane l/oe a elle
foipossi'oelea'nnetar”. Partindo, em setembro de 1575, assolada pelos maus
ventos, a armada arrib ou de volta ã Bahia, sem nunca ter sequer chegado
próximo ao seu destino. “Degez-se no ar, sem mais lemoranóea da Para/god),
como diz o autor do Snma'rio das Armadas.
As elevadas despesas com mais essa expedição fracassada e as
atribulações provocadas pela crise da sucessão de D. Sebastião em
Portugal contribuíram para colocar a guerra contra os Potiguara e a
conquista do rio Paraiba em segundo plano na política da Coroa para
o Brasil. Para os moradores de ltamaracá, principalmente, nada poderia
ter sido pior, pois os nativos e seus aliados, fortalecidos pelas sucessivas
vitórias sobre as forças portuguesas, aumentaram o número de
“correrias” no território da capitania, destruindo tudo o que fosse
encontrado pela frente. Os poucos moradores que resistiram,
recolheram-se, encurralados, ã llha de Itamaracá. A terra dos Potiguara
estendeu-se, nesses anos, até ã margem esquerda do rio Igarassu, na
fronteira com Pernambuco. Uma nova ordem da Coroa para atacá
los só foi dada quatro anos depois, já sob o reinado do Cardeal D.
Henrique, atendendo ã solicitação dos moradores dessa Capitania. Um
poderoso negociante, morador em Olinda, que havia enriquecido no
trato do pau-brasil da Paraíba, durante os breves períodos de paz
com os índios, se dispunha a bancar a expedição. Seu nome era Frutuoso
Barbosa”. A empresa, dessa feita, resultaria de uma parceria clara entre
o rei que, para ela, equipou quatro navios, e a iniciativa privada. Possuidor
de grandes cabedais, Frutuoso Barbosa foi nomeado “capitão de mar
e terra” da gente que levasse, por tempo de dez anos e, em troca, se
comprometeu a colonizar a Paraíba. Mais uma vez, a ênfase no
povoamento embasa o texto do alvará régio de 157916, que lhe
concedeu a autorização, pois tal era a prioridade tanto em termos da
manutenção da paz nos territórios das capitanias do norte quanto no

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que dizia respeito ã política colonial das nações européias:


“Cbegon Frnelnoso Barbosa a Pernambneo, ereio, no anno de 7917, em
nmformoso (galeão, e nma zanra, e onƒros dons naiios, eom mnilageníe
porlngneza, assim soldados eomoponoadores, easados, eom mnilos resgales,
mnniçeoões epelreebos, e eonsas do almazem neeessdrias assim a eonanisla,

eomo apoi'oaçeão ane logo baiia defazer; e lrazendo nm iiga'rio, a anem


el-rei dana 400 ernsados de ordenado, e religiosos de S. Franeiseo e de
S. Benlo... ”. 18
Percebe-se que, tanto o rei quanto os moradores de Pernambuco,
ao levarem a cabo essa expedição, esperavam concretizar, de vez, a
conquista do Paraiba. De Portugal, vieram os elementos fundamentais
- soldados, povoadores e religiosos, além dos meios materiais - que
deveriam ser completados, por Erutuoso Barbosa, em Pernambuco.
No entanto, tal como as anteriores, essa expedição também estava
fadada ao fracasso. Mais uma vez, o tempo ruim agiu, dispersando-a.
Algumas embarcações foram arribar ã Bahia e outras, inclusive a do
capitão, ãs Índias. De volta ao reino, em busca de novo auxílio da
Coroa, recebeu, em 1582, ordens do rei - a essa época D.Eilipe I, de
Portugal, o mesmo D.Eilipe II, da Espanha - para retornar ã colônia e
cumprir sua parte no contrato que havia sido firmado três anos antes.
Eoi a sua segunda tentativa e seu segundo fracasso. Dessa feita, em
Olinda, contatou autoridades locais, em especial o capitão e ouvidor
de Pernambuco, reunindo homens e armas que partiram, por terra e
por mar, rumo ao Paraíba. Ali, depois de queimar cinco das oito naus
francesas que se encontravam atracadas com carga de pau-brasil,
travaram, durante oito dias, ferozes batalhas contra o gentio, que, mais
uma vez, saiu vitorioso. (É assimfiearam ambos em ealma, e os inimigos mais
soberbos, e esías eapilaniaspeior ane nnnea, e a de Tamaraed de Iodo desesperada ”.
O adiamento dessa nova ofensiva, centralizada pela Coroa, contra
os Potiguara do Paraíba fora inevitável, tendo-se em vista o período
de conflagração que se sucedera em Portugal após a morte do Cardeal
D. Henrique, em fins de janeiro de 1580. A segunda expedição de
Frutuoso Barbosa foi compreendida, pelo novo rei, como sendo a
continuidade daquela que havia sido autorizada pelo monarca morto,
em 1579. Uma nova tentativa só seria feita depois que a União das

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Coroas Ibéricas19 estava, de fato, consolidada, em 1584. O domínio


filipino sobre Portugal (1580-1640) teve também um expressivo
significado para a América Portuguesa. Durante esse período, mais do
que em qualquer outro, a posse de Portugal sobre sua colônia no Novo
Mundo foi amplamente questionada e, mais do que isso, foi seriamente
colocada em risco. Por outro lado, também foi nesse período que,
paradoxalmente, se garantiu a posse efetiva de parte importante do
Brasil por Portugal, com a derrota dos índios e dos franceses.
Embora a historiografia identifique, na América portuguesa, durante
o período filipino, uma fase de desenvolvimento da colonização, os
escritores contemporâneos aos acontecimentos não se cansam de
reclamar da falta de atenção que a Coroa tinha para com o Brasil.
Gabriel Soares, em 1587, exorta o rei a prestar atenção ã colônia, que
havia caído no esquecimento após a morte de D.João III, “o
colonizador”, pois nela seria possível construir um novo e grande
império, “o anal eomponea desloesa destes reinos sefara' tão soberano ane seja nm
dos Estados do mnndo, porane tera de eosta mais de mil lezgnas”. Não se cansa
de exaltar as riquezas e as vantagens da terra, diante das outras colônias
e mesmo da metrópole, tentando convencer a Coroa e a iniciativa
privada a investirem nela e a proverem o seu crescimento e extrairem
o seu “proveito”. Denuncia a falta de apoio que a colônia teve na
regência de D. Catarina e nos reinados de D. Sebastião e do Cardeal
D. Henrique, durante os quais o ostracismo e o abandono em que se
encontrou, fizeram com que ela tornasse “atras de eomo iaƒloreseendow.
Outra não foi, também, a intenção de Ambrósio Fernandes Brandão
ao escrever os Dia'logos das Grandezas do Brasil, datado da segunda década
do século XVII, no reinado de Filipe II, em que procura descrever as
vantagens do Brasil sobre as Índias, de forma a atrair investimentos,
ao mesmo tempo em que denuncia a negligência das autoridades e
dos colonos em relação ã terra. Da terceira década do mesmo século,
no reinado de Filipe III, temos a obra de Frei Vicente do Salvador,
que, cobrindo o período 1500-1627, insiste no mesmo argumento,
indo mais fundo na crítica ao governo:

“ainda ane ao nome de Brasiljnntaram o de estado e lbe ebamam estado


do Brasil, fieon ele tãoponeo estavel ane, eom não baver boje vem anos,
anando isto eserevo, ane se eomeçeon a povoar, ja' se bão despovoados

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algnns lngares e, sendo a terra tão grande efe'rtil ), nernpor isso nai
ern anrnento, antes ern dirninniçeão.
Disto dão algnns a enlpa aos reis de Portngal, ontros aos povoadores:
aos reispeloponeo easo ane /oãofeito deste tão grande estado, ane nern o
tz'tnlo aniserarn dele, pois, intitnlando-se sen/oores de Gnine', por nina
earaoelin/oa ane lã nai e oern, eorno disse o rei do Congo, do Brasil não se
aniserarn intitnlar; nern depois da rnorte de el-rei D. joão HI, ane o
rnandonponoar e sonbe estinrã-lo, /oonoe ontro ane dele enrasse, senão
para eol/oer as snas rendas e direitos ,21.
O fato é que não apenas os problemas na península, mas também
as divergências entre os interesses da colônia, que podem ser entrevistos
nas queixas presentes nessas obras, e a política imperial metropolitana,
encontravam terreno fértil para a eclosão de conflitos em ambas as
margens do Atlântico; para não falar na guerra colonial, contra os
holandeses, que seria travada em todas as terras e mares onde o império
filipino se fizesse presente. A primeira guerra, de fato, mundial, no
dizer de Charles Boxer.
A distância física que separava metrópole e colônias, associada ao
grande número de burocratas e órgãos envolvidos na mediação entre
súditos e corte, tornava as situações de conflitos muito mais corriqueiras
nas áreas coloniais. No caso da organização e da realização das últimas
campanhas para a conquista do Paraíba, isso ficou bastante claro. A
conjunção das forças metropolitanas, que reunia soldados e autoridades
provenientes do reino (tanto espanholas quanto portuguesas),
autoridades coloniais (do Governo-Geral e das capitanias de
Pernambuco e Itamaracá), povoadores já estabelecidos nessas capitanias,
além de índios aldeiados e escravos (negros e índios), expressava bastante
claramente a divisão e a multiplicidade de interesses envolvidos na
empresa. Não poucas vezes, tais diferenças transformaram-se em
conflitos abertos que colocaram em risco o seu sucesso.
Em outubro de 1583, um apelo desesperado dos moradores de
Itamaracá e de Pernambuco chegou ã Bahia, levado por Frutuoso
Barbosa. Depois do seu segundo fracasso, no ano anterior, a guerra
dos Potiguara havia chegado a um ponto em que o abandono da ilha
de Itamaracá parecia inevitável. As providências tomadas, então, pelo
governador Manoel Telles Barreto, foram, no geral, bastante eficazes e

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representaram um passo importante para a consecução dos objetivos


portugueses: enviou uma esquadra, com navios espanhóis (7) e
portugueses (2), sob o comando de um general experiente, Diogo
Flores Valdez, recém-chegado ã Bahia depois de uma expedição ao
estreito de Magalhães. Acompanhavam-no Frutuoso Barbosa,
brandindo o alvará régio de 1579; o Ouvidor-Geral Martim Leitão,
que teria um papel importantíssimo na organização das forças terrestres
em Pernambuco e na provisão dos recursos necessários; e um certo
Martim Carvalho, nomeado Provedor da Fazenda e Mantimentos da
Armada de Conquista da Paraíba, cargo criado especialmente para, a
pedido do bispo D. Fr. Antonio Barreiros, beneficiar seu amigo que,
mais do que apoio ã investida, provocaria muitas desavenças. As ordens
eram para que os lugares-tenentes dos donatários de Pernambuco e
Itamaracá fornecessem os homens e as armas necessárias para formar
uma força terrestre poderosa o suficiente para que os Potiguara e os
franceses fossem derrotados no rio Paraiba e para que, ali, fosse erguido
um forte que garantisse o início do povoamento branco. Assim foi
feito, e quase mil homens, incluindo mais de trezentos portugueses,
cerca de cem africanos e mais de quinhentos índios, foram reunidos
nas duas capitanias para comporem essa força que, somada ã esquadra
de Valdez, tomaram a barra do rio onde foram aprisionadas cinco
naus francesas, uma conseguindo fugir, e deram início, na margem
esquerda do Paraiba, ã construção do forte que recebeu o nome de
São Filipe, em homenagem ao rei. “Porane o prinapal ane se pretendia, e
oerdadeiro eajíeito, erapoooar-se a terra”, conforme afirma o nosso cronista
do Snma'rio que, dessa expedição e de tudo o mais que se seguiu, foi
“testemunha de vista”. Era 1o de maio de 1584. Dois meses haviam
passado desde que as forças enviadas pelo governador-geral zarparam
da Bahia. E os problemas estavam apenas começando.
Permanecendo em Olinda, depois da partida de Valdez, o Ouvidor
Geral precisou enviar ainda três expedições de socorro, em maio e
novembro de 1584 e em fevereiro/março de 1585, aos homens do
Forte de São Filipe, impiedosamente atacados e cercados pelos índios
e seus aliados. Afinal, a conquista não passara, até aquele momento, do
estabelecimento de um reduto militar defensivo na margem esquerda
do rio, e não na direita como seria mais lógico, pela simples razão de

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que, se assim não fosse, os soldados não teriam as profundas e turvas


águas do Paraíba a separá-los do caminho para casa. Simplesmente
fugiriam de volta para o sul, conforme alega o autor do Snmario.
Nenhum passo fora dado, até então, para estabelecer a tão sonhada
povoação.
A maior parte do tempo, a força que ali fora deixada, composta
por 150 arcabuzeiros espanhóis, comandados pelo capitão de infantaria,
também espanhol, Francisco Castrejon, e por 50 portugueses, incluindo
mamelucos e “oníragente minda”, comandados pelo português Frutuoso
Barbosa, esteve lutando contra os inimigos, contra a fome e a falta de
armas e munições e contra si mesma. As desavenças entre o comando
espanhol e o português, que não se aceitavam mutuamente, eram um
perigo quase tão constante quanto os índios e os franceses. Na verdade,
essa divisão do comando fora acertada pelo General Valdez para
contornar as divergências bastante sérias surgidas entre os líderes das
tropas. Se a conquista do rio, ainda que não consolidada, só fora possível
porque as forças régias e as particulares, dos donatários e dos moradores
das capitanias de Pernambuco e Itamaracá, haviam se unido, não havia
como negar a divisão interna que as caracterizava. Colonos de origem
portuguesa, separados do reino pelo oceano e, portanto, distantes do
clima das negociações e acertos das cortes de Tomar; separados,
também, por algumas centenas de quilômetros da sede do Governo
Geral na Bahia, sendo comandados, na guerra contra o pior dos seus
inimigos, por um estrangeiro, espanhol. Um súdito do rei que havia
subjugado a sua terra-mãe. Além disso, havia o alvará régio de Frutuoso
Barbosa, vianês como a maior parte dos colonos de Pernambuco,
concedendo-lhe o cargo de capitão-mor das forças da Paraíba, por
dez anos a partir da conquista. Certo era que os custos da expedição
corriam, desta feita, por conta do erário régio e não da fazenda do
interessado, mas este participara de todas as lutas, estivera ã frente em
todas as batalhas e não desistiria de reivindicar o que julgava seu direito.
A suposta solução de Valdez não fizera, portanto, mais do que adiar
um conflito que se tornara inevitável e que explodiria no espaço interno
da paliçada do São Filipe, cercada dia e noite pelos inimigos: os
soldados, lutando contra as enfermidades, brigando pelos poucos
mantimentos, que já eram racionados; e os comandantes, enviando

34
GUERRA E AÇÚCAR

despachos regulares ao Ouvidor-Geral, em Olinda, solicitando socorro


e denunciando, um ao outro, por má conduta na guerra e por
desrespeito ãs suas respectivas autoridades.
Na capital de Pernambuco, a situação também não era diferente,
pois, embora Martim Leitão ocupasse o cargo mais importante, a
Ouvidoria Geral, era o outro Martim, o Carvalho, quem detinha o
poder de decidir quando e qual o valor dos recursos que a fazenda
real liberaria, se é que o faria, para o Forte de São Filipe. As discussões
entre ambos, apesar de acaloradas, parece terem se restringido
unicamente ãs reuniões para discutirem os destinos da conquista. O
primeiro Martim, apoiado pelos governadores e moradores das
capitanias do norte, cada vez mais preocupados com a possibilidade
de perderem o que já havia sido conseguido, defendendo o envio
imediato dos mantimentos, armas, munições e homens necessários
para manter o forte, e o segundo Martim, zeloso com os cofres do
rei, acusado de incompetência e ganância pelos demais, hesitando em
prover o que era solicitado. Já o conflito entre Martim Carvalho e
Francisco Castrejon, que, na condição de alcaide do forte, por nomeação
de Valdez, no auge do desespero havia se dirigido a Olinda para exigir
socorro, renderam cenas de pugilato público pelas famosas ladeiras de
Olinda, devidamente registradas pelo autor do Snma'rio e por Frei
Vicente do Salvador.
Se o estado das coisas já não era muito bom, por volta de fevereiro
de 1585 ficaram ainda piores. O terror tomou conta de Pernambuco
e Itamaracá assim que a notícia se espalhou: o famoso Piragibe, o Braçeo
de Peixe, e sua gente, os Tabajara, haviam chegado ã Paraíba, em socorro
dos Potiguara. Alguns meses depois, entretanto, a fonte de horror se
transformaria em fonte de júbilo; o inimigo, portador da derrota, seria
feito aliado, portador da vitória.
Piragibe e Guirajibe, o Assento de Pa'ssaro, o segundo principal entre
os Tabajara, lideravam um povo que, há algumas décadas, havia sido
desalojado de suas terras no litoral, especificamente as localizadas entre
o rio Goiana e a ilha de Itamaracá, por seus inimigos tradicionais, os
Potiguara, apesar da aliança que haviam firmado com os primeiros
povoadores portugueses. Dentre estes estavaJerônimo de Albuquerque,
o Adão pernambucano, que teve vários filhos com Maria do Espírito

35
REGINA CELIA GONÇALVES

Santo Arcoverde, nome cristão da filha do principal Tabajara. A maior


parte deste povo foi aldeiada em Pernambuco, enquanto outra migrou
em direção ao rio de São Francisco, onde, prosseguindo na prestação
de serviços aos portugueses, colaborou na guerra de cativeiro que
estes travaram contra o gentio inimigo. Frei Vicente do Salvador relata
os acontecimentos da última entrada que os pernambucanos realizaram,
por volta do início dos anos oitenta, com a ajuda dos Tabajara, nos
sertões do São Francisco, quando foram aprisionados mais de sete mil
índios”. Nessa ocasião, insatisfeitos com o número de cativos até então
obtidos, o que revela a extensão do negócio aquela época, os chefes
da entrada resolveram cativar também os Tabajara. Descobertos antes
de poderem realizar o seu intento, foram massacrados, e os prisioneiros,
libertos.

“Os loornia'das, ternendo -se ane os braneosfossern tornar iingançea destas


rnortes, sendo tobey'ares e eontra'rios dospotignares, seforarn rneter eorn
eles na Paraíba e sefizerarn sens anngospara os en'ndarern ern asgnerras,
ane nosfaziam. ”
No entanto, essa aliança tática com os Potiguara não duraria mais
que alguns meses. Imediatamente após a chegada da notícia a Olinda,
as autoridades centrais e as locais, numa rara ocasião de consenso,
determinaram o envio de uma expedição urgente de socorro ao forte
de São Filipe, comandada pessoalmente pelo Ouvidor-Geral. Ao
chegar ã Paraiba, os Tabajara haviam estabelecido, com a anuência dos
seus novos aliados, duas grandes aldeias. A primeira, chefiada por
Piragibe, nas imediações do rio Tibiri, afluente da margem direita do
Paraíba, tinha “mais de três mil almas”, e a segunda, de Guiragibe,
localizada mais acima do mesmo rio, devia ter também o mesmo
número de pessoas. Ambas foram destruídas pelas forças portuguesas,
depois de Martim Leitão ter feito, junto aos principais, gestões, que
foram recusadas, para que abandonassem os Potiguara, dando-lhes
garantia de que não seriam punidos pelo massacre do São Francisco.
Embora não tivesse sido bem sucedido naquela ocasião, o Ouvidor
Geral, que se destacaria nessa incursão e nas demais que se seguiriam
até o início efetivo do povoamento, como comandante prático,
implacável, impiedoso e com um grande senso de oportunidade
política, colheria os frutos da sua tentativa de aliciamento alguns meses

36
GUERRA E AÇÚCAR

mais tarde, especificamente em agosto. Contou, para isso, com o apoio


de seus espias, que se encarregaram de disseminar a versão de que os
Tabajara haviam facilitado as coisas para os portugueses, permitindo
que os mesmos conquistassem a margem sul do rio Paraiba e, mais
ainda, indicando-lhes os melhores roteiros para chegarem com maior
facilidade a Acejutibiró, a baía da Traição, onde os homens de Martim
Leitão fizeram grandes estragos nas aldeias e roçados dos Potiguara. A
velha tática, tão conhecida pelos primeiros povoadores europeus da
terra, de dividir para conquistar, de explorar o ódio tradicional existente
entre os diferentes grupos indígenas, voltava a dar resultados.

“ ofim do me"s dejnl/ooj e/oegaram [a Olinda] dois indios de aviso de


Braçeo de Peixe ao Onvidorgeral,pedindo-l/oe soeorro eontra ospetignares,
ane, tornando-se pelo seo reeado para baixo ao mar, o eerearam por
vezes, e tin/oam anase desoaratado. N ,esteproprio dia investin Martim
Leitão aos indios, e sefoi dormir ao Arreafe, vomjoão Tavares, eserivão
da eãmara, e jniz dos orp/oãos; e ao pareeer de todos pareeen mais
eonveniente, epor serviçeo d ,el rei, epor l/o ,o elle rogar, aeeeiton socorrer
se, eomo /oavia annos, ao mesmo Braóeo no sertão /oaviafeito,'e assim, eom
72 /oispan/ooes bem eoneertados e satigfeitos, e 8 portngnezes, em nma
earavela eanipada e eoneertadapara tndo, eom algnmas dddivas, e bom
regimento, partin do porto de Pernamoneo, a 2 de agosto de 75'85"”.
No dia de Nossa Senhora das Neves, 5 de agosto, era firmada a
paz com os Tabajara. Uma nova fase da guerra de conquista iria ser
iniciada. Desde a instalação das Capitanias de Pernambuco e de
Itamaracá, essa era a primeira grande vitória dos portugueses contra
os Potiguara e os franceses. O “acordo de paz” significou a “virada”
da guerra para o lado dos portugueses, pois, pela primeira vez, os
inimigos seriam derrotados em seu território, e a marcha da civilização
branca, com o estabelecimento da povoação de Nossa Senhora das
Neves, daria mais um passo importante, as margens do rio Paraiba,
preparando o deslocamento da fronteira mais para o norte.
Como vimos, a participação direta da fazenda real na empresa da
conquista do Paraíba foi indispensável. Seu alto custo, inclusive, foi
inúmeras vezes, ressaltado nos relatos dos contemporâneos, entre os
quais, Ambrósio Fernandes Brandão que, num dos diálogos de sua

37
REGINA CELIA GONÇALVES

obra, faz Brandônio concordar com Alviano a esse propósito:


“'Sim, ensíon [a Paraiba] eom mnilos eapilães e armadas, ane para o
efeiío de sna eonanisla mandon o Reino; eompreszdio de easíelbanos, ane
assistiram na <gnarda de snasforíalezas; o ane nnnea iimos nas demais
eonanisías ane sefizerampor Iodo esle Eslado ,25.
Por outro lado, vimos também que as forças que participaram dessa
campanha contra os Potiguara, resultaram da conjunção de homens e
recursos de diversas origens. Houve aqueles provenientes do reino, ou,
mais especificamente, da Coroa, mas também outros, reunidos pelas
autoridades coloniais, Governo-Geral e locotenentes das Capitanias
de Pernambuco e de Itamaracá. Tais forças caracterizavam-se, assim,
tanto pela multiplicidade dos seus elementos quanto pelos conflitos
permanentes, em seu interior, decorrentes da natureza diversa dos
interesses envolvidos. Conforme fica claro nos documentos e relatos
dos contemporâneos, a organização da empresa não foi fácil, assim
como não o foi o estabelecimento da povoação nas terras recém
conquistadas. Muitos desafios precisaram ser enfrentados, o
fundamental, sem dúvida, a necessidade de uma decisiva vitória sobre
os Potiguara, tarefa que exigiu mais quinze anos de luta. Mas havia,
ainda, a necessidade de conciliar os múltiplos interesses no interior das
fileiras dos conquistadores.
Esses homens, mobilizados ãs centenas nas Capitanias de Itamaracá
e de Pernambuco, se constituiriam, também, no núcleo inicial dos
povoadores da Paraíba. Sendo assim, desde o início, as vinculações
entre os interesses que se estabeleceram na nova capitania e os que já
estavam instalados ao sul, especialmente em Pernambuco, que era um
exemplo de riqueza e prosperidade, ã época, foram bastante próximas.
A Capitania Real da Paraiba, o novo espaço aberto para a colonização,
na prática funcionou, em termos populacionais e econômicos, como
uma extensão das capitanias de donatários suas vizinhas. E, mesmo no
que se refere aos aspectos políticos, embora sendo uma capitania real
cujas autoridades eram, portanto, diretamente nomeadas pelo rei, a
influência das elites instaladas em Olinda não tardou em se fazer
presente, especialmente com a criação da câmara municipalzó. Assim
como não tardaram a eclodir conflitos entre as autoridades, em diversos

38
GUERRA E AÇÚCAR

níveis, em especial, entre os capitães-mores e os governadores-gerais,


e entre os primeiros e os religiosos, tanto jesuítas quanto franciscanos.
O processo da conquista definitiva dessas terras, garantida pelo
estabelecimento do povoamento branco, ocorreu com a metrópole
imersa em uma desgastante conjuntura, marcada por problemas
financeiros e militares, especialmente em função da revolta nos Países
Baixos e do aprofundamento da concorrência das outras nações
européias pelos espaços coloniais, fosse através da ocupação, fosse
através do corso e da pirataria. Sendo assim, e principalmente pelo
fato do território em questão na América ser parte do império colonial
de Portugal que manteve autonomia relativa em relação ã Espanha
durante o domínio dos Filipes, a atenção a ele destinada não teve a
acuidade que era exigida para a rápida consolidação da conquista. A
participação da iniciativa privada, portanto, tornou-se indispensável.
Mesmo porque, se a conjuntura política e militar não era das melhores,
o mesmo não se poderia dizer da economia, especialmente no que
respeitava ao mercado do açúcar na Europa. O final do século XVI e
as primeiras décadas do século XVII constituem um período marcado
pela ampla valorização do produto no mercado internacional. Essa
situação ampliava os interesses daqueles que já estavam envolvidos no
negócio, fossem mercadores, financiadores, plantadores de cana ou
produtores de açúcar.
Sendo assim, ao analisarmos a evolução da ocupação do Paraíba
nesse período, não podemos deixar de considerar o atrativo que sua
várzea representou como área de produção açucareira. Se derrotar os
índios e seus aliados e iniciar o povoamento, eram condições
indispensáveis para a própria garantia da colonização portuguesa nessas
paragens, por outro lado, tal ocupação deveria responder a esse
movimento mais amplo da produção agro-manufatureira e do
comércio do açúcar para o mercado externo. Ambos os processos
são, portanto, inseparáveis, pois mobilizaram a corrente humana que
se dirigiu para o Paraíba e, em seguida, para o Rio Grande e os demais
territórios ao norte.
Quem eram esses homens? Quais as suas origens? Como já foi
dito, vieram, em sua grande maioria, das capitanias vizinhas que, por
sua vez, haviam sido povoadas por contingentes formados por pessoas

39
REGINA CELIA GONÇALVES

de todos os níveis sociais, originários de Lisboa, das ilhas atlãnticas da


Madeira e de Açores e do norte de Portugal, especificamente das regiões
situadas entre o Minho e o Douro”, num movimento migratório
incessante que se estendeu ao longo de todo o período do domínio
colonial português. Em Pernambuco, devido as próprias origens da
casa donatarial, predominavam os imigrantes das cidades e vilas do
norte de Portugal, especialmente de Viana do Castelo. A diversidade
de origem social dos imigrados para a colônia podia ser observada,
inclusive, entre aqueles que foram os primeiros donatários, bem como
entre seus sucessores imediatos. Boxer afirma que
“nãoperteneiarn [os donatários] ã alta nobreza nern erarn rieos rnereadores
rnas sirn rnernbros da elasse rne'dia e dapeanena nobreza. Nãopossnz'arn,
na sna rnaioria, eapitalon ontros reenrsos ane lbesperrnitissern desennoloer
as terras, epesar dos enornrespriiilegiosjndieiais efiseais ane lbes tinbarn
sido eoneedidospela Coroaws.

O próprio Duarte Coelho, em que pesem as dificuldades, devidas


ã falta de documentação, para estabelecer sua ancestralidade, não era
fidalgo de nascimento, mas foi elevado a essa condição, pelo rei, devido
aos seus feitos no Oriente. Trata-se de um exemplo de como a fortuna
e o statns de nobreza podiam, no reino de Portugal, ao longo do século
XVI, serem alcançados através das armas e, principalmente, de uma
bem sucedida estratégia matrimonial. No caso, Duarte Coelho casou
com D. Brites de Albuquerque, ela sim, da mais nobre estirpe portuguesa.
As famílias que acompanharam o primeiro donatário a Pernambuco
formaram não apenas o núcleo inicial do povoamento. Deram,
também, início ã produção açucareira e acabaram originando, diante
da efetiva ausência da nobreza portuguesa tradicional na colônia, uma
aristocracia local, nomeada “nobreza da terra”, apesar da sua origem
freqüentemente humilde. Nobreza essa cuja condição advinha da sua
dupla primazia: a do povoamento e a de detenção do poder, derivado
do controle dos principais meios de produção, especialmente terras,
escravos e engenhos. Além disso, ela soube tornar-se, também, a
“governança da terra”. de Costa Porto a seguinte definição, a partir
dos documentos do Santo Ofício, na primeira visitação a Pernambuco
e Paraiba, entre 1593 e 1595:

40
GUERRA E AÇÚCAR

“Homens da governançea, seriam os ane exereiam postos de direçeão -


inelnidos, assim, no rol das antoridades - on ainda aparentados na easa
donatarial, ligados aos donos da eiaâitania, eomo agregados, da sna
intimidade, de sens dome'stieos: o easo de Izabel FrazoAa, analifieada
eomo “dos dagovernanta dessa terra ”, de eertoporanefilba de Franeiseo
Frazão,pessoa de eonfianóea de Dnarte Coelbo ane, nnma das eartas lbe
ebama “eriado ”, isto e', pessoa de sen seriiçeo. “Da governanóea” se diz
Felipe Cavaleanti e em dnplo sentido pois, ale'm de genro de jeroAnimo,
ennbado de Dnarte Coelbo, exereera o eargo de loeo-tenente do segnndo
donatdrio. Tambe'm D. Felipe de Monra, sobrinbo de D. Beatrizprimo
do donatdrio, e, ao sen tempo, loeo-tenente, ale'm de easado emprimeiras
nnpeias eom nmafilba e, em segnnda, eom nma neta de ]ero"nimo,' e
Pedro Homem de Castro, ane se diz “sobrinbo do donatdrio ”eertamente
por iainidade: Alvaro Fragoso, apontado eomo “da governanóea”, era
genro de jeroAnimo. Antonio Barbalbo e Alvaro I/elbo Barreto, esses
deviam ser iaâarentados da easa donataria I”.

Portanto, como fica claro na passagem acima, a condição de


primeiros povoadores, de migrantes que acompanharam a família
donatarial em sua mudança para Pernambuco e que, com ela,
mantinham vínculos próximos, foi a origem dessa aristocracia local. A
natureza desse vínculo variou da situação do mero agregado ou serviçal
ã do parente, próximo, remoto ou, simplesmente, por afinidade, mas
a sua existência garantiu a tais pessoas pelo menos uma fatia do poder
local que viria a caracterizar esse grupo como um todo. Foram eles os
fundadores de Pernambuco. E, na medida em que a colonização foi
se consolidando ao longo do século XVI, a presença, a influência e o
poder dessa aristocracia local foram se ampliando para outros
territórios, como foi o caso da Paraiba e do Maranhão, por exemplo.
No geral, e dependendo das especificidades locais, a formação e o
fortalecimento dessa “nobreza da terra” encontrou, na “política
matrimonial” das famílias proprietárias, um dos seus principais suportes.
Segundo Schwartz e Lockhart, “Os elãs deproprieta'rios, empeaneno nnmero,
aeabam ligando-se, por meio de easamentos e assoeiaóeães, nnma rede de fami'lias
patriareais intimamente entrelaóeadas, ãs vezes aliadas e ãs vezes bostis, mas ane
tinbam atitndes e eomportamentos semelbantesmo.

41
REGINA CELIA GONÇALVES

Tratando de Pernambuco, mas como exemplo das estratégias


matrimoniais adotadas por essa camada dominante com a finalidade
de consolidar e ampliar o seu poder, Evaldo Cabral de Mello31 apresenta
o caso emblemático de Arnal de Hollanda e de sua mulher Brites de
Mendes Vasconcellos que, mediante o casamento de suas cinco filhas,
tornaram-se íjfnndadores de nm i'erdadeiro sistema elaAnieo ramifieado em linbagens
eia'aposiçeaõo eeonoAmiea,poderpolz'tieo eprestigio soeialebegaria intaeto, eomo no easo
dos Rego Barros, ate' meados do seíenlo XIX”. Nesse sentido, segundo o
autor, os Hollanda foram mais bem sucedidos que outros troncos
duartinos mais prolíficos, como `Ierônimo de Albuquerque, ou mais
ricos, como `Ioão Pais Barreto.
No entanto, nem sempre a estratégia do casamento exclusivo entre
os membros das famílias proprietárias era possível, ou desejável, porque
mesmo a endogamia, que em Pernambuco se acentuaria bastante após
a expulsão dos holandeses em 1654, tinha seus limites. Na Bahia, por
exemplo, havia outras possibilidades bastante eficientes e até mesmo
melhores, do ponto de vista da gestação de uma camada dominante
poderosa e com estatutos de nobreza. O aparato burocrático ali
montado para o governo da colônia, depois de 1549, era bastante
significativo, e o número de nobres portugueses, ocupados em altos
cargos, como os de governador-geral ou juízes reais, entre outros, era
bem maior do que nas demais capitanias. Esses acabaram se tornando
os candidatos preferidos, pelos grandes proprietários, ãs mãos de suas
filhas. No entanto, afirmam Schwartz e Lockhartõz, para estes sempre
havia a possibilidade de casá-las “eom nm imigrante, mereador on adi'ogado,
anando nao baiiajnizes reais on sobrinbos do goi'ernador divponioeis”.
E essa parece ter sido a solução mais comum para os problemas
matrimoniais da “nobreza da terra” de Pernambuco diante da escassez
de “homens bons” naquela capitania. Nos anos iniciais do povoamento,
na colônia, de acordo com Mello, mais do que no reino, o desequilíbrio
demográfico entre os sexos, que fazia das mulheres portuguesas ou
filhas de portugueses um “bem escasso”, os preconceitos contra
matrimônios mistos eram bem mais tênues. Os relacionamentos
interétnicos encontravam, inclusive, importantes defensores e praticantes,
a exemplo de _]erônimo de Albuquerque, que já citamos, de estirpe tão
nobre quanto sua irmã, D. Brites de Albuquerque. Encontrava-se lugar,

42
GUERRA E AÇÚCAR

inclusive, para matrimônios com cristãs-novas, ignorando-se, portanto,


uma das mais profundas clivagens existentes na sociedade colonial: a
que opunha cristãos-velhos e novos. Mello afirma, ferinamente, que
“Mesma os fidalgotes da mafia vianense não desdenbavam o matrimônio eom
eoniersas133. Enfim, o cristão-novo, desde que endinheirado, podia casar
se com membros das melhores famílias da terra. O caso de Frutuoso
Barbosa é bastante emblemático. Depois de perder esposa, filho e
grande parte de sua fazenda na primeira tentativa de conquista do
Paraíba, em 1579, contraiu segundas núpcias, em Pernambuco, com
Felipa Cardiga, filha de Pero Cardigo, cristão-novo e senhor de engenho
naquela capitania. Uma outra filha deste senhor, D. Tomásia, era esposa
de Pero Coelho de Sousa, locotenente dos donatários de Itamaracá, e
que, da mesma forma que o cunhado e o sogro, particip ou intensamente
das campanhas contra os Potiguara do Paraiba, comandando homens
e fornecendo armas e suprimentos. Pero Cardigo seria julgado e
repreendido pelo Santo Ofício, em 1594, por haver blasfemado34. Por
seu turno, uma das filhas de Frutuoso Barbosa e Felipa Cardiga,
Magdalena Barbosa, vinculou-se ã família donatarial, ainda que por
vias transversas, ao casar-se com Jorge Leitão de Albuquerque, um
dos muitos netos de Jerônimo de Albuquerque e Maria do Espírito
Santo Arcoverde33.
No período posterior ã expulsão dos holandeses em 1654 - a fase
da Restauração -, a “nobreza da terra”, através de seus genealogistas,
procuraria escamotear a presença do sangue converso entre os
primeiros povoadores da Nova Lusitânia, como foi o caso da verdadeira
fraude encomendada por Filipe Pais Barreto, que Evaldo Cabral de
Mello estuda em O Name e o Sangne. Ainda na introdução de sua obra,
o autor demonstra como, nessa fase, a genealogia assumiu estatuto de
saber vital para a elite dominante local, uma vez que classificava ou
desclassificava, naquela sociedade, o indivíduo e a sua parentela, a partir
da “fenda e'tniea, saiial e religiosa entre eristãos-velbos e eristãos novos”33.
Para o que nos interessa, é importante fixar que, de Pernambuco
principalmente, dirigiu-se para a Paraíba um grupo de conquistadores
liderados por elementos cuja origem era de uma elite social, porém de
caráter local. Em sua maioria, tais elementos encontravam-se ligados,
de alguma forma, aos negócios do açúcar e, muito provavelmente,

43
REGINA CELIA GONÇALVES

também do cativeiro de índios. Grande parte do contingente de


conquistadores era formada por homens que fugiam da pobreza. Na
verdade, tal “pobreza” referia-se, antes de qualquer coisa, ã
impossibilidade de, em função de sua origem humilde, virem a
tornarem-se grandes senhores nas capitanias de donatários. Ambrósio
Fernandes Brandão, escrevendo cerca de trinta anos depois do início
do povoamento da Paraíba, relembrava, uma vez que ele próprio
havia participado de várias expedições da conquista, e, ao mesmo
tempo, reafirmava a estreita vinculação, desde as suas origens, da nova
capitania com os homens que vinham de Pernambuco:
“E tenboporser dnvida, ane, se não estivera tão eoiy'nnta eoni a eepitania
de Pernanibneo, ane/'a' se bonvera annientado no sen ereseiniento, eoni se
baver eonieçeado apovoarporponeos epobres nioradores, posto ane nini
valorosos soldados, do ano de 7586 a estaparte;porane, no niesnio ano,
ine lenibra baver visto o sítio onde esta' sitnada a eidade agora ebeia de
tasas de pedras e eal e tantos teniplos, eoberto de niato. W

Tal como nas capitanias ao sul, serão esses os homens,poneos epobres,


e valentes soldados, que se tornarão povoadores da terra e que
procederão ã instalação das primeiras fazendas e engenhos de açúcar.
Schvvartz e Lockhart, ao tratarem dos proprietários dos primeiros
engenhos no Brasil, reafirmam essa origem plebéia dos senhores.

“Osprinieiros engenbosforani eriados não so'por donata'rios nias tanibe'ni


por gente de orzgeni niais bnniilde. Enibora algnns detentores de ti'tnlos
de nobreza de Portngalpossnz'sseni terras e engenbos de açenear no Brasil,
poneos ebegarani apoAr ospe's eni snaspropriedades. Contentavani-se eni
reeolber os lneros dessas atividades no nltraniar e dependiani de
proenradores efeitores no Brasil Algnnsfidalgos (nobres) reeebianipreAniios
ein terrapor sens serviçeos na eonanista da eosta, assini eonio ontros ane
vierani no se'ai'i'ito de governadores depois de 7549, nias ninitos dos ane
obtiverani sesniarias nas regiães açeneareiras eraniplebens eepazes, por
nieio das arnias on do trefiieo de injlnëneias, de obtera terra, o ere'dito e
o eapital neeessa'rios para inieiar aplantaçeão de eana”.38
O caminho das armas na luta para dizimar ou aprisionar os índios
foi um dos mais usados pelos moradores de Pernambuco e de
Itamaracá para, após a conquista, se estabelecerem na Paraiba e obterem

44
GUERRA E AÇÚCAR

datas de terra. Os documentos consultados nos revelam que muitos


soldados graduados daquela guerra foram agraciados com sesmarias
para instalação de currais, canaviais e engenhos, bem como para a
extração de lenha para movê-los. Um dos casos mais exemplares nos
é revelado pela primeira carta de doação de sesmaria na Paraíba, hoje
conhecida, que foi concedida a `loão Affonço (Pamplona), em 10 de
janeiro de 1586, portanto, dois meses após a fundação da povoação
de Nossa Senhora das Neves”. Morador de Pernambuco, `loão
Affonço obteve a concessão de uma légua de terra, em quadra, para a
construção de um engenho, por despacho do Ouvidor-Geral Martim
Leitão e do Capitão e Governador da Capitania, _]oão Tavares,
conforme o seguinte argumento:
“ane elle Úoão Ajjfonóeo] tem servido a S. Magestade a mnitos annos a
esta parte, nestas partes do Brasil e espeeialmente na eonanista desta
dita Capitania eom mnito riseo de vida e despeza de snafazenda vindo
anando Fernão da Silva veio a esta eonanista aeompanbando-o eom
armas e eom eavallos, eseravos e gente branea a sna ensta, e ontro sim
veio eom o Iieeneiado Simão Rodrignes Cardoso, eom d. Felippe de
Monra e eom vossa mereeA [IVIartim Leitão] dnas vezes ) eporane era
esta Capitania vomessada apovoar e tem neeessidade de moradores e de
pessoas rieas ane apossam povoar e porane elle snpplieante be bomem
rieo e iafortnnado e tem eabedal eom ane mnito bem possa snstentar a
Povoaóeão deste forte eom sens eseravos, e eriaóeães vom ane possa fazer
mnitos servióeos a S. Magestade eompovoar e enltivar esta terra efazer
nellafazenda 5740
.
Outros soldados que participaram da guerra da conquista, mais
modestos, conseguiram, quando muito, obter lotes de terra para
construírem sua moradia na cidade, que, lentamente, foi sendo erigida
ao longo da colina que se debruça sobre o rio. Foi esse o caso de um
certo Gaspar Giz (ou Gonçalves) que, em 15 de novembro de 1588,
finalmente recebeu a doação de um lote com “sete braçeas de testada e
aninze de anintal no lngar ) no eabo da Rna Nova indo para as Aldeyas da
banda do loeste ) para nellasfazer easa e benfeitorias”. Para tanto, alegava o
requerente,

45
REGINA CELIA GONÇALVES

íjilbo de Gavpar Manoel Maebado, morador nesta eidade, ane elle


viera eom sen pty/ a esta Ctaâitania efora dos primeiros moradores ane
a ella iieram e em todas as gnerras ane nella se fizeram e rebates, em
todos se aebara mnito prestez eom snas armas e nas mgias ane nesta
eidade se fizeram iigiara sempre sem nnnea elle ter soldo de Sna
Magestade e nem lbe terfeito mereeA algnma de dada de terra nem de
ebaNos para easa”.41

No entanto, saltam aos olhos, na documentação, os casos em que a


participação na guerra da conquista contra os índios rendeu benesses,
sob a forma de ofícios na estrutura burocrática da capitania recém
criada, durante muitos anos e mesmo décadas após o desenrolar dos
acontecimentos. Por exemplo, em 8 de novembro de ano não
identificado, mas anterior a 1607, alegando, entre outros motivos, o
fato de ter participado da guerra da conquista do Paraíba contra índios
e franceses e de, além disso, ser dos moradores mais antigos da
Capitania, i\/Iiguel Alvarez apresenta ao rei, D. Filipe II, um requerimento
solicitando nomeação da propriedade dos ofícios de escrivão das
execuções, demarcações, descarga, zelador e guarda da alfândega e a
mercê do ofício de meirinho de inquiridor da fazenda real e alfândega,
para casamento de uma filha”. Pelo menos a primeira parte do
requerimento foi atendida, pois, por volta de 1624, já viúva, Maria
Siqueira, moradora na Paraíba, solicita a propriedade dos mesmos
ofícios em que servira seu defunto marido, Miguel Alvarez, para a
pessoa que casar com a sua filha mais velha. Dentre os documentos
que são anexos ao processo, com a finalidade de embasar o
requerimento, encontram-se várias certidões, de diferentes autoridades,
em diferentes anos, atestando a participação do falecido nas guerras
da Paraiba, entre outros serviços que posteriormente prestou a Sua
Magestade45.
Não faltaram, também, as situações em que o tráfico de influências,
mais do que qualquer outro atributo do beneficiado foi o responsável
pela concessão das mercês ou, pelo menos, pela habilitação do pleiteante.
Esse foi o caso acontecido com Manoel Coresma Carneiro, que, em
1622, solicitava o ofício de provedor da fazenda na Paraíba. Seu
requerimento apresentava como anexos, além da folha demonstrando
seus serviços, em duas ocasiões, na armada da costa, também a

46
GUERRA E AÇÚCAR

informação do Juiz da Índia, Domingos Carneiro, seu irmão, de que


era “mnito nobre depai e mai [sic] e sem raçea algnma”.44 Infelizmente, para o
pleiteante, ele não obteve o cargo, muito embora sua “folha de serviços”
tenha sido considerada boa o suficiente para que ficasse em segundo
lugar dentre os sete candidatos ã vaga. Nesse caso, o nomeado foi
Francisco Gomes Munis, fundador de uma família cujo poder seria
enorme na capitania durante o século XVII. Suas qualidades reuniam
os dois requisitos fundamentais para a obtenção de mercês junto ã
Corte: uma bem sucedida e extensa folha de serviços prestados ao rei
e bons vínculos ou relações com as pessoas certas, no momento certo.
O resumo de suas credenciais, apresentadas ao rei pelo Conselho da
Fazenda, diz o seguinte:

“'.Franeiseo Gomes Mnnis, natnral da Ilba de `Yão Mignel, sobrinbo do


dezembargador do paóeo Alnisio (?) Lopes Mnnis, bomem nobre e sem
raçea algnma, eazado, eom mnlber efilbos morador na mesma Capitania
da Paraiba aonde ba annos ane serve de eapitão do eampo aonde por
mnitas vezes e eom soldados a sna ensta [eombaten] o gentio alevantado
prendendo mnitos aneforão eastigados e aeodindo aos eapitães mores e
em ontras [oeasioãesjpasson o rio a nado por mnitas vezes de noite apor
fogo as aldeas dos gentios alevantados eom mnito riseo da vida e despesa
de snafazenda efes mnitas obras pnblieas en era'a satigfaçeão pede este
ofiieio ”.45
Quanto aos créditos e capitais necessários para o início das
plantações e para a construção dos engenhos, estavam vinculados aos
mercadores instalados em Olinda. Aliás, a própria conquista do Paraiba
não teria sido feita sem a colaboração deste segmento social que adiantou
os recursos e mantimentos necessários ã empresa, sob as expensas de
Martim Leitão, no primeiro semestre de 1585. No Snma'rio dasArmadas,
fica claro como o sistema funcionava:
“era infinita a dilzgëneia de Martim Leitão empartienlarmente eserever
a todos mnitas eartas, eonvidando-os eom rasoães, a ane ningne'mponde
fngir,para ajornada, e aviando a mnitos,'porane eomo, no Brasil, tndo
e' fiado, e a maior parte dos nobres n ,estas eonsas anerem
snperambnndaneias, a ane os mereadoresja' não aeendiam, eraforçeado

47
REGINA CÉLIA GONÇALVES

fdzeY-os ellepnoe'en e em'nr nns e oníros; e em z'nfinz'lo z'slo, e ordenar o


neeessdrz'o ”. 46

A atividade mercantil era, sem dúvida, o principal negócio e a própria


razão de ser do império ultramarino portugués, e nela estavam
envolvidos inúmeros grupos, em maior ou menor escala, desde os
mercadores, especificamente, até membros da nobreza, do clero, das
corporações militares, além dos homens do mar, marinheiros e capitães
de navios. Na colônia, parcela da elite local e seus agregados e
descendentes também viriam a ter vínculos com esta atividade. No
caso de Pernambuco, número significativo de comerciantes instalados
em Olinda era, ou tinha, origem cristã-nova. Em Geníe do Ndeão, livro
essencial para a compreensão da inserção dos judeus e cristãos-novos
em Pernambuco, e também na Paraíba, embora essa não fosse sua
preocupação, nos dois primeiros séculos da colonização, José Antonio
Gonsalves de Mello discute os motivos que os levaram a transferirem
se para o Brasil47 . Dentre eles, estava a preocupação em se afastarem
das vistas da Inquisição, com o objetivo de conservarem um pouco
da sua liberdade religiosa, e também a perspectiva de se fiXarem em
uma terra em que o desenvolvimento da agromanufatura açucareira se
mostrava bastante promissor. Sendo assim, ja em 1542, Mello identifica
a presença de dois deles em Pernambuco: Diogo Fernandes e Pedro
Álvares Madeira48. Esses primeiros cristãos-novos e judeus passaram,
a partir de então, a ter uma eXp ressiva participação na economia colonial
na area açucareira,

“predonn'naníenzenle eonzo deleníores de eepz'len's: neereezdores qne sefazem


sen/oores de engen/oo, e'drz'os deles eonsere'nndo -se nas dnns nlz'w'dndes; nns
poneos qne sefazem rendez'ros da eo bmnçen de dízimos efazem empresn'nzos
ds vezes onzeneíros a donos de engen/oos, eonzo e' o enso dejames Lopes da
Cosíd, joão Nnnes Correia e Paulo de Pin/Í”
João Nunes Correia foi um dos cristãos-novos a estabelecerem
importantes vínculos com a Paraíba, tanto na fase da conquista quanto
na de implementação da produção de açúcar, tendo construído dois
engenhos, em sociedade com seus dois irmãos, Diogo Nunes Correia
e Henrique Nunes. Foi um dos mercadores que, instados por Martim
Leitão, contribuiu com os créditos necessarios para a fazenda real

48
GUERRA E AÇÚCAR

organizar o empreendimento da conquista. Seu irmão, Diogo, que


depois se estabeleceria na Paraíba como virtual proprietário dos
engenhos acima referidos, chegou a participar, pelo menos em uma
ocasião, das campanhas militares contra os Potiguara no rio Paraíba.
Além dele, pelo menos três outros cristãos-novos estavam presentes
na expedição de março de 1585, sob o comando de Martim Leitão.
Foram eles: na condição de capitães dos mercadores, Fernão Soares,
que também era senhor de engenho em Pernambuco, e Ambrósio
Fernandes Brandão, nosso velho conhecido, que viria a possuir, ainda
no século XVI, um engenho em São Lourenço, também em
Pernambuco, e outros três na Paraíba, nas primeiras décadas do século
seguinte. Além deles, encontramos ainda Cristóvão Pais d,Altero, grande
amigo de _]oão Nunes Correia, na condição de capitão dos cavalarianos.
E bom lembrar que o grosso da tropa compunha a infantaria e que só
os mais ricos faziam parte da cavalaria.
Esseloão Nunes Correia foi descrito, em processo do Santo Ofício,
quando foi denunciado e julgado por blasfêmia e prática pública da
onzena, como homem “mni poderoso nesta terra e [que] fazia e degfazia
anando aneria e asjnstieas e todos da terrafaziam tndo o ane ele aneria a torto e
atrave's “O .josé Antonio Gonsalves de Mello, examinando os papéis
desse processo, conseguiu obter importantes informações sobre esse
poderoso cristão-novo. Senhores da “nobreza da terra”, como Filipe
Cavalcanti e Cristóvão Lins51, foram nomeados, nas denúncias, como
vítimas das onzenas de _]oão Nunes, que, inclusive, havia chegado a
ameaçar o primeiro de pôr a pregão o seu engenho. Como conclui
Raminelli52, é fácil perceber que homens como ele desestabilizavam a
hegemonia política da elite cristã-velha, pois “fidalgos”, homens da
“governança” e soldados valentes, como Filipe Cavalcanti e Cristóvão
Lins, que haviam participado de inúmeras campanhas militares, dentre
elas as da conquista do Paraíba, sentiam-se usurpados em honra e
prestígio, ambos conquistados através de seus feitos como soldados,
de suas terras e de seus engenhos.
Uma outra informação, extremamente importante, que Gonsalves
de Mello garimpou no processo contra _]oão Nunes no Santo Ofício,
é a de que ele e Francisco Madeira tinham interesses comuns na captura
e venda de escravos índios. Em carta a Nunes, datada de 22 de

49
REGINA CELIA GONÇALVES

dezembro de 1591, anexa ao processo, Madeira sugere que o sócio


recorra ao prestígio que tinha, junto ao Governador-Geral D. Francisco
de Sousa, para obter favores relacionados com o negóciosã. O caso de
_]oão Nunes Correia, com a observação da amplitude de seus negócios
- concessão de créditos ã fazenda real e empréstimos a senhores de
engenho, comércio e produção de açúcar e cativeiro de índios -, revela
o nível de inserção que os cristãos-novos alcançaram na economia e na
sociedade coloniais no primeiro século da ocupação. Nesse caso
específico, podemos perceber a existência de uma verdadeira empresa
comercial na colônia, constituída basicamente em torno das atividades
relacionadas com o açúcar. Enquanto `Ioão Nunes, ora na Bahia, ora
em Pernambuco, gerenciava os negócios como um todo, o irmão
mais novo, Diogo Nunes, foi destacado para cuidar daqueles que
começaram a se instalar na Paraiba, depois de 1585. No entanto, o
verdadeiro “cabeça” da empresa, a serviço do qual os outros dois
trabalhavam, era Henrique Nunes, que, de Lisboa, monitorava a atuação
dos irmãos na colônia e, ao mesmo tempo, cuidava da ramificação
européia dos negócios do açúcar. Os cristãos-novos, que controlavam
a exportação açucareira de Pernambuco, tinham conexões com as
comunidades judaicas de origem portuguesa de Amsterdam e
Hamburgo, que se encarregavam da distribuição do produto na
Europa54. A vinculação empresarial entre os irmãos fica clara quando,
em agosto de 1591, ao saber que o Santo Ofício estava vindo para o
Brasil, Henrique Nunes tratou de mandar uma carta a_]oão, avisando
o do que se passava na corte e mandando que, em seis meses, resolvesse
todos os negócios e deixasse Pernambuco. Recebida em 13 de maio
de 1592, quando ele já estava preso, na Bahia, pelo Santo Ofício, a
carta passou a constar como mais um anexo do processo inquisitorialss.
Quanto ao irmão mais novo, Diogo Nunes Correia, as poucas
notícias que temos, também foram disponibilizadas pelo processo que
sofreu por parte do Santo Ofício, que assim o identifica:
“Diogo Nnnes Correia, eristão -no no, natnral de Castro Daire, solteiro,
43 anos [em 7594], filbo de Mannel Nnnes, mereador e de Lnere'eia
Rodrzgnes, irmão de joão Nnnes Correia, lairador e senbor de nm
engenbo na Paraiba moente e eorrente e de ontro ane esta aeabando, nos
anais tem somente a metade e a ontra metade e' de sen irmão Henriane

50
GUERRA E AÇÚCAR

Nnnes Correia. Dizia e repetia ane dormir earnalmente eom mnlber


solteira on “negra da aldeia” on “negra da terra” não erapeeado, desde
anefossempagas 57. 56
Pela acusação acima, acabou condenado pelo tribunal e, em 4 de
agosto de 1594, participou do auto público em corpo, desbarreteado,
cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão a fazer a
abjuração de levi suspeito na fé. Pela identificação do réu, pode-se
perceber que fazia parte de uma família de mercadores, pois seu pai
também o fora, assim como fica clara, mais uma vez, a sua relação
com Henrique, seu irmão, nos negócios que mantinha na Paraíba. O
engenho moente era o Santo André e, segundo Linssl, foi levantado
entre 1587 e 1588, ãs expensas de João Nunes, que, como já vimos,
era o “testa-de-ferro” dos negócios de Henrique Nunes na colônia.
Esse engenho, ã margem direita do rio Paraíba, na época de sua
construção, estava situado na fronteira da área povoada, tendo sido
fortificado e protegido por uma aldeia de índios Tabajara que foi
transferida para lá com o objetivo de prover a segurança da fábrica. O
mesmo autor informa que o Santo André foi vendido entre julho de
1594 e janeiro de 1595, ou seja, logo após a condenação de Diogo
Nunes pela Inquisição. O outro engenho, então em construção, ainda
não foi identificado. Segundo Mellosg, com raras exceções, como parece
ter sido o caso de Ambrósio Fernandes Brandão, que, de mercador
passou a bem sucedido senhor de engenhos, tendo, inclusive, deixado
três deles de herança, quando de seu falecimento, no início da década
de vinte do século XVII, os cristãos-novos, que eram senhores, parecem
não terem se deixado enraizar nas suas terras e, entre os motivos,
certamente estavam os atropelos causados pela presença do Santo
Ofício na colônia.
Mais um indicativo do poder e da riqueza dos irmãos Nunes
Correia na Paraíba pode ser encontrado, na documentação do Arquivo
Histórico Ultramarino de Portugal, em declaração que se encontra anexa
ã provisão do Governador-Geral do Brasil, D. Francisco de Sousa,
datada de 10 de novembro de 1593, ordenando que o então capitão
da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, levasse em despesa, ao
almoxarife de Pernambuco, a quantia necessária para, durante um ano,
prover o sustento e contentamento dos índios da Paraíba. Essa

51
REGINA CELIA GONÇALVES

declaração do Capitão da Paraiba, datada de um mês depois, em 15


de dezembro de 1593, afirma que a quantia lhe havia sido adiantada
por Diogo Nunes:
“[Reeehi] senío e eorenía mil re'is de Diogno Nnnezpor eonla de Dnarle
Reimão, aimoxarife de Pernaohneo os eais senlo e eorenla milre'is des¶3endi
com hos indios depaz ane na eapilania da Paraz'ha seraem a saher einle
mil re'is eada meAs. Conforme aproeizão do senhor<governadorpela eoai
se eomeeon a aenser de primeiro de janeiro de noaenía e dons, ale o
dinheiro dejniho da mesma era ane são sele mezes anefazem os ditos
senío e eorenía mil re ` ”.59
Enfim, como afirma Horacio de Almeidaóo, no que diz respeito ã
conquista e povoamento da Paraíba, a ação dos homens vindos de
Pernambuco acabou sendo muito mais eficaz que a do Governo
Geral. Conhecedores da terra, habituados com o trato dos índios,
transplantaram-se para a nova capitania, organizaram as lavouras de
cana, montaram engenhos nas varzeas e construíram casas no povoado.
Como ja foi dito, nem todos eram homens ricos como os Nunes
Correia; muito pelo contrario, a Paraíba foi povoada basicamente por
aqueles que fugiam do empobrecimento.
Com relação ã elite que nela se constituiu, alguns autores, como
Gilberto Osórioól, tratando dos senhores de engenho locais,
argumentam que eles não formaram uma “nobreza da terra” própria
da nova capitania e que isso se deveu “`a falla daanela endogamia ane
Gilherío Freyre silna, eom a monoenilnra [alzfnndia'ria e eserae'oerala, na hase da
arisíoeraíizaçeaão dos senhores de engenho de Pernamhneo”. Na verdade, pelo
menos nos primeiros anos da ocupação da varzea do rio Paraiba, as
mesmas famílias que detinham o poder político e econômico nas
capitanias de Itamaracá e Pernambuco, passaram a detê-lo na nova
capitania, a despeito de a mesma ter sido criada como capitania real.
Portanto, não faz sentido falar da existência de uma “nobreza da terra
pernambucana” ou da inexistência dessa nobreza na Paraíba. Eaz sentido
falar de um espaço colonial único, organizado em função dos interesses
daqueles que controlavam a agromanufatura açucareira, cujo território,
do ponto de vista político-administrativo, distribuía-se em três
capitanias: Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, sendo que, em Olinda,

52
GUERRA E AÇÚCAR

estavam sediados os capitais necessários para o seu desenvolvimento.


Ao analisarmos as relações de parentesco entre as famílias que
exerceram o poder político-administrativo e econômico na Paraíba e
nas outras capitanias até a ocupação holandesa, identificamos vinculações
diretas entre elas, através do casamento. No caso específico da Paraíba,
governadores, senhores de engenho, proprietários dos principais ofícios,
em sua grande maioria, estavam ligados, direta ou indiretamente, aos
três principais troncos familiares de Pernambuco, notadamente os
Albuquerque, mas também os Cavalcanti e os Hollandaóz. A nosso
ver, essa “nobreza da terra” pode ser compreendida, pelo menos até
a ocupação holandesa, como um bloco único que, apesar de
divergências familiares pontuais, mantinha a hegemonia na sociedade
colonial nas três capitanias do norte. Tal equilibrio foi completamente
comprometido durante a presença dos holandeses e, principalmente,
após o período da guerra, na fase da restauração. O fracionamento
provocado por diferentes posições adotadas pelas várias famílias, e
até mesmo no interior das famílias por seus diversos membros, durante
as fases de resistência ã invasão, da ocupação propriamente dita e da
restauração, explodiria com a “querela dos engenhos”. A partir daí,
conforme demonstra Evaldo Cabra 163, a tendência da “nobreza da
terra” de Pernambuco foi a de fechar-se ainda mais em torno de si
mesma, reforçando a prática da endogamia, de forma a preservar o
seu poder nos mais diversos níveis da sociedade colonial.
_]oão Fragoso, estudando a formação da elite local no Rio de Janeiro,
na passagem dos quinhentos para os seiscentos, aponta os mecanismos
através dos quais ela se constituiu:
“a eonstitnióeão daanelas fami'lias baseon-se na eombinaçeão de treAs
prdtieas/institnióeães vindas da antiga soeiedade lnsa: a eonanista/gnerras
-prdtiea ane nos tro'pieos se tradnziria em terras e bomens, a “baixos
enstos ”,poraneforam iaJossados daspopnlaóeães indigenas; a administraóeão
real -fenoAmeno ane lbes dava, ale'm do poder em nome Del Rey, ontras
benesses via sistema de mereeAs; [ej o dominio da eãmara - institnióeão ane
lbes den apossibilidade de intervir no dia-a-dia da nova eoloAnia”.64

Parece-nos que sua via de análise, bem como suas conclusões, são
aplicáveis ao caso da Paraiba, pois, nela, a elite local, formada na guerra

53
REGINA CELIA GONÇALVES

da conquista, tornou-se detentora das terras, através da obtenção de


sesmarias e de mão-de-obra - via cativeiro, já que a guerra da conquista
enquadrava-se na categoria de “guerra justa”, ou via missões religiosas
que se instalaram na área. Como conquistadores e, depois, produtores
de açúcar, em um mesmo movimento, lhes foram garantidos, ainda,
os principais cargos e ofícios disponíveis na burocracia local.
Vera Ferlini65 aponta a importância da vinculação aos negócios do
açúcar como uma via de qualificação social dos colonos que migravam
de Portugal. A própria transferência para o Brasil já era um primeiro
passo nesse sentido, no entanto, aqueles que, de alguma forma, se
enquadravam na economia açucareira, obtinham o sucesso com maior
facilidadeóó. O Brasil, segundo a autora, funcionava, na lógica vigente ã
época, tanto para a população portuguesa em geral quanto para as
autoridades, como um purgatório onde se processariam a purificação
e requalificação daqueles que para ele se dirigissem. E esse processo
era possível porque existia o horizonte da riqueza, derivado da
exploração que se fizesse da terra. “Partiapardaprodnçeaão do açenear eaignraia
se forma de enobreeimento, de aseensaNo soeial na eoloAnia”, diz a historiadora,

mesmo que, como já vimos, o título não representasse uma nobreza


real.
Ambrósio Fernandes Brandão, referindo-se, com uma certa ironia,
aos degredados que vieram para a colónia, como parte da política de
arregimentação de colonos adotada pelas autoridades portuguesas, faz
Brandônio apontar para Alviano como esse processo de qualificação
acontecia e como a nobilitação poderia dele decorrer, desde que se
conhecesse, de fato, como as coisas funcionavam nessa verdadeira
“academia” que era o Brasil:
“Hai'eis de saber ane o Brasil e'praçea do mnndo ),' e jnntamente
aeademiapnbliea, onde se aprende eom mnitafaeilidade toda apolz'eia,
bom modo de falar, bonrados termos de eortesia, saber bem negoeiar e
ontros atribntos desta analidade.
) Mas dei'eis de saber ane essespoi'oadores, aneprimeiramente iieram
apoi'oar o Brasil, aponeos lançeos, pela largneza da terra deram em ser
rieos, e eom a rianezaforam largando de si a rnim natnreza, de ane as
neeessidades e pobrezas ane padeeiam no Reino osfaziam nsar. E os
jilbos dos tais,ja' entronizados eom a mesma rianeza ego i'erno da terra,

54
GUERRA E AÇÚCAR

despiram a pele velba, eomo eobra, nsando em tndo de bonradissimos


termos, eom se ea'nntar a isto o baverem vindo depois a este Estado
mnitos bomens nobilz'ssimos efidalgos, os anais easaram nele, e se liaram
emparenteseo eom os da terra, emforma ane se bafeito entre todos nma
mistnra de sangne assaz nobre. E então, eomo neste Brasil eoneorrem de
todas aspartes diversas eondiçeoães de gente a eomereiar, e este eome'reio o
tratam eom os natnrais da terra, ane geralmente são dotados de mnita
babilidade, on por natnreza do elima on do bom ee'n, de ane gozam,
tomam dos estrangeiros tndo o ane aebam bom, de anefazem exeelente
eonservapara a sen tempo nsarem dela”.67

No caso da Paraíba, tais processos tenderam a se repetir, mas,


desde o início, a sociedade que nela se constituiu, embora contasse
com a presença da “nobreza da terra” advinda de Pernambuco,
também contava com alguns elementos que a diferenciavam. O primeiro
diz respeito ao cabedal dos seus povoadores iniciais, pois, se é verdade
que, dentre eles, se encontravam homens ricos como Diogo Nunes
Correia e Duarte Gomes da Silveira, os mesmos constituíam exceção.
Os que predominaram, de fato, foram aqueles, de extratos sociais mais
baixos, que buscavam fugir da “pobreza” nas demais capitanias, onde
a colonização já se estendia por cinqüenta anos e onde a “nobreza da
terra” e os “cristãos-novos” já haviam se instalado, açambarcando as
melhores terras, os melhores ofícios e os melhores negócios. A Paraíba
era, portanto, na década de oitenta do século XVI, a fronteira a ser
conquistada. Terra das oportunidades para os que se dispunham a
enfrentar novos desafios. Dessa forma, atraiu aventureiros e aqueles
que não tinham, ainda, conquistado seu lugar ao sol. Esse foi, por
exemplo, o caso das famílias de colonos vianenses, oriundas das camadas
pobres da sociedade portuguesa, que acompanharam Frutuoso Barbosa
em 1588, quando este assumiu, por decisão régia, o governo da capitania,
substituindo João Tavares.
O segundo elemento que diferenciava, nesse momento, a Paraíba
das demais capitanias do norte, era a presença dos numerosos
contingentes indígenas. Mais que substrato populacional para a garantia
do povoamento, os nativos constituíam, também, a mão-de-obra
necessária para a implementação dessa ocupação, fosse no trabalho de
construção do povoado, dos engenhos e dos fortes, fosse na agricultura.

55
REGINA CELIA GONÇALVES

Essa presença marcante da população indígena no litoral da Paraíba,


desde o rio Goiana até o rio Camaratuba, perdurou durante
praticamente toda a primeira metade do século XVII, incluindo o
período da ocupação holandesa. Tratava-se de uma sociedade em que
a população branca e a indígena interagiram durante um longo tempo,
pois, na Paraíba, ao contrário do que havia acontecido em Pernambuco,
os índios aliados foram, de certa forma, preservados do cativeiro e
funcionaram, durante todo este tempo, como elementos de contenção
do gentio inimigo e, também, do gentio da Guiné, que começou a ser
introduzido na capitania, na medida em que a produção açucareira foi
se desenvolvendo. Ao mesmo tempo, esses índios aliados, formaram,
também, fileiras nas tropas que a Coroa organizou, com a ajuda dos
colonos, para estender as conquistas para o norte - Rio Grande, Ceará,
Maranhão e Pará -, deslocando, cada vez mais, as fronteiras da ocupação.
Da mesma forma que Olinda fora a base logística de onde partiram
os conquistadores da Paraíba, esta o seria para essas novas áreas.
Portanto, ao nos debruçarmos sobre esse período da história da
Paraíba que vai do início da conquista, em 1585, ãs primeiras décadas
da ocupação colonial, podemos estabelecer algumas conclusões.
Em primeiro lugar, parece-nos claro que essa história finca suas
raízes na ocupação e colonização das capitanias de Pernambuco e de
Itamaracá, com destaque para a primeira. Eoram os interesses de
proteção e de expansão da sociedade colonial ali instalada que
determinaram as medidas tomadas pela Coroa e pelos donatários
daquelas capitanias para submeterem os Potiguara, que dominavam o
rio Paraiba e todo o território ao norte, até o Ceará. Dentre tais interesses
predominavam, por um lado, os da agromanufatura açucareira, cujos
senhores, numa conjuntura internacional extremamente favorável,
caracterizada pelo alto preço do açúcar e, do ponto de vista interno,
pelo enfrentamento de dificuldades decorrentes da falta de mão-de
obra, viam, na conquista do Paraíba, a possibilidade de expandir seus
negócios, ao mesmo tempo em que arregimentavam trabalhadores.
Os Potiguara constituíam, ã época, o agrupamento indígena mais
populoso da região. Por outro lado, além dos interesses dos próprios
senhores de engenho, havia ainda a considerar os dos comerciantes
instalados em Olinda, representantes de grupos mercantis sediados na

56
GUERRA E AÇUCAR

Europa, e financiadores da produção açucareira. Todos buscavam a


ampliação de seus negócios. Não é por menos que, entre os
expedicionários das campanhas para a conquista do rio Paraíba, é
possível encontrar representantes de todas essas categorias: senhores
de engenho, mercadores e financistas estabelecidos em Olinda, alguns,
inclusive, ligados por redes clientelares ã casa de Duarte Coelho.
Além disso, neste esforço para derrotar os Potiguara e ocupar o rio
Paraiba, estavam envolvidos, ainda, os interesses próprios daqueles
colonos que se ocupavam diretamente do negócio do cativeiro de
índios. Dentre esses, encontravam-se, também, indivíduos diretamente
vinculados a casa donatarial de Pernambuco. importante destacar
que foi a ação dos apresadores de índios, em suas incursões pelo
território dos Potiguara, que provocou o início da rebelião, ainda nos
anos sessenta do século XVI. Na ocasião, os nativos puderam contar
com o apoio dos franceses, com os quais mantinham contatos antigos
envolvendo a extração do pau-brasil. A partir de então, os Potiguara
passaram a atacar as fazendas instaladas na fronteira da ocupação branca,
principalmente em Itamaracá, o que provocou o virtual abandono da
capitania pela impossibilidade de defesa. Essa situação deflagrou as
ações, orientadas pela Coroa, a partir de meados dos anos setenta,
para derrotá-los.
Para tanto, foi necessária a associação entre as forças do Governo
Geral, representando diretamente os interesses da Coroa, e as dos
donatários de Pernambuco e Itamaracá, sem os quais, do ponto de
vista militar, a empresa não teria sido bem sucedida. A capitania real
da Paraíba foi criada e estabelecida como a fronteira da expansão
desses negócios e dessa área. Foi a lógica da colonização, sustentada no
negócio do açúcar e no tráfico de escravos, que determinou esse esforço
de conquista e, também, a implantação da colonização.
A segunda conclusão que pode ser extraída desse processo é o fato
de que a elite local formada na capitania da Paraiba, também deve ser
compreendida como extensão da “nobreza da terra” de Pernambuco.
Foram, em sua maior parte, os egressos das famílias de senhores já
estabelecidos naquela capitania de donatário, que se instalaram na
fronteira recém-conquistada.

57
REGINA CELIA GONÇALVES

Os descendentes dos grupos vinculados ã família de Duarte Coelho,


tornaram-se sesmeiros e senhores de engenhos e ocuparam a maior
parte dos cargos e ofícios distribuídos pela administração colonial na
Paraiba. Nesse processo de formação da elite local, a participação na
guerra da conquista contra os Potiguara foi fundamental. Através dessa
participação, esses homens puderam reivindicar, ao rei, as honras, mercês
e privilégios com os quais a Coroa produzia súditos fiéis, ao mesmo
tempo em que reproduzia o seu próprio poder.

***

Notas
1 A carta de doação da Capitania de Itamaracá a Pero Lopes de Sousa, por D. João
III, data de 1° de Setembro de 1554, e, o foral, de 6 de outubro de 1534. Os
limites estabelecidos para a capitania foram os seguintes: “e as trinta legnas )
oomessarão no rio ane terra em redondo a ilba de Tamaraea', ao anal rio en borapng nome
- Rio da Santa Crnz, e aoabarão na Bala/a da Trey/ƒão, ane esta' em altnra de seis grans
); e sera' sna [do donatdrio] a dita Ilba de Tamaraea' e toda a maisparte do dito Rio de
Santa Crnz ane m9/ ao norte; e bem assim serão snas anaesaner ontras Ilbas ane bonoerem
atbe dez legnas ao mar nafiontaria [da dita Capitania] ”. l\/Iaximiano Lopes l\/Iachado,
Histo'ria da Prom'neia da Para/gba. v.1 [1912] (João Pessoa: Ed. Universitária/
UFPB, 1977), p. 11-2.
2 Pero Lopes de Sousa participou da armada que foi enviada ao Brasil em 1550,
sob o comando de seu irmão, l\/Iartim Afonso de Sousa, e que tinha, entre
seus objetivos, o reconhecimento do litoral, o apresamento de navios franceses,
a exploração e descobrimento de metais preciosos e a fundação de povoações
litorâneas. Como capitão de uma parte da frota, foi bem sucedido ao expulsar
os franceses de Itamaracá e, em seguida, reconstruiu e fortificou a antiga feitoria
portuguesa que havia sido destruída pelos inimigos. Com a instituição do
sistema de capitanias, recebeu três lotes como recompensa pelos serviços
prestados a Coroa. Foram eles: Santo Amaro (com 10 léguas de costa), Santana
(com 40 léguas) e Itamaracá (com 30 léguas). Nenhuma das três alcançou
desenvolvimento.
3 Em carta de 20 de dezembro de 1546, Duarte Coelho reclama ao rei e pede
providências quanto a situação da Capitania de Itamaracá, onde, segundo ele,
havia a presença de contrab andistas de pau-brasil a carregarem a madeira, com
a anuência dos prepostos dos donatários, a quem chama de incompetentes.

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