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03/05/2010

DLCV – FFLCH / USP


FLC0275 – Fonética e Fonologia do Português
Profa: Flaviane R. Fernandes Svartman
1º. Semestre de 2010

AULA 9:
A SÍLABA DO PORTUGUÊS

1. Introdução

1.1. Definição de sílaba


• Descrição fonética (articulatória): mecanismo de ar pulmonar
– cf. Abercrombie,1967; Stetson, 1951
o Contração e relaxamento dos músculos respiratórios
expelem sucessivos pequenos jatos de ar ⇒ cada
contração e cada jato de ar expelido constituem a base
de uma sílaba
 Sílaba ⇒ movimento de força muscular que se Figura 1: Esquema do esforço muscular e da curva da força silábica – cf. Cagliari,
2007, p. 111.
intensifica atingindo um limite máximo, após
o qual ocorre a redução progressiva desta o Na Figura 1:
força o 3 partes
 Parte nuclear (pico ou núcleo - Nu) – ápice (cf.
Câmara Jr., 1969), preenchida obrigatoriamente por
segmento vocálico1

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Em certas línguas, esta posição também pode ser preenchida por um segmento
consonantal, como uma consoante nasal ou líquida.

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 Duas partes periféricas – preenchidas por (1) σ


segmentos consonantais ou por glides / | \
p a r
 Preenchimento das partes periféricas é (Representação baseada em Kahn, 1976)
opcional
 Parte periférica inicial ⇒ ataque (A) – o Divisão da sílaba em constituintes imediatos:
onset (O), aclive (cf. Câmara Jr.)
 Parte periférica final ⇒ coda (Co), (2) σ
/ \
declive (cf. Câmara Jr.) A R
• Perspectiva fonológica: construção perceptual – cf. Mateus et al., / \
2003 Nu Co
o Percebida pelo ouvinte ⇒ propriedades específicas,
(Representação conforme Selkirk, 1982, baseada em Pike & Pike, 1947 e Fudge, 1969)
não simples segmentação fonética dos segmentos
 Língua do “P” – brincadeira infantil na qual o
falante identifica as sílabas das palavras • As duas propostas ⇒ predições diferentes sobre o
o Primeiro constituinte da hierarquia prosódica – relacionamento entre elementos no interior da sílaba
agrupamento de fonemas o Em (1): relacionamento dos elementos é igual e a
 Estrutura interna organizada hierarquicamente sílaba, como um todo, é referida pelas regras
fonológicas
o Em (2): relacionamento mais estreito entre Nu e Co
1.2. Representação da estrutura da sílaba
• 2 propostas de representação o Argumento a favor da representação (2) ⇒ regra de
aspiração do /s/ em espanhol faz referência à rima (cf.
o A um nódulo σ estão ligados diretamente os Harris, 1983):
segmentos:
(3) a. tienes → tiene[h]
b. después → de[h].pué[h]

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c. meses → me.se[h]; *me[h]e[h] Oclusiva + // (p, b, t, d, k, g) prato, braço, trato, drama, cravo, graça

o Contra-argumento ⇒ a regra não precisa referir-se à Fricativa + /l/ (fl) flor, Flamengo.
rima, mas ao limite da sílaba – cf. Nespor & Vogel (1986) Fricativa + // (f, v) fruta, palavra

2. Os constituintes da sílaba
• Ataque (A) o Possibilidades limitadas de formação do ataque
complexo das sílabas em português:
• Rima (R)
o Núcleo (Nu)  2ª posição ⇒ apenas líquidas, /l/ ou //
o Coda (Co)  1ª posição ⇒ apenas por oclusivas ou
• Qualquer categoria, exceto Nu, pode estar vazia na sílaba fricativas
 Das fricativas ⇒ apenas labiodentais
(4) a. A Nu Co | A Nu Co b. A Nu | A Nu Co compõem ataque complexo e /v/ tem, no
p a s t a r p a s a r
geral, distribuição limitada a ataques com //
2.1. O Ataque no interior de palavra
• Tradução do inglês do termo onset o Ataques complexos são:
• Pode ou não estar presente na constituição da sílaba  Menos freqüentes do que ataques simples e
adquiridos tardiamente (final do 2º ano de
• Também pode ser constituído por mais de um segmento ⇒
vida)
ataques complexos
 Alvo de simplificações na fala: próprio →
(5) Grupos de Ataque “próprio”
 Estruturas marcadas em relação aos ataques
Oclusiva + /l/ (pl, bl, tl, kl, gl) planta, blusa, atlas, claro, glorioso simples

