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10 Anos GPDES Nuno Santos ........................................................................................................

6
Apresentação Coordenadores do GPDES................................................................................. 7
Parte I CAMPOS DE PÚBLICAS: TRANSFORMAÇÕES E DESAFIOS................................................ 10
INFODEMIA: EPIDEMIA BRASILEIRA E EM TEMPOS DE COROVAVÍRUS Alan Meira, Matheus
Barbosa e Lalita Kraus ............................................................................................................................. 11
DIGITAIS A TODO CUSTO: AS CONTRADIÇÕES E RISCOS DO SISTEMA ON-LINE Fabíola
Neves e Rafaela Barbosa ..................................................................................................................... 18
COMPREENDER O PASSADO PARA ENFRENTAR O PRESENTE E O FUTURO: NOSSOS
CORPOS DESESTABILIZAM AS ESTRUTURAS IMPOSTAS Joyce Trindade .................................... 25
O CONSELHO DA JUVENTUDE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO COMO FERRAMENTA NO
AUXÍLIO DE UMA GESTÃO PARTICIPATIVA E SEUS DESAFIOS Ully Sant’ Anna Ribeiro ............ 28
EDUCAÇÃO POLÍTICA Cecília Caiado, Karen Brêda, Lucas Lopes, Maria Julia de Oliveira
e Thayane Gondim ................................................................................................................................. 35
GESTÃO E FINANCIAMENTO DO SUS E A PANDEMIA DO COVID-19: ENTRE VELHOS E NOVOS
DESAFIOS Marcos Vinícius Rezende da Silva ................................................................................... 41
COVID-19: REFLEXÃO SOBRE O IMPACTO DO TRABALHO INFANTIL E A EVASÃO ESCOLAR
Mayara Pinheiro ....................................................................................................................................... 48
PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL Lorena Alves Nogueira Costa ......... 50
DO DESALENTO À BUSCA POR NOVOS CAMINHOS Deborah Werner e Clarice Rocha ...... 53
VIDA PÚBLICA: OS TEMAS REPÚBLICANOS NOS ESPAÇOS ESCOLARES E DE ENSINO
MAREENSES Adriano de Carvalho Mendes e Caio Matheus da Graça Santos .................... 66
SOBRE NOSSOS TEMPOS: HOMENAGEM A CARLOS LESSA Clarice Rocha e Lucas Dipp ..... 76
RENDA BÁSICA E INCLUSÃO FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISEMaria Fernanda Fontenele
....................................................................................................................................................................... 78
PRECISAMOS SER SMART? BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A AGENDA NACIONAL PARA
CIDADES INTELIGENTES Alexandre Henrique N. da S. Almeida e Tainá Farias da Silva
Maciel .......................................................................................................................................................... 87
RELAÇÃO ENTRE AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DOS EUA COM O BRASIL E AS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS Carla Januário, Gabriela Duarte e Vanessa Mello ...................................... 94
Parte II CAMPOS DE PÚBLICAS E IMPACTO SOCIAL: 10 ANOS DO GPDES.................................... 101
DIVERSIDADE NA UNIDADE: OS 10 ANOS DO GPDES E O CAMPO DE PÚBLICAS Breno
Seródio ...................................................................................................................................................... 102
AGÊNCIA IPPUR: HISTÓRIAS E DESAFIOS Equipe Agência IPPUR.. ............................................ 109
A DESCONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA SOCIAL E DA CIDADANIA URBANA NO BRASIL
Maria Fernanda Fontenele, Laura Fernandes Oliveira Meres, Yeda Assunção e Ebraim
Souza.......................................................................................................................................................... 117
POLÍTICAS SOCIAIS E PLENO EMPREGO: A TEORIA MODERNA COMO ALTERNATIVA Clarice
Rocha e Lucas Dipp .............................................................................................................................. 121
O DESMONTE DAS POLÍTICAS DE PLANEJAMENTO NO BRASIL Clarice Rocha ....................... 124
OS “DESASTRES DA MINERAÇÃO” NO BRASIL Carla Beatriz Januario, Clarice Rocha, Suyá
Quintslr e Deborah Werner .................................................................................................................. 126
SAÚDE MENTAL NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO Bruna M. M. Fagundes.................................... 130
MINERAÇÃO E TERRITÓRIOS EM TEMPOS DE COVID-19 Beatriz Gomes, Daiane Sousa, Maria
Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro ......................................................................................... 132
O SEGREDO SOBRE O GASTO PÚBLICO QUE A PANDEMIA REVELOU AO MUNDO Beatriz
Gomes, Daiane Sousa, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro ................................ 135
A RECONSTRUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO Maria
Fernanda Fontenele .............................................................................................................................. 139
ATUALIZAÇÃO PROFISSIONAL DE SERVIDORES PÚBLICOS NA ÁREA DA SEGURIDADE SOCIAL
Rodolfo Leonardo Nunes ..................................................................................................................... 141
EPIDEMIA E ORDEM PÚBLICA – A CIDADE DO RIO DE JANEIRO NO SÉCULO XIX Beatriz
Gomes de Souza, Daiane M Sousa Santos, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro
..................................................................................................................................................................... 143
6

10 Anos GPDES
Por Nuno dos Santos1

No mar repousam as tuas cores,


espelho do sol,
brilho da juventude,
aurora-polaris.
Brasil,
uma canção de Alcyr,
aquarela de Ary,
e nação de Aldir.
Muitos são os versos e declarações que tu recebestes,
espelho esmeralda,
Fruto de vários corações, o futuro é a sua ambição. mas nada se compara ao amor que a filha de
Minerva tem por ti!

Momentos difíceis passarão


perante a certeza da tua determinação (isso não é ilusão!),
brilhante, fogo sagrado inextinguível, ilumina nossos caminhos, como uma benção.
Nestas dez primaveras
que mais parecem um verão,
teu intenso calor despertou corações, antes gélidos,
que agora encontram em ti a esperança da renovação

1
Egresso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ) e mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PPG-PUR/IPPUR)
7

Apresentação
A comemoração dos 10 anos da Graduação em Gestão Pública para o
Desenvolvimento Econômico e Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(GPDES/UFRJ), apresenta-se como um ato de resistência diante do atual contexto de disputas
sobre a importância da Universidade Pública, do valor da ciência e de diversas instituições
coletivamente organizadas, bem como do papel do Estado em prol do interesse coletivo.

Este livro, como parte das celebrações da primeira década de GPDES contribui para
resgatarmos a trajetória do curso e relembrarmos o propósito de formarmos gestores e
servidores públicos preparados para lidar com os desafios na construção do bem-estar
comum e comprometidos com um projeto societário inclusivo e emancipatório.

Na esteira da implementação da agenda neoliberal no Brasil nas últimas décadas do


século XX e da crise de legitimidade da gestão pública, assistimos à proliferação de cursos de
Administração de Empresas, restringindo-se a administração pública a uma subárea deste
campo, entendido como prioritário.

Tal trajetória foi revertida no início do século XXI, a partir da intensificação do debate
teórico e político sobre a relação entre Estado e sociedade e de processos que possibilitaram
a retomada do protagonismo estatal, da burocracia pública e dos investimentos em serviços
públicos - o que demandaria, em tese, profissionais especializados em gestão pública.

A necessidade de formação de pessoal especializado para atuar na gestão pública,


todavia, não poderia ter sido atendida sem a implementação do Programa de Apoio a Planos
de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), política que possibilitou a
proposição de novos cursos e abordagens nos diversos campos do conhecimento e em
distintas porções do território nacional. A partir da implementação do Reuni, em 2007, pelo
Governo Federal, diversos cursos, do que viria a se constituir como “Campo de Públicas”,
foram criados nas principais universidades públicas do país.
8

A partir deste momento, a Administração Pública e a Gestão Pública deixam de ser


compreendidas como uma subárea da Administração de Empresas e passam a designar uma
área interdisciplinar que compreende diferentes saberes – com destaque para as Ciências
Sociais Aplicadas (Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia, Planejamento
Urbano e Regional e Serviço Social) e Ciências Humanas (História, Antropologia,
Comunicação, Sociologia, Ciência Política e Geografia Humana) – de modo a primar pelo
ethos republicano e democrático, a partir de uma visão interdisciplinar como caminho para a
construção do conhecimento.

Em 2010, mais um passo importante foi dado para a consolidação do campo com a
aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de graduação em
Administração Pública no Brasil pelo Conselho Nacional de Educação, reconhecendo a
singularidade e a identidade acadêmica destes cursos.

Foi neste contexto e com este espírito que a Universidade Federal do Rio de Janeiro
aprovou, em 2009, a criação da graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento
Econômico e Social, recebendo sua primeira turma em 2010. Desde então, o curso passou
por mudanças curriculares e institucionais, fruto do processo de amadurecimento de um
campo em consolidação. Uma destas mudanças envolveu a alteração do projeto, inicialmente
multiunidade, passando a integrar o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
(IPPUR) em 2021. O IPPUR passaria então a responder acadêmica, pedagógica e
administrativamente por sua condução e gestão.

A segunda mudança que merece destaque é o processo de amadurecimento de seu


currículo. Desde a proposta aprovada em 2009, a grade curricular passou por duas mudanças
que refletem os debates do Campo de Públicas e o diálogo travado entre docentes, discentes
e técnicos administrativos.

Nestes 10 anos de história, o curso contribuiu com a consolidação do Campo de


Públicas, tornou-se mais conhecido tanto pelos alunos que concluem o ensino médio e
9

buscam uma vaga na Universidade, quanto pelos órgãos públicos, o que se reflete na inserção
de inúmeros alunos e egressos do GPDES na vida pública do país.

O livro é composto por duas partes. A primeira parte, intitulada “Campo de Públicas:
transformações e desafio”, traz artigos redigidos pelos discentes do GPDES e discute temas
diversos do campo de públicas. A segunda parte do livro, intitulada “Campo de Públicas e
Impacto Social: 10 anos do GPDES”, apresentam resenhas e memórias dos debates realizados
no IPPUR e vinculados às atividades de ensino, pesquisa e extensão. A diversidade dos temas
tratados revela a qualidade, a autonomia e a visão crítica dos graduandos de GPDES e
confirma a importância do projeto iniciado há uma década!

Coordenadores do GPDES
10

Parte I

CAMPOS DE PÚBLICAS: TRANSFORMAÇÕES E DESAFIOS


11

INFODEMIA: EPIDEMIA BRASILEIRA E EM


TEMPOS DE COROVAVÍRUS
Por Alan Meira2, Matheus Barbosa3 e Lalita Kraus4

O presente texto é formulado a partir da pesquisa intitulada: “Whatsapp, opinião e políticas


públicas”, desenvolvida atualmente no LabEspaço, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em tempos de pandemia causada pelo
Covid-19, não há recuo da epidemia de fakenews. Acompanhamos 50 grupos de direita e pró-
Bolsonaro com o intuito de compreender a gênese, a natureza e o impacto de sua produção
discursiva. Compartilham-se nos grupos, diariamente, mensagens e mídias, podendo chegar a 1000
mensagens por dia, sobretudo em ocorrência de fatos políticos relevantes, como no caso da
pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Ao mesmo tempo, novos grupos são constantemente
criados, tecendo uma rede hiperconectada.

Sabemos que a informação é um dos pilares fundamentais de qualquer sistema


democrático, sendo determinante para a formação do sujeito enquanto ser político. Ao mesmo
tempo, a informação possibilita e determina a formação da opinião pública. Nesse sentido, o
Whatsapp se tornou um espaço importante de troca de informações de qualquer natureza e de
consolidação de opiniões. Nos grupos pró-Bolsonaro, há produção e compartilhamento de discursos
que consolidam posições misóginas, racistas e homofóbicas, assim como teorias conspiratórias que
apresentam o Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) como salvador da pátria, contra as ideologias
inimigas comunistas, esquerdistas e petistas. Mas como esses grupos interpretam e reagem aos
acontecimentos epidêmicos do COVID-19?

Em um momento trágico de pandemia, a informação é fundamental para conscientizar a


população, incentivar ações e medidas tanto individuais quanto coletivas de prevenção, bem como
atitudes solidárias. Trata-se de um momento em que é necessário evitar a propensão a atitudes
individualistas para pensar o bem comum, mas, infelizmente, a trágica pandemia do COVID-19 gerou

2
Graduado em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
3
Graduando em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ
4
Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ
12

uma perigosa “infodemia”, a proliferação do vírus da desinformação. Esse vírus é mortal quando,
como no caso do Irã, leva dezenas de pessoas a beber álcool adulterado por acreditar em boatos que
apresentavam curas para o coronavírus5 e, em geral, pode ser mortal quando desorienta a ação
individual e coletiva.

No período de 04 a 23 de março de 2020, um dos principais assuntos comentados foi a


responsabilização da China pela disseminação do vírus (Figura 1). Assim, foi disseminada a teoria do
“vírus chinês”, iniciada pelo então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reproduzida pela
família Bolsonaro e compartilhada nos grupos de Whatsapp. Desta forma, a pandemia é
instrumentalizada politicamente, de maneira oportunista, para atacar o grande inimigo: o
comunismo! Isso é feito reproduzindo teorias conspiratórias que interpretam o vírus como uma nova
arma biológica de desestabilização global (Figura 2), pois seria “muita coincidência esse vírus ter
vindo de uma cidade onde tem um laboratório que trabalha com armas biológicas” (conversa do
Whatsapp). Através disso, “a China coloca o mundo inteiro de joelhos e acaba de ganhar a 3ª guerra
mundial sem dar um tiro com seu golpe de mestre sujo comunista: Corona Vírus!” (conversa do
Whatsapp).

Confirma-se a tese segundo a qual os movimentos populistas de direita sempre usaram, ao


longo da história, teorias conspiratórias para instaurar o medo, ganhar o consenso e se
autopromoverem como alternativa política. Mas onde fica, diante do incidente diplomático
provocado em relação à China, o interesse pela saúde pública, sobretudo considerando que o Brasil
depende fortemente de importações de insumos farmacêuticos para a produção de medicamentos
e que a China é o principal exportador?
13

O presidente Bolsonaro, em muitas ocasiões, caracterizou o atual momento como sendo


tomado pela “histeria”, como ressalta em entrevista à Rádio Tupi (16 de março): "Esse vírus trouxe
uma certa histeria (...) A vida continua, não tem que ter histeria”. Em discurso dado no dia 22 de
março, quando só na Itália o vírus já tinha matado mais de 5000 pessoas, o Presidente afirma:
“Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia
nessa questão do coronavírus”. Por isso, não é surpreendente que, nos grupos apoiadores do
Presidente, apareçam inúmeras mensagens que ridicularizam a seriedade da pandemia (Figura 3).

Figura 3
A total ignorância ou desconsideração dos fatos, como as mortes e a superlotação dos
hospitais europeus, é alimentada pela disseminação e viralização de mensagens que negam a
importância de medidas preventivas como o isolamento social, conforme mostrado na transcrição
do seguinte áudio: “tem que pegar esse vírus aí e viver com ele, algumas pessoas vão morrer outras
pessoas vão viver e a maioria 99% vai viver; agora quem já tá lá em estado falimentar realmente vão
dizer que morreu de coronavírus, morreu porque tinha que morrer mesmo. “Galera vamo parar com
isso, vamo parar com esse mimimi (...) não aguento mais essa palhaçada de ficar em casa” (Áudio
grupo Whatsapp).

No dia 25 de março, apesar dos incrementos exponenciais dos contágios e das medidas
recomendadas pelos organismos internacionais (Organização Mundial da Saúde e Organização das
Nações Unidas), em pronunciamento dado em rede nacional, o Presidente negou a importância da
quarentena e do fechamento do comércio, culpabilizando a mídia por espalhar o medo. No final, ele
insiste que o vírus seria “apenas uma gripezinha ou resfriadinho” e, se o vírus é perigoso apenas para
as pessoas de grupos de risco (idosos e pessoas com patologias), “por que fechar as escolas?”. Após
o pronunciamento, os grupos bolsonaristas começaram a comentar, apoiar e compactuar com esse
posicionamento de forma histérica (e, nesse caso, podemos sim falar em histeria!). Os fatos,
portanto, não importam mais, as recomendações do mundo científico se tornam irrelevantes. É o
reino da pós-verdade no qual o objetivo e o racional perdem peso diante do emocional ou de crenças
pessoais.

É importante ressaltar que boatos no Whatsapp tiveram efeitos devastadores em muitos


países, provocando motins, linchamentos e mortes porque são capazes de desinformar, atiçar os
instintos mais primitivos e colocar em risco a vida humana5. Em 2018, no México, um homem foi
queimado vivo devido a um boato relativo ao envolvimento num caso de estupro6.

5
Shakuntala Banaji et al. WhatsApp Vigilantes: An exploration of citizen reception and circulation of WhatsApp
misinformation linked to mob violence in India. Department of Media and Communications, London School of Economics.
Disponível em: https://blogs.lse.ac.uk/medialse/2019/11/11/whatsapp-vigilantes-an-exploration-of-citizen-reception-
and-circulation-of-whatsapp-misinformation-linked-to-mob-violence-in-india/
6
https://www.bbc.com/news/world-latin-america-46145986
No mesmo ano, na Índia, um boato parecido provocou o linchamento e a morte de 31
pessoas7. Qual poderia ser o efeito provocado por rotular as medidas de enfrentamento do COVID-
19 como resultado de histeria e do “mimimi”?8

Além do viés conspiratório e do negacionismo de fatos, o fenômeno da desinformação se


alimenta de mentiras. Essas são um poderoso instrumento político porque surgem sempre com uma
finalidade específica e têm o poder de gerar efeitos reais. Muitos boatos sobre possíveis curas e
formas de prevenção do coronavírus circularam nos grupos, como esse áudio mostra em relação ao
uso da hidroxicloroquina como possível tratamento: “Procede guerreiro (..) eu trabalho na marinha
americana, quem estava infectado, quem queria ser cobaia para testar (...) e testaram e a pessoa
ficou boa em 72 horas então é um milagre de deus, meu irmão. A empresa Bayer que é americana,
tem aí no Rio de Janeiro né, já foi autorizada a produzir esse medicamento, essa droga para distribuir
(...) a ordem do presidente é distribuir para os países aliados [com o] Brasil, graças a Deus, é um país
aliado dos Estados Unidos, graças ao Bolsonaro, porque o Lula tinha se afastado do governo
americano, essa é a nossa vantagem. Que Deus seja louvado, toda honra e glória para o nosso
senhor”. Esse áudio condiz com as declarações públicas falaciosas do Presidente Bolsonaro e do
Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (2017-2021). Na verdade, a hidroxicloroquina e a
cloroquina estão ainda em fase de teste, mas, mesmo assim, essa informação falsa gerou pânico e
uma corrida às farmácias, até mesmo por quem não apresentava nenhum sintoma da doença 9. Isso
levou ao fim do estoque necessário para os pacientes que tomam o medicamento de forma contínua
para outras graves patologias como o Lúpus e Artrite.

O fenômeno da “infodemia” é causado, agravado e incentivado por um conjunto de


elementos que caracterizam a dinâmica comunicacional no Whatsapp.

Os usuários podem ser descritos como pessoas comuns que, por serem parte de grupos que
apresentam afinidade ideológica e se organizam em torno de um sentido comum, sentem-se
membros de uma “comunidade”, de uma família virtual10. Isso cria uma sensação de

7
https://www.news18.com/news/immersive/death-by-whatsapp.html
8
Quando da publicação do livro, o Brasil já alcança mais de 3 mil mortes diárias e ultrapassa 310 mil mortes desde o início
da pandemia [N.E.]
9
Quando da publicação do livro, os referidos medicamentos já se comprovaram ineficazes como tratamento para a
Sars-CoV-2.
10
Cesarino, L. Populismo digital: roteiro inicial para um conceito, a partir de um estudo de caso da campanha eleitoral de
2018, 2018. Disponível em:
empoderamento. Por isso, muitas vezes aquilo que circula nos grupos é encarado com mais
confiança, incluindo as inúmeras fake news, e compartilhado de forma viral na onda da emoção. Cria-
se uma espécie de corrente de compartilhamento que é movida por emoções atiçadas pela natureza
provocatória de muitos dos conteúdos, como por exemplo o ódio ao PT ou a qualquer potencial
“inimigo do povo brasileiro”, assim como é comumente definido nos grupos.

Além disso, a naturalização do uso das mídias sociais mascara um sistema invisível de
manipulação. Encontramos os mesmos administradores em muitos grupos e isso pode ser resultado
de uma estratégia política, ao invés de um processo de construção espontânea de uma esfera pública.
Porém, os usuários acham que o grupo é autêntico e espontâneo, ignorando a existência de uma
estrutura superior, invisível, que prepara e direciona determinado conteúdo. Assim, no Whatsapp, é
praticada uma estratégia de distribuição de mensagens microdirecionada e profundamente
assimétrica, já que é ignorada pela maioria. Dessa forma, a digitalização do populismo de direita
potencializa a sua capacidade de influência, direcionando o conteúdo e permitindo que o mecanismo
seja replicado por qualquer pessoa da rede, como um verdadeiro exército de propaganda, enquanto
o populismo tradicional contava principalmente com o carisma do líder.

Em muitos casos, as notícias não possuem a fonte, dificultando a checagem de sua


veracidade. Em outros casos, notícias sensacionalistas oriundas de blogs ou jornais de direita, como
o Jornal da Cidade, provêm de plataformas que possuem um modelo de negócio baseado na
propaganda e precisam comercializar a atenção dos usuários para expô-los à propaganda e gerar um
maior lucro11. A melhor forma de atrair audiência é através de conteúdos que atiçam emoções
extremas como a raiva, o medo e o ódio. Assim opera o capitalismo das emoções, incentivando a
produção e a divulgação de conteúdos sensacionalistas, sem nenhum comprometimento jornalístico
com os fatos.

Se, por um lado, assistimos ao show de desinformação, por outro, estão sendo tomadas
medidas que comprometem o acesso à informação por parte da população. Desde a sua eleição, o
atual governo age de forma opaca e não transparente e, no dia 23 de março de 2020, aproveitando-
se da pandemia, aprovou a medida provisória n° 928, que ameaça a Lei de Acesso à Informação,

https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_
de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_
11
https://theintercept.com/2019/11/19/fake-news-google-blogueiros-antipetistas/
suspendendo os prazos máximos para respostas às consultas. Ou seja, o estado de calamidade
pública abre um precedente perigoso que tem a transparência e a informação como principal vítima.
Diante desse grave cenário, como se defender da “infodemia” em tempos de COVID-19? Eis a
questão.
18

DIGITAIS A TODO CUSTO: AS CONTRADIÇÕES


E RISCOS DO SISTEMA ON-LINE
Por Fabíola Neves12 e Rafaela Barbosa13

Desde o processo eleitoral de 2019, temos visto o elemento técnico assumir certa
centralidade nos discursos da elaboração de novas políticas públicas e no presente contexto, o
caráter técnico está diretamente associado à capacidade de coletar, filtrar e analisar dados em
grande quantidade através de dispositivos eletrônicos. Assim, o que aqui queremos apresentar é uma
breve reflexão sobre o modo como a coleta e o uso de dados tem aparecido dentro do
desenvolvimento de políticas públicas de controle da pandemia do COVID-19. Para tal, levamos em
consideração interesses do mercado, dos governos estaduais e federal e a contribuição, não
consentida, da população para desenvolver a discussão.

A partir do arsenal tecnológico disponível para o combate mais efetivo da pandemia do


COVID-19, verificamos que há um leque muito amplo e atraente de possibilidades adotadas a partir
da utilização de planos tecnológicos, que podem ser exemplificados desde a telemedicina para
diagnósticos utilizada pelo SUS à previsão e ao monitoramento de risco de contágio. Através da
utilização de grande quantidade de dados, é possível idealizar uma gestão pública inteligente, porém,
no que diz respeito às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), existem sempre muitos
interesses em jogo.

No trabalho de controle da pandemia via dados, mais da metade dos Estados Brasileiros -
14 dos 27 - aderiram ao uso de ferramentas de geolocalização criadas pelas operadoras de telefonia
e/ou por startups de tecnologia como alternativa para a gestão da crise. A geolocalização está sendo
realizada através de uma ferramenta muito poderosa e cheia de possibilidades que está nas mãos de
bilhões de pessoas ao redor do mundo, os smartphones. Segundo estudos publicados pela FGV,
considerando a possibilidade do uso de mais de um celular por habitante, são mais de 220 milhões
em uso no Brasil, porém somente cerca de 92% da população está conectada. O smartphone se
destaca por sua capacidade de monitoramento, localização e conexão remota com diversos
aplicativos instantaneamente, possibilitando a coleta de milhares de dados pessoais. No que diz

12
Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ
13
Graduando de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ
19

respeito ao setor público, o discurso vigente é o de que acessar dados significaria melhor conhecer
os cidadãos e, consequentemente, produzir políticas públicas mais assertivas. Dados fornecidos
consensualmente, ou roubados, acerca de nossos deslocamentos na cidade, comportamentos de
compra nos mercados e interesses de aprendizagem, poderiam ser usados pelas prefeituras para
ofertar mais cursos em áreas nas quais mais pessoas se interessam, por exemplo, como também
servem para identificar protestos e bloquear as vias antes que os manifestantes possam reivindicar
qualquer questão. A pergunta inicial que aqui nos cabe é, você sabia disto?

Talvez não. Mas, seu “não conhecimento” não o torna imune. Governos de diversos países
estão adotando medidas tecnológicas baseadas em dados no trabalho de pandemia, no entanto,
parece não haver qualquer tipo de excitação ou muita preocupação em como tal uso se dá em termos
de seguridade ao direito à privacidade. No Brasil, quatro empresas de telecomunicação (Claro, Vivo,
Oi e Tim)15 formalizaram um convênio com os governos estaduais para distribuição de dados de
geolocalização sob a justificativa de que tais informações corroborariam com as medidas de
isolamento social. Através destes, seria possível identificar e dissipar aglomerações de pessoas, um
dos comportamentos de risco que aumenta as possibilidades de contaminação por coronavírus.

No entanto, o processo de transferência dos dados aos Estados e sua utilização não são
suficientemente transparentes e não garantem a proteção da identidade dos cidadãos. Segundo
publicação recente do Estadão16, apesar de todas as medidas de proteção à privacidade, especialistas
dizem que não há garantia total do anonimato. A Data Privacy Brasil adotou o termo “pseudo
anonimização”17 para descrever a situação e toda sua complexidade, que de forma alguma é mero
clichê. Os dados coletados e utilizados podem facilmente ser cruzados com outras informações e
atingirem camadas mais “íntimas” das vidas das pessoas.

A Coréia do Sul, a Rússia, o Chile e outros países estão utilizando a mesma estratégia
tecnológica para o combate à transmissão do COVID-19 e já existem relatos sobre a violação da
privacidade em prol de estratégias de ação por parte de gestores públicos e governos. Ao olharmos
pela lógica do governo sul-coreano, quando alguém é diagnosticado com o vírus, a vida inteira da
pessoa é investigada. O governo utiliza a tecnologia de geolocalização para ter acesso a outras ações
particulares do indivíduo, como histórico de uso do cartão de crédito para saber os locais visitados
pela pessoa. Pelo GPS do celular, realizam uma linha do tempo indicando todos os lugares pelos quais
a pessoa andou revelando que de fato é possível passar do anonimato à exposição.
20

O Chile, país situado em um dos continentes mais desiguais do planeta, a América Latina,
lançou o CoronApp, um aplicativo estatal com utilidade limitada e grande coleta de dados. Apenas
para o cadastro inicial, o utilitário deve informar dados pessoais proibidos de serem acessados sem
consentimento, devido à regulação de proteção de dados vigente no país. São, portanto, informações
muito valiosas, pois com elas é possível traçar perfis dos hábitos de todos os usuários através da
compilação de dados como o número de praticamente todos os documentos, estado de saúde, locais
visitados e ambiente de relacionamento.

Não há como afirmar que o anonimato dos dados será garantido e, por isso, a transparência
e o direito à privacidade devem ser respeitados e inseridos como necessidade nos planos de ação
realizados pelos governos ou até mesmo pelas próprias empresas que fornecem os dados. Caso a Lei
Geral de Proteção de Dados (LGPD) já estivesse em vigência, teríamos um parâmetro de garantia à
proteção dos dados e dos direitos fundamentais dos utilitários de celulares móveis no Brasil. A
vigência da LGPD teria início em agosto de 2020, porém sua implementação poderá ser adiada, neste
momento tão oportuno aos cidadãos, para janeiro de 2021. Desta forma, com toda a população
focada nos riscos de contaminação e instabilidade política nas instâncias federais, estaduais e
municipais, um grande volume de dados tem sido utilizado e muitos outros coletados. Existirá um
limite de extração e utilização destas informações?

É importante ressaltar que é a iniciativa privada que condensa a maior parte desses dados.
Em outubro de 2015, a empresa Facebook lançou um projeto de fornecer internet para alguns países
do continente africano, porém, o que a empresa chamou de fornecer internet se efetivou como
oferecer acesso à sua rede social. O que o Facebook ganhou com esse projeto milionário? Dados!
Informações em grande escala sobre um mercado consumidor pouco explorado pelas gigantes da
tecnologia do Vale do Silício.
A filósofa norte americana Shoshana Zuboff (2015) discorre acerca de uma nova variante do
sistema vigente chamada Capitalismo de Vigilância, no qual a mercadoria mais valiosa são os dados.
Através do monitoramento dos comportamentos dos indivíduos, dados são colhidos e vendidos de
modo que seja possível, após análise, gerar a melhor descrição possível de quem é cada consumidor
e quais mercadorias o interessariam. Em outras palavras, a Netflix não “nos conhece
milagrosamente” quando nos indica um filme que parece ter sido feito para nós, ela tem nossos
dados.

Sem alimentar nenhuma espécie de teoria conspiratória, mas apontando o quanto os dados
são valiosos no mercado mundial, grandes empresas de tecnologia estão à procura deles e já
condensam grande volume de informações. Exemplo claro é o modo como muitas delas têm
fornecido informações em larga escala no período da pandemia. Além do governo de São Paulo que
vem monitorando o comportamento dos paulistanos através do uso dos dados das empresas de
telecom, a Secretária de Educação do Estado do Rio usa o Google Classroom1421. como sua plataforma
de Ensino à Distância (EaD) do período de pandemia.

O contexto de pandemia é extremo, nem sempre se tem tempo de criar uma plataforma
própria de ensino, por exemplo. Porém, o lugar que as gigantes da tecnologia têm ganhado na gestão
pública não pode ser tomado tendo como parâmetro somente o contexto de expansão do COVID-19,
porque faz parte de um pacote maior inserido no universo das Cidades Inteligentes. Onde a conexão
é tida como um bem em si, a possibilidade de gerar dados sobre vários comportamentos é valiosa e,
num período histórico onde uma grande parcela da população mundial vive nas cidades, as Smart
Cities passam a ser o projeto com maior valor de troca no mercado de cidades. A contrapartida desse
processo, no entanto, é uma relação de interdependência entre as esferas públicas e privadas na
tomada de decisões de cunho público.

Neste sentido, Morozov (2018) vai dizer que o “Solucionismo Digital” adotado por vários dos
governos das cidades e Estados brasileiros, é um conto de fadas à medida que não supera as
contradições do sistema, mas amplia as desigualdades. Enquanto a lógica de mercado permite definir
o público para uma determinada mercadoria, não havendo qualquer necessidade de generalizações
ou universalização, o Estado, por sua vez, deve levar em consideração todos os seus residentes,

14
Disponível em <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/30/alunos-da-rede-estadual-podem-acessar-
plataforma-on-line-com-conteudo-de-aulas-a-partir-desta-segunda-feira.ghtml> Acesso em 20 de abril de 2020
expandir as fronteiras da região metropolitana e chegar às zonas rurais mais distantes. A pandemia
do coronavírus evidenciou, no entanto, os limites do solucionismo digital, diante de tamanha
desigualdade nas infraestruturas e acesso aos serviços digitais.

No Estado do Rio, por exemplo, após a instauração do Google Classroom como plataforma
a ser utilizada para rede estadual de ensino, várias questões emergiram, dentre as quais o fato de
que o uso da plataforma possui uma condicionante: o acesso à internet. Comprar o direito de acesso
à plataforma não é a solução, haja vista que o ensino online é apenas para aqueles que têm
dispositivos eletrônicos e acesso à internet.

À medida que os gestores públicos incorporam o “conto da democracia digital”, empresas


ganham um vasto campo de coleta de dados sem que estejam claros os parâmetros democráticos da
atuação privada na política pública. A fim de dissolver o conflito, o governo do Estado do Rio anunciou
a distribuição de 750 mil chips para os estudantes22 da rede estadual acessarem a plataforma de seus
smartphones, isso porque é plenamente presumível que todos os estudantes possuam um. Em outras
palavras, o fator conectividade pode ser utilizado para maquiar as desigualdades pré-existentes
como, por exemplo, a ausência de infraestrutura básica para o sistema EaD online: os dispositivos
eletrônicos.

Em âmbito federal, a despeito da desigualdade no acesso à digitalização e incertezas


gigantescas quanto ao acesso aos conteúdos por parte dos estudantes da rede pública em meio a
pandemia, o governo confirmou a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em 2020,
com o anúncio de teste da versão digital da prova23.

Não ficam fora desta discussão as unidades de ensino superior. A Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), em nota24, se posicionou quanto ao modelo EaD, deliberando que as disciplinas
que já faziam uso de meios digitais, poderiam continuar com suas atividades. Apesar de não citar
quais plataformas tais disciplinas utilizam, a UFRJ não possui um sistema digital composto com salas
de aula virtuais, por exemplo, o que nos leva a concluir que tais plataformas são oriundas da iniciativa
privada.
É necessário ressaltar que as atividades de uma universidade pública não se resumem às
aulas, mas grande parte das principais pesquisas do país são realizadas por instituições como a UFRJ.
Em última instância, sob a perspectiva da coleta de dados em grande escala, fazer uso de plataformas
como o Google Classroom pode significar ceder acesso a dados de pesquisas ainda em andamento,
conhecimento de interesse e domínio público a setores que visam o lucro.

Digitais a todo custo, ainda que isto nos custe o agravamento de nossas desigualdades
sociais ou a violação de nosso direito à privacidade? Não somos tecnofóbicos, nem consideramos ser
possível rejeitar completamente o uso de dados na gestão pública. Antes, consideramos que o
discurso de proteção e prevenção no período de pandemia via utilização de grande quantidade de
dados precisa encarar a complexidade que este formato impõe. A regularização e fiscalização do uso
dos dados pessoais, para sua limitação e proteção, aumentariam a efetividade das políticas públicas,
porém, como primeiro passo, a transparência deve ser uma espécie de princípio quando lidamos com
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs).

Segundo Nick Bostrom e Eliezer Yudkowsk (2011), transparência nas informações não é a
única característica desejável na utilização de tecnologia, principalmente por órgãos públicos.
Também é importante que os algoritmos utilizados nos programas desenvolvidos sejam previsíveis
àqueles que os governam e que esses saibam o destino inicial e final dos dados utilizados para que
não sejam suscetíveis a manipulação e vigilância. No Brasil, há pouca transparência sobre os termos
do convênio entre o governo federal e as quatro empresas de telecomunicações citadas
anteriormente e, até a redação deste artigo, havia apenas declarações contraditórias da Anatel.

Sem uma regulação e sem a vigência de uma lei forte de proteção de dados e da privacidade,
as ferramentas tecnológicas utilizadas pelos governos podem se voltar contra os cidadãos e contra
as políticas públicas. As escolhas de como esses sistemas e programas serão utilizados precisam de
muito cuidado, assumindo um comprometimento com a ética e a privacidade de dados da população,
além de exigir a inclusão dos gestores públicos como parte do processo de criação dos códigos de
programação. Isto porque, percebendo a quantidade de dados que têm sido coletados durante a
pandemia, é possível supor um agravamento da dependência de certas políticas públicas dos
interesses da iniciativa privada.

Qual valor nossos dados terão no mercado após pandemia?


Referências
BERGMANN, E. Conspiracy and populism: the politics of misinformation. Palgrave Macmillan, 2018.
Bostrom, N. e Yudkowsky, E., The ethics of artificial intelligence. In Cambridge Handbook of Artificial
Intelligence (org. Keith Frankish and William Ramsey). New York: Cambridge University Press, 2011.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
ZUBOFF, S. Big other:Surveillance capitalism and the prospects v.30, n.1, p.75–89, 2015.
25

COMPREENDER O PASSADO PARA


ENFRENTAR O PRESENTE E O FUTURO: NOSSOS
CORPOS DESESTABILIZAM AS ESTRUTURAS
IMPOSTAS
Por Joyce Trindade15

O processo de formação da nação brasileira, durante o contínuo holocausto negro e


indígena, é marcado pelo extermínio, dominação, coisificação e negação. A tentativa de
invisibilização dos corpos negros se apresenta no planejamento da cidade e na massacrante distância
das regiões periféricas até os locais de tomada de decisões institucionais, que são ainda mais
intensificadas com as estruturas subalternizadas e discriminatórias dos modais de transportes
presentes nas capitais.

Regiões periféricas mercantilizadas, segregadas e zoneadas com a autorização do Estado.


Onde apesar da Constituição e das legislações urbanas preverem que o planejamento da cidade deve
promover a democratização entre seus habitantes, notamos que as decisões tomadas em sua
estruturação expressam os privilégios das elites – herdeiros das empresas escravistas, que
sobretudo, são os principais interlocutores políticos e econômicos.

Os processos de negação de direitos fundamentais, violências sofridas pelo descaso do


governo e a subalternização dos corpos periféricos são institucionalizados nas raízes históricas que
estruturam as capitais e atingem, predominantemente, suas/seus moradoras/es negras/os e
empobrecidas/os.

A população moradora de favelas no Brasil, em 2010, chegou a cerca de 11,4 milhões de


pessoas e, somente no Rio de Janeiro, estavam em cerca de 1,4 milhão (IBGE, 2010). Uma nação de
favelados! Soma-se a esse número os “territórios invisíveis”; locais periféricos não mapeados pelo
Estado, que tornam-se campos de batalhas no processo de especulação imobiliária.

15
Graduanda de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ
26

A omissão perpetua as estruturas da invisibilidade, através dos instrumentos privados de


acumulação, que são arrojados de forma legal entre agentes econômicos e coalizões políticas.
Múltiplos atores, distribuídos nas diversas hierarquias que constituem a vida urbana, disputam
posições e recursos, sendo a cidade uma arena e objeto de disputa. Dessa forma, os territórios
invisíveis apresentam-se como locais de maior vulnerabilidade, sendo alvos de rupturas nos espaços
e dinâmicas sócio-espaciais.

Periferia pautando o futuro?

A construção do saber e as formas de vivenciar/estruturar os territórios e as bases legais


estão intrinsecamente ligadas à imposição da branquitude, estruturando as normas e,
consequentemente, a exclusão. Vocacionar novos arranjos sociais e expandir a compreensão legal
do direito à terra e dos mecanismos do Estado é um agenciamento libertário e urgente, que se
personifica nas ações de diversos movimentos e coletivos periféricos, onde cada vez mais se mostra
notória a urgência de pautarmos o nosso futuro a partir da nossa ancestralidade e expertises
adquiridas no caos, mas que com o tempo transformaram-se em tecnologias.

Não devemos romantizar as favelas e os territórios periféricos, pois são espaços construídos
dentro dos processos de dominação e exclusão. Entretanto, também se torna urgente
reconhecermos que os mesmos são estruturas contrárias às imposições coloniais. Nações Periféricas
que, diante da morte e das lutas contra os espaços marginalizados, estão se organizando – se
aquilombando, para viver e revolucionar.

Durante 2018, escutamos muitas pessoas afirmarem que “ninguém soltaria a mão de
ninguém”. Pessoas de diferentes classes, cores e posicionamentos, convictas que aquele era o
momento de criar articulações sociais e políticas da base e para base. Entretanto, querida/o
leitora/or, as formas de agenciamento de sobrevivência e resgate de sonhos permanecem sendo
consolidadas pelos periféricos e para os periféricos – Ubuntu16.

Agenciamentos afrofuturistas de potencialidades e impulsionamento de


microtransformações territoriais de intervenções coletivas de moradores locais. Microprocessos de

16
Conceito da filosofia africana, que trata da importância da dinâmica relacional entre as pessoas, segundo o princípio
do “ser-com-os-outros” porque “eu sou porque nós somos”.
27

formulações de projetos de incidências sociais, organizacionais e políticas, que no futuro revelam-se


em projetos de alcance revolucionários. Antes, éramos somente empregadas domésticas que
insistiam na educação de seus filhos, hoje somos jovens doutores e mestres que estão alcançando
espaços inimagináveis pelos seus antepassados – microagenciamentos revelando-se em
macrotransformações. O nós por nós sendo efetivado na disseminação dos conhecimentos obtidos
dentro dos muros universitários, revolucionando o acesso à informação e estruturando modelos de
projetos baseados na identificação dos seus corpos como sábios. A insurgência a partir das nossas
movimentações, pois nossos corpos desestabilizam as estruturas impostas.

Compreender o passado, para enfrentar o presente e impactar o futuro.


28

O CONSELHO DA JUVENTUDE DA CIDADE DO


RIO DE JANEIRO COMO FERRAMENTA NO
AUXÍLIO DE UMA GESTÃO PARTICIPATIVA E
SEUS DESAFIOS
Por Ully Sant’ Anna Ribeiro17

Os conselhos de políticas públicas, sendo eles consultivos ou deliberativos, exercem um


papel de controle social fundamental e são espaços de construção democrática.

Os conselhos constituem um importante instrumento de consolidação da democracia


representativa e de controle de políticas públicas, especialmente desde a Constituição de 1988. São
instâncias que permitem a manifestação democrática a partir da participação ativa da sociedade no
exercício de sua cidadania, nos espaços de representação coletiva, contribuindo para transformações
sociais, bem como a realização dos direitos fundamentais18.

Tendo em vista a importância da participação social, somada ao cenário de descrédito


político instaurado no Brasil a partir das manifestações de 2013, a juventude conquistou alguns
marcos nas diferentes instâncias de poder. Em nível municipal, destaca-se o Conselho da Juventude
da Cidade do Rio de Janeiro (CJCRJ), instância consultiva de participação social, constituída pelo
Decreto-Lei de nº 40694 de 1º de outubro de 2015.

Por meio do estudo de caso do CJCRJ, pretende-se exemplificar a importância e necessidade


da participação cidadã e a disponibilização de mecanismos para exercê-la. Na sociedade moderna,
com uma democracia de tão baixo impacto, com conselhos sendo desmantelados pelo poder público,
faz-se essencial que tais ferramentas e mecanismos de controle e pressão social sejam garantidos e
legitimados tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil organizada.

17
Graduada em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
18
Barbosa e Cunha. 2018, p.1. Disponível em < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=58845926c9bda650 >
Acesso em 3 de janeiro de 2020
Integrar a formação multidisciplinar da gestão pública à prática vivida no Conselho faz
emergir a necessidade de compartilhar essa experiência, e este trabalho nasceu a partir da visão e
vivência da autora nesses dois contextos, e da pesquisa que resultou em nosso Trabalho de Conclusão
de Curso apresentado no curso de Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico
e Social (GPDES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Portanto, acreditamos que seja
uma contribuição significativa para a comemoração dos dez anos do GPDES, já que relatar a
construção de um conselho revela a possibilidade da participação social na gestão municipal.

O Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro

O CJCRJ era um dos projetos alocados e criados no Lab.Rio - Laboratório de Participação da


Prefeitura do Rio de Janeiro, vinculado ao gabinete do Prefeito, e que tinha por objetivo promover
novas formas de interação e participação social. Segundo Gadotti (2014), participação social se dá
nos espaços e mecanismos do controle social, como as conferências, conselhos e ouvidorias, sendo
esta uma forma de organização da sociedade civil fundamental para o controle, fiscalização,
acompanhamento e implementação das políticas públicas, bem como para estabelecer diálogo e uma
relação orgânica entre os governos e sociedades. Para exemplificar o CJCRJ, como um projeto que
possibilitou aproximar a sociedade da instância municipal de poder, é importante se atentar ao
processo de seleção dos conselheiros-membros e dos critérios envolvidos. As diretrizes do Conselho
versavam sobre o formato de composição, pautada na distribuição territorial das cinco Áreas de
Planejamento (AP)1929 do município do Rio de Janeiro e na equidade de gênero, ambos critérios
fundamentais para garantir um espaço de consulta mais plural e diverso.

Ao inserir o critério de distribuição territorial, a Zona Oeste do Rio, - região da cidade que
concentra 21 bairros e 48% da população do município -, tornou-se a AP com maior número de
conselheiros. Contudo, cabe destacar que este marco somente foi possível por conta de um trabalho
anterior de mobilização territorial e social realizado por articuladores nos territórios mais vulneráveis
falando sobre o processo aberto. Esta ação de articulação foi essencial para levar para dentro do

19
“Na face da administração municipal, a necessidade de uma divisão setorial para coordenação e planejamento foi
atendida em 1981, quando o Rio de Janeiro passou a apresentar sua base estrutural atual. Institui-se, então, a codificação
institucional das Áreas de Planejamento, conhecidas por “AP’, das Regiões Administrativas, conhecidas por “RA”, e dos
Bairros, tendo sido, pela primeira vez, oficializados os limites dos bairros.” (Rio-Águas, 2012).
30

Conselho e da Prefeitura pessoas com vivências distintas, o que culminou no enriquecimento do


projeto fomentado pelas diferentes realidades ali presentes.

Para assegurar o objetivo de pluralidade a que se propunha a constituição do Conselho, além


da articulação territorial citada acima, houve uma assessoria prestada aos grupos situados em
localidades de maior vulnerabilidade social para que tivessem acesso à internet e pudessem efetuar
suas inscrições no Conselho, e ainda a realização de uma votação popular online entre os candidatos
ao Conselho, com posterior divulgação dos selecionados.

Ao buscar envolver e garantir aos conselheiros uma gestão horizontal, propiciando uma rede
de troca de experiências ampla, fazendo com que as proposições e preocupações dos membros
presentes fossem consideradas no processo decisório, o CJCRJ, pautando-se na Organização
Internacional para Participação Pública (IAP²)30, esteve associado ao nível três (envolver) da Escala
de Participação da Associação Internacional para Participação Pública.

O Conselho tinha por produto final a entrega de pareceres a respeito do Plano Estratégico
da Cidade olhando para duas versões: 1) o de 2012/2016 que já estava em vigor e tinha por objetivo
entender e questionar todas as metas propostas e o porquê de muitas delas não terem sido
cumpridas em sua integralidade, isto por meio de encontros com representantes das secretarias e
áreas específicas e 2) o de 2017/2020 Visão Rio 500 – O Rio do Amanhã, que buscava ‘refletir a cidade
que desejamos para os próximos 50 anos’ (Paes, Eduardo. 2016). E os conselheiros deveriam
assessorar e participar do processo de construção do plano.

Os encontros tinham diferentes propósitos, de acordo com a necessidade e pautas a serem


abordadas. Existiam os encontros de formação, os para proposição a partir da explanação e ou
mentoria de determinada secretaria e outros para regulamentação interna do conselho como
elaboração do regimento interno, definição de diretrizes e comunicação, encontros estes que
definiram a rotatividade do local da reunião.

Tendo em vista que a maior parte dos membros residiam na Zona Oeste do Rio de Janeiro –
delimitada pela Área de Planejamento 5 e parte da 4 – não parecia coerente que todas as reuniões
ocorressem de forma centralizada no eixo Centro-Zona Sul, buscando assim implementar a prática
da justiça territorial como forma de superar as desigualdades socioespaciais. Esta decisão, por vezes,
31

gerou dúvidas acerca da sua sensatez. Entretanto, a aplicação do critério de justiça territorial era
capaz de gerar esperança, quando se realizavam reuniões não-esvaziadas em localidades da Zona
Oeste, por demonstrar a possibilidade de circular a cidade, realizar eventos importantes sob o ponto
de vista político-econômico-social e romper o obstáculo da distância. Tendo em vista que a maior
parte dos membros residiam na Zona Oeste do Rio de Janeiro – delimitada pela Área de Planejamento
5 e parte da 4 – não parecia coerente que todas as reuniões ocorressem de forma centralizada no
eixo Centro-Zona Sul, buscando assim implementar a prática da justiça territorial como forma de
superar as desigualdades socioespaciais. Esta decisão, por vezes, gerou dúvidas acerca da sua
sensatez. Entretanto, a aplicação do critério de justiça territorial era capaz de gerar esperança,
quando se realizavam reuniões não-esvaziadas em localidades da Zona Oeste, por demonstrar a
possibilidade de circular a cidade, realizar eventos importantes sob o ponto de vista político-
econômico-social e romper o obstáculo da distância.

Após quatro meses e meio de mandato no Conselho da Juventude, o Lab.Rio apresentou


uma ‘avaliação trimestral’. Entre os principais pontos que podem ser destacados, observa-se que 33%
dos 44 membros que responderam ao questionário acreditavam que o maior valor do Conselho foi
propiciar aos demais o conhecimento ou a convivência com pessoas novas e diferentes, conforme
quadro abaixo (Quadro 1). Entre os aspectos relacionados aos desconfortos, respondidos de forma
aberta e subjetiva no tópico “Análise qualitativa quanto aos desconfortos”, observa-se que das 33
inferências, apenas cinco foram sobre a questão do deslocamento para os encontros. As demais,
criticavam a comunicação e organização por parte do Lab.Rio.
32

O importante é iniciar o entendimento de que há a necessidade de mudanças sistêmicas e


reformulação do papel do Estado em relação a seus usuários e formas de aproximação dessa
população que, ao invés de ser representada e ouvida pela administração pública, acaba excluída dos
processos decisórios da cidade.

O cidadão precisa ser protagonista, aproximar-se da comunidade em que vive e debater


assuntos e demandas regionais a fim de que, a partir do microcosmo, do município, consiga trazer
uma nova perspectiva sobre o que é fazer e discutir política. “Aos poucos, membros da sociedade
civil entenderam que podem adquirir um papel protagonista nas questões sociais, nas tomadas de
decisão e na mudança de mentalidade de sua comunidade” (Carvalho, Isabela. 2014).

Como forma de se aproximar da sociedade civil em suas diferentes nuances de atuação e


ativismo e também prestar contas do que o Laboratório em si já havia feito e de que forma o Conselho
havia atuado em um ano de mandato, o Lab.Rio, junto dos conselheiros, elaborou uma conferência,
intitulada ‘Desconferência Hacker’. O prefixo ‘des’ foi utilizado para fugir do padrão dos eventos
tradicionais realizados no setor público.
33

Buscou-se uma proposta não-convencional, ao não abarcar palestras, com uma pessoa
como detentora do conhecimento reproduzindo para as demais, e sim com diferentes participantes
engajados trocando seus saberes teóricos e empíricos, com o objetivo de estimular o debate para
apresentar e questionar o que tinha sido produzido pelo Lab.Rio e, principalmente pelo CJCRJ.

Os grupos socioeconomicamente vulneráveis são, historicamente, postos em segundo plano


no processo de construção e decisão de políticas públicas. Muitas vezes são estigmatizados e vistos
de forma pouco humanizada, como carentes de instrução e conhecimento e que não precisam
participar desses processos porque nada devem ter a acrescentar. Muitas especulações são feitas e,
na prática, pouco espaço é concedido a estes grupos para que mostrem o quão capazes são de se
organizar e se autogerir.

O CJCRJ, além de representar um esforço no sentido de fomentar a discussão de políticas


públicas de diferentes âmbitos pelos jovens e para além das questões diretamente relacionadas à
juventude, promoveu, através da diversidade alcançada na seleção dos perfis, revisão do estereótipo
de quem discute sobre a política e do lugar de onde se discute política.

Colocar a periferia para construir pareceres sobre o planejamento estratégico da cidade do


Rio de Janeiro, tendo a possibilidade de fazer isso em reuniões ocorridas em Campo Grande, Padre
Miguel, Irajá, Jacarepaguá, Rocinha, Manguinhos é conferir, de forma institucionalizada, importância
às opiniões dos diferentes perfis que compõem o município do Rio de Janeiro.

Considerações Finais

O Conselho permitiu a criação e fortalecimento de redes coletivas e propositivas ao redor


da cidade, grupos de trabalho, produção e consolidação artística e acadêmica, e, a partir da rede
formada, os ex-membros do Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro deram início ao
processo de institucionalização do Conselho, culminando num projeto de lei escrito de forma coletiva
e posteriormente articulado para ser apresentado pelo vereador Cesar Maia (vereador reeleito em
2020 pelo Democratas - DEM).

Institucionalizar uma política pública é fundamental para que esta não fique ‘refém’ de
mandatos e políticos específicos que detenham o poder de extinguir essa política quando não mais
a acharem conveniente. Este fato já era sabido por muitos, mas foi fortemente sentido quando em
34

seu primeiro dia de mandato de 2017 o ex-prefeito Marcelo Crivella extinguiu o Lab.Rio e o Conselho.
Ambos projetos eram vistos como uma iniciativa inovadora e muito importante para os cidadãos do
Rio de Janeiro, inclusive na tentativa de proporcionar maior transparência e prestação de contas do
governo municipal.

Nesta nova gestão municipal (2021/2024), o prefeito eleito Eduardo Paes (DEM) pretende
reativar o Conselho por meio de decreto e posteriormente garantir a aprovação de um projeto de lei
de teor similar na Câmara de Vereadores para institucionalizar a política, como mencionado acima.
Do lado da sociedade civil, tenta-se ficar contente com o aceno de Paes a rumos mais participativos
e progressistas. Contudo, não se deve aguardar que esse processo de garantir mais espaços de
participação parta apenas do poder público. Sabendo disso, os movimentos e coletivos estão cada
vez mais organizados para cobrar seus lugares nas decisões e condução das políticas públicas para os
próximos anos.

Acreditamos que a pesquisa contribui para a consolidação dos temas desafiadores para o
Campo de Públicas e, em especial, para o GPDES. Vida longa ao nosso curso, na expectativa de que
cada vez mais gestores públicos ocupem os espaços de poder e construam, monitorem e avaliem
políticas públicas eficientes e participativas!

Referências
RIBEIRO, Ully. O Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro como ferramenta no auxílio de uma
gestão participativa e seus desafios. Rio de Janeiro, p. 84. 2018.
BARBOSA e CUNHA. A importância dos conselhos de políticas públicas para a efetivação dos direitos
fundamentais e consolidação da democracia. Disponível em <
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=58845926c9bda650 > Acesso em 3 de janeiro de 2020.
35

EDUCAÇÃO POLÍTICA
Por Cecília Caiado, Karen Brêda, Lucas Lopes, Maria Julia de Oliveira e Thayane Gondim20

A partir das atividades de extensão “Rodas de Diálogos, Acesso aos Serviços Públicos e
Consolidação da Cidadania'', elaboramos o projeto Educação Política com o intuito de esclarecer para
um público amplo os poderes, funções e competências municipais2132. As figuras a seguir sintetizam
as responsabilidades dos três níveis de governo para a provisão de serviços públicos.

20
Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social
21
Série produzida dentro do projeto de extensão “Rodas de Diálogo, Acesso aos Serviços Públicos e Cidadania”
(IPPUR/UFRJ), coordenado pelos professores do IPPUR Lalita Kraus e Deborah Werner, com a colaboração dos
Professores Alberto de Oliveira, Renata Bastos e Nathália Azevedo, e em parceria com a Professora Carla Hirt, do Instituto
Federal do Rio de Janeiro.
36

Competência Municipal

É possível dividir as competências municipais em quatro ações gerais: auto-organização,


autogoverno, autolegislação e autoadministração. Conforme a Constituição Federal de 1988, o
Município é uma entidade federativa dotada de autonomia para exercer suas competências, as quais
estão dispostas abaixo no artigo 30:

Art. 30. Compete aos Municípios:


I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar
suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar
balancetes nos prazos fixados em lei;
IV - criar, organizar e suprimir Distritos, observada a legislação estadual;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou
permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,
programas de educação infantil e de ensino fundamental;
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,
serviços de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a
legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual

Além do Artigo 30, ressaltam-se ainda os seguintes: Artigo 23, que trata das competências
comuns administrativas entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal, incluindo o saneamento
básico; Artigo 24, que traz as competências comuns legislativas entre os entes federados; e o Artigo
25, referente às questões metropolitanas, ao estabelecer que os Estados têm a competência de
instituir, mediante lei complementar, as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões. Os Artigos 23, 24, 25 e 30 integram o Título II Da Organização do Estado e permitem
compreender as competências dos federados e suas implicações na prestação de serviços públicos.

A despeito das competências constitucionais, verifica-se que muitos dos serviços são
negligenciados, o que compromete a qualidade de vida dos cidadãos. As figuras a seguir ilustram
situações cotidianas na cidade do Rio de Janeiro e expressam essa situação:
37

Saneamento Básico

As figuras 1, 2 e 3 referem-se a três bairros na cidade do Rio de Janeiro e revelam a


precariedade dos serviços de saneamento básico, responsabilidade do ente municipal.

Como mencionado anteriormente (Quadro 1), é competência do Município o recolhimento


de lixo e realização de atividades de reciclagem. Entretanto, é possível observar que esses serviços
38

acabam se tornando falhos, permitindo acúmulo de lixo nas ruas e com isso comprometendo a
limpeza urbana.

O saneamento básico impacta diretamente na saúde pública e as negligências verificadas


têm como consequência a proliferação de doenças. Vale ressaltar a desigualdade no acesso a
diversos serviços a serem prestados pelo poder público: áreas mais afastadas do centro e em
localidades de baixa renda são historicamente preteridas quando se verifica espacialmente a oferta
e a qualidade dos serviços públicos. Dessa maneira, a população fica mais suscetível a doenças,
poluição visual e mau cheiro.

Qualidade das Vias

A figura 4 evidencia a falta de manutenção das vias públicas na cidade do Rio de Janeiro, o
que sugere uma inércia do poder público municipal. Logo, a necessidade de manutenção das ruas
pavimentadas é uma forma de garantir um adequado tráfego de pessoas e veículos pelas ruas,
proporcionando comodidade e segurança para seus moradores.
39

Mobilidade Urbana e Transporte Público

A figura 5, por sua vez, ilustra um dos grandes problemas do cidadão que utiliza meios de
transporte público: a superlotação. A garantia do serviço de transporte público é função do
Município, além das competências de mobilidade urbana (ex: ciclovias e faixas de ônibus). No
entanto, a carência de transportes suficientes para atender toda a demanda e a falta de qualidade e
manutenção nos veículos circulantes comprometem essa atividade. Somado a isso, o desprovimento
de um bom planejamento de mobilidade urbana também é representado pelas falhas dos poderes
municipais em assegurar tais direitos aos cidadãos. Tais problemas vieram a se revelar ainda mais
grave no contexto de pandemia de COVID-19.

A figura 6, por sua vez, evidencia o agravamento da mobilidade urbana, que se expressa nos
longos congestionamentos e podem sugerir como a má sinalização, infraestrutura deficitária das vias,
insuficiência de investimentos em transporte coletivos de massa e ausência de políticas de
planejamento urbano coordenadas. Sendo a gestão de trânsito uma competência do nível Municipal
de modo a promover, coordenar e executar o controle de ações para a preservação do ordenamento
e da segurança do trânsito.
40

Problemas na cidade: responsabilidade de quem?

Os problemas urbanos são diariamente veiculados na imprensa. Tal informação é


importante, pois o amplo conhecimento permite que a população cobre, do poder público, seus
direitos. No entanto, são raros os esclarecimentos quanto à competência dos entes federados na
cidade.

Tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, são frequentes na mídia os problemas
no saneamento da região metropolitana, o déficit de vagas em creches, a precarização da saúde e a
má qualidade dos transportes públicos.

Em linhas gerais, verifica-se a notável interdependência e interseção entre as ações de cada


esfera governamental demonstrando, assim, a complexidade na formulação e atuação de políticas
públicas, seja para obtenção de recursos, para a execução, monitoramento ou controle. Apesar da
existência de mecanismos de participação social, ressalta-se a necessidade de maior disseminação
de seu uso pela sociedade, como por exemplo, audiências públicas, conselhos participativos e
consultas populares, de modo a fortalecer a participação popular nas decisões que envolvem a vida
urbana e a democracia.

Referências
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uma introdução. 2a ed. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp Ed.,
2007, p. 293-301.
MATTOS, Alessadro Nicoli de. Três níveis de governo: o que faz o federal, o estadual e o municipal?. Politize.
16 de ago. de 2017. Disponível em: <https://www.politize.com.br/niveis-de-governo-federal-estadual-
municipal/>. Acesso: em 2019
UM terço das crianças de 0 a 3 anos mais pobres do Brasil está fora da creche por falta de vaga, diz IBGE.
G1. 20 de mai. de 2018 <https://g1.globo.com/educacao/noticia/um-terco-das-criancas-de-0-a-3-anos-mais-
pobres-do-brasil-estao-fora-da-creche-por-falta-de-vaga-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 2019
KALLEMBACH, Julia. Funcionários de Clínicas da Família do Rio realizam greve. BandNews FM Rio. 14 de out.
de 2019. Disponível em: <http://www.bandnewsfmrio.com.br/editorias-detalhes/funcionarios-de-clinicas-da-
familia-do-rio-re>. Acesso em: 2019
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GESTÃO E FINANCIAMENTO DO SUS E A


PANDEMIA DO COVID-19: ENTRE VELHOS E
NOVOS DESAFIOS
Por Marcos Vinícius Rezende da Silva22

Em meio à pandemia do Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) voltou a ocupar posição
de destaque na cena pública nacional. Com isso, novamente evidencia-se a necessidade de que ele
seja melhor compreendido tendo em vista sua importância na vida de milhões de brasileiros. Nesse
sentido, o presente texto visa contribuir para a elucidação dos principais aspectos da gestão,
financiamento e organização do SUS, expondo também alguns de seus principais problemas e
desafios, em boa medida agravados pelo cenário pandêmico atual.

Legado das lutas de movimentos, como o Movimento da Reforma Sanitária, e forjado na


Constituição Federal de 1988, o SUS é uma das mais importantes experiências mundiais de instituição
de um sistema público e universal de saúde, o único em um país com mais de cem milhões de
habitantes. É também considerado uma experiência inovadora sob a égide do federalismo
cooperativo (RIBEIRO et al, 2018).

Desde que foi concebido, o SUS vem enfrentando problemas crônicos como o
subfinanciamento, a fragmentação e a distribuição desigual de recursos – financeiros, humanos,
tecnológicos etc. – entre os entes federados, entre outras questões. Agora, depois de passar por uma
crise econômica recente e decisões que reforçaram ainda mais a trajetória de seu desmonte e
precarização, o sistema se vê diante do desafio imposto pela maior pandemia já vista em mais de um
século.

A Saúde é parte integrante do Sistema de Seguridade Social brasileiro e, juntamente com a


Previdência Social e a Assistência Social, compõe o esforço de provisão de uma rede de proteção para
todos os membros da sociedade, conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Direito
fundamental dos cidadãos e dever do Estado, a provisão de serviços foi materializada na formação

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Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ
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de um sistema público de acesso universal e igualitário, dedicado a atuar na promoção, proteção e


recuperação da saúde e orientado pelas seguintes diretrizes constitucionais: descentralização,
atendimento integral e participação da comunidade (BRASIL, 1988).

O desafio da gestão e financiamento do SUS

A governança do SUS é uma das maiores expressões do federalismo brasileiro: sua gestão é
feita de forma compartilhada entre União, Estados e Municípios. Apesar de ser esse um aspecto
central na gestão do sistema, o Conass (2009) aponta que, com o silêncio da Constituição sobre o
tema, restou à Lei n° 8.080 de 1990 – chamada de Lei Orgânica da Saúde – especificar o papel de
cada esfera federativa na direção do SUS. Entretanto, o detalhamento feito pela referida lei ainda se
mostrou insuficiente. Não tendo tratado a fundo a questão das competências de cada ente, a Lei
Orgânica da Saúde delegou essa função às Comissões Intergestores.

As Comissões Intergestores foram instituídas pelo artigo 14-A da Lei n° 8.080 de 1990, que
as definiu como “foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais
do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Elas vieram a ser regulamentadas pelo Decreto n° 7.508, de 2011.
São três os tipos de Comissões Intergestores no âmbito do SUS: a Comissão Intergestores Tripartite
(CIT), a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e a Comissão Intergestores Regional (CIR). A primeira
é composta por gestores da esfera federal e das esferas estaduais e municipais; a segunda reúne
gestores estaduais e municipais no âmbito de cada estado; e a terceira, congrega gestores estaduais
e dos municípios que constituem determinada região dentro dos estados.

Além das Comissões Intergestores, foram instituídos também os Conselhos de Gestores.


Estes representam os interesses dos gestores de cada esfera nas matérias relativas à saúde. Em
âmbito federal, há o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de
Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e em âmbito estadual, o Conselho de Secretários
Municipais de Saúde (Cosems). São esses conselhos que definem parte dos membros das Comissões
Intergestores. A CIB tem metade de seus membros escolhidos pelo Secretário Estadual de Saúde,
enquanto a outra metade é escolhida pelo Cosems. Já a CIT tem um terço de membros escolhidos
pelo Ministro da Saúde, um terço pelo Conass e um terço pelo Conasems. Esse arranjo põe em
evidência a condição de um sistema em constante pactuação por uma ampla rede de agentes com
interesses frequentemente distintos. A disputa por recursos tem potencial de relegar a cooperação
43

ao segundo plano, provocando ampla desarticulação entre os nós constitutivos do SUS e até mesmo
o aprofundamento das desigualdades na provisão dos serviços. Isso tende a ser agravado em
contextos de escassez de recursos, com o que a mediação das relações interfederativas – e também
as público-privadas – se mostra ausente ou precária. Torna-se nítido, assim, o desafio da gestão
compartilhada do SUS, especialmente considerando sua magnitude e complexidade.

No que se refere à estrutura de financiamento, a União concentra não só a maior capacidade


financeira para operacionalizar o sistema de saúde, como também pode exercer interposições que
afetam a capacidade fiscal dos entes subnacionais. Diversos dispositivos legais aprovados em âmbito
federal, além da própria política macroeconômica adotada, provocam efeitos nos cofres dos estados
e municípios – como apontado, dentre outros, por Arretche (2010). Uma política de redução do
Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por exemplo, provocará repercussões no caixa
subnacional via transferências aos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM,
respectivamente), cuja composição se refere, em parte, ao total arrecadado com o IPI. Lima (2007)
põe em destaque a dimensão do problema gerado por essas questões quando mostra que cerca de
80% das receitas finais dos municípios originam-se de transferências interfederativas, das quais 50%
provêm da União e 30% dos Estados.

Apesar da situação adversa em termos de capacidades fiscais dos entes subnacionais, estes
têm aumentado sua participação no financiamento da rede pública de saúde desde 2004, de modo
que, em 2013, já eram responsáveis por 57,41% do total de recursos aplicados na área (CONASS,
2015).

A Lei Complementar n° 141 de 2012 definiu percentuais mínimos de alocação de recursos


financeiros em saúde. Para a União, ficou estabelecida a necessidade de aplicar “anualmente, em
ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício
financeiro anterior, apurado nos termos desta Lei Complementar, acrescido de, no mínimo, o
percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano
anterior ao da lei orçamentária anual” (BRASIL, 2012). Em relação aos estados e municípios, a
aplicação mínima definida foi de, respectivamente, 12% e 15% dos recursos provenientes de
arrecadação de impostos e transferências.
44

Em um contexto de crise econômica, no qual as capacidades fiscais-financeiras dos entes


subnacionais tendem a ser (ainda mais) deterioradas, determinadas decisões tomadas na esfera
política podem tornar ainda mais complexo o problema. Foi o que aconteceu, em 2016, com a
aprovação da Emenda Constitucional n° 95, que, ainda na esteira do impacto da severa crise
econômica de 2015, estabeleceu um teto para os gastos da União, provocando repercussões no
financiamento público da saúde. A referida emenda estabeleceu que, nas duas décadas
subsequentes ao ano de 2018, os gastos públicos estariam limitados ao montante do ano anterior,
corrigido apenas pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Com a latência dos prejuízos advindos dessa iniciativa e a emergência da pandemia do Covid-
19, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) pediu, recentemente, a revogação da emenda, citando um
estudo apresentado em sua Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin). O relatório mostra que
o prejuízo ao SUS já chega a R$20 bilhões desde que a E.C. 95/2016 entrou em vigor, valor que
representará cerca de R$400 bilhões ao longo de suas duas décadas de vigência (CNS, 2020).

Organização do SUS e infraestrutura de saúde

O SUS está territorialmente organizado na forma de regiões de saúde, definidas pelo


Decreto n° 7.508 de 2011 como “espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de
Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes
de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a
organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde” (BRASIL, 2011). No caso do
Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foram construídas nove regiões de saúde, são elas: Baía da
Ilha Grande, Baixada Litorânea, Centro-Sul, Médio Paraíba, Metropolitana I, Metropolitana II,
Noroeste, Norte e Serrana.

O Decreto n° 7.508 de 2011 determina, ainda, que cada região de saúde deve ter no mínimo
cinco tipos de ações e serviços, sendo eles: (1) atenção primária; (2) urgência e emergência; (3)
atenção psicossocial; (4) atenção ambulatorial especializada e hospitalar; e (5) vigilância em saúde.

No âmbito de cada região de saúde, há uma Rede de Atenção à Saúde, definida pela Portaria
nº 4.279 de 2010 do Ministério da Saúde como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde,
de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico,
45

logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” (BRASIL, 2010). Essa rede se
estrutura a partir da Atenção Primária à Saúde e, segundo Oliveira (2016), possui cinco elementos
fundamentais:

centro de comunicação (Atenção Primária à Saúde); pontos de atenção (secundária e


terciária); sistemas de apoio (diagnóstico e terapêutico, de assistência farmacêutica, de
teleassistência e de informação em saúde); sistemas logísticos (registro eletrônico em saúde,
prontuário clínico, sistemas de acesso regulado à atenção e sistemas de transporte em
saúde); e sistema de governança (da rede de atenção à saúde (grifos do original) (OLIVEIRA,
2016).

Essa estruturação torna evidente a necessidade de diálogo e planejamento conjunto entre


os municípios e destes com os governos estadual e federal, visto que os serviços e ações ofertados
em seus territórios fazem parte de uma rede mais ampla, devendo levar em conta não só o
atendimento aos seus munícipes, como também à população de toda a região de saúde.

A ausência de condições locais para a oferta de determinadas ações e serviços –


especialmente tratamentos em determinadas especialidades médicas e de alta complexidade, por
exemplo – ou mesmo a insuficiência de leitos hospitalares, podem ser atenuadas com oferta em
municípios adjacentes integrantes da mesma rede de saúde.

Essa lógica, porém, impõe a necessidade de deslocamentos intermunicipais para que os


usuários possam usufruir dessas ações e serviços não prestados em seus municípios. E, dessa forma,
o custo que isso gera ao usuário também deve ser levado em consideração pelos governos, mais
ainda em contexto de pandemia.

O caso do leste metropolitano fluminense

Na Região Metropolitana II do Rio de Janeiro – formada pelos municípios de Itaboraí, Maricá,


Niterói, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá –, segundo dados (de abril de 2020) do
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), há um total de 2.623 leitos de internação
hospitalar do SUS. Entretanto, não há uma relação direta entre o número de leitos de internação
hospitalar do SUS em cada município e o tamanho populacional. Apesar de São Gonçalo ser o
município mais populoso da região, com pouco mais de 1 milhão de habitantes (estimativa do IBGE
referente a 2019), ele tem 883 desses leitos, enquanto Niterói, com cerca 500 mil habitantes
(estimativa do IBGE referente a 2019), tem 978.
46

Niterói e São Gonçalo são os municípios com maior infraestrutura de saúde e estão,
constantemente, recebendo pacientes de outros municípios. Aliás, vale destacar também que dos
seis hospitais públicos especializados da Região Metropolitana II, cinco estão em Niterói,
evidenciando-se aí uma notável concentração dos serviços ofertados no território.

Esse aspecto dá indicativos quanto aos fluxos intermunicipais para a utilização dos serviços
públicos de saúde na Região Metropolitana II. E, considerando a atual restrição à circulação de
pessoas imposta pela pandemia do Covid-19, sobretudo no município de Niterói, essa questão torna-
se ainda mais relevante, uma vez que não se pode prejudicar as pessoas que necessitam de
atendimento/tratamento nessa localidade.

O desafio enfrentado pelo SUS, atualmente, conjuga uma série de fatores estruturais – que
já tornam bastante complexa a gestão do sistema – com uma conjuntura crítica provocada pela crise
pandêmica. E isso, cabe lembrar, pouco tempo depois da adoção de medidas que limitam os gastos
federais em saúde.

Nosso sistema de saúde, único aqui e no mundo, tem agora mais uma vez seus limites
testados nessa nova luta imposta após anos de desmonte e precarização. Os resultados desse novo
desafio, que provocou o colapso de sistemas de saúde de países como a Itália e a Espanha, ainda
estão se desenrolando, e esperamos que ao menos tenhamos como legado um aprendizado que
estimule a construção de um futuro melhor, no qual o SUS seja mais valorizado e fortalecido .

Referências
ARRETCHE, Marta. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? DADOS, Rio de Janeiro,
v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010.
BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. SUS 20 anos. Brasília: CONASS, 2009. 282 p.
BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Gestão do SUS. Brasília: CONASS, 2015. 133 p.
Disponível em: <https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/A-GESTAO-DO-SUS.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019
BRASIL. Presidência da República. Lei complementar n. 141, 13-01-2012. Regulamenta o §3° do art. 198 da
Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados,
Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos
recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com
saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e
8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Lex. Brasília, DF: 2012. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm>. Acesso em: 20 set. 2019.
47

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da
República, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 20 set. 2019.
BRASIL. Portaria nº 4.279, 30-12-2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Lex. Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2010. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt4279_30_12_2010.html >. Acesso em: set. 2019.
BRASIL. Decreto nº 7.508, 20-06-2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor
sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a
articulação interfederativa, e dá outras providências. Lex. Presidência da República, Brasília, DF, 28 jun. 2011.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7508.htm>. Acesso
em: set. 2019.
CNS. NOTA PÚBLICA: CNS reivindica revogação imediata de emenda que retirou verba do SUS, prejudicando
enfrentamento ao Coronavírus. Conselho Nacional de Saúde, Brasília, DF, 14 mar. 2020. Disponível em:
<https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1064-nota-publica-cns-reivindica-revoga
LIMA, L. D. Conexões entre o federalismo fiscal e o financiamento da política de saúde no Brasil. Ciência &
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.12, n.2, abr. 2007.
OLIVEIRA, N. R. C. Redes de Atenção à Saúde: a atenção à saúde organizada em redes. São Luís: EDUFMA,
2016, 57 p.
PIMENTEL, V. et al. Sistema de saúde brasileiro: gestão, institucionalidade e financiamento. BNDES Setorial,
v.46, p. 7-77, 2017.
RIBEIRO J. M. et al. Federalismo e políticas de saúde no Brasil: características institucionais e desigualdades
regionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, jun. 2018.
48

COVID-19: REFLEXÃO SOBRE O IMPACTO DO


TRABALHO INFANTIL E A EVASÃO ESCOLAR
Mayara Pinheiro23

A questão da educação, no Brasil, é uma das principais pautas de discussão para estudiosos,
frentes políticas e sociedade. Um dos maiores desafios que a abrange é conter a evasão escolar,
problema agravado diante do cenário de crise sanitária mundial vivido em 2020. O contexto
socioeconômico do país também impacta diretamente na educação, através de diversas
perspectivas: uma delas sendo a evasão escolar como consequência da exploração do trabalho
infantil, face à expressiva vulnerabilidade das famílias.

O Art. 403 da Lei 10.097/2000 deixa claro que é proibido estabelecer qualquer relação de
trabalho com pessoas menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir
dos 14 anos. O parágrafo único do artigo diz que "o trabalho do adolescente não poderá ser realizado
em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em
horário e locais que não permitam a frequência à escola”. Infelizmente, essa não é a realidade de
muitas crianças e jovens que se submetem a trabalhos em condições ilegais para sobreviver,
principalmente, em regiões agrárias.

O Brasil está comprometido, desde 2015, com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, que tem como um de seus objetivos erradicar o trabalho forçado e assegurar a proibição
e eliminação das piores formas de trabalho infantil (Objetivo 8.7). Contudo, a expectativa não é
otimista, não somente pela situação de crise da pandemia do coronavírus, mas também pelo desdém
com que muitos de nossos governantes tratam a causa, a contar do Presidente da República.

No começo de 2020, muitas cidades no país adotaram medidas de quarentena e lockdown


com o objetivo de conter a disseminação do vírus. Com isso, além do fechamento de todos os
estabelecimentos considerados não essenciais, diversas escolas e universidades também adotaram
“férias antecipadas” para evitar o risco de contaminação. As grandes consequências dessas medidas
são as demissões em massa e a onda de falência de estabelecimentos por todo o Brasil. Diante do
cenário de desemprego e com crianças e adolescentes em casa, a luta contra o trabalho infantil ganha

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Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ
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novos obstáculos. Por conta da pandemia e suas implicações, há uma perspectiva de aumento dos
índices de exploração do trabalho infantil no país. Posto que muitas famílias perderam suas fontes
de rendimento, colocar os mais novos para trabalhar torna-se uma “opção” na luta contra a fome.

Antes mesmo da pandemia, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
mostravam que havia, em 2016, um contingente de 2,4 milhões de crianças e adolescentes de cinco
a 17 anos em situação de trabalho infantil, número que pode ser ainda maior por conta de atividades
nunca denunciadas ou contabilizadas. Além da problemática do aumento nos casos de exploração
no contexto de COVID-19, há de se pensar, no pós-pandemia, políticas voltadas a toda uma geração
de jovens que sairão prejudicados deste momento.

A forte crise econômica com altas taxas de desemprego, que vinha caracterizando o país nos
anos que antecederam a pandemia,, inclina-se a persistir, em um cenário desfavorável para a
população em situação de vulnerabilidade econômica e social. Visto isso, pode-se pensar que, mesmo
com o retorno das aulas, ainda haverá um percentual de alunos que - por conta da situação financeira
familiar ou até mesmo pelo desinteresse - não irão voltar para a escola, somando-se aos jovens que
já estavam fora do ambiente de aprendizado antes da pandemia.

Trata-se, portanto, de situação estarrecedora, mas previsível, que requer dos cidadãos e
gestores públicos reflexões e encaminhamentos capazes de mudar essa expectativa.
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PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO


NO BRASIL
Por Lorena Alves Nogueira Costa24

A pandemia do coronavírus colocou em evidência o papel indiscutível da água enquanto


bem essencial à manutenção de uma vida digna e, para além disto, trouxe ao foco a urgência da
universalização do acesso à água e da coleta e tratamento de esgoto como questões de saúde
pública, bem como elementos primordiais para a redução de desigualdades.

Em decorrência do déficit no acesso ao saneamento básico no Brasil ainda ser elevado, o


debate em torno da prestação do serviço está cada vez mais em voga. A principal questão, todavia,
é a maneira como tal debate tem sido construído, delimitando-se de modo a incentivar a participação
privada no setor, delegando a empresas operadas pela lógica mercadológica do lucro a efetivação do
direito humano de acesso a água e esgoto de maneira igualitária.

Sob o argumento de garantir a meta de universalização do saneamento básico nos próximos


13 anos e de promover melhorias nos serviços, o chamado “Novo Marco Legal do Saneamento” foi
sancionado pela lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020. A nova lei federal altera trechos do então
marco regulatório (Lei n° 11.445/2007), trazendo como principal mudança o fim da prerrogativa de
utilização da modalidade de Contrato de Programas. Este, por sua vez, constituía-se como
instrumento jurídico que permitia aos municípios, detentores da titularidade dos serviços de
saneamento, a celebração de contratos de concessão com companhias estaduais diretamente, por
meio de dispensa de licitação. Ao exigir que sejam realizadas licitações para a concessão dos serviços
de saneamento, o marco abre espaço para que mais empresas privadas assumam a prestação destes
serviços.

Um dos principais pontos na defesa da instauração da obrigatoriedade de licitação é o de


estímulo à competição, e, desta forma, de maior garantia à plena eficiência. No que tange a este
aspecto, cabe ressaltar que o saneamento básico é um monopólio natural. A expansão e manutenção
da rede de esgoto e abastecimento de água é um investimento de alto nível, com longo prazo de
maturação, e, portanto, naturalmente é um serviço que deve ter um único prestador em um

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Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ
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determinado território. Desta maneira, a defesa pela concorrência na prestação destes serviços não
significa diversificação de prestadores no atendimento a uma determinada população, mas sim, na
prática, pelo direito de gerir por 35 anos um serviço tão fundamental à população, limitando-se ao
curto trâmite licitatório, sem que haja garantias reais de que este serviço será efetivamente
operacionalizado da forma mais eficiente.

No estado do Rio de Janeiro, concomitantemente ao debate regulatório federal, há a


tramitação do processo de concessão dos serviços de abastecimento e água e tratamento de esgoto,
atualmente sob a gestão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). A
necessidade de concessão da CEDAE, que hoje é responsável pelo abastecimento de água de 64 dos
92 municípios fluminenses, surge a partir da utilização desta pelo governo estadual como garantia
para o ingresso no Regime de Recuperação Fiscal da União, mas está intrinsecamente ligado ao
mesmo processo de estímulo à privatização de todo o setor que pauta as agendas das últimas gestões
do governo federal.

Coube ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a modulação da


proposta, que divide o estado em quatro blocos de concessão, unindo partes dos municípios às
Regiões Administrativas da Capital, a fim de garantir que municípios menos rentáveis, que
provavelmente teriam menor interesse econômico à companhias privadas, sejam atendidos de
maneira igualitária quando em comparação às regiões mais lucrativas de seu bloco. Contudo, não
fica claro neste modelo se ocorrerá a garantia do acesso a famílias que vivem em comunidades e
assentamentos irregulares em todos os municípios do Rio.

Neste molde, caberá às concessionárias vencedoras efetivar a distribuição da água e a coleta


e tratamento do esgoto, mantendo-se como responsabilidade da CEDAE a captação e tratamento da
água. Este modelo vem sendo amplamente criticado, não apenas por algumas questões técnicas, mas
principalmente pela falta de participação popular em sua construção e pelo fornecimento de brechas
na garantia da manutenção de valores tarifários justos e da efetivação da meta de universalização,
bem como no que se refere ao atendimento qualificado para as populações mais carentes. Em um
contrato, onde o objetivo final é o lucro, o reequilíbrio financeiro às custas do sacrifício da
manutenção dessas promessas é inevitável.
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Por fim, é primordial a análise atenta aos problemas enfrentados pela CEDAE nos últimos
anos. Todavia, é importante ter em vista que trata-se de uma empresa pública estratégica, e que,
embora em meio a um processo de sucateamento, se mantém lucrativa (com lucro anual de
aproximadamente R$ 1 bilhão, em 2019) e possui a prerrogativa de operar sob a fiscalização e
regulação de todo o aparato estatal.

Se a Administração Pública, hoje, “abre as portas” do setor de saneamento às companhias


privadas num momento em que a tendência internacional é, justamente, a de remunicipalização
destes serviços, é fundamental que este processo ao menos seja tratado sob uma ótica mais
profunda, onde sejam analisadas todas as especificidades e pontos sensíveis inerentes ao tema.
Tema este que deve ser tratado também como essencial para a manutenção da garantia da
cidadania, e que precisa ser, portanto, próximo e aberto à participação popular.

Referências
AGB Rio. A CEDAE e a crise da água no Rio de Janeiro. In: AGB Rio Convida. Rio de Janeiro. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=vx4y1w5M1Ys&t=534s.
KISHIMOTO, S.; LOBINA, E.; PETITJEAN, O. Here to stay: water remunicipalisation as a global trending. TNI,
PSIRU and the Multinational Observatory, Amsterdã/Paris/Londres, 2014. Disponível em: https://www.world-
psi.org/en/here-stay-water-remunicipalisation-global-trend.
TAVARES, V. Passando a Boiada no Saneamento. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de
Janeiro, 2020. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/passando-a-boiada-do-
saneamento.
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DO DESALENTO À BUSCA POR NOVOS


CAMINHOS
Por Deborah Werner25 e Clarice Rocha26

Nada será como antes… amanhã ou depois de amanhã”


(Milton Nascimento)
“Pede perdão pela duração dessa temporada...”
(Chico Buarque)

O advento do coronavírus expôs ao mundo algo até pouco tempo atrás considerado
ultrapassado pelo mainstream econômico: a importância dos Estados nacionais, o papel das políticas
públicas e a falácia da ofensiva neoliberal como caminho para o bem-estar e alcance das
potencialidades dos indivíduos e sociedades.

No caso brasileiro, vínhamos de uma trajetória de retrocessos: cortes orçamentários em


gastos primários (aqueles não relacionados ao pagamento da dívida), como saúde e educação,
sobretudo com a Emenda Constitucional 9527; reforma trabalhista e previdenciária, que significaram
perdas de direitos históricos da classe trabalhadora brasileira28; ode ao empreendedorismo como
solução ao desemprego elevado, sob a ideologia do mérito e do esforço próprio como superação das
adversidades; cortes no Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família 29; retrocesso no
programa habitacional Minha Casa Minha Vida30 desmonte da política de universalização do Ensino

25
Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ
26
Graduanda do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social -IPPUR/UFRJ
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A Emenda Constitucional 95, ou “do Teto dos Gastos Públicos”, aprovada em 2016 durante o governo Temer, instituiu
o Novo Regime Fiscal, congelando os gastos públicos por 20 anos. Assim, tanto as despesas quanto os investimentos
públicos ficariam limitados aquilo ao estabelecido no ano anterior, corrigidos pela inflação por meio do Índice Nacional
de Preços. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm>
28
A Reforma Trabalhista prevê a possibilidade de acordos entre patrões e empregados, além de determinar a não
obrigatoriedade de pagamento do salário mínimo na remuneração por produção, a possibilidade de mulheres grávidas
trabalharem em ambientes insalubres, dentre outras medidas que representam um retrocesso na Consolidação dos
Direitos Trabalhistas. Já a Reforma Previdenciária, por sua vez, tem como principal proposta a implementação de um
sistema de capitalização como resposta ao suposto déficit de arrecadação (G1, 28/04/2017 . Disponível em: <Veja
principais pontos das reformas trabalhista e da Previdência>
29
Congresso em Foco, 04/03/2020. Disponível em: <Com crise e cortes no Bolsa Família, 3 milhões entraram na extrema
pobreza
30
Brasil de Fato, 03/09/2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/09/03/governo-bolsonaro-corta-
rdollar-19-bilhao-do-minha-casa-minha-vida-para-2020
54

Superior31; entre outras ações que ameaçam não apenas avanços de governos anteriores, mas
colocam em questão o pacto societário da Constituição de 1988.

Tal quadro, analisado sob uma perspectiva mais ampla, nos revela as limitações políticas das
conquistas econômicas e sociais testemunhadas entre 2003 e 2014. Os retrocessos, em curso desde
2015 e que remetem ao segundo governo de Dilma Rousseff32, foram recrudescidos a partir do golpe
civil-judiciário-parlamentar-midiático que culminou no processo de impeachment33. A isso se soma
o histórico de neoliberalização da economia, inaugurado nos anos de 1990 e que levou ao processo
de desindustrialização, de reprimarização da pauta exportadora e a constrangimentos fiscais e de
ação do Estado, expressos em instrumentos normativos como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a
Desvinculação das Receitas na União (DRU)34. A tendência neoliberalizante foi apenas amenizada,
mas não rompida, durante os anos Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016)
- em decorrência da manutenção das taxas de juros elevadas e câmbio valorizado na maior parte do
período e das amarras fiscais para a universalização de bens e serviços públicos. A crise econômica e
o desemprego expuseram a fragilidade das políticas macroeconômicas adotadas e, somadas às
questões estruturais como a regressividade da estrutura tributária e especialização produtiva,
colocam em questionamento os anos de crescimento econômico e geração de emprego e renda.

O rumo tomado após 2016 foi o de aprofundamento da pauta neoliberal e de desmonte das
políticas públicas. A novidade foi que ele foi forjado, embutido e ocultado no discurso violento,
reacionário, anti-ambientalista, terraplanista, avesso à Ciência e à Política, do Presidente da
República, Jair Bolsonaro (Sem Partido), eleito em 2018. Prenhe, portanto, de repulsa a mínimos
princípios civilizatórios.

Suas falas, de virulência crescente, tiveram grande ressonância na sociedade, e tornava


quase impossível, dada a inércia da imprensa, do Legislativo e do Judiciário, uma contraposição por
parte das forças progressistas, levando ao aprofundamento dos retrocessos valorativos na sociedade

31
Brasil de Fato, 01/08/2019. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2019/08/01/future-se-nao-garante-que-
havera-gratuidade-da-educacao-superior-diz-reitor-da-ufabc
32
El País, 27/09/2014. Disponível em: <Dilma anuncia nova equipe para retomar o crescimento econômico>
33
G1, 01/06/2016. Disponível em: <Perícia conclui que Dilma não teve participação nas 'pedaladas fiscais'>
34
Sobre Desvinculação das Receitas da União DRU — Senado Notícias
55

brasileira. Qualquer voz dissonante era execrada. Foi assim ao longo do processo eleitoral. Continuou
sendo em seu primeiro ano de governo. Até a pandemia COVID-19.

A inércia em propor medidas de contenção da pandemia, a recusa em aderir aos protocolos


internacionais e do próprio Ministério da Saúde para prevenção contra a proliferação da doença, a
ela referindo-se como uma “gripezinha” em discursos oficiais e a intenção de realizar a campanha
publicitária #oBrasilnãopodeparar35 expôs o caráter vacilante do Presidente. Soma-se a esses
episódios a recusa em implementar, com a devida rapidez, a Renda Básica Emergencial, que ganhou
unanimidade entre economistas e políticos de distintos partidos e correntes ideológicas como sendo
o enfrentamento mais adequado, em termos das classes sociais desfavorecidas, às consequências
econômicas do COVID-19.

É crescente a percepção da necessidade do Executivo federal mudar os rumos econômicos


e políticos para enfrentar a pandemia. A resistência, por sua vez, tem permitido amalgamar amplos
setores da sociedade em torno de propostas alternativas, assim como enunciar as contradições que
fazem com que estejamos entre as 10 maiores economias do mundo, ao passo que sustentamos
níveis aviltantes de desigualdade, determinadas, entre outros fatores, pela concentração de renda e
interdição do acesso universal da população aos serviços públicos (Souza, 2015).

Trata-se, portanto, de uma chance histórica de reverter a tendência uníssona do discurso


reacionário e fascista que assola o país, desnudar a retórica neoliberal e romper com os descaminhos
anteriormente tomados, na busca por tornar a sociedade brasileira mais justa e menos desigual.

Histórico da Renda Básica no Brasil

Na década de 1990, sob o contexto de direitos sociais assegurados pela Constituição Federal
de 1988, as discussões sobre renda mínima foram inseridas na agenda parlamentar brasileira por
meio de um projeto de lei do Senador Eduardo Suplicy (PT/São Paulo), cuja proposta inicial se referia
à implementação de um imposto de renda negativo. A despeito da aprovação inicial pelo Senado
Federal, em 1991, o projeto remetido à Câmara dos Deputados nunca foi votado (Britto, 2010).

35
Conjur, 31/03/2020. Disponível em: Em liminar, ministro Barroso proíbe campanha “O Brasil não pode parar”
56

A partir da década de 1990, teve início a implementação do Benefício de Prestação


Continuada (BPC), previsto na Constituição e pago a idosos e deficientes pobres, incapacitados para
a vida independente e para o trabalho. Por outro lado, era crescente a adesão de políticos e
acadêmicos à ideia de se vincular a proposta de renda mínima à escolarização de crianças das famílias
beneficiárias, de modo a articular uma política de curto prazo, a de transferência de renda, aos
objetivos estruturais de longo prazo, os quais seriam romper com os ciclos viciosos de transmissão
de pobreza geracional e aumentar o capital humano das gerações futuras. Tal formato serviria de
referência para os primeiros programas de transferência de renda adotados, primordialmente, por
governos locais. Entre 1995 e 1996, o tema ganha espaço no âmbito do Poder Legislativo, a partir da
criação de novos projetos de lei com o objetivo de instituir programas de transferência de renda em
uma abrangência nacional, sempre associados a políticas de incentivo à educação

No ano de 1997, a proposta da Renda Básica se transformou em um programa


governamental, denominado Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Educação (PGRM).
O projeto foi aprovado, limitando-se a conceder apoio financeiro aos programas de renda mínima
ligados à educação municipal. No entanto, apenas os municípios que tivessem uma receita tributária
e renda per capita inferiores às médias estaduais poderiam fazer parte do programa, além da
exigência de que os estados entrassem com 50% dos recursos aportados pelo Governo Federal. Essas
características foram responsáveis por inviabilizar a participação da maior parte dos municípios do
país, tendo sido registrados, no ano de 1999, a adesão de cerca de 150 prefeituras, em contraposição
à meta de 1.254 municípios.

Concomitantemente, diversos programas de assistência social foram implementados no


cenário nacional, à exemplo do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), condicionado à
frequência escolar; o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; o Programa Nacional de Bolsa
Escola (PNBE); o Bolsa Alimentação, cuja condicionalidade se referia às atividades de saúde
preventiva; entre outros.

Em 2001, o Senador Suplicy retoma o debate da Renda Básica em perspectiva irrestrita,


universal e incondicional, a partir da apresentação de um novo projeto de lei ao Congresso. Suplicy
afirmava que a implementação de uma renda básica universal seria uma opção mais vantajosa para
a população economicamente vulnerável do que imposto de renda negativo previsto na proposta
anterior, uma vez que: i) permitiria maior cobertura da população-alvo; ii) inexistiria o estigma sobre
57

os beneficiários ou intrusividade do Estado para a verificação de meios dos cidadãos e; iii) inexistiria
desincentivos ao trabalho, que poderiam ser causados com políticas focalizadas a partir do critério
de renda.

Em 2002, após a eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (2003-2010), o projeto,
readequado às regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), foi aprovado por unanimidade pela
Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Estabeleceu-se que a abrangência total da Renda
Básica seria atingida em etapas, atendendo primeiramente às camadas da população que mais
necessitavam da transferência de renda. No ano de 2003, na Câmara dos Deputados, o Projeto foi
aprovado na íntegra pelas Comissões de Finanças e Tributação e de Constituição, Justiça e de
Cidadania.

Naquele mesmo ano, foi criado por Medida Provisória outro programa de transferência de
renda: o Programa Nacional de Acesso à Alimentação. O modelo de transferência de renda, seja com
base na renda básica, seja com base em transferência de renda com condicionalidades, se
consolidava, portanto, como opção predominante nos meios acadêmicos e políticos. Ao final do ano
de 2003, diversos desses programas, fragmentados e superpostos, já constavam nas esferas
governamentais, o que gerou o reconhecimento da necessidade de unificação. Com a sanção da Lei
da Renda Básica de Cidadania (Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004) e a criação do Programa Bolsa
Família - PBF - (Lei nº 10.836, de 9 de janeiro, 2004), os demais programas de transferência de renda
foram unificados.

A Lei da Renda Básica de Cidadania determina que “se constituirá no direito de todos os
brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não
importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário36".
Apesar de sua abrangência universal, a renda básica seria implementada gradualmente, tendo seu
início no ano de 2005, dando prioridade às camadas mais vulneráveis da sociedade. Ademais, o valor
do benefício seria determinado a partir do grau de desenvolvimento do país, levando em
consideração suas respectivas possibilidades orçamentárias.

O Programa Bolsa Família (PBF), por sua vez, tinha como objetivo a transferência de renda
com determinadas condicionalidades, sendo destinado a famílias em situação de extrema pobreza,

36
Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004.
58

e tendo valor variável ao número de crianças, adolescentes e gestantes vinculados. Esta política se
configurou como uma das ações de combate à pobreza do governo federal, somada ao aumento real
do salário mínimo, ampliação do crédito e geração de emprego formal. A despeito de sua
implementação e de efeitos macroeconômicos e sociais importantes, o PBF foi um dos programas
mais atacados ao longo dos governos de coalizão do Partido dos Trabalhadores (PT), com argumentos
contrários carregados de preconceito e desconhecimento, sendo os mais comuns a acusação de que
as mulheres engravidavam para receber o benefício e o efeito-preguiça proporcionado pelo valor
recebido, que supostamente inibiriam o ato do cidadão de buscar emprego. No atual cenário de crise
sanitária, a discussão da Renda Básica de Cidadania foi retomada como uma medida emergencial
para fazer frente à recessão econômica causada pela pandemia COVID-19. Essa proposta, além de
ser fundamental para o enfrentamento das desigualdades estruturais que foram acentuadas pela
pandemia, pode ser considerada um grande passo para a implementação da Renda Básica de
Cidadania, Permanente e Universal, como idealizada por Eduardo Suplicy em suas propostas iniciais.
A aprovação de um projeto garantidor de Renda Básica Emergencial para aqueles que serão mais
afetados pela crise econômica representa uma oportunidade para que haja uma melhor
compreensão da relevância de uma renda mínima que atenda às necessidades vitais dos indivíduos,
respeitando o princípio da dignidade humana, abandonado em contexto de intensificação da
ofensiva neoliberal no Brasil.

Para tanto, é necessário evidenciar a vulnerabilidade a que a sociedade brasileira é


submetida em decorrência da manutenção de políticas de austeridade fiscal. De um lado, tais
políticas impedem a prestação, por parte do Estado, de serviços públicos essenciais; por outro lado,
não são supridos pela “livre força dos mercados” sem que uma adequada taxa de retorno dos
investimentos, antecedida por medidas regulatórias favoráveis, sejam asseguradas. Por sua vez, lavar
a mão com água e sabão, isolamento social, home office e trabalho remoto, medidas eficazes para
evitar a propagação do vírus, se revelaram impossíveis em condições de ausência de saneamento
59

básico e acesso à água potável, de moradias precárias (ou mesmo a falta delas)37 em comunidades
com elevada densidade populacional; e informalidade no mercado de trabalho38.

A negligência histórica em se promover a universalização de serviços básicos e acesso à


moradia digna faz com que os mesmos se apresentem, em contexto de pandemia, como privilégios
das classes médias e altas, frente àqueles que são constantemente interditados de acessar seus
direitos constitucionais em decorrência das desigualdades estruturais do país. Daí a tentativa de
responsabilizar os indivíduos, seja pelo seu sucesso, seja pelo seu fracasso - sem problematizar os
mecanismos estruturais da desigualdade, tão recorrente na retórica neoliberal - revelar-se
incompatível com as condições impostas pela pandemia. Tal aspecto se evidenciou na crescente
oposição que o Presidente vem sofrendo ao apresentar a falsa dicotomia entre economia e saúde e
ao pressionar para que a população volte a trabalhar. Pressão essa que recai fortemente sobre o
trabalhador informal, sem renda fixa, como se não houvesse outra solução que não a individual. Mais
uma vez, a população economicamente vulnerável é deixada à mercê das atividades do mercado,
para “não deixar a economia parar"39. Esse contingente de trabalhadores é submetido a extensivas
jornadas de trabalho, muitas das vezes em condições precárias, sem direitos trabalhistas, em prol de
garantirem sua sobrevivência. Tais aspectos revelam que os efeitos dessa crise impactam,
principalmente, os mais vulneráveis, que não possuem garantia de renda, como se o Estado não
tivesse condições políticas e econômicas para garantir renda mínima e amenizar a agonia causada
pela crise sanitária.

A proposta de instituir a Renda Básica em caráter emergencial ocupou centralidade, à


medida que ficava evidente a necessidade de isolamento social e restrição das atividades econômicas
como enfrentamento da pandemia, intensificada em torno da Campanha “Renda Básica que
Queremos”, articulação entre a Rede Brasileira de Renda Básica de Cidadania, parlamentares e

37
Em estudo realizado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC) e a Fundação Getúlio Vargas,
estimou-se o déficit habitacional em 7,7 milhões de unidades, dos quais 12,4% decorrem de habitação precária, 41,3%
coabitação; 42,3% ônus excessivo com aluguel; 3,9% adensamento excessivo. A metodologia utilizada foi desenvolvida
pela Fundação João Pinheiro (Abraic, 2018; Fundação João Pinheiro, 2018) . Disponíveis em Nova Id e Déficit Habitacional
no Brasil
38
Sem contar as condições desiguais da educação brasileira: soluções como Ensino à Distância (EaD) não são plenamente
compatíveis com as condições infraestruturais e de acessibilidade digital, seja das próprias instituições do Ensino Público
(Fundamental e Superior), seja dos estudantes. Como consequência, tais soluções reforçam e alimentam a desigualdade
entre os estudantes de instituições públicas e privadas.
39
Correio Braziliense, 26/03/2020Disponível em: <Bolsonaro diz que Brasil não pode parar: ‘Devemos abrir o
comércio’>
60

sociedade civil40. A proposta, que refutou os R$200,00 inicialmente propostos pelo Ministro da
Economia, Paulo Guedes, foi aprovada pelo Congresso Nacional41 em caráter de unanimidade entre
políticos e economistas de distintos espectros ideológicos.

Em linhas gerais, trabalhadores informais acima de 18 anos, microempreendedores


individuais (MEI), contribuintes individuais ou facultativos do Regime Geral de Previdência Social
(RGPS); famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (R$522,50) ou renda mensal total
de até três salários mínimos (R$3.135,00) teriam direito à renda de R$600,00 mensais, por três
meses, no total de dois adultos por família, o que significava chegar a R$1.200,00 por família. Mães
solo, que sejam as únicas fontes de renda das famílias, receberiam o total de R$1200,00. Não tiveram
direito aos recursos menores de 18 anos; pessoas que recebem benefício previdenciário ou
assistencial, seguro-desemprego ou outro programa de transferência de renda federal, exceto Bolsa
Família42; e aqueles que obtiveram rendimentos tributáveis acima de R$28.559,70 no ano de 2018.
O Cadastro Único (CadÚnico)43 permitiria que as famílias cadastradas recebessem a Renda Básica
Emergencial. Para as famílias não cadastradas no CadÚnico, o governo precisou operacionalizar o
acesso ao benefício, a partir da sanção do Presidente da República.

De acordo com o IBGE, a taxa de desemprego no Brasil é de 10,6%, ou 11,6 milhões de


pessoas44; os desalentados45; correspondem a 4,6 milhões de pessoas. Já a taxa de informalidade
atingiu 40,6% da população ocupada, o que corresponde a 38 milhões de trabalhadores 46. Por sua
vez, o percentual de famílias chefiadas por mulheres no Brasil é de 40%47. Por sua vez, a estimativa

40
Disponível em http://rendabasica.com.br/ e https://www.rendabasica.org.br/
41
Projeto de Lei nº9.236, aprovado na Câmara dos Deputados, em 26/03/2020 e PL 873/2020, aprovado no Senado
Federal, em 30/03/2020.
42
Permitiu que duas pessoas de uma mesma família acumulem benefícios: um do auxílio emergencial e um do Bolsa
Família. Caso o auxílio seja maior que a bolsa, a pessoa poderá fazer a opção pelo auxílio.
43
Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal identifica as famílias de baixa renda para concessão de
benefícios sociais do Programa Bolsa Família, da Tarifa Social de Energia Elétrica, do Programa Minha Casa Minha Vida,
da Bolsa Verde, entre outros. Também pode ser utilizado para a seleção de beneficiários de programas ofertados pelos
governos estaduais e municipais. O cadastro confere ao cidadão o Número de Identificação Social, o
NIS. https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/consulta_cidadao/
44
Dados de desemprego correspondem ao 4° trimestre de 2019. Disponível
em https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php.
45
Desalentados são as pessoas que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis, porém não procuraram trabalho por
acharem que não encontrariam. Os motivos que podem ter levado à desistência na busca por trabalho são: não encontrar
trabalho na localidade; não conseguir trabalho adequado; não conseguir trabalho por ser considerado muito jovem ou
idoso; não ter experiência ou qualificação.
46
Conforme PNAD Contínua, referente ao trimestre encerrado em fevereiro de 2020. Disponível em PNAD Contínua: taxa
de desocupação é de 11,6% e taxa de subutilização é 23,5% no trimestre encerrado em fevereiro de 2020
47
IPEA, Retratos (2015). Disponível em Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça
61

feita pela Instituição Federal Independente (IFI) do Senado, o auxílio emergencial irá beneficiar 30,5
milhões de brasileiros (14% da população) e terá o custo de R$58 bilhões, ou 0,8% do PIB de 2019.

Considerando esse quadro, verifica-se que, mesmo sem a pandemia, a população brasileira
já se encontrava em um contexto de extrema vulnerabilidade, decorrente das políticas de
austeridade fiscal, da crise econômica estrutural e da inércia governamental em revertê-la. A
pandemia expõe, portanto, os entraves impostos à ação do Estado, que requereram a flexibilização
da Lei de Responsabilidade Fiscal e a declaração do estado de calamidade, o que permite à União
descumprir metas fiscais estabelecidas pela Emenda Constitucional 95 até 31/12/2020. Por outro
lado, nos propicia-nos a oportunidade de debater a implementação da Renda Básica não apenas em
caráter emergencial, mas permanente, posta a precariedade socioeconômica vigente no País, antes
de qualquer viralização.

Da Renda Básica Emergencial à Renda Básica Permanente: a utopia a ser perseguida

A renda emergencial não é apenas uma questão ética e humanitária em contexto de


pandemia, é absolutamente favorável à recuperação econômica, sobretudo em situação de crise,
baixo crescimento, desemprego e informalidade, ao garantir o consumo de bens de primeira
necessidade às famílias e promover efeitos multiplicadores via demanda efetiva. Considerando a
capacidade ociosa e a contração da demanda que caracterizam contextos de recessão, preocupações
em torno da inflação também não se confirmam.

A pergunta é: por que, enquanto País, não a implementamos antes? Por que não tornar a
renda emergencial uma renda permanente? Os incautos podem questionar de onde viriam os
recursos. Para essa questão, é necessário levantar algumas outras.

O Ministro da Economia tem alegado a indisponibilidade de recursos, desde a aprovação


pelo Congresso Nacional da implementação da Renda Básica Emergencial: segundo ele, seria
necessária a aprovação de uma Emenda Constitucional que tipificasse um “orçamento de guerra”,
durante a vigência da calamidade pública, desonerando o governo quanto ao cumprimento da regra
de ouro (norma que impede o endividamento para pagar despesas correntes). Caso contrário,
62

haveria insegurança jurídica para autorizar o gasto, pois haveria falta de fontes orçamentárias 48. A
oposição alega que o governo pode editar uma Medida Provisória para garantir o pagamento e que
a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
seria suficiente para o pagamento do auxílio. O Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia
(DEM/RJ), então Presidente do Congresso Nacional, apesar de concordar com a necessidade de uma
“PEC do orçamento de guerra”, questiona, por outro lado, a solicitação do governo, realizada junto
ao STF, para a flexibilização da LRF49, que supostamente seria suficiente para o governo. O impasse,
colocado desta maneira, deixou milhões de brasileiros no aguardo de uma resolução atinente à
própria sobrevivência durante a pandemia.

Cumpre observar que tais entraves não existiram quanto a outras medidas. No dia 18 de
março de 2020, o Ministro da Economia anunciou um benefício de R$200,00 por pessoa por mês aos
trabalhadores informais, o que significaria liberar R$15 bilhões em 3 meses50, ou 0,2% do PIB. Na
mesma semana, o Banco Central anunciava injetar no sistema financeiro R$1,2 trilhão, 16,4% do PIB,
com a justificativa de garantir a liquidez dos bancos, para que as instituições financeiras pudessem
continuar a realizar suas operações com os clientes, pessoas físicas e jurídicas. No entanto, sem a
contrapartida de que os bancos irão reduzir suas taxas de juros, como assegurar que esses recursos
circularão na economia real, ou seja, que os bancos irão, de fato, conceder empréstimos em contexto
de pandemia, em vez de cobrir descasamento de prazos entre ativos e passivos?

Chama a atenção a disparidade entre os recursos disponibilizados ao sistema financeiro e às


famílias, o que apenas confirma a proeminência do capital bancário no Brasil, já explicitada quando
do debate da Reforma da Previdência, do Teto dos Gastos Públicos (mormente em serviços sociais),
da ampliação da Desvinculação das Receitas da União, entre outras políticas públicas direcionadas
ao andar de cima.

Concomitantemente às medidas junto ao sistema financeiro, e por certo prevendo a inércia


dos bancos privados em repassar o dinheiro que lhes foi entregue pela ação do Banco Central, o

48
Rede Brasil Atual, 01/04/2020; e Agência Brasil, 31/03/2020. Disponíveis em Guedes faz 'chantagem' para Congresso
pagar renda emergencial. STF e TCU reagem ; Liberação de renda básica depende de trâmites jurídicos e de PEC
49
Câmara dos Deputados, 31/03/2020. Disponível em Maia diz que governo pode editar MP para garantir pagamento de
R$ 600 - Notícias

50
Reuters, 18/03/2020. Disponível em Guedes anuncia programa de R$15 bi para ajuda a trabalhadores informais
63

Ministério da Economia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) criaram


uma linha de crédito de R$40 bilhões para financiar dois meses de folha de pagamento de empresas
que faturam entre R$360 mil e R$10 milhões por ano, cuja característica mais marcante é a de serem
intensivas em mão de obra51. Recursos desse tipo e magnitude, no entanto, ainda não foram
disponibilizados a microempreendedores individuais e microempresas52, ou seja, junto com os
trabalhadores informais, precarizados e desalentados, a imensa maioria dos empreendedores segue
desassistida pelo Governo.

Apontar essas contradições da política de austeridade não basta; outras precisam ser
evidenciadas para se garantir um consenso societário capaz de tornar a Renda Básica Emergencial
um benefício permanente.

Entre elas, o caráter regressivo da carga tributária no Brasil, onde quem mais tem menos
paga, dado o peso dos impostos indiretos53. Por sua vez, apesar dos lucros das empresas serem
tributados, a distribuição dos dividendos aos acionistas é isenta de tributação, isenção conferida em
1995 pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e jamais revista. Outra fonte
não implementada deriva do Imposto Federal sobre Grandes Fortunas: apesar de previsto na
Constituição de 1988 (Art. 153), requer Lei Complementar, o que não teve ainda contexto político
favorável para sua aprovação.

O consenso formado em torno da Renda Básica Emergencial, portanto, pode suscitar um


debate mais amplo sobre a necessidade de uma Reforma Tributária mais justa e o uso do fundo
público para políticas públicas orientadas ao bem-estar (educação, saúde, infraestrutura, ciência e
tecnologia, etc). Além disso, fortalecem o argumento em sua defesa as mudanças no mercado de
trabalho, que independem da emergência pandêmica: de um lado, relacionam-se à automação das
atividades produtivas, industrial e de serviços, típica do avanço tecnológico do capitalismo
contemporâneo5465; mas, de outro lado, intensificam a permanente precarização e informalidade do

51
Estadão, 23/03/2020; e Folha de São Paulo, 30/03/2020; Disponíveis em Com crise, BC já anunciou R$ 1,2 trilhão em
recursos para bancos e Desafio do BC é fazer R$ 1,2 tri sair dos bancos para empresas e famílias.
52
Microempreendedores individuais possuem faturamento de até R$81 mil e Microempresas de até R$360 mil.
Disponível em Estudos e Pesquisas Sebrae
53 De acordo com a Receita Federal, 48% dos tributos derivam de bens e serviços. Salários, respondem por

26%; renda, lucros e dividendos respondem por 19% da arrecadação; e propriedade e transações financeiras
respondem por 4,5% e 1,6%, respectivamente. Disponível em Carga Tributária 2017 – Receita Federal
<Novembro 2018>
54
Tais mudanças dispensam mão de obra e desmobilizam crescentemente a população.
64

setor terciário no Brasil, sobretudo quando se consideram as capitais estaduais e as grandes cidades
do país. Tais aspectos requerem do Estado a oferta de fontes de renda para além daquela
proveniente do trabalho, o que equivale ao resgate de seu papel redistributivo e provedor de bem-
estar.

Outro aspecto a ser enfrentado relaciona-se à estrutura produtiva: a necessidade de garantir


insumos fármacos, equipamentos e instrumentos hospitalares em função da pandemia, vis-a-vis a
restrição de fluxos internacionais, exige políticas de reconversão industrial, mas também permite
ampliar o debate para a pauta da tendência desindustrializante da economia brasileira. A partir do
atual contexto, com miras a um futuro de melhores condições sanitárias e de saúde da sociedade, o
investimento público poderia conduzir à retomada do crescimento econômico a partir de estímulos
à demanda interna, o que resultaria na reconstituição do número e do faturamento de empresas, na
agregação de valor à produção, na geração de emprego e renda, na reversão da desindustrialização
e, portanto, em um maior potencial de arrecadação tributária para cumprir com os compromissos
emergenciais assumidos no atual contexto.

Tais diretrizes teriam o benefício de já contar com elevado potencial de coerência territorial,
proporcionado pela experiência federativa brasileira com a operacionalização do Sistema Único de
Saúde (SUS). Com isso, haveria um reforço do sistema, ao mesmo tempo em que seria ampliada a
capilaridade da oferta de serviços de saúde pública, resultando em melhores condições de vida em
todo o País. Acoplado a uma estratégia geopolítica, tal intento, além de instituir uma tendência de
superação da reprimarização da pauta exportadora, ainda poderia recolocar o País em posição de
protagonismo político internacional, a qual estaria assentada em preceitos científicos e no
desenvolvimento tecnológico liderados pela imensa rede pública produtora de ciência nele existente.

Nada novo na história do capitalismo, a exemplo do contexto pós-Segunda Guerra Mundial


e da implementação do Welfare State nos países centrais. Utopia, no entanto, em contexto de
capitalismo periférico neoliberal!

A lição, se é que já podemos tirar alguma, em decorrência da pandemia do Covid-19, é a


necessidade de mudanças de rumos, ruptura com as políticas neoliberalizantes em curso no país e
resgate do papel conferido ao Estado Brasileiro em assegurar o “bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça”, valores expressos na Carta Magna de 1988 e que foram subordinados à pauta
65

financeira e rentista imposta ao país há mais de três décadas. Momentos de crise podem ser uma
oportunidade para a implementação de políticas inovadoras que apontem um caminho para
transformações perenes.

A Renda Básica Permanente, ao lado da reversão da austeridade e mudanças na estrutura


produtiva do país, são condições sine qua non para promovermos justiça social no Brasil e
retomarmos os rumos da história em bases soberanas, justas e libertárias.

Referências
Souza, P.H.G.F. “A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013”,
Tese de Doutorado, Universidade de Brasília (UnB), 2016; e Trovão, C.J.B.M. “Desigualdade Multidimensional:
Uma abordagem keynesiana para o seu enfrentamento”, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), 2015.
Britto, T., Soares. F.V. “Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania - um passo em falso?”, Textos para
Discussão, Centro de Estudos da Consultoria do Senado, 2010. Disponível em Bolsa Família e Renda Básica de
Cidadania - um passo em falso?
66

VIDA PÚBLICA: OS TEMAS REPÚBLICANOS


NOS ESPAÇOS ESCOLARES E DE ENSINO
MAREENSES
Por Adriano de Carvalho Mendes55 e Caio Matheus da Graça Santos56

Dedicado à memória de Marielle Franco

O texto discute como a participação da sociedade, em conjunto com a gestão pública, pode
propiciar transformações qualitativas, apesar da diversidade de atores intervenientes. O texto
mostra a importância de uma gestão responsável para valorização cidadã.

Propomos uma reflexão acerca da cidadania, da noção de pertencimento e desenvolvimento


de mareenses, tendo como pilares a educação e a cultura.

O grupo que deu origem ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM era
composto por moradores e ex-moradores mareenses, que militavam no Partido dos Trabalhadores
(PT). Este grupo teve a oportunidade de ascensão e conclusão em um curso superior, na sua maioria
em instituições públicas, e resolveu retornar às suas origens com o objetivo de oportunizar a outros
essa possibilidade.

Vale lembrar que no momento de criação do CEASM (1997), as políticas públicas


educacionais vigentes no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998), eram
baseadas numa discussão complexa que envolvia temários internacionais hodiernos e,
simultaneamente, a tradição dos pioneiros da educação moderna brasileira. Observa-se que as
políticas públicas vinculadas a essa démarche abriram espaço para o aumento da criação de
instituições sem fins lucrativos, cujas atividades estivessem vinculadas à prestação de serviços
públicos em concomitância com o Estado, de maneira a atender as necessidades de grupos sociais.
Assim, este quadro político permitiu a criação do CEASM no modelo de gestão que será apresentado
no decorrer deste artigo, numa narrativa histórica desde sua criação em 1997 até o ano de 2019.

55
Egresso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ) e mestrando do Programa de
Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PPG-PUR/IPPUR).
56
Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ.
67

O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré

A Organização da Sociedade Civil (OSC) CEASM foi criada em 1997, por um grupo de
moradores e ex-moradores mareenses, militantes do PT. Uma das características é o fato de que
tiveram acesso à universidade, concluíram seus cursos e obtiveram acesso e participação na
construção de movimentos sociais. Tais características possibilitaram a consciência das suas
condições de exceção e da necessidade de superarem as suas presentes realidades. Dessa forma, a
instituição tem como objetivo ampliar os acessos, potencialidades e possibilidades do exercício de
cidadania aos mareenses.

Segundo as informações colhidas na Maré em Dados: Censo 2000, realizado no Complexo


da Maré, o CEASM iniciou suas atividades em fevereiro de 1998 com um Curso de Pré-Vestibular
(CPV) da Maré. O corpo docente e discente do CPV era especificamente composto, inicialmente, por
apenas moradores mareenses. Tal projeto obteve um índice de aprovação em Universidades Públicas
muito satisfatório, que possibilitou mostrar a grande relevância social da existência do CEASM. Além
disso, a rede sociopedagógica CEASM buscava articular grupos populares mareenses que objetivaram
melhorias em suas qualidades de vida, o que evidencia a importância da instituição no conjunto de
políticas em que atua, ao se revelar como um instrumento necessário para a construção do
pertencimento dos mareenses.

Foram estruturados 4 pilares pedagógicos considerados prioritários:

1. Educação: uma ideia de reforço escolar para que os moradores voltassem para a educação
do Estado com mais instrução. Assim nasce o preparatório para as escolas de referências de ensino,
com as federais, militares e os pré-vestibulares;

2. Comunicação: propiciar ao morador capacidade de encarar as mudanças do mundo e da


sua vida com, por exemplo, o acesso a uma língua estrangeira;

3. Memória: vincula-se à criação do Museu da Maré como um projeto do CEASM, enquanto


uma construção pedagógica para criar um vínculo local para com os moradores em relação a sua
importância; e
68

4. Renda: esse pilar, apesar de importante, foi o único que não conseguiu se desenvolver em
decorrência de divergências em torno de seu entendimento. De acordo com Lourenço César da Silva,
havia o entendimento de que as pessoas precisavam trabalhar, porém, a ideia de cursos
profissionalizantes se tornava tênue, pois com a aceleração da mudança do mundo, esse aprendizado
se tornaria pretérito. Por sua vez, o conhecimento de língua estrangeira e habilidade tecnológica se
revelavam urgentes.

Esses pilares constituíram a organização enquanto movimento social, reforço escolar e


formador de política pública. Não tratava de se opor aos níveis educacionais que conquistamos, como
o ensino fundamental e o médio, mas lutar pela ampliação da qualidade de ensino que estava sendo
ofertado.

Os conceitos de rede e de cidadania que norteiam a estrutura organizacional, bem como


todas as atividades do CEASM, estão no viés de construção de um círculo virtuoso que passa pela
associação entre uma política pública distributiva e a ação voltada para o combate aos fundamentos
econômicos, culturais, políticos e sociais da desigualdade do Rio de Janeiro e do país.

O crescimento gera uma nova configuração para o CEASM

As inquietações e demandas dos mareenses que acessaram a Universidade e concluíram o


curso superior, assim como entraram em contato com movimentos sociais, ao retornarem para a
Maré, foram determinantes para fazer com que algumas ações começassem a se instaurar no
território em busca de uma modificação dos cenários. Os dados estatísticos governamentais sobre a
Maré também foram indispensáveis para notarmos a configuração e o prosperar de uma nova
perspectiva naqueles mareenses. Por isso, a construção de projetos, como o CPV, que mais tarde vão
estruturar o que é o CEASM, nos possibilita entender os caminhos que foram traçados e que
originaram os resultados e as conquistas que foram obtidas.

Cabe agora relatar como a instituição se estruturou no começo de sua história, no sentido
de dialogar com o surgimento das parcerias e patrocínios, tantos públicos quanto privados, que vão
dar origem aos projetos que se desenvolveram ao longo dos anos, e que vão possibilitar que a
entidade pudesse obter sua sede e instaurar novos projetos que se alinharam aos pilares que já foram
apresentados.
69

Esse relato foi construído com base nas entrevistas realizadas com um dos atuais diretores
do CEASM, Lourenço Cesar da Silva, no dia 3 de agosto de 2019. Ressalta-se que em toda a sua
história com o Centro, Lourenço esteve presente enquanto discente do CPV na sua origem e em todo
o processo de expansão e encerramento das atividades, quando da separação das sedes do Morro
do Timbau e Nova Holanda.

Segundo o Censo 2000, o Centro iniciou suas atividades em fevereiro de 1998 e, a partir do
CPV, a sua implementação trouxe o desenvolvimento de forma muito qualitativa e satisfatória. A alta
taxa de aprovação mostrou que o CEASM promovia potencialidades e se mostrava de grande
relevância social, uma vez que a instituição trabalhava com a perspectiva cidadã em sua plenitude.
Isso fez com que o Centro se tornasse reconhecido dentro e fora da Maré, fato que vai proporcionar
a criação de novos vínculos de alianças entre organizações internas e externas à Maré, como as
organizações públicas, privadas e comunitárias. Sendo assim, o Centro atuava em parceria com
escolas municipais locais, associações de moradores, postos de saúde e outras organizações da
sociedade, universidades, institutos de pesquisa, empresas públicas e privadas, embaixadas,
Organizações Não-Governamentais (ONG) e outras.

Antes de se tornar uma OSC, o CPV acontecia em uma sala da Igreja Católica Matriz Nossa
Senhora dos Navegantes localizada às margens do Morro do Timbau, na Maré, conforme relato de
Lourenço César da Silva. Diante disso, Carlinhos, que hoje além ser um dos atuais diretores, é
educador de literatura do pré-vestibular, se encontrava no cargo de presidente da Associação dos
Moradores do Morro do Timbau e, em contato com os primeiros organizadores do curso, informou
que havia um espaço que estava se tornando um lixão e, com uma reforma, poderia se tornar um
local para estudos: no local hoje se encontra a sede da instituição.

Antes de ser um lixão, a Embaixada do Canadá construiu esse espaço para ser um local
educativo de cursos profissionalizantes e por questões desconhecidas abandonou o espaço, assim,
uma nova ONG chamada Ação Comunitária do Brasil, se apossa desse local. Porém, com a fundação
da favela Vila do João em 1982, a Ação Comunitária do Brasil se deslocou para esse lado da Maré e
quando Carlinhos assumiu a Associação dos Moradores do Timbau, as atividades paralelas não
existiam mais.
70

De acordo com nossa entrevista, após todo esse processo e o abandono do espaço, quem
estava à frente do CEASM relatou essa situação à Embaixada do Canadá, que financiou a reforma e a
construção de duas salas. Assim, isso motivou a procura de mais financiamentos de outras
instituições; num primeiro momento procuraram a Petrobras e adquiriram mesas e cadeiras. Por sua
vez, a Petrobras insistiu que o repasse de materiais não poderia ser feito informalmente e solicitou
que se criassem uma instituição, o que leva ao nascimento do CEASM, em 1997, como uma OSC.

A reestruturação da “sonhada” sede possibilitará, ao longo dos anos, uma expansão das
atividades. Durante o ano de 1999, o CEASM contava com o desenvolvimento e progresso de nove
projetos: CPV; Curso Preparatório para a 5ª série e para o Ensino Médio; Núcleo de Línguas da Maré
(NELM), que acontecia em parceria com a Faculdade de Letras da UFRJ e a Rede de Atendimento
Local (RAL); Oficinas de Informática; Programa de Crianças Petrobras na Maré; Observatório Social
da Maré; Projeto Adolescentro; a Biblioteca Popular na Maré; e o Jornal O Cidadão, que era editado
mensalmente, com uma tiragem de 20.000 exemplares distribuídos gratuitamente. A comunicação
comunitária permitia que os moradores pudessem acompanhar as mudanças do mundo, o que
agregava a cultura, tradições, história e memórias locais e que possibilitaram também que os
moradores trabalhassem com a informação da comunidade.

No ano de 2000, com o andamento da instituição, o sentimento e os desejos de se expandir


cada vez mais pelo território mareense se tornaram presentes. O CPV foi ampliado para mais duas
turmas, oito turmas de alfabetização de jovens e adultos, dez turmas de Ensino Fundamental e duas
turmas de Ensino Médio. Também estavam vinculados ao Projeto Multissetorial de Políticas Sociais
para a Maré os projetos: Adolescentro, Rede Trabalho Educação da Maré, Memória da Maré e o
Censo Maré, vinculado ao Observatório Social da Maré. Como complemento às ações educativas, o
CEASM dispõe de dois espaços que são únicos em toda a Maré: uma biblioteca e um laboratório.

Uma das etapas tinha como objetivo a memória, no entendimento de preservar, divulgar e
valorizar a história. Para tanto, surge o Projeto de Memória da Maré, em 2000, atrelado à rede de
Memória da Maré, e o Censo Maré 2000: Quem somos? Quantos somos? E para onde vamos?,
financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), em parceria com o Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), o Instituto Pereira Passos e a Escola Nacional de Ciências e
Estatísticas (ENCE).
71

O Censo Maré 2000, de construção coletiva e pluri-institucional, foi mais além do que se
esperava, em termos de dados qualitativos e quantitativos. Inaugurado em 2006, o Museu da Maré,
reconhecido pelo Ministério da Cultura como o primeiro museu em favela do Brasil, faz parte de uma
instalação maior que é a Casa de Cultura da Maré. Em razão de sua dimensão espacial, o CEASM,
instalou oficinas culturais de vídeo, fotografia, desenho e produção gráfica, artes plásticas, capoeira,
teatro, dança afro, música, percussão e cinema, além dos projetos ligados à memória.

O Programa Petrobras Criança na Maré teve como finalidade trabalhar a questão da


participação, isso quer dizer que as atividades desenvolvidas trabalham a continuidade das ações e
necessidades do CEASM.

Novas configurações vão começar a surgir. Em 2002, a ONG se organizou e traçou novos
objetivos como, por exemplo, a obtenção de uma expansão para fora das paredes da instituição, ou
seja, após a consolidação da atuação para além do Morro do Timbau, o CEASM inaugurou seu
segundo núcleo na Maré, com apoio do governo do estado do Rio de Janeiro e de uma ONG
internacional. Essa estrutura se expandiu para a favela Nova Holanda e Ramos.

Dentro do CEASM existia uma estrutura grande e complexa, com departamentos


especializados em prestação de conta dos projetos, que eram realizados a partir de editais. Todo
projeto tinha uma equipe responsável pela relatoria do projeto, para o acompanhamento do
orçamento, a execução da verba e todos os trâmites necessários para a realização do projeto. Tais
procedimentos foram reconhecidos com várias premiações.

Apesar dessa nova experiência, tão singular na Maré, nem tudo caminhou de maneira
positiva para o futuro da ONG. Por essa razão, após sete anos de existência, as tensões ocorridas
tornam o ambiente e os processos decisórios conflituosos no âmbito da diretoria, quanto aos
direcionamentos, rumos e novos caminhos a seguir.

Os problemas internos gerados ao longo do tempo têm como fator a grande expansão, que
fez com que alguns diretores questionassem se esse efeito condizia com as primeiras ideias de
construção da ONG. Enquanto uma parte concordava e acreditava que o processo de expansão
poderia ser ainda maior, a outra parte entendia que os valores iniciais se perderam ao longo do
processo de expansão.
72

A partir da intensificação das tensões entre 2006 e 2007, houve a cisão da instituição em
duas: Redes de Desenvolvimento da Maré, a partir da unidade que existia na favela Nova Holanda; e
o CEASM. Essa divisão enfraqueceu gradativamente a participação nas atividades, porque havia o
sentimento de medo por parte dos moradores que habitavam os polos do CEASM no Morro do
Timbau e da Nova Holanda, em relação às facções distintas existentes nessas duas favelas, o que
contribuiu para inviabilizar o desenvolvimento das ações e dos projetos por elas realizados.

A separação da instituição fez com que a maioria das atividades que tinham algum tipo de
vínculo e apoios com o setor público e privado, através de parcerias, se encerrassem. Como
consequência, apenas o CPV, Preparatório para o 5º ano do ensino fundamental e para o Ensino
Médio continuaram sendo realizados no âmbito do CEASM, cujas aulas eram ministradas por
egressos.

O encerramento das atividades trouxe problemas para o Centro, pois foram perdidos vários
recursos e apoio institucional para o CEASM. A descoberta de malversação foi um fator que levou ao
rompimento das atividades.

Lourenço César da Silva afirma que com a crise de 2008, foi quase impossível captar recursos
através da Lei Rouanet, ao deixar de ser uma estrutura grande e complexa e se tornado uma
instituição menor.

Portanto, finalizamos tentando mostrar a ascensão e queda do CEASM, não como fim, mas
como reflexão sobre a existência e resistência do Centro frente às lutas diárias. Trata-se de uma
organização não-governamental que atingiu patamares elevados em termo de estrutura, magnitude
de projetos e impactos sociais, porém hoje sobrevive por meio da ação voluntária dos egressos do
CPV. Ainda assim, continua sendo de grande relevância por possibilitar o acesso à Universidade
Pública aos moradores da Maré.

Conclusão

Diante do exposto, é importante ressaltar diversos aspectos que devem ser considerados
para a construção e o caráter do CEASM como um todo. A realização do CEASM, “significa uma grande
conquista e demonstra que a intervenção local não deve ser confundida com precariedade ou
superficialidade das formulações e das ações” (Censo 2000).
73

O bairro Maré é uma localidade traçada por estigmas de violência e pobreza, e que sempre
esteve à margem da esfera pública. A Maré vive à mercê de problemas estruturais, educacionais,
saúde e de tudo aquilo que configura a dignidade. Diante disso, os formuladores do CEASM se
apropriaram dessa realidade de forma criativa ao entenderem a necessidade de resistir e construir
tudo aquilo que estava ausente para uma vida digna, ou seja: é necessário que se determine
caminhos e objetivos que se sobreponham às dificuldades para se alcançar patamares de dignidade
e cidadania. As políticas de ações afirmativas existem para possibilitar acessos, pois o que afasta um
pobre, negro e/ou periférico desse espaço é o acesso negado causado por uma situação histórica de
desigualdades.

A Maré ainda é muito carente em termos de acesso ao Ensino Médio, tendo apenas o
Colégio Estadual Bahia, na modalidade noturna. Além disso, a Maré também tem como fator
determinante as diferenças das facções criminosas que comandam o Complexo, que se somam aos
conflitos entre tais forças e o Estado, de modo a impossibilitar várias atividades. Isso faz com que
aqueles que buscam o acesso à universidade estejam ainda mais premidos.

A grande estrutura física do CEASM permitiu o arquivamento dos documentos relacionados


aos aprovados, às listagens de presença, todo o histórico discente dos que passaram pelo CPV. Porém
segundo Lourenço César da Silva, as chuvas danificaram seus compartimentos e boa parte do acervo,
impedindo de se verificar com exatidão o percentual discente ao longo de sua história. Para além
disso, a finalidade desse trabalho é lançar luz sobre os pré-vestibulares e sua importância para a
Maré.

Segundo o Jornal do Brasil, os CPVs do CEASM e da Redes de Desenvolvimento da Maré, ao


longo da história, quadruplicaram o número de moradores dentro das universidades, em sua maioria
instituições públicas. A reportagem afirma que “Na Redes, há cinco turmas de 50 alunos em três
localidades: Vila do João, Nova Holanda e Vila Pinheiros, com 250 alunos. “Conseguimos aprovar mais
de 70 alunos por ano, a maioria em universidades públicas”, diz Eliana, Diretora da Redes da Maré.
O CEASM, por sua vez, tem mais de 100 alunos estudando na sua sede no Morro do Timbau, com
aprovação de pelo menos 40%. Ao todo, somando os dois pré-vestibulares, mais de 1.600 moradores
da Maré chegaram à universidade. Todo esse movimento criou uma cultura universitária na Maré”.
74

Os moradores que passam pelo curso e entram no mundo universitário são luzes e muitos
sentem a necessidade de retornar a este espaço que os acolheu para que possam de alguma forma
contribuir, fazendo com que novos alunos possam desfrutar e alcançar seus objetivos. Lourenço
Cesar da Silva, Renata Souza e Marielle Franco são frutos desse movimento.

Portanto, em meio às dificuldades, o CEASM, com o seu pré-vestibular, permanece até hoje,
mesmo na pandemia do COVID-19, que dificulta os estudos, a despeito das formas online, em
decorrência dos atravessamentos da desigualdade, como a perda de empregos e de acesso à internet
e planos de qualidade, área de cobertura, etc. Seus educadores egressos constroem aquele espaço
de maneira voluntária, recebendo todos os anos centenas de mareenses e até mesmos discentes de
outros bairros do Rio de Janeiro e Região Metropolitana, que desejam ingressar na universidade
pública, construindo, dessa forma, uma nova expectativa de vida, uma ressignificação, uma nova
experiência, ou seja, outro mundo para as favelas a partir do olhar de mareenses.

Referências

A Maré em Dados: Censo 2000 – Análise da 1ª fase. Rio de Janeiro, CEASM, 2003.

CEASM. A Maré em dados: Censo 2000. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, Rio de Janeiro, 2003.

____________________. Estatutos sociais. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, Rio de Janeiro,
1997, mimeo.

____________________. O Cidadão: o jornal do bairro Maré. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré,
Rio de Janeiro, v. 5, n. 27, fev. 2003.

DAFLON, Rogério. Pré-vestibular comunitário da Maré quadruplicou o percentual de universitários na favela.


Jornal do Brasil, [S. l.], p. 1, 2 abr. 2018.
Instituto Pereira Passos. Índice de Desenvolvimento Social (IDS) por Áreas de Planejamento (AP), Regiões de
Planejamento (RP), Regiões Administrativas (RA), Bairros e Favelas do Município do Rio de Janeiro. 2010.
Disponível em http:// www.data.rio/datasets?q=IDS. Acesso em: jan. 2018.
_______. Projeto político na forma de pré-vestibular. Jornal o Cidadão, Rio de Janeiro, v. 4, n. 19, abr. 2002.
_______. Listagem dos alunos aprovados – 1999/2019. Rio de Janeiro, 2019.
OLIVEIRA, M. S. CEASM - Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré: Do surgimento à divisão de uma
Utopia Comunitária. [S. l.: s. n.], 2008.
MOLINA, H. P. Pré-vestibular comunitário da Maré quadruplicou percentual de universitários na favela.
Entorno Inteligente, Rio de Janeiro: [s.n.], 2018. Disponível em: https://www.entornointeligente.com/reyes-
yammine-chery-holmes-pre-vestibular-comunitario-da-mare-quadruplicou-percentual-de-universitarios-na-
favela/
75

RIO DE JANEIRO. Lei nº 2.119, 19-01-1994. Cria o Bairro da Maré na XXX Região Administrativa e dá outras
providências. Diário Oficial do Rio, Rio de Janeiro, p. 2, 1994.
SOUZA, Renata. O Cidadão e a Cultura. http://jornalocidadao.net/wp-content/uploads/2016/07/24676.pdf
SOUZA. Valores Primordiais do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. Rio de Janeiro, agosto de 2002.
76

SOBRE NOSSOS TEMPOS: HOMENAGEM A


CARLOS LESSA
Por Clarice Rocha e Lucas Dipp57

Estamos presenciando, pela primeira vez, em consciência, a mudança de uma geração.

Não apenas porque nos aproximamos dos 22 anos de idade e já vemos os nascidos na
década de 2010 com opiniões próprias, gostos e saberes. Mas, principalmente, porque as referências
que construíram e orientaram o mundo em que nascemos, em toda sua complexidade, contradições
e utopias, deixam-nos sem ter clareza dos valores e utopias que orientarão nosso futuro.

Vivemos a quarentena do Coronavírus, em que se intensificam as incertezas e os medos


quanto ao devir, como se estivessem suspensos no ar, com o vírus, com a nossa desigualdade
histórica, mas também com os nossos sonhos, por ora interditados.

Tentamos fingir normalidade, criar uma rotina, planejar o futuro, mas a realidade se impõe
sem que qualquer expectativa faça sentido. Não sabemos quanto tempo esse período vai durar, de
sentimentos tão intensos, tão à flor da pele. É impossível passar por tudo isso e continuar da mesma
forma. Há de haver mudanças, mas o sentido da transformação ainda é incerto, está em disputa e
não será transformado se forem mantidos os caminhos que nos trouxeram até aqui. Bem, há o que
se tirar disso tudo. Mas em outra perspectiva, não nesta onde nos encontramos.

Os mestres e demiurgos de um projeto de país deixam cadeiras vazias. Uma nova geração
se inicia, pois a página nunca esteve tão em branco para nós. Oportunidade única de se reconstruir
a história. É o fim do pós-guerra e o início do pós-pandemia. Somos sempre o “pós” alguma coisa.
Poucos momentos na história nos permitem testemunhar a fundação de algo. Em geral, somos o que
somos pelo simples fato de ter que lidar com um mundo herdado.

E nós herdamos um mundo que se consumiu sem a certeza das bases que orientarão o novo
mundo, se é que ele virá. Para além das Guerras Mundiais que se apresentaram em um continente,

57
Graduandos de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ
77

lidamos com ideologias impregnadas no planeta. Lidamos com a morte e a solidão, não a morte e a
glória. Lidamos com a solidão solidária por proteção e defesa, não por esperança.

Lidamos com a morte omitida diariamente. A morte esquecida e ignorada. Entre tantos e
tantos mortos pela negligência e pela violência, e tantos silêncios cobertos de pranto, certos nomes
marcam as manchetes e a pele. O que nos choca, mas também nos inspira e nos clama a resistir. Em
meio aos sentimentos de torpor e resistência, perdemos Carlos Lessa.

Lessa era um defensor do pensamento nacional desenvolvimentista e um apaixonado pelo


Brasil, quando teve que deixá-lo. Mentes totalitárias destruíram (e destroem) as vidas e as mentes
daqueles que lutam por mudanças nas estruturas desiguais da sociedade.

Uma de suas provocações mais marcantes era: como está a Alma Brasileira? Uma pergunta
simples, mas nada fácil. A Alma Brasileira está cada vez mais solitária. Nosso povo se tornou um
número, nosso estudo se tornou balbúrdia, e nossa luta se tornou terrorismo. O patriotismo hoje se
confunde com outros “ismos”, o que faz da nossa resistência uma obrigação. Muitos dedicaram a
vida para que tivéssemos espaços como esse, de debate, reflexão e desabafo.

Nas páginas a nós reservadas há de se marcar com tinta que não será derramado mais
sangue. Que não há espaço para as velhas práticas e padrões. E a paz, não mais horizonte, é o
caminho.

E é essa energia que os titãs nos entregam. Carlos Lessa nos deixou um legado de esperança.
Para além dos textos e aulas, dos títulos e feitos, há coisas que não cabem em linhas. Há o legado em
família e carinho que não conhecemos, o que virá com os carnavais e sorrisos, e com o recordar das
falas e ideias. Todos os textos e debates que ajudou a criar, e os debates que estão por vir... Em nome
do legado, do exemplo e da esperança, deixamos essa singela homenagem.
78

RENDA BÁSICA E INCLUSÃO FINANCEIRA EM


TEMPOS DE CRISE
Por Maria Fernanda Fontenele58

Desde o século XIV o mundo vem sendo assolado por doenças, como a peste bubônica,
passando pelo surto do cólera, no século XIX, até as mais recentes, como a gripe espanhola. No
período do entre guerras, surgiu a ideologia do estado de bem-estar social, que deu início à
implementação de políticas sociais.

Apesar disso, as necessidades e dificuldades sociais sempre existiram, todavia passam a ser
consideradas como uma questão social a partir do momento que ameaçam a coesão e a ordem
sociais, precisando de uma intervenção do governo. No entanto, com o fim do estado de bem-estar
social, a partir da década de 1970, e o surgimento do estado neoliberal, a proteção social vem sendo
desmontada, principalmente pelos governos periféricos.

Sônia Fleury (Fleury, 2020) apresenta três modalidades fundamentais dessa proteção, que
tendem a variar de acordo com a localidade em que são aplicadas. A primeira delas é o
assistencialismo, baseado em valores liberais, cujos indivíduos devem buscar sua ascensão no
mercado, ao passo que aqueles que fracassarem serão cobertos por transferências governamentais.
Esse modelo gera uma cidadania invertida, pois o cidadão deve mostrar sua incapacidade de
sobrevivência para garantir o auxílio. O segundo modelo é o de previdência, no qual os benefícios
são meritocráticos, acarretando em uma cidadania regulada pela ocupação no mercado de trabalho.
A última modalidade é a da seguridade, oferecida pelo estado de bem-estar social, cuja cidadania é
universal, financiada pelo trabalho, mas também através de subsídios governamentais.

Em contradição a essas proteções sociais, Guy Standing (Standing, 2013) introduz uma nova
classe social, o “precariado”, que ou não tem acesso, ou tem pouco acesso, a essas modalidades de
cidadania industrial. Com o avanço de políticas neoliberais, a ascensão de governos populistas, em
países periféricos, vincula a possibilidade de acesso à proteção e à seguridade por parte dessa nova

58
Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ
79

classe, a partir da implementação de programas sociais de assistência, como o Programa Bolsa


Família (PBF), no Brasil.

Apesar dessa amplitude gradativa das formas de garantia e segurança de trabalho,


associadas a uma segurança mínima de renda, promovida por avanços sociais, os programas
assistencialistas apresentam, ainda, teor patriarcalista, que limita a participação de boa parte da
população. Entretanto, há uma tendência de combater esse viés com o acesso amplo de mulheres
ao mercado de trabalho e também com o aumento da expectativa de vida, a partir do tríplice: Estado,
mercado e cidadania.

Ainda que haja essa expansão, esse triângulo vem sendo modificado com a globalização,
tendo em vista o surgimento de poderes supranacionais (as empresas transnacionais que se tornam
mais fortes que o próprio Estado) e mercados internacionalizados (desterritorialização da produção),
como aponta Fleury (Fleury, 2020).

Hoje, frente à pandemia do COVID-19, os Estados-Nações, independentemente do viés


políticos seguido, intensificaram a demanda por uma Renda Básica Universal, apontando como cerne
da questão o fato de como financiar políticas públicas desse porte, uma vez que o Estado nem sempre
consegue arrecadar o suficiente e o pouco que arrecada, muitas vezes, é destinado ao pagamento de
juros da dívida.

A partir disso, o mercado financeiro ganha cada vez mais força, tornando o capital o grande
gerenciador da questão social. Além disso, as novas tecnologias devem ser adicionadas a tal questão
pois alteram a forma produtiva, acarretando em uma precarização do trabalho e em políticas de
austeridades, através de contenção dos gastos públicos e redução da proteção social.

O presente artigo pretende estabelecer, na seção 1, a intrínseca relação entre a Renda


Básica da Cidadania e o combate ao desemprego. Na seção 2, busca-se estabelecer as bases legais e
repercussões empíricas desse modelo, no Brasil, enquanto, na seção 3, apresenta-se a possibilidade
de uma inclusão financeira comunitária, em tempos de crise do COVID-19. Por fim, em sua conclusão,
a intenção é nortear a volta da democracia social e da cidadania urbana, como um plano tríplice.
80

Renda Básica da Cidadania e o (des)emprego

O precariado é definido por Guy Standing como uma classe-em-formação, derivada de


processos neoliberais de flexibilização das leis trabalhistas, em todo o mundo, desde a década de
1980. Cercado pelas categorias dos desempregados e dos marginalizados sociais, Standing reforça
que ainda remanesce a falta de integração e reconhecimento pelas partes, devido à existência de um
descompromisso político, para que o precariado possa se tornar uma classe-para-si (Standing, 2013).

Fazer parte dessa classe é ter como base o oportunismo, a flexibilidade do mercado de
trabalho e a dupla identidade de vítima/herói propagada pelos ideais neoliberais. Por conseguinte, o
precariado reconhece-se como tendo insegurança do vínculo empregatício, renda precária e falta de
identidade ocupacional. Dentre essas características, é possível delimitar os grupos trabalhistas
presentes no precariado, que passam pelos empregos temporários, empregos de meio período e
autônomos (Standing, 2013).

A associação entre o capitalismo e a globalização possibilitou o surgimento dessa classe,


uma vez que é inerente a essa combinação o crescimento da pobreza e, com isso, a existência de
uma desigualdade social permanente (Silva, 2020). A crise financeira de 2008 deixou exposta a visão
do Estado Mínimo, que vinha sendo consolidada, mundialmente, e trouxe a necessidade de uma re-
expansão desse ator social. Com o aprofundamento da pandemia do COVID-19, uma vez que havia
insuficiência de políticas públicas de garantia de cidadania, apontou-se para a problemática dessa
classe precarizada de subsistir à crise por conta própria. Com isso, o apontado por Josué Pereira da
Silva pode servir de ilustração para essa realidade:

A desconstrução programada ao longo dos anos da legislação trabalhista, (...) com suas
contrarreformas neoliberais que só visavam aos interesses do mercado, contribuindo para
aumentar ainda mais a informalidade nas relações de trabalho e a vulnerabilidade de grandes
camadas da população (Silva, 2020).

A crise sanitária enfrentada em decorrência da pandemia traz à tona o impacto do


isolamento e do distanciamento social sobre a economia e, consequentemente, sobre os empregos.
É possível conceber que a classe trabalhadora será permeada por inseguranças no emprego e
aumento da pobreza, uma vez que o mercado de trabalho é a primeira variável a ser afetada, ao
passo que os empregadores operam com as demissões em massa, ainda mais em um cenário de
legislações trabalhistas favoráveis a uma suposta flexibilização (Cardoso, 2020).
81

Com esse cenário de demissões à vista e amparados pelas permissões governamentais


instituídas enquanto durar o estado de calamidade pública, os empregadores viram como alternativa
a redução da jornada de trabalho com a proporcional redução de salários, a suspensão temporária
de contratos, a antecipação de férias coletivas, entre outras medidas.

Em contrapartida, o avanço do desemprego oculto, reforçado pelo inchaço da classe


precariada, aponta que “a subocupação por insuficiência de horas trabalhadas é uma medida que
merece atenção especial, uma vez que indica o grau de insuficiência da renda vigente para atender
às necessidades dos trabalhadores” (Mattei & Heinen, 2020).

Tendo em vista a lógica intrínseca do capitalismo e o reforço desigual à classe precariada,


surgiu, ainda no século XX, o pensamento sobre uma Renda Básica Universal (RBU). Dessa maneira,
traçaram-se dois paralelos: o liberal, que condicionava a RBU à alocação universal de recursos, cujo
beneficiário não teria vínculo trabalhista; e a social, onde se vincularia ao trabalho, possibilitando a
abertura de mais vagas de trabalho, uma vez que as pessoas precisariam trabalhar menos. Por
conseguinte, foram implementados alguns conceitos norteadores para uma Renda Básica, a partir da
sua incondicionalidade. Essas prerrogativas da concessão da Renda Básica podem ser diferenciadas
entre universalização ou focalização.

A Renda Básica poderia ter, portanto, incondionalidade forte, ou seja, fornecida a todos,
sem quaisquer distinções; incondicionalidade débil, associada a um imposto de renda negativo, para
aqueles que não dispõem do mínimo para viver dignamente; ou ainda workfare, cuja concessão do
benefício é condicionada ao trabalho (Diniz, 2007). Diversos países, como a Dinamarca, Alemanha,
Irlanda e França, definiram núcleos comuns às suas RBU, tais como o Princípio da Universalidade,
demanda por parte do próprio interessado, prerrogativas e contrapartidas e valor baseado nas
demais contribuições sociais existentes.

Com o intuito de garantir uma renda mínima aos cidadãos, de tal maneira a combater os
níveis de desemprego e poder estimular o desenvolvimento econômico e social do país, “o Brasil foi
o primeiro país no mundo a aprovar lei para instituir, por etapas, uma Renda Básica da Cidadania”
(Suplicy & Dallari, 2020). Na próxima seção, será trabalhado o caminho que esse tema vem
percorrendo dentro da legislação brasileira e quais suas repercussões empíricas.
82

Legislação e repercussões empíricas no Brasil

Em 2020, a globalização serviu para demonstrar quais as diferentes tomadas de decisão


estavam sendo colocadas em prática no enfrentamento à pandemia do COVID-19. A principal delas
foi a aplicação de uma Renda Básica Emergencial (RBE), proveniente de intervenções massivas do
Estado, além de pacotes de medidas sanitárias e econômicas para mitigar as possíveis consequências
de uma crise. Dentre essas intervenções, pode-se citar, como exemplo, o pacote de US$ 2 trilhões
investidos pelo governo estadunidense, os € 500 bilhões assistidos pela União Europeia e os £ 38
bilhões de ajuda que o Reino Unido disponibilizou (Cardoso, 2020).

No Brasil, a crise resvalou em um processo perene de desindustrialização e reprimarização


da pauta exportadora, que se apoia em um mercado de trabalho cada vez mais subocupado e
informal, tendo como o seu maior parceiro econômico a China, epicentro da pandemia do
coronavírus. Com isso, atingindo em grande parte a população inserida na informalidade e tendo em
vista o aumento do desemprego, a solução viável que o governo brasileiro adotou foi a concessão do
Auxílio Emergencial, viabilizado pela Lei nº 13.982/2020, que dispunha de um valor de R$ 600,00 para
os beneficiários que se adequassem aos pré-requisitos estabelecidos.

No entanto, a estratégia que os atores políticos devem adotar é mais do que aumentar
meramente a circulação monetária na economia no curto prazo, mas elaborar “uma política de
desenvolvimento econômico voltada ao pós-pandemia” (Costa, 2020). Para isso, é necessário
relembrar o histórico brasileiro de tentativas de viabilizar uma Renda Básica da Cidadania à
população.

Em 1992, o então Senador Eduardo Suplicy (PT) elaborou o Programa de Imposto de Renda
Negativo, que teria uma implantação gradual, ao longo de sete anos, desde as pessoas com mais de
60 anos até as pessoas com 25 anos. Esse público seria formado por aqueles que tivesse uma renda
inferior ao equivalente a 45 dólares (cotação de 1998). A correção do valor aconteceria em dois
momentos do exercício financeiro ou quando a inflação acumulada atingisse 30%. O Programa, que
não foi aprovado pelo Congresso, teria uma base de cálculo específica e o seu financiamento dar-se-
ia por parte da União, o que não poderia exceder 3,5% do PIB, enquanto fossem desativadas as
políticas compensatórias então vigentes (Diniz, 2007).
83

Alguns anos depois, em 1995, o Deputado Nelson Marchezan (PSDB) elaborou um projeto
que concederia R$ 30 mensais a famílias com renda que não ultrapassasse um salário mínimo, por
filho ou dependente na faixa entre 0 a 14 anos, onde as crianças maiores de 7 anos deveriam estar
matriculadas em uma instituição de ensino. Ainda, como uma condição extra, o membro responsável
pela família deveria frequentar cursos de capacitação profissional, estando ou não empregado. Os
recursos do projeto seriam divididos, proporcionalmente, entre a União e os Municípios, sua vigência
seria de 10 anos, com avaliações anuais, e a correção do valor aconteceria pela inflação e ajuste no
salário mínimo (Diniz, 2007).

O projeto foi transformado na Lei nº 9.533/1997, após ajustes pelo relator, onde somente
os municípios insuficientes poderiam ganhar o incentivo financeiro e o público-alvo foi delimitado
apenas entre as famílias que recebessem menos do que meio salário mínimo. Diniz aponta que o
caráter autorizativo do programa poderia ser um entrave ao combate à pobreza e à marginalidade
social, mas que a aproximação da escala municipal seria um fator positivo na fiscalização e na
modelagem do programa. (Diniz, 2007)

No primeiro Governo Lula (2003-2006), a aprovação do Programa Bolsa Família, consolidado


pela Lei nº 10.836/2004, unificou a existência de alguns programas pré-existentes, tais como Bolsa
Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás. O público-alvo seria aquele composto por famílias em
situação de pobreza, cuja renda familiar fosse de até R$ 120, e em extrema pobreza, com renda até
R$ 60. (Diniz, 2007)

A estipulação do benefício seria de R$ 50 mensais para as famílias em extrema pobreza,


independente da composição familiar, e de um benefício variável por gestantes, crianças e
adolescentes até 15 anos. Haveria, ainda, o pagamento de um benefício variável de caráter
extraordinário para famílias em migração entre projetos. As contrapartidas estabelecidas seriam um
acompanhamento do Programa Nacional de Vacinação por parte das crianças de até 06 anos e
crianças e adolescentes até 16 anos completos deveriam frequentar pelo menos 85% das aulas (Diniz,
2007).

Ainda no mesmo ano, foi promulgada a Lei nº 10.385/2004, que estipulava o Programa de
Renda Básica da Cidadania, também proposto pelo Senador Eduardo Suplicy (PT), que tinha como
intuito o pagamento de um benefício igual a todos os cidadãos, que fosse suficiente para o
84

atendimento das necessidades básicas. O Programa seria implementado por etapas e o valor seria
definido pelo Poder Executivo, de tal maneira a não desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Complementar nº 101/2000) (Diniz, 2007).

Reitera-se, aqui, a diferença entre um Programa que busca a universalização, levando em


conta o Princípio da Igualdade, e outro que procura estabelecer uma focalização, isto é, busca
atender ao Princípio da Equidade. A partir dessa lógica, a seção 3 irá discorrer sobre formas de
integrar o Auxílio Emergencial, em tempos de crise, e a inclusão financeira comunitária como uma
forma de se alcançar essa desejável universalização, em busca de retomar, no país, a cidadania
urbana e industrial.

Inclusão financeira comunitária

Com a chegada da pandemia, a classe precarizada viu-se em um afluxo de demissões e queda


dos rendimentos, cujo impacto chega até o orçamento familiar. O processo de realocação no
mercado de trabalho, em tempos de crise, costuma ser demorado e traz consigo uma perda nominal
os salários, quando se comparados com os anteriormente recebidos. Com isso, essa classe já
marginalizada e subocupada vê-se dependente das transferências estatais discricionárias, buscando
aporte em uma das três modalidades de proteção citadas anteriormente.

Enquadrado em uma das seis categorias de renda social, estabelecidas por Guy Standing, o
Auxílio Emergencial brasileiro retomou o debate da Renda Básica da Cidadania. Por conseguinte,
impasses na questão da implementação e operacionalização demandaram respostas rápidas da
Administração Pública para garantir que o benefício chegasse o mais breve possível às mãos daqueles
que, de fato, poderiam ser caraterizados como público-alvo.

O caminho mais intuitivo a ser seguido era o de experiências prévias, ou seja, idealizar o
novo benefício com base na funcionalização de um já conhecido, Bolsa Família. Entretanto, por
questões de distanciamento social e intenção de ampliação da base de dados do Cadastro Único
(CadÚnico), uma ferramenta governamental que concentra todos os beneficiários de programas
sociais públicos, fez-se necessária a inovação da metodologia, usando das Tecnologias da Informação
para aprimorar esse sistema de concessão.
85

Lotado no Ministério da Cidadania, a gestão dos recursos para todos os beneficiários era
feita dentro do Poder Executivo, cujas informações dos beneficiários eram operadas pela DataPrev
e, posteriormente, validadas pelo CadÚnico. O Agente Pagador desse sistema foi a Caixa Econômica
Federal (CEF), que, de fato, operacionalizou o processo até chegar ao consumidor final: o público-
alvo (Cardoso, 2020). Dessa maneira, a atualização cadastral e a transferência de recursos foram
feitas por meio de dois aplicativos, criados pela CEF, para poder facilitar o processo e evitar
aglomeração nas agências bancárias ou instituições governamentais equivalentes.

Apesar dessa tentativa de viabilizar um acesso democrático e fluído, respeitando as medidas


de segurança sanitária, o resultado final não se consolidou como o esperado. Por conseguinte,
mesmo que a previsão de inclusão do público-alvo fosse abrangente, desde o trabalhador formal
ativo até a mãe adolescente, muitos cidadãos não tiveram acesso ao benefício, ora por rejeição dos
dados, ora por falta de acesso ao sistema financeiro. (Lauro Gonzalez, 2020)

O viés financeiro pode ser explorado e aprimorado através das possibilidades de inclusão
fornecidas por Bancos Comunitários de Desenvolvimento e fortalecido pelo uso de Moedas
Complementares. Um grande exemplo dessa integração é o Instituto Palmas, um banco comunitário,
desenvolvido para atender às demandas da Conjunto Palmeira, em Fortaleza-CE.

A classe precarizada, beneficiária do Auxílio Emergencial em sua maior parte, nem sempre
possui acesso ao sistema financeiro formal, seja por desinformação, seja pelos custos empreendidos.
Para tanto, exemplos como esse benefício em específico poderiam embasar-se de experiências
locais, onde, como já apresentado, a ideia de fiscalização e operacionalização é mais suscetível a
acertos.

Conclusão

Evidencia-se, portanto, que essa construção da lógica universal de uma renda básica
perpassa não só aspectos políticos e econômicos, mas, principalmente, a inclusão comunitária, seja
social, seja financeira.

A nova classe perigosa, segundo Standing, precisa desenvolver um símbolo característico,


intrínseco à luta própria do precariado. Sendo assim, a partir desses conflitos, a busca por
86

reivindicações poderia abrir caminho frente ao crescente aumento do desemprego e à


marginalização desses grupos, aproximando-se da definição de classe-para-si.

Ao longo do último ano, pôde-se observar o aditamento expressivo do Auxílio Emergencial.


Contudo, tendo em vista suas limitações de acesso e operacionalização, seu alcance tornou-se cada
vez menor, uma vez que a inclusão de novos beneficiários não foi possível e as transferências
apresentaram problemas técnicos, como a demora.

Para tanto, permanece a necessidade de um alinhamento financeiro do sistema, visando


que seja feita uma aproximação maior com experiências locais e já consolidadas, como a do Instituto
Palmas, onde o público-alvo pode ser de certo melhor atendido.

A transformação do Auxílio Emergencial, em um país periférico como o Brasil, em uma


Renda Básica da Cidadania, pode parecer distante, mas em microescalas já é implementada, através
de moedas complementares e sistemas totalmente digitais, respeitando o distanciamento social,
recomendado em tempos de pandemia. Com um esforço entre a tríplice, é possível que haja um
Estado operacional, uma cidadania reivindicada pelo precariado e uma explosão do mercado, tendo
em vista o seu desenvolvimento comunitário.

Referências
Cardoso, J. Á. (2020). A crise que não se parece com nenhuma outra: reflexões sobre a coronacrise. Revista
Katálysis, 615-624.
Costa, S. d. (2020). Pandemia e desemprego no Brasil. Revista de Administração Pública, 969-978.
Diniz, S. (2007). Critérios de justiça e programas de renda mínima. Revista Katálysis, 105-114.
Fleury, S. (24 de ago de 2020). Aula Inaugural IPPUR.
Lauro Gonzalez, e. a. (2020). Moedas complementares digitais e políticas públicas durante a crise de COVID-
19. Revista de Administração Pública, 1146-1180.
Mattei, L., & Heinen, V. L. (2020). Impactos da crise da COVID-19 no mercado de trabalho brasileiro. Revista
de Economia Política, 647-668.
Silva, J. P. (2020). Do tempo escolhido aos fins do sono: tempo de trabalho e renda básica no capitalismo
tardio. Revista Sociedade e Estado, 723-740.
Standing, G. (2013). O Precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica.
Suplicy, E. M., & Dallari, M. (2020). Citizen's basic income and Kenya. Brazilian Journal of Political Economy,
566-583.
87

PRECISAMOS SER SMART? BREVES


CONSIDERAÇÕES SOBRE A AGENDA
NACIONAL PARA CIDADES INTELIGENTES
Alexandre Henrique N. da S. Almeida59
Tainá Farias da Silva Maciel60

Introdução

A necessidade de “transformar ‘cidades tradicionais’ em cidades inteligentes” (BOUSKELA,


M et al., 2016) começou a ser uma demanda a partir dos anos 1990, quando o rápido crescimento
urbano e as mudanças climáticas evidenciaram a iminência de um plano internacional de
desenvolvimento sustentável. Com o transcorrer dos anos, cúpulas multilaterais conceberam
estratégias e ações para transformar as cidades em territórios inclusivos, resilientes e sustentáveis.
Nesse contexto, surgiram propostas como a Agenda 2030, um acordo entre os 193 países da
Organização das Nações Unidas que estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS); e a Nova Agenda Urbana, um documento que alinhado com os ODS – em especial ao objetivo
11: cidades e comunidades sustentáveis – recomenda à governos, autoridades municipais e
organizações, “padrões e princípios para o planejamento, construção, desenvolvimento,
administração e melhora das áreas urbanas” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019, p. 8). A
NAU (Nova Agenda Urbana) traz, inclusive, em seu corpo o compromisso das nações que a compõem
de adotar abordagens do que seria uma “cidade inteligente” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
2019, p. 19). Outrossim, tanto a NAU (2019) como a Agenda 2030 (2015) contêm diversas diretrizes
sobre a adoção de tecnologias, sobretudo da informação e comunicação, além de possuírem em seu
escopo o fomento da transformação das cidades e assentamentos humanos em ambientes mais
“verdes”, “acessíveis” e “seguros”.

Assim, com o propósito de mitigar os problemas urbanísticos e tornar as cidades mais


“eficientes”, “humanas” e “sustentáveis”, governanças globais empreenderam por um processo de

59
Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ
60
Graduanda do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ
88

smartificação dos territórios, no qual a transformação digital apresentou-se como solução


indispensável para a gestão e o planejamento urbano. No entanto, apesar dos inúmeros projetos de
Smart City que emergem pelo mundo, não existe – até o momento – um conceito uníssono que
delimite o que seja uma cidade inteligente.
Essa falta de definição padronizada sobre o tema, contribui para que os projetos nomeados
smart sejam vinculados a agendas heterogêneas que se articulam de acordo com interesses e
interpretações específicas de cada governança. Ou seja, os atributos inteligentes podem ser
incorporados de diferentes formas e enfoque, de modo que cada gestão acabe por selecionar as
estratégias que considere mais importantes ou mais convenientes do ponto de vista político,
econômico e social. Alguns governos podem, por exemplo, implementar ações smart que priorizem
demandas mais técnicas, como o uso de dispositivos eletrônicos que otimizem operações e serviços
de mobilidade, segurança ou sistema de energia; enquanto outros, podem ser mais sensível à
questões ambientais, de transparência, participação etc.
Outra característica significativa, que diferencia esses novos modelos de gestão, diz respeito
ao nível de implementação no qual se encontram. Apesar de a maioria das estratégias smart serem
organizadas a nível local, países e nações vêm a cada dia se reestruturando para tornarem-se um
“país inteligente” (ANGELIDOU, 2014). Um dos motivos para essa mudança reside na possibilidade
de ampliar a coordenação entre as políticas de smartificação, visto que na corrida rumo à inovação,
algumas cidades acabam desenvolvendo projetos smart com base em conceitos e metodologias
díspares. Em alguns casos, um município ou até mesmo um bairro se diz inteligente sem
efetivamente promover políticas urbanas inteligentes e sustentáveis.

No contexto brasileiro, tal situação não é diferente. Na cidade de São Gonçalo do Amarante
no Ceará, por exemplo, existe o projeto Smart City Laguna (figura 1) que se denomina como “a
primeira cidade inteligente inclusiva do mundo”. O empreendimento 1, construído do zero por uma
empresa Italiana, se apresenta como uma Smart City pelo simples fato de utilizar dispositivos
tecnológicos em seus lotes residenciais. Mas, seria isso uma cidade inteligente? Será que apenas
esses recursos são suficientes para garantir que São Gonçalo do Amarante seja um território
desenvolvido e sustentável? O que uma empresa privada é capaz de garantir em termos de moradia
e qualidade de vida?

Esses projetos dispersos e pontuais, que alegam possuir o “certificado de inteligência”,


podem deixar em segundo plano questões primordiais para um planejamento voltado para a
redução das desigualdades socioespaciais e uma gestão pública voltada para a inclusão e o acesso
89

democrático aos serviços públicos. Uma visão mais completa do conceito de cidades inteligentes
demandaria a junção de um uso estratégico de todo tipo de recurso, inclusive, do capital humano,
de modo a incentivar a educação, a criatividade e a participação política de seus cidadãos,
promovendo soluções inovadoras que priorizem a qualidade de vida da população (ANGELIDOU,
2014).

Figura 1 - Imagem por Planet Smart City

Assim, no intuito de evitar essas controvérsias, o Governo Federal começou a articular a


produção de diretrizes e políticas públicas sobre o tema das cidades inteligentes. A Secretaria
Nacional de Desenvolvimento Urbano e o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em
parceria com o Ministério das Comunicações (MC), o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a Agência
Alemã de Cooperação (GIZ) e representantes da sociedade civil, elaboraram recentemente um
documento que visa unificar, orientar e articular os programas, iniciativas e investimentos público
em cidades inteligentes: a Carta Brasileira Para Cidades Inteligentes.

A Carta Brasileira para Cidades Inteligentes

A Carta Brasileira apresenta-se como “um documento político que expressa uma agenda
pública brasileira.” (BRASIL, 2020, p.14). Como supracitado, este documento foi redigido por diversos
setores da sociedades, dentre eles: agências internacionais, agentes do setor privado, órgãos do
setor público das três esferas – municipal, estadual e federal–, entidades de ensino e pesquisa e
90

membros da sociedades civil. O processo de criar este documento foi iniciado em março de 2019 e
foi concluído em setembro de 2020, sob a gerência da Secretaria Nacional de Mobilidade e
Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério do Desenvolvimento Regional (SMDRU/MDR).

A Carta é o produto de atividades, dentre elas oficinas, realizadas entre atores que a
compuseram com a finalidade de “apoiar a promoção de padrões de desenvolvimento urbano
sustentável” (BRASIL, 2020, p.16), e estabelecer um conceito nacionalmente unificado sobre o que
são cidades inteligentes. O documento é dividido em três seções – Contexto brasileiro, Agenda
pública e Perspectivas futuras –, que nos mostram um breve panorama sobre a situação brasileira
acerca deste tema e declara algumas características que deseja que as cidades inteligentes tenham,
dentre elas: diversidade, inovação no uso de tecnologias, inclusão de sua população, economia fértil
e padrões sustentáveis de produção e consumo.

Seu conteúdo é resultado de uma ação prática motivada pela assinatura do Brasil em acordos
internacionais, como por exemplo as já supracitadas Nova Agenda Urbana (BRASIL, 2020, p.10) e a
Agenda 2030. Além disso, a carta afirma ser um instrumento “para que o país se desenvolva com
redução das desigualdades em todos os níveis, formas e dimensões.” (BRASIL, 2020, p.15). Por fim,
outro motivo apresentado seria a adoção de TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) que
estão frequentemente surgindo e transformando nossa sociedade atual, para que haja diminuição
da exclusão digital e pleno direito de acesso a internet.

Já na primeira seção, a Carta Brasileira apresenta seus alvos ao elencar os atores a quem se
dirigem – políticos e gestores públicos, órgãos de controle, organizações sociais, instituições de
ensino e pesquisa e o setor privado. É importante destacar que o documento versa sobre o que cada
agente deve realizar: instituições de ensino e pesquisa devem “gerar e disseminar conhecimento,
além de apoiar agentes locais por meio de atividades acadêmicas de extensão”(BRASIL, 2020, p.14);
gestores e órgãos públicos devem implementar estratégias, articular iniciativas e dar suporte
financeiro para a criação das cidades inteligentes; e o setor privado deve “oferecer soluções criativas
e inovadoras para as cidades enfrentarem problemas públicos relevantes, indicados e reconhecidos
pela população local e socialmente legitimados”(BRASIL, 2020, p.14). Outras diretrizes abrangem o
fomento para que toda a população das cidades tenha acesso a internet, o estímulo à participação
popular em todo o processo de implantação de tecnologias, e o estabelecimento de padrões para
uso de sistemas de governança de dados e uso da tecnologia visando a transparência, a segurança e
a privacidade.

O ponto central da Carta são os Oitos Objetivos Estratégicos para cidades inteligentes. Que
91

nada mais são do que diretrizes que visam “a transformação digital sustentável nas cidades
brasileiras.” (BRASIL, 2020, p.27) Além disso, trazem detalhes de como atingir cada um dos objetivos
e como cada ator previamente mencionado deve se portar para alcançar tais realizações.

Alguns objetivos se tornam contraditórios, pois, ao mesmo tempo que a Carta revela uma
preocupação com a segurança e o uso consciente e transparente dos dados, em outro propõe a
implementação de políticas, leis, regulamentos e outros instrumentos que estabeleçam um mercado
de dados ético e inclusivo (BRASIL, 2020, p. 53). O que nos leva a questionar se tal mercado não
poderia criar uma problemática acerca do uso dos dados, afinal: como comercializar dados com
setores que visam primordialmente o lucro e mantém seu modo de operação fechado e longe da
observação da população de maneira geral e, ainda assim, manter o controle e a ética no uso dos
dados? E, além disso, qual seria o papel do poder público e outras instituições públicas ou
regulatórias na gestão e controle dos dados em uma eventual “venda” desses ativos? Seguindo esta
linha de pensamento da Carta, podemos questionar e problematizar inclusive o uso do termo
“mercado de dados” para um ponto tão crucial acerca da gestão de uma cidade.

Como Morozov e Bria (2019, p. 36) destacam, a maioria das cidades que se aventuraram pelo
universo das Smart Cities foram capturadas pelos dispositivos regulatórios do neoliberalismo, onde
o “empresariamento da gestão urbana” (HARVEY, 1996 apud VAINER, 2007, p. 5), permite que
agentes privados passem a ser encarregados de funções que antes eram restritas às instituições
públicas. Nessa nova dinâmica mercadológica os dados atuam como moedas de troca, um elemento
crucial para selar acordos.

Para cidades depauperadas que já estão sob o suplício fiscal da austeridade, esta é uma
proposta muito mais atraente: dados não entram em considerações ou em suas medições e, assim,
podem ser facilmente cedidos em troca da oferta de wi-fi ‘grátis’ para cidadãos ou de softwares
avançados de análise de tráfego para o planejamento urbano (MOROZOV; BRIA, 2019, p. 67).

Para mais, a Carta recomenda o uso de TICs de processamento de dados para identificação
de fenômenos urbanos e a sistematização de dados que sejam relevantes para o desenvolvimento
urbano e sustentável; a criação e utilização de indicadores que avaliem a situação das cidades; e
também a criação de um Sistema Brasileiro de Maturidade para Cidades Inteligentes – uma
plataforma de monitoramento das ações que cada cidade estaria tomando frente aos objetivos
propostos.

Para nós esse é um dos pontos mais problemáticos do documento. A concepção de um


método de avaliação pautado pelo “grau de maturidade” de indicadores pode acirrar a
92

competitividade entre as cidades e ampliar as desigualdades territoriais. Como citado


anteriormente, o uso de métodos avaliativos – rankings, premiações, indicadores etc. – fazem parte
de uma estratégia que movimenta um mercado global de empreendimentos e inovações
tecnológicas, no qual cidades concorrem entre si para atrair capital. Os rankings aumentariam a
dependência dos municípios por linhas de crédito e fundos financiados pelo Governo Federal. Por
consequência, grande parte das cidades ficariam dependentes desse processo, uma vez que muitas
já passam por períodos de condições econômicas desfavoráveis, permeadas por crises fiscais e
financeiras, que podem ser agravadas se levarmos em conta que uma parcela de seus orçamentos
são estipulados pelo governo federal e são passíveis de cortes. Além disso, é preciso considerar que,
no geral, as classificações são construídas a partir de diretrizes internacionais, como o International
Telecommunication Union (ITU) e o ISO 37122/2019, que não consideram as particularidades
brasileiras e podem até camuflar algumas realidades.

A título de exemplo podemos citar o caso da cidade do Rio de Janeiro que já recebeu o prêmio
de cidade mais inteligente do mundo pelo Smart City Expo World Congress de 2013, mas até hoje
enfrenta inúmeros problemas, como os elevados índices de criminalidade, saturação do sistema de
saúde, sucateamento do transporte público e ausência de esgotamento em vários pontos do
município. Como uma premiação baseada nos critérios de inovação, impacto e viabilidade, que tinha
entre seus princípios o estímulo à sustentabilidade, qualidade de vida, competitividade e eficiência
administrativa pode considerar inteligente uma cidade que não consegue transformar
positivamente a realidade de sua população? Como podemos atribuir inteligência a cidade cujo
projeto de gestão Smart amplia as lacunas sociais (ANGELIDOU, 2014)?

Considerações finais

A Carta Brasileira considera que “O futuro das cidades brasileiras depende de entender que
a transformação digital é um processo dinâmico, inédito e capaz de ser gerido. E também entender
os impactos que essa transformação causa nas cidades e nas pessoas” (BRASIL, 2020, p. 68). Sua
proposta é ser um produto base que incentivem outras instituições e organizações a construírem
produtos similares que fomentem o desenvolvimento sustentável e a construção de cidades que
façam uso de governança inteligente. Contudo, acreditamos que para além de pensar o que seria
uma Smart City no contexto brasileiro, deveríamos refletir sobre os caminhos que queremos
percorrer na busca pela cidade do futuro e por fim nos perguntarmos: precisamos ser Smart?
93

Referências Bibliográficas

ANGELIDOU, M. Smart city policies: A spatial approach. Cities, v. 41, p. S3-S11, 2014.

BRASIL. Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Brasília-DF: Ministério do Desenvolvimento


Regional, 2020.

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VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento


Estratégico Urbano. In: Org. ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. 4a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
94

RELAÇÃO ENTRE AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS


DOS EUA COM O BRASIL E AS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Carla Januário, Gabriela Duarte e Vanessa Mello61

De acordo com a historiografia, a democracia dos EUA como nação soberana começou a se
desenvolver a partir da Declaração de Independência, em 4 de julho de 1776, rompendo oficialmente
os laços políticos e econômicos que as 13 colônias tinham com o então Império Britânico, de Jorge
III.
Com a ratificação da nova constituição dos EUA em 1788, foi criado um sistema voltado para
o equilíbrio entre a forte autonomia de cada estado e a organização estatal federal. Dessa forma, o
poder central característico dos Estados federados passou para a figura do presidente da República,
representando o executivo, num sistema de “freios e contrapesos” expresso com a presença das
atividades congressuais e dos tribunais. Assim, o sistema político democrático, federativo,
republicano e presidencialista dos Estados Unidos é mantido por uma democracia representativa
assegurada por eleições indiretas.
Conforme o art. 2°, § 1, e a nova redação dada pela Emenda n° 12 (1808) ao art. 2°, § 1,
Cláusula 3, da Constituição Federal dos Estados Unidos, as eleições para presidente e vice-presidente
se dão nos seguintes termos, entre outros:

Cada Estado nomeará, de acordo com as regras estabelecidas por sua Legislatura, um número
de eleitores igual ao número total de Senadores e Deputados a que tem direito no Congresso;
todavia, nenhum Senador, Deputado, ou pessoa que ocupe um cargo federal remunerado ou
honorifico poderá ser nomeado eleitor. [...] Os eleitores se reunirão em seus respectivos
estados e votarão por escrutínio para Presidente e Vice-Presidente, um ao menos dos quais
não será habitante do mesmo estado que os eleitores; enumerarão em listas distintas os
nomes de todas as pessoas sufragadas para Presidente e para Vice-Presidente, assim como
o número de votos obtidos por cada uma delas; assinarão e autenticarão essas listas e as
enviarão seladas à sede do Governo dos Estados Unidos, dirigindo-se ao Presidente do
Senado. Todas as cédulas serão por este abertas, perante ambas as Câmaras, contando-se os
votos. Será eleito Presidente o candidato que reunir maior número de votos para esse posto,
se esse número representar a maioria dos eleitores designados (UEL, Tradução de J. Neto).

61
Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
95

Isto é, os eleitores citados na constituição são os delegados designados de cada estado, que
compõem o Colégio Eleitoral. Os estados têm direito a um delegado por distrito e dois por seus
senadores no Congresso, e eles votam nos candidatos de sua preferência. Então, o cidadão norte-
americano comum entrega seu voto aos delegados para que estes votem no seu candidato, e quem
alcançar o maior número de votos dos delegados vence a eleição. Além disso, pela autonomia
característica do sistema estadunidense, cada ente federado pode ter normas eleitorais específicas,
como a possibilidade de alguns deles permitirem recontagem de votos, se houver uma margem
suficientemente pequena de um oponente ao outro, ou o fato de a maioria usar o sistema winner-
takes-all (vencedor leva tudo), em que, caso o candidato conquiste mais da metade dos delegados
naquele estado, conquista todos os votos disponíveis do mesmo.
É a partir desse sistema, que incentiva uma configuração de estados-chaves cujos votos têm
mais peso de decisão, que a disputa eleitoral norte-americana para a presidência do país, entre
Donald Trump (Republicanos) e Joe Biden (Democratas), ocorreu. Apesar de os maiores veículos
midiáticos, os estados, o Colégio Eleitoral e o Congresso terem pronunciado a vitória de Biden, Trump
se nega a dar a eleição por vencida, e, provavelmente, nunca aceitará a derrota. Com mais de 50
processos negados nos tribunais estaduais, e 2 rejeitados na Suprema Corte (mais alta esfera judicial
do país em que ele e seus defensores contavam como certo o apoio da maioria de seus juízes), só
restou ao republicano apelar para a disposição de seus seguidores ao protesto violento. Com o intuito
de reverter a eleição em seu favor, no dia da certificação do pleito dada pelo Congresso, em 6 de
janeiro, convocou o povo ao Capitólio, acarretando pelo menos 5 mortes. Dessa forma, fica nítido o
caráter ideológico do governo trumpista de propagar ação política por meio da força, e apoiado por
Bolsonaro.
Diante disso, o cenário geopolítico dos últimos anos tem sido marcado pela ascensão de
governos que propagam um discurso baseado em ideias neofascistas (de incentivo à microviolências
não assumidas às minorias sociais, disseminação de mentiras óbvias, de cunho racista, religioso e de
apoio político e econômico voltado para as elites) aliadas ao pensamento neoliberal. O presidente
Trump, eleito pela primeira vez em 2017, foi o precursor desse tipo de discurso com amplo alcance
político, seguido por Bolsonaro, no Brasil e, em menor medida, por Boris Johnson, no Reino Unido.
Isso foi possível, entre outros fatores, pela configuração das relações internacionais predominante
vigente (realista e liberal), que permite a determinados países, como os EUA, um poder de influência
política econômica maior no âmbito global.
96

De acordo com uma live exibida no canal do jornal Brasil 247, Igor Fuser (Prof. Doutor do curso
de Relações Internacionais da UFABC), explica que a política externa dos EUA não é gerida apenas a
partir dos ideais do presidente ou de seu partido, mas é também determinada pela influência nas
políticas que vão de encontro aos interesses de atores políticos e econômicos dominantes daquele
país (Wall Street e Vale do Silício, como exemplo). Consequentemente, o objetivo atual principal
daquela nação é reaver a hegemonia econômica e política no cenário internacional, que vem
perdendo espaço para a economia chinesa, porém sem prejudicar as gigantes multinacionais norte-
americanas que desenvolvem sua cadeia produtiva naquele mercado. Dessa maneira, para impedir
esses avanços, eles pressionam seus aliados na Europa e na Ásia para que adotem posições contra o
Estado chinês. Já no cenário latino-americano, sobretudo no Brasil, as pressões são em favor de
governos neoliberais, conservadores de direita, que têm maiores incentivos para direcionar o
mercado aos interesses norte-americanos (aprofundando as relações estruturais desequilibradas
entre países centrais e periféricos), reduzindo as chances de uma política social e econômica mais
justa. Portanto, essa configuração não vai mudar e é independentemente de qual presidente esteja
à frente da Casa Branca.
Nesse sentido, o que pode mudar para o Brasil com a derrota de Trump é a ocorrência de uma
inflexão de força moral do discurso bolsonarista no âmbito das relações internacionais, pois o ponto
de apoio pelo qual o Bolsonaro baseia suas falas vem da influência específica do presidente norte-
americano. Conforme declarações já proferidas pelo próprio, especula-se que Bolsonaro, caso não
consiga se reeleger, tentará usar a mesma estratégia de Trump, que gerou indignação e ainda mais
isolamento político internacional, para deslegitimar o pleito de 2022 através da violência e do caos
social.
Assim, a política externa brasileira atual se apoia no discurso antissistema e extremista do
Trump, causando diversos constrangimentos nos fóruns mundiais, e abalando o relacionamento
cordial entre os demais governos com o Brasil, em especial com a Europa e a China. Porém, a principal
consequência política e econômica que a perda dessa influência poderá gerar, será no debate da
questão ambiental.
No primeiro debate presidencial entre Biden e Trump, os então candidatos falaram sobre o
tema da política ambiental brasileira feita pelo governo Bolsonaro. Algo sem precedentes num
debate político dessa natureza. Inclusive, Biden disse que no governo dele, se Bolsonaro não mudar
a condução da questão ambiental no Brasil, que promove a destruição da Amazônia e rompe com
97

direitos humanos ao lidar com reivindicações indígenas, ele fará uso de sanções econômicas e
comerciais para refrear essa política.
Esse tipo de sanção é previsto pelo Conselho de Segurança da ONU, nos termos do art. 41 da
Carta das Nações Unidas, em que dita a possibilidade de aplicar:

...as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para
tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os membros das Nações Unidas a aplicarem
tais medidas", que poderão incluir "a interrupção completa ou parcial das relações
econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos,
radiofônicos, ou de outra qualquer espécie. e o rompimento das relações diplomáticas (CNU,
1945, Art. 41).

Em vista disso, os EUA (sozinho ou em conjunto com outros países) sob a gestão de Biden,
podem aplicar sanções no intuito de pressionar o governo brasileiro a emitir medidas de proteção ao
meio ambiente e aos Direitos Humanos. Ou seja, com a eleição de Biden e com a ascensão de Estados
menos conservadores, principalmente na América Latina, a promessa é de que esse cenário sofra
mudanças na esfera internacional, logo, será difícil para Bolsonaro obter apoio estrangeiro. Mas, na
esfera interna, é pouco provável que algo mude de fato, já que nas últimas eleições municipais ainda
houve grande preferência da população por candidatos conservadores e de direita.
Essa análise geopolítica da influência dos EUA no âmbito político e econômico é compatível
com as vertentes teóricas positivistas (realistas e liberais), que segundo os autores Nogueira e
Messari (2005), prevalecem como teorias de relações internacionais dominantes desde o pós-guerra,
em 1945. Apesar de terem nascido na Europa, no imediato pós-Primeira Guerra Mundial, com o
intuito de prevenir guerras de grandes proporções entre os Estados e preservar a soberania de cada
nação assim como foi estabelecido no Tratado de Westfália (sem repudiar as tendências
hegemônicas e de desequilíbrios na balança de poder), as teorias foram desenvolvidas a partir dos
debates de relações internacionais promovidos com base na visão de mundo complexa e muitas
vezes contraditória dos EUA.
Essas teorias mais convencionais partem do pressuposto de que cada Estado, por ser
soberano na esfera internacional, opera num sistema anárquico em que a busca pela realização de
seus interesses por quaisquer meios necessários, com o acúmulo de poder econômico num ambiente
de livre mercado (especialmente para o uso da violência na resolução de conflitos), é natural. Além
disso, ela persegue a manutenção das relações através do equilíbrio de balanças de poder, que
impedem uma desconfiguração do arranjo internacional vigente por alguma nação em ascensão
98

(exemplo da China ameaçando tomar a dianteira hegemônica da economia mundial, através de um


modelo de socialismo de mercado). Logo, para eles, não há o que se fazer além de elaborar planos
que guiem a ação do Estado no sentido de reduzir ao máximo as possibilidades de guerra. É a visão
ser da concepção realista, que não se preocupa em como as relações internacionais e o mundo
deveriam ser. É percebida tanto nas políticas externas do governo Obama (com Biden como vice)
quanto do Trump.
Já a teoria liberal prega que, a partir da concepção funcionalista de observar o mundo como
ele é (em contraponto com a sua própria visão idealista antes da Segunda Guerra), a estrutura das
organizações depende da função que ela desempenha. Consequentemente, o foco nas funções e não
nas instituições, tira a conotação política das ações, restringindo-as ao terreno técnico. Essa forma
de pensar promoveu o fortalecimento das redes de cooperação para a resolução de problemas e a
maior integração econômica mundial. Pela ótica da interdependência, a interligação entre as
economias e a exportação mútua de cultura e padrões de consumo faz com que seja mais difícil os
conflitos escalonarem para guerras propriamente ditas. Com isso, os efeitos políticos e econômicos
em um país são sentidos nos demais.
Desde sua origem, o pensamento liberal acredita que apesar de todos nascerem iguais entre
si, nem todos são adeptos da competição e do conflito. Porém, a igualdade permite que as pessoas
enxerguem situações em que é possível a harmonização das ações em prol de interesses mútuos.
Essas ideias partiram inicialmente do trabalho de John Locke, que defendia o Estado como uma
instituição capaz de regulamentar ou mediar os direitos naturais intrínsecos ao indivíduo, como a
liberdade. Os EUA bem difundem essas ideias, porém, na nossa opinião, somente quando estas
seguem sua agenda política e, constantemente, acabam sendo uma “fonte de conflitos”, como dizem
os autores Keohane (1971) e Nye (1977), para os demais países.
Para enxergar uma visão crítica desse sistema, e de acordo com Messari e Nogueira (2005),
teorias conhecidas como críticas e marxistas foram elaboradas. Elas se contrapõem, entre outros
pontos, aos ideais realistas e liberais na medida em que não consideram o sistema anárquico como
um dado natural no ambiente externo, mas que ele é construído historicamente pelas ações dos
seres humanos a partir de limitações das estruturas sociais aos quais estão inseridos, sendo,
portanto, capazes de mudá-lo.
Assim, as teorias marxistas, de dependência e sistema-mundo, se preocupam com o
desenvolvimento desigual promovido pela configuração do capitalismo global em países centrais
(ricos) e periféricos (pobres). Nessas teorias, cada uma com um enfoque específico, a ação estatal é
99

um instrumento capaz de mudar a posição dos países na divisão internacional do trabalho, através
de investimentos, comércio e tecnologia, e de restringir a troca desigual e os desequilíbrios das
balanças de pagamentos (como importações mais fortes que exportações).
Já a teoria crítica, moldada a partir dos ideais da Escola de Frankfurt, considera fluida a
realidade hegemônica dos países na configuração internacional, no sentido de que ela não depende
só da ação dos Estados, mas de um conjunto de elementos capazes de promover mudanças
estruturais, como capacidades materiais (tecnologia e organização do Estado), ideias (comunicação
entre o povo a partir da cultura, ideologias e regras sociais) e instituições (arranjo jurídico-político
que traduz as capacidades materiais e ideias em ações dos atores sociais). Além disso, critica o fato
de que as teorias predominantes deixam de fora do debate o papel dos diversos atores na política
mundial, permitindo a marginalização das mulheres, negação dos direitos de refugiados e ignorância
quanto à importância de identidades étnicas e culturais. Desse modo, elas mostram que, ao contrário
dos discursos liberal e realista, uma mudança menos desigual do sistema atual de relações
internacionais é possível.

Referências

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100

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NOGUEIRA, J. P e MESSARI, Nizar. Teorias das Relações Internacionais: correntes e debates. 1° Edição. GEN
Atlas, 2005.
101

Parte II

CAMPOS DE PÚBLICAS E IMPACTO SOCIAL: 10 ANOS DO GPDES


102

DIVERSIDADE NA UNIDADE: OS 10 ANOS DO


GPDES E O CAMPO DE PÚBLICAS62
Por Breno Seródio63
Extensão Universitária e Reforma Administrativa

O curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, em seus 10 anos de


existência, testemunhou diversas transformações, tanto no ambiente político, econômico e
institucional do país, como oriundas do próprio Campo de Públicas. De acordo com Maria Aparecida
Abreu, as transformações da última década conferiram relevância ao curso de Gestão Pública e ao
Campo de Públicas, enquanto instrumentos de aprimoramento democrático e fortalecimento das
instituições. Após uma década de criação do GPDES, a esperança transpôs-se em resiliência e a
graduação se tornou fundamental para combater o enfraquecimento da democracia e o aumento
das repressões às dinâmicas sociais. Ao analisar os fatores causadores da instabilidade política desde
o início da década de 2010, Abreu aciona uma complexa leitura não binária, atribuída aos
movimentos que tomaram as ruas de todo o Brasil no ano de 2013, como percurso analítico para se
compreender o período recente.

Inicialmente, o caráter reivindicativo das demandas era acerca do aumento da passagem


dos ônibus, mas, em seguida, o movimento ganhou uma característica multifacetada ao lado da
despolitização, apresentando-se como uma resposta à supressão de políticas sociais, escândalos de
corrupção e crise econômica que assolavam o país. Por consequência dessa dinâmica, em 2016, a
Presidenta Dilma Rousseff (2011-2014; 2015-2916), em seu segundo mandato, sofreu o processo de
impeachment, considerado por muitos estudiosos como um golpe à democracia.

62
Memória do evento em comemoração aos 10 anos do GPDES, realizado em novembro e dezembro de 2020
https://youtube.com/playlist?list=PLLxJl5m48l9Q2acx7cqOaXLoyWgS6bcyw
63
Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ
103

Outro elemento político a ser considerado nas análises referentes aos últimos dez anos é a
existência da Operação Lava-Jato, no qual o Poder Judiciário apresentou-se como uma espécie de
bastião da moral diante dos outros Poderes, principalmente em relação ao Executivo. Para Abreu,
esse quadro tem como implicação para o Campo de Públicas a excessiva presença de carreiras
jurídicas sem a devida responsividade de suas atribuições, provocando uma paralisia nas tomadas de
decisão originadas pelo Poder Executivo. Os recentes episódios políticos tiveram importantes
implicações no Campo de Públicas e na atuação de seus profissionais.

O professor Fernando Coelho busca contextualizar a dinâmica brasileira na qual o Campo de


Públicas foi inserido, tendo em vista o Processo de Redemocratização, a partir de 1985, e que,
posteriormente, transformou-se em uma série de incertezas e regressos no âmbito das políticas
públicas.

Através deste exame, Coelho elenca os principais eventos para o fortalecimento do Campo
de Públicas no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, quais sejam: abertura comercial inserida
na dinâmica de globalização; estabilidade monetária e redefinição do quadro fiscal; processo de
reforma estatal e o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE); processo de
descentralização de políticas públicas; agenda da diminuição de desigualdade social; ampliação das
políticas sociais e sua agenda transversal; e o debate acerca da qualidade dos serviços públicos.

Não menos importante são as mudanças estruturais na Administração Pública por


dimensão/geração. As transformações na dimensão econômica do Estado, através de suas funções
reguladora, promotora e provedora, acompanhadas de equilíbrio fiscal e empoderamento da
fiscalização e controle são conceituadas como de primeira geração. A segunda geração, de caráter
administrativo, refere-se à melhoria na prestação do serviço público, desburocratização da gestão e
transparência administrativa. A terceira geração se consolida a partir dos graduais avanços
sociopolíticos, fomentados pelo reconhecimento dos Direitos Sociais, mecanismos de Participação
Social e tradução desses avanços em políticas públicas.

O Campo de Públicas, enquanto domínio intelectual, acadêmico e disciplinar autônomo do


âmbito da Administração de Empresas, se consolida nos anos de 2000, concomitantemente à
disseminação acadêmica promovida pelas políticas públicas de expansão universitária, como o
Programa Universidade para Todos (PROUNI); a Reestruturação e Expansão das Universidades
104

Federais (REUNI); o Programa Nacional de Formação em Administração Pública, do Sistema


Universidade Aberta do Brasil; (PNAP/UAB); e a expansão das universidades estaduais. A partir de
dados do INEP, de 2018, o campo conta com aproximadamente 300 cursos e 35.000 matrículas,
mostrando a relevância da área juntamente à institucionalização do movimento estudantil
(FENECAP) e docente (ANEPCP).

Por conta da multidisciplinaridade do campo e transformação do perfil de gestor público,


que anteriormente exercia um viés mais tecnocrático e pragmático, o profissional do campo de
públicas se torna mais sensível às nuances e complexidades das políticas públicas, apresentando
domínio em diversas áreas do conhecimento relevante à gestão e, assim, ressignificando o burocrata
padrão do século XX e o tornando mais responsivo aos tempos modernos.

Com relação ao mercado de trabalho da Gestão Pública, Coelho ressalta sua amplitude e
diversidade, o que permite que os egressos tenham uma gama de opções para exercerem suas
atribuições. O setor público se apresenta como principal campo de inserção, seguido da Carreira
Acadêmica e posições em Organizações Internacionais, porém não se restringindo nessas diretrizes
e se expandindo para o Mercado Privado, o Terceiro Setor e o “Setor 2.5” referente aos negócios de
impacto social. Desta forma, o Professor enfatiza o caráter multidisciplinar do profissional da área,
assim como seu olhar holístico diante dos desafios a serem enfrentados nesse ofício.

O efeito do bolsonarismo na agenda de políticas públicas

O professor Fernando Abrucio, primeiro presidente da ANEPCP, destaca a dificuldade de


construção de instituições democráticas no Brasil, fato esse que enriquece ainda mais a relevância
dos dez anos do GPDES. Ao analisar a conjuntura atual, Abrucio chama a atenção para a dicotomia
dos modelos de políticas públicas (ou antipolítica) do bolsonarismo em relação aos avanços
objetivados no Campo de Públicas, tendo em vista o processo de redemocratização brasileira, apesar
de seus problemas e complexidades, como o maior rival do projeto de Bolsonaro. A importância dos
30 anos (1988-2018) de mudanças e progressão da esfera pública no país são inegáveis aliados na
implementação de políticas públicas e parceiras de uma gestão pública eficiente em prol do
desenvolvimento. A construção do Campo de Públicas se materializou como agente fundamental
nessa transformação.
105

A luta pela construção e desenvolvimento do Campo de Públicas se configura como um


processo de suma importância no avanço do conceito de esfera pública, pois dialoga com a sociedade
civil gerando uma redemocratização para além do Estado. O retorno em potencial que esse campo
apresenta para o bem social e avanço do Estado de Direito no país é motor crucial para o avanço
social e governamental que pode ser visto no período abordado. As eleições passam a ser veículo da
representatividade e consolidação democrática, que é complementada pela busca de suprir as
demandas sociais a fim de fortalecer o regime republicano tão importante para os gestores.

Aprofundando o paralelo entre o Campo de Públicas e a redemocratização, o período


recente é considerado como um retrocesso nas conquistas dos últimos 30 anos. Fernando Abrucio
entende que o atual presidente tem o objetivo de destruir todas as conquistas ao longo do processo
pós-ditadura. O maior inimigo de Bolsonaro é o amplo funcionamento das Instituições Republicanas
e essas por sua vez, são a força motriz das Políticas Públicas. Esse governo apresenta uma clara
intenção de combater o Estado de Bem-estar Social introduzido no período da redemocratização,
apesar de suas nuances e complexidades. Houve avanços e retrocessos ao longo desse caminho,
contudo a ruptura é contemplada pelo governo de Jair Messias Bolsonaro.

Com relação à gestão do atual Governo no combate à crise sanitária imposta pela pandemia
da COVID-19, ressaltou-se que o chefe do Poder Executivo foi publicamente contrário a qualquer
implantação de política pública de apoio às populações mais vulneráveis. Ancorado pela ideologia
neoliberal, representada pelo Ministro Paulo Guedes, Bolsonaro não apresentou nenhum projeto ou
planejamento de enfrentamento concreto. Contudo, o auxílio emergencial foi aprovado pelo
Congresso, com apoio principalmente de partidos de oposição. Abrucio faz o seguinte
questionamento: “Qual seria o destino da população e do país como um todo, se não houvesse o
auxílio emergencial?”.

Ao dialogar com toda a conjuntura atual, que é crucial para o desenvolvimento de políticas
públicas assertivas e uma gestão pública cada vez mais atualizada e alinhada com o real interesse
coletivo, Fernando Abrucio anuncia que sua reação ao (des)governo Bolsonaro é exatamente o
inverso do que se espera, o inverso do desânimo e da apatia. O professor, que é peça chave na
história da construção do Campo de Públicas, ressalta a importância, mais do que nunca, da formação
de gestores qualificados, acadêmicos que possam transpor apenas do regime teórico e essencial
fomento dessa área fundamental para a manutenção da República brasileira.
106

Desafios e perspectivas do Campo de Públicas

Com a participação da Professora Gabriela Lotta (FGV/EAESP) e do Professor Daniel


Conceição (IPPUR/UFRJ), a comemoração dos 10 anos do GPDES debateu os “Desafios e perspectivas
do Campo de Públicas”. O Professor Daniel ressaltou a importância da construção de um Estado de
caráter justo, sustentável e desenvolvido em aspectos sociais e econômicos, por meio da atuação do
Campo de Públicas. A contaminação de agentes provedores de ideais contrários às ações estatais na
atual composição governamental, com enfoque no nível Federal, torna a situação muito delicada e
de certa medida insustentável, na ótica do Professor.

Ainda no âmbito das Ciências Econômicas, é abordada a grande influência de setores de


economistas que disseminam ideais falaciosos, a fim de contribuir para o desmonte do poder do
Estado como tomador de decisão. O Professor Daniel enfatizou que a principal justificativa –
tendenciosa e ao mesmo tempo refutável – é a falta de verba do Governo Brasileiro, sendo
instrumento de causa para diminuição de políticas sociais, diminuição do investimento em
tecnologia, saúde e educação, por exemplo.

Daniel abordou o fenômeno do desgaste das ações e serviços governamentais que


enfrentamos nos tempos atuais. O modelo propaga que os serviços provindos do Setor Público são
ineficientes, com excesso de procedimentos burocráticos e com dinâmicas de corrupção enraizadas,
sendo assim os serviços prestados pelo ente privado ganham espaço, são aceitos pelo senso comum
e recebem legitimidade na sociedade.

Entretanto, