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REVISTA ZUM 16

O spam da terra: distanciamento da representação


Hito Steyerl
Publicado em: 15 de agosto de 2019
Imagens de spam criadas por Giselle Beiguelman
Densos agrupamentos de ondas de rádio deixam nosso planeta a cada segundo. Nossas cartas e
fotos,
comunicações particulares e oficiais, programas de TV e mensagens de texto irradiam da Terra
em anéis, uma arquitetura tectônica dos desejos e medos de nosso tempo.1 Daqui a algumas
centenas de milhares de anos, formas de inteligência extraterrestres poderão examinar,
incredulamente, nossas comunicações sem fio. Imagine, porém, a perplexidade dessas
criaturas ao analisarem a sério esse material. Porque uma enorme porcentagem dessas
imagens enviadas inadvertidamente para o espaço profundo não passa de spam. Qualquer
arqueólogo, perito forense ou historiador – deste ou de outro mundo – verá essas coisas como
nosso legado e nossa imagem, um verdadeiro retrato de nossa época e de nós mesmos. Imagine
uma reconstrução da sociedade humana feita com esses detritos digitais. É provável que ela
pareça um spam de imagem.

O spam de imagem é uma das muitas matérias escuras do mundo digital. O spam procura
evitar sua detecção mediante filtros, ao apresentar sua mensagem como um arquivo de
imagem. Uma enorme quantidade dessas imagens flutua em torno do globo, buscando
desesperadamente a atenção humana.2 São anúncios de produtos farmacêuticos, de réplicas de
objetos, de produtos estéticos, de ações de baixo valor e de diplomas. A julgar pelas imagens
divulgadas por meio de spam, a humanidade consiste em pessoas altamente escolarizadas,
vestidas sumariamente, que ostentam sorrisos felizes com a ajuda de aparelhos ortodônticos.

O spam de imagem é nossa mensagem para o futuro. Em vez de uma cápsula espacial
modernista que mostra uma mulher e um homem em seu exterior – uma família do “homem”
–, o que despachamos hoje para o universo é o spam de imagem que mostra manequins
publicitários aperfeiçoados.3 E é assim que o universo nos verá. Talvez já seja assim que ele nos
vê.

Em termos de simples quantidade, o spam de imagem supera em muito a população humana.


Na verdade, ele formou uma maioria silenciosa. Entretanto, maioria de quê? Quem são as
pessoas que aparecem nesse tipo de publicidade acelerada? E o que suas imagens poderiam
informar a respeito da humanidade contemporânea a  possíveis recipientes extraterrestres?

Da perspectiva do spam de imagem, as pessoas são aperfeiçoáveis ou, como escreveu o filósofo
Hegel, perfectíveis: são potencialmente “impecáveis”, o que nesse contexto significa excitadas,
supermagras, armadas de diplomas universitários à prova de recessão, e sempre pontuais em
seus empregos, graças a seus relógios, réplicas de outros de boa marca. Assim é a família dos
homens e mulheres contemporâneos: um bando de gente que depende de  antidepressivos
falsificados e que utiliza próteses corporais. São o time dos sonhos do hipercapitalismo.
Mas será essa a nossa imagem real? Bem, não. O spam de imagem nos diz muita coisa a
respeito das pessoas “ideais”, mas não mostra pessoas reais – muito pelo contrário. Os modelos
usados nos spams de imagem são réplicas de Photoshop, muito melhoradas para serem
verdade. São um exército de reserva de criaturas digitalmente aprimoradas, semelhantes aos
demônios e anjos menores da especulação mística, pessoas atraentes, dinâmicas e chantagistas
que atuam no êxtase profano do consumo.

O spam de imagem dirige-se a pessoas que não se parecem com aquelas que figuram nos
anúncios: não são magricelas nem têm diplomas à prova de recessão. São aquelas cuja
substância orgânica está longe de ser perfeita de um ponto de vista neoliberal. Pessoas que
talvez abram sua caixa de entrada todos os dias, à espera de um milagre ou apenas de um tênue
sinal, um arco-íris do outro lado das crises e provações permanentes. O spam de imagem
dirige-se à vasta maioria da humanidade, mas não a mostra. Não representa as pessoas que são
consideradas dispensáveis ou supérfluas – da mesma forma que o próprio spam. Ele fala para
elas.

