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Lê, com atenção, o seguinte excerto d’ Os Maias.

– Falhamos a vida, menino!

– Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela
vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim.». E
nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas
sempre diferente.

Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.

O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram
pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a
panóplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que
naquela primeira penumbra tomava um aspeto mais carregado de residência eclesiástica, com as suas
paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo,
para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.

Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:

– É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida – a
paixão.

– Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!

– E que somos nós? – exclamou Ega. – Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim?
Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão,
não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos,
sem emoção até ao fim...

– Creio que não – disse o Ega. – Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos,
são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...

– Resumo: não vale a pena viver...

– Depende inteiramente do estômago! – atalhou Ega.

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira
da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se
abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a
tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta
placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo
até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter
contrariedades.

Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da
inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra – porque
tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.

Construindo frases bem estruturadas e documentando as tuas afirmações com passagens do texto,
responde ao questionário que segue.

1- Localiza este excerto na estrutura da obra. Justifica a tua resposta.

2- Analisa o simbolismo do espaço físico no quarto parágrafo do texto.

3- «Falhamos a vida, menino!» Explica o que há de fatalista na reação de Carlos a esta constatação de Ega.

4- «Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos […].» Haverá coerência em
Ega entre este ponto de vista e o que ele defende no episódio do Hotel Central? Justifica a tua resposta.

5 - «É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!» Tendo
em conta a conceção da personagem, analisa o tratamento do tempo nesta passagem.

Cenários de resposta
1. Em relação à estrutura externa, este excerto localiza-se no capítulo XVIII d’Os Maias.

Quanto à estrutura trágica, situa-se depois da anagnórise (a revelação de que Carlos e Maria Eduarda são
irmãos) e do desenlace trágico, que ocorrem no capítulo XVII da obra.

Ainda relativamente à estrutura interna, é neste capítulo que Carlos da Maia e João da Ega se reencontram
em Lisboa, depois de Carlos ter estado dez anos ausente, e reencontram outras personagens com quem
conviveram no seu tempo de permanência em Lisboa, o que significa que esta passagem se inscreve na
crónica de costumes (Episódios da Vida Romântica).

Este episódio tem a função de epílogo, visto que constitui a conclusão da história: os dois amigos
avaliam a vida humana como uma fatalidade – não podendo ser alterado o seu destino (‘’Do que ele
principalmente de convencera […] era da inutilidade de todo o esforço.”).

2. Quanto ao simbolismo do Ramalhete, este apresenta-se “frio”, o que nos é sugerido através da
referência à estação do ano “Inverno”, representando esta temperatura, agora, a falta de sentimento no
coração de Carlos, bem como a morte de Afonso que ocorreu naquele lugar (“[...] frio e melancólico de
Inverno.”). A melancolia que o frio adquire é também experimentada por Carlos, simbolizando o seu
estado de espírito agreste.

A falta de luminosidade merece também importância para o simbolismo nesta passagem (“[…]
janelinhas fechadas […]”, “[…] sombrio casarão.”), visto que, sendo a luz um sinal do caminho a seguir,
traduz a falta de objetivos na vida de Carlos, que abandonou todos os seus projetos.
A “ferrugem” das velhas armas revela o seu caráter antigo e de desuso, que, juntamente com os “tons de
ruína” do Ramalhete, simboliza o abandono de Carlos da Maia relativamente a Maria Eduarda (“[…] para
sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.”).

Por fim, a palavra “mudo” relaciona-se tanto com o abandono do Ramalhete, visto já não estar habitado e,
então, já não se ouvirem vozes ou quaisquer movimentos, como também se relaciona com o silêncio no
interior de Carlos, que se vai assumir como romântico, desmanchando-se assim todas as suas ideias e
discursos realistas.

3. Ao concordar com a constatação de Ega, Carlos revela uma reação de concordância com o fatalismo
(“Creio que sim…”). Para além disto, considera que o mundo e os acontecimentos são imutáveis, ou seja,
controlados pelo destino (“[…] falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a
imaginação. […] às vezes melhor, mas sempre diferente.”), o que significa que há uma falta de controlo
humano na vida e a impossibilidade de se explicar o homem dentro dum esquema lógico. Por outras
palavras, esta conceção fatalista da existência significa a descrença do Naturalismo na obra.

4. No episódio do Hotel Central, por um lado, Ega revela-se naturalista e realista (“Ega horrorizado
apertava as mãos na cabeça – quando do outro lado Carlos declarou que o mais intolerável no realismo
eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de uma filosofia alheia […] ”),
combatendo a poesia ultra-romântica defendida por Alencar.

Por outro lado, este excerto apresenta uma atitude claramente romântica de Ega, dando muita
importância à paixão na sua vida (“Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente
daquilo que dá sabor e relevo à vida – a paixão.”).

Concluindo, não há coerência entre os discursos produzidos por Ega nestes dois episódios uma
vez que, enquanto personagem modelada, foi-se autorrevelando ao longo da história, reconhecendo, por
fim, que toda a sua vida foi romântico, deixando-se, assim, guiar pelo coração.

5. Nesta passagem constata-se um contraste entre o tempo real da diegese com o tempo que a personagem
Carlos da Maia vai filtrando no seu interior.

O tempo da história de um ano e quatro meses é assumido interiormente pela personagem com a duração
de “dois anos” e, mesmo, de uma sensação de duração de toda a sua vida.

Carlos sente que foi no Ramalhete que esteve a sua inteira porque foi esse o tempo em que ele e Maria
Eduarda viveram a paixão (“Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à
vida – a paixão.”).

Carlos tem, então, densidade psicológica, daí se ter autorrevelado interiormente, tal como Ega, como
romântico, com a capacidade de no seu interior se transformar a realidade envolvente e, com ela, o
próprio tempo.

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