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• Ataque simples ⇒ qualquer segmento que não seja uma • Núcleo ⇒ sempre preenchido por uma vogal
vogal plena • Coda ⇒ pode não estar presente em uma sílaba
o Termo emprestado da literatura musical, origina-se do
2.2. A Rima termo latino “cauda”
• Formada pelo Núcleo e pela Coda o Coda em português ⇒ apenas /r/, /l/, /S/, /N/ e os glides
• Termo associado à noção de rima na poesia (semivogais), subconjunto do conjunto de elementos que
podem preencher o ataque
“Ó mar salgado, quanto do teu sal o Uma das características universais da Coda
são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
 Segmentos que podem preencher a Coda também
quantos filhos em vão rezaram! podem preencher o Ataque, mas a recíproca não é
Quantas noivas ficaram por casar verdadeira
para que fosses nosso, ó mar!”
(Poesia extraída de Aguiar, 1995) 3. Segmentos que formam a sílaba em português
• Sílaba em português ⇒ no mínimo, uma vogal no núcleo
2.2.1. Constituição da Rima
• Ataque ⇒ de 0 até 2 segmentos
• Molde silábico da rima:
• Coda ⇒ pode não conter segmento ou ter até 2 segmentos –
(6) ver (6)
V é • Preenchimento dos constituintes da sílaba não é aleatório,
VC ar, ás, alface, anta mas regido pelo princípio da sonoridade:
VG aula, oito, Aires (7) “A sonoridade dos segmentos que constituem a sílaba aumenta a
VCC instante partir do início até o núcleo e diminui desde o núcleo até ao
fim.” (cf. Mateus et al, 2003:1040; ver também Selkirk, 1984 e Mateus &
d’Andrade, 1998).

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3.1. A escala de sonoridade na sílaba


• Noções de aclive, ápice e declive de Câmara Jr.:
(10)
ápice
(8)
ápice

acl. decl.
acl. decl. g  a w
02 3 2
• Ápice ⇒ ocupado por uma vogal
4. Origem histórica: a estrutura silábica em latim e a evolução
o Vogais ⇒ segmentos mais sonoros que as consoantes
para o português
• Aclive e declive ⇒ ocupados por consoantes ou glides
• Sílabas travadas por oclusivas em latim, em português:
o Aclive ⇒ subida do grau de sonoridade até o ápice o Queda ou
o Declive ⇒ declínio do grau de sonoridade o C > glide: lectum > leito; actum > auto
o No Ataque complexo ⇒ diferença entre • Sílaba travada por oclusivas em português: empréstimos do latim
oclusivas/fricativas e as líquidas, em termos de literário a partir do séc. XVI
sonoridade o Porém, silabação diferente da latina – oclusiva ligou-se à
• Escala de sonoridade na sílaba e exemplo dessa escala na silaba seguinte, como fonema crescente, e a sílaba que ela
palavra “grau” travava ficou livre: “a.d(i).vo.ga.do”
(9) Escala de sonoridade • Grupo consonântico diferente de oclusiva ou fricativa + líquida
em português: empréstimos do grego antigo – “ptose”, “psique”,
Vogal > Glide, Líquida > Nasal > Obstruinte “pneumático”
3 2 1 0

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• Variação na divisão silábica latina (lat. vulgar) em palavras com • Padrões de preenchimento silábico encontrados em português:
grupos consonânticos, podendo diferir da divisão portuguesa –
in.teg.rum ~ in.te.grum (11)
• Grupos impuros iniciais em latim são desfeitos pela inserção de V é
“i” em português: “speculum” > “espelho” VC ar
• Queda das desinências de acusativo VCC instante
• Sílabas travadas em nasalação mantidas em partículas como CV cá
preposições: cum > com; in > em
CVC lar
• Em português:
o Predominância de sílabas livres CVCC monstro
 Simples: V CCV tri
 Com uma consoante crescente: CV CCVC três
 Com grupo consonântico crescente de oclusiva + CCVCC transporte
líquida: CCV
VG aula
 Com um instável grupo de oclusiva + oclusiva:
CCV - ptose CVG lei
o Sílabas travadas por CCVG grau
 /r/, /l/, /s/, nasalação ou vogal assilábica CCVGC claustro

5. Os padrões silábicos em português, processos fonológicos que 5.2. Processos fonológicos que fazem referência à sílaba e as
fazem referência à sílaba e as diferenças português brasileiro diferenças PB/PE
(PB) / português europeu (PE)

5.1. Os padrões silábicos em português

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• PB: fenômenos fonológicos ligados ao ritmo e em favor do • PE: em oposição ao PB, supressões de vogais
princípio de sonoridade e da boa formação da sílaba o Violação ao princípio de sonoridade e a princípios de boa
o Inserções segmentais formação silábica
 Prótese: inserção de segmento no início da  Aférese: supressão de segmento no início da
palavra - em PB, inserção de vogal [i] diante de palavra – em PE, supressão de [i] em início de
um grupo consonantal /sC/ inicial palavra seguido de [S] travando sílaba:

(12) sC... → [i]sC: “spa” [ispa] (15) “estar” [tá], “esdrúxula” [dúula], “eslavo” [lávo]

 Epêntese: inserção de segmento no interior de  Síncope: supressão de segmento no interior de


palavra – em PB, “anaptixe”, desfazimento de palavra - em PE, supressão de [i] entre consoantes
encontro consoantal (seqüências de oclusiva, mediais
nasal, bilabial ou fricativa surda e outra
consoante) por intercalação de vogal (16) a. grupos de duas consoantes:
“pequeno” [pkenu], “decifrar” [dsifrá], “seguro” [sgúu],
(13) ...CC...→ CVC: sub[i]produto, sub[i]marino, ab[i]soluto, “meter” [mtér]
ob[i]jeto, sub[i]locação, cap[i]tou, ad[i]mirar, rit[i]mo, b. grupos de mais de 2 consoantes:
compac[i]to, pig[i]meu, am[i]nésia, af[i]ta “telefone” [tlfn], “merecer” [msé], “depenicar” [dpniká],
“despegar” [dpegá], “despregar” [dpegá], desprestigiar
 Paragoge: inserção de segmento no final da [dptiiá]
palavra – em PB, inserção de vogal [i] depois de
consoante final (no geral, oclusivas)  Em PB também ocorre síncope, mas o
processo é diferente do que ocorre em PE
(14) ...C# → CV: VARIG[i], CUT[i], Engov[i]  Síncope em
proparoxítonas ⇒ não fere o

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princípio de sonoridade e as sílabas (20) Aquisição de língua materna em PB: vidro ⇒ vrido
reestruturadas seguem os padrões
silábicos mais freqüentes da língua • Processos fonológicos que fazem referência à sílaba em PB
⇒ no geral, processos de inserção de segmentos vocálicos e
(17) a. ácido → a[s]do ocorrem em favor da boa formação silábica e por motivos
b. xícara → xi[ka] rítmicos
• Processos fonológicos que fazem referência à sílaba em PE
• Síncope em proparoxítonas em PB ⇒ possivelmente para ⇒ no geral, processos de supressão de segmentos vocálicos,
favorecer o instanciamento do ritmo binário (> freqüência de podendo desrespeitar o princípio da sonoridade e os
paroxítonas) princípios de boa formação silábica (formação de sílabas
• Outro processo de apagamento em PB em favor da boa simples, não marcadas) e ocorrem por motivos rítmicos
formação silábica • Conseqüências: instanciamento de padrões rítmicos
o Apócope: supressão de segmento no fim da palavra diferentes nas duas variedades de português
(18) cantar → [knta]
6. Considerações finais
• Em (18) ⇒ simplificação da coda: CVC > CV
6.1. Síntese
• Outros processos em português que fazem referência à sílaba
o Metátese: deslocamento de segmento interno à sílaba • Definição de sílaba em termos fonéticos e caracterização
fonológica
(19) Do latim para o português: capio > caibo • Propostas de representação da sílaba
• Constituintes da sílaba
o Hipértese: transposição de um segmento de uma o Ataque (onset)
sílaba para outra o Rima
 Núcleo

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 Coda Referências bibliográficas


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sonoridade Edinburgh University Press, 1967.
• Padrões silábicos em latim e a evolução para o português AGUIAR, V. (coord.) Poesia fora da estante. Porto Alegre: Projeto
• Processos fonológicos que fazem referência à sílaba e as CPL/PUCRS, 1995.
diferenças PB/PE CAGLIARI, L. C. Elementos de fonética do português brasileiro.
São Paulo: Paulistana, 2007.
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CÂMARA Jr., J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Petrópolis: Vozes, 1969.
Vozes, 1973, p. 43-51. FUDGE, E. Syllables. Journal of Linguistics, n. 5, p. 254-287, 1969.
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MATEUS, M. H. M.; FROTA, S.; VIGÁRIO, M. Aspectos
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CAGLIARI, L. C. Elementos de fonética do português brasileiro. M. H. M. et al. Gramática da Língua Portuguesa, 5ª. edição revista
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