A imagem da humanidade articulada pelo spam de imagem, portanto, nada tem a ver com a
humanidade de fato. Pelo contrário, é uma descrição precisa daquilo que a humanidade na
verdade não é. Trata-se de uma imagem negativa.
IMITAÇÃO E ENCANTAMENTO

Qual o motivo disso? Há um motivo óbvio, conhecido demais para explicá-lo aqui: as imagens
despertam desejos miméticos e fazem com que as pessoas queiram se tornar semelhantes aos
produtos que elas mostram. Segundo essa visão, a hegemonia se infiltra na cultura cotidiana e
espalha seus valores por meio de representações mundanas.4 Assim, o spam de imagem é
interpretado como uma ferramenta para a produção de corpos e, por fim, cria uma cultura
situada entre a bulimia, a overdose de esteroides e a bancarrota pessoal. Essa perspectiva,
proveniente dos estudos culturais mais consagrados, vê o spam de imagem como um
instrumento de persuasão coercitiva e de sedução insidiosa e que conduz a ambos aos prazeres
da capitulação.5

E se o spam de imagem, no entanto, fosse na realidade muito mais do que um instrumento de


doutrinação ideológica e afetiva? E se pessoas reais – as imperfeitas e não excitadas – não
fossem excluídas dos spam publicitários em virtude de suas supostas deficiências, mas
tivessem escolhido abandonar esse tipo de retrato? E se o spam de imagem se tornasse, assim,
um registro de rejeição generalizada, uma rejeição da representação por parte das pessoas?

O que pretendo dizer com isso? Faz algum tempo que venho notando que muitas pessoas
passaram a evitar de forma ativa representações fotográficas ou fílmicas, afastando-se sub-
repticiamente das lentes das câmeras. Sejam zonas onde se proíbe a presença de câmeras, em
condomínios fechados ou boates exclusivas, seja alguém que recusa uma entrevista, sejam
anarquistas gregos destruindo câmeras ou saqueadores destruindo TVs de tela de cristal
líquido, as pessoas começaram a rejeitar constantemente, de maneira ativa ou passiva, ser
monitoradas, registradas, identificadas, fotografadas, escaneadas e gravadas. No quadro de
uma mídia plenamente imersiva, a representação pictórica – que durante muito tempo foi vista
como uma prerrogativa e um privilégio político6 – mais parece uma ameaça.

São muitos os motivos para isso. A presença estonteante da difamação e de concursos em


programas de auditório levou a uma situação em que a TV se tornou um veículo
indissociavelmente ligado à exibição e ridicularização das classes subalternas. Os protagonistas
são violentamente repaginados e submetidos a incontáveis provações, confissões, investigações
e avaliações, todas invasivas. A programação matinal da TV é o equivalente contemporâneo de
uma câmara de tortura – que inclui o prazer culpado dos torturadores, dos espectadores e, em
muitos casos,
também dos próprios torturados.

Além disso, nos meios de comunicação, as pessoas frequentemente são capturadas no ato de
desaparecerem, em situações de risco de vida, de emergência e de perigo extremos, de guerra e
de desastres, ou ainda no fluxo constante de transmissões ao vivo de zonas de conflito em todo
o mundo. Se as pessoas não se acham presas em desastres naturais ou causados pelo homem,
elas parecem desaparecer fisicamente, como deixam implícitos os padrões da beleza anoréxica.
As pessoas são obrigadas a emagrecer ou a encolher ou a diminuir de tamanho. A dieta é,
obviamente, o equivalente metonímico da recessão econômica, que se tornou uma realidade
permanente e causou perdas materiais significativas. Essa recessão combina-se a uma
regressão intelectual que se tornou um dogma em todos os principais veículos da mídia, com
pouquíssimas exceções. Como a inteligência simplesmente não se dissolve por meio da
inanição, o escárnio e o rancor conseguem mantê-la em grande parte distante dos territórios da
representação dos principais meios de comunicação.7

Assim, a zona da representação corporativa é, em grande medida, uma zona de exceção, na


qual parece perigoso entrar: você pode ser ridicularizado, testado, submetido a estresse ou até
mesmo privado de meios de subsistência ou morto. Em vez de representar pessoas, ela
exemplifica o desaparecimento das pessoas: é um desaparecimento gradual. E por que não
estariam as pessoas desaparecendo, em vista dos incontáveis atos de agressão e invasão
perpetrados contra elas nos grandes meios de comunicação, mas também na realidade?8 Quem
seria capaz de resistir a tal ataque sem o desejo de fugir desse território visual de ameaça e
exposição constantes?
Além disso, as redes sociais e os telefones celulares criaram uma zona de vigilância em massa
mútua, que aumenta as onipresentes redes urbanas de controle, como os circuitos fechados de
televisão, os sistemas de GPS por celular e os programas de reconhecimento facial. Devido a
meios de vigilância institucional, agora as pessoas estão também se vigiando rotineiramente,
tirando inúmeras fotografias e publicando-as quase em tempo real. O controle social associado
a essas práticas de representação horizontal passou a gozar de muita influência. Por meio
delas, os empregadores pesquisam a reputação de candidatos a emprego; as redes sociais e a
mídia tornam-se salas de ignomínia e de fofocas maldosas. A hegemonia cultural de cima para
baixo, exercida pela publicidade e pela mídia corporativa, é suplementada por um regime de
autocontrole (mútuo) e autodisciplina visual, mais difícil ainda de deslocar que os regimes de
representação anteriores. A isso se somam alterações substanciais em modos de autoprodução.
A internalização da hegemonia aumenta cada vez mais, juntamente com a pressão no sentido
de conformação e execução, como na pressão para representar e ser representado.

A previsão do artista Andy Warhol de que no futuro todo mundo seria famoso por 15 minutos
já se concretizou faz tempo. Agora, muita gente deseja o contrário: ser invisível, ainda que por
apenas 15 minutos. Mesmo por 15 segundos já seria ótimo. Entramos numa época de paparazzi
em massa, da bisbilhosfera e do voyeurismo exibicionista. Os flashes das máquinas fotográficas
transformam as pessoas em vítimas, em celebridades ou em ambas as coisas. Ao utilizarmos
caixas registradoras, caixas eletrônicos e outros pontos de controle – quando nossos celulares
revelam nossos menores movimentos, e nossas fotos instantâneas são marcadas com
coordenadas de GPS –, acabamos não morrendo de rir, mas representados em pedacinhos.9
FUGA

É por isso que hoje muitas pessoas fogem da representação visual. Seus instintos (e sua
inteligência) lhes dizem que fotografias ou filmagens são perigosos meios de captura – de
tempo, de afeto, de forças produtivas e de subjetividade. Elas podem nos encarcerar ou nos
envergonhar para sempre; podem nos prender em monopólios de hardware e em enigmas de
conversão, e além disso, assim que essas imagens são postas on-line, nunca mais poderão ser
removidas. Você já foi fotografado nu? Parabéns! Você é imortal. Essa imagem sobreviverá a
você e a sua prole, se mostrará mais resistente que a mais bem preservada múmia, e já está
viajando rumo às profundezas do espaço, esperando o momento de saudar os extraterrestres.

O antigo medo da magia das câmeras reencarnou-se, pois, no mundo dos nativos digitais.
Entretanto, nesse ambiente, as câmeras não roubam nossa alma (os nativos digitais
substituíram isso por iPhones), mas levam embora nossa vida. Fazem ativamente com que você
desapareça, encolha, e elas o desnudam, fazem com que você precise desesperadamente de
uma cirurgia ortodôntica. Na verdade, acreditar que as câmeras sejam instrumentos de
representação é um engano; hoje em dia, elas são instrumentos de desaparecimento.10 Quanto
mais as pessoas são representadas, menos delas permanece na realidade.

Voltando ao exemplo do spam de imagem que utilizei antes – ele é uma imagem em negativo
de seu público, mas como? Não é, como pretenderia uma abordagem tradicional de estudos
culturais, porque a ideologia tenta impor uma imitação forçada às pessoas, fazendo-as investir
em sua própria opressão e em sua correção, ao tentar atingir padrões inalcançáveis de
eficiência, atratividade e boa forma física. Não. Vamos simplesmente pressupor que o spam de
imagem é uma imagem negativa de seu público, porque as pessoas estão também se afastando
ativamente desse tipo de representação, deixando para trás apenas bonecos de testes de
acidentes. Com isso, o spam de imagem torna-se um registro involuntário de uma greve sutil,
um abandono por parte das pessoas de representações fotográficas e fílmicas. Trata-se de
documento de um êxodo quase imperceptível de um campo de relações de poder demasiado
extremadas para que se sobreviva a elas sem grande redução e diminuição. Em vez de ser um
documento de dominação, o spam de imagem é o monumento à resistência das pessoas a
serem representadas dessa forma. Elas estão abandonando o quadro dado de representação.
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E CULTURAL

Isso acaba com muitos dogmas a respeito da relação entre representação política e pictórica.
Durante muito tempo, minha geração foi treinada para considerar a representação o lugar
primário de contestação, tanto para a política como para a estética. O lugar da cultura tornou-
se um campo popular de pesquisa em relação à política soft inerente a ambientes cotidianos.
Esperava-se que mudanças no campo da cultura evocassem o campo da política. Supunha-se
que um domínio de representação mais matizado levasse a uma maior igualdade política e
econômica.
Entretanto, aos poucos ficou claro que ambas estavam menos inter-relacionadas do que se
previra, e que a divisão de bens e direitos e a partição dos sentidos não corriam paralelamente.
O conceito da fotografia como uma forma de contrato civil, proposto pela pesquisadora
israelense Ariella Azoulay, proporciona um rico contexto para refletir sobre essas ideias. Se a
fotografia era um contrato civil entre as pessoas que dela participavam, então o abandono atual
da representação é a quebra de um contrato social, que prometera participação, mas produzia
fofoca, vigilância, evidência, narcisismo em série e rebeliões ocasionais.11

Enquanto a representação visual entrou em marcha acelerada e se popularizou graças a


tecnologias digitais, a representação política das pessoas mergulhou numa crise profunda e foi
ofuscada por interesses econômicos. Enquanto todas as minorias possíveis foram reconhecidas
como consumidores em potencial e representadas visualmente (até certo ponto), a participação
das pessoas nos domínios político e econômico tornou-se mais desigual. Por conseguinte, o
contrato social da representação visual contemporânea assemelha-se de alguma forma aos
esquemas financeiros do tipo “pirâmide” do começo do século 21, ou, mais precisamente, a
uma participação num programa televisivo de perguntas e respostas, com consequências
imprevisíveis.

E se algum dia houve um elo entre as duas coisas, ele se tornou muito instável numa era em
que as relações entre os signos e seus referentes foram ainda mais desestabilizadas por
especulação sistêmica e desregulamentação.

Os dois termos não só se aplicam a financiamento e privatização, como também se referem a


padrões flexíveis de informação pública. Os padrões profissionais de produção da verdade no
jornalismo foram sobrepujados pela produção dos meios de comunicação de massa, pela
clonagem de boatos e sua amplificação em fóruns de discussão da Wikipédia. A especulação é
uma operação financeira, como é também um processo que ocorre entre um signo e seu
referente, um aprimoramento súbito e milagroso, que destrói qualquer resíduo de relação
indexical.

A representação visual é de fato importante, mas não exatamente em uníssono com outras
formas de representação. Há um grave desequilíbrio entre elas. Por um lado, existe um número
colossal de imagens sem referentes; por outro, muita gente sem representação. Vamos dizer a
mesma coisa de um modo mais dramático: um número crescente de imagens soltas e
flutuantes corresponde a um número crescente de pessoas sem direitos, invisíveis ou até
desaparecidas e ausentes.12
CRISE DE REPRESENTAÇÃO

Isso cria uma situação muito diferente da maneira como costumávamos ver as imagens: como
representações mais ou menos corretas de alguma coisa ou de alguém em público. Numa época
de pessoas não representáveis e de uma superpopulação de imagens, essa relação foi alterada
de modo irrevogável.

O spam de imagem é um sintoma interessante da situação corrente, pois é uma representação


que permanece, na maior parte do tempo, invisível.
O spam de imagem circula interminavelmente sem jamais ser visto por olhos humanos. É
produzido por máquinas, enviado por robôs e detectado por filtros de spam, que, aos poucos,
estão se tornando tão potentes quanto muros, barreiras e cercas anti-imigração. Assim, as
pessoas que nele aparecem permanecem, em larga medida, invisíveis. São tratadas como
escória digital, e por isso, paradoxalmente, acabam num nível semelhante ao das pessoas
desimportantes a que se dirigem. É nisso que diferem de qualquer outro tipo de bonecos
representativos, que habitam o mundo da visibilidade e da representação de ponta. As criaturas
do spam de imagem são tratadas como dados desprezíveis, avatares dos vigaristas que estão
realmente por trás de sua criação. Se o escritor francês Jean Genet estivesse vivo, teria louvado
os vistosos rufiões, os malandros, as prostitutas e os falsos dentistas do spam de imagem.

Eles também não são uma representação das pessoas, porque, em todo caso, as pessoas não são
uma representação. Eles são um evento, que talvez aconteça algum dia, ou talvez mais tarde,
naquele súbito piscar de um olho que nada cobre.

Por enquanto, porém, talvez as pessoas tenham aprendido isso e aceitado que todo mundo só
pode ser representado visualmente de forma negativa. Esse negativo não pode ser revelado em
circunstância alguma, já que um processo mágico garantirá que tudo o que jamais se verá em
positivo seja um bando de sucedâneos populistas e impostores, bonecos de teste de acidentes
melhorados alegando legitimidade. A imagem das pessoas como uma nação, como uma
cultura, é precisamente isto: um estereótipo comprimido para ganho ideológico. O spam de
imagem é o verdadeiro avatar das pessoas. Uma imagem em negativo sem absolutamente
nenhuma pretensão de originalidade? Uma imagem daquilo que as pessoas não são como a
única possibilidade de representação delas?

E como as pessoas são, cada vez mais, produtoras de imagens – e não seus objetos ou sujeitos
–, talvez estejam também cada vez mais cientes de que elas poderiam ficar famosas se, juntas,
produzissem uma imagem, em vez de serem representadas por uma. Uma imagem, qualquer
uma, é um terreno partilhado de ação e paixão, uma zona de tráfego entre coisas e
intensidades. Como sua produção se massificou, as imagens são hoje, cada vez mais, res 
publicae, coisas públicas. Ou mesmo coisas púbicas, já que as linguagens do spam romanceiam
fabulosamente.13

Isso não significa que quem ou o que está sendo mostrado em imagens não importa. Essa
relação está longe de ser unidimensional. O elenco genérico do spam de imagem não são as
pessoas, e é melhor assim. Em vez disso, os modelos do spam de imagem fazem as vezes das
pessoas como sucedâneos negativos e absorvem o clarão dos holofotes em nome delas. Por um
lado, incorporam todos os vícios e as virtudes (ou, mais precisamente, os vícios como virtudes)
do atual paradigma econômico. Por outro lado, no mais das vezes permanecem invisíveis,
porque praticamente ninguém presta atenção neles de fato.
Quem sabe o que pretendem as pessoas que figuram no spam de imagem, se na verdade
ninguém lhes dá atenção? Sua exibição pública talvez seja apenas um rosto bobo que elas
assumem para ter certeza de que continuaremos a não lhes dar atenção. Talvez transmitam
mensagens importantes, para os extraterrestres, sobre aquelas pessoas que deixaram de ser
importantes para nós, aquelas que foram excluídas de “contratos sociais” desordenados ou
caóticos, ou qualquer forma de participação que não seja nos programas matutinos da TV; isto
é, o spam da Terra, os astros e as estrelas da televisão em circuito fechado e da vigilância aérea
em infravermelho. Ou talvez eles participem temporariamente do reino dos desaparecidos e
invisíveis, constituído por aqueles que, frequentemente, habitam um silêncio envergonhado e
cujos parentes tenham de baixar os olhos a cada dia diante de seus algozes.

As pessoas do spam de imagem são agentes duplos. Habitam dois reinos, o da supervisibilidade
e o da invisibilidade. Talvez seja por isso que sorriem continuamente, mas nada dizem. Sabem
que suas poses congeladas e suas fisionomias evanescentes na verdade proporcionam um
disfarce para que as pessoas desapareçam por algum tempo. Para que, talvez, descansem e
lentamente se reagrupem. “Saiam da tela”, elas parecem sussurrar. “Nós substituiremos vocês.
Que eles nos marquem e nos rotulem nesse meio-tempo. Quanto a vocês, saiam do radar e
façam o que têm de fazer.” Seja isso o que for, eles não nos abandonarão, nunca. E, por causa
disso, merecem nosso amor e nossa admiração. ///

Hito Steyerl, artista visual, escritora e professora na Universidade de Artes de Berlim, é


autora de Art duty free: arte na era da guerra civil planetária (2017).

1. Douglas Philips. “Can Desiree Go On Without a Body?”, em Jussi Parikka e Tony D. Sampson (orgs.). The Spam Book: On Viruses, Porn, and Other
Anomalies from the Dark Side of Digital Culture. Creskill, NJ: Hampton Press, 2009, pp. 199-200.
2. O número de e-mails de spam enviados por dia é de aproximadamente 250 bilhões (dados de 2010). O volume total de spam de imagem tem
variado bastante ao longo dos anos, mas em 2007 alcançava 35% de todas as mensagens de spam e ocupava cerca de 70% do total de dados. “O
spam de imagem poderia levar a internet a uma paralisação”, London Evening Standard, 1/10/2007. Disponível em:
https://www.standard.co.uk/news/image-spam-could-bring-the-internet-to-a-standstill-7086581.html.
3. Isso é semelhante às placas douradas nas cápsulas espaciais Pioneer, lançadas em 1972 e 1973, que mostravam uma mulher branca e um homem
branco, com a genitália da mulher omitida. Por causa das críticas feitas à relativa nudez das figuras humanas, as placas posteriores mostraram
apenas a silhueta das pessoas. Serão necessários ao menos 40 mil anos para que essas mensagens possam ser vistas.
4. Essa é uma versão pouco rigorosa de uma perspectiva gramsciana clássica dos primeiros estudos culturais.
5. Ou, mais provável, ele possa ser analisado como parcialmente autodestrutivo e contraditório.
6. Discorri sobre a promessa fracassada de representação cultural em “The Institution of Critique”, em Alex Alberro e Blake Stimson (orgs.).
Institutional Critique: An Anthology of Artists’ Writings. Cambridge, MA: MIT Press, 2009, pp. 486-87.
7. Isso é válido de forma desigual em todo o mundo.
8. Na década de 1990, a população da antiga Iugoslávia dizia que o slogan antifascista da Segunda Guerra Mundial tinha sido invertido. “Morte ao
fascismo, liberdade para o povo” tinha sido transformado por nacionalistas de todos os lados em “Morra o povo, liberdade para o fascismo”.
9. Ver: Brian Massumi. Parables for the Virtual. Durham, NC: Duke University Press, 2002.
10. Lembro-me de meu ex-professor Wim Wenders discorrendo sobre fotografar coisas que hão de desaparecer. O mais provável é que as coisas
desapareçam se forem fotografadas (ou mesmo por causa disso).
11. Não posso tratar disso de maneira apropriada aqui. Talvez seja necessário refletir sobre os recentes distúrbios provocados pelo Facebook, da
perspectiva de ruptura de intoleráveis contratos sociais, e não de apoio e defesa deles.
12. A era da revolução digital corresponde à do desaparecimento e do assassinato forçados em massa na antiga Iugoslávia, em Ruanda, na Chechênia,
na Argélia, no Iraque, na Turquia e em partes da Guatemala, para citar
apenas alguns lugares. Pesquisadores concordam que na República Democrática do Congo, onde a guerra causou a morte de cerca de 2 milhões de
pessoas entre 1998 e 2008, a procura de matérias-primas para as indústrias de tecnologia da informação (como o coltan) teve um papel direto nos
conflitos nesses países. Calcula-se em 18 mil o número de imigrantes que perderam a vida tentando chegar à Europa, a partir de 1990.
13. Isso vem da capa de um DVD pirata do filme Na linha de fogo (1993), onde se lê, claramente, que a execução pública do disco é rigorosamente
proibida.
(Texto publicado originalmente como “The spam of the eart: withdrawal from representation”.
e-flux, n. 32. fev. 2012. Cortesia de Andrew Kreps Gallery. Tradução do inglês de Donaldson M.
Garschagen.)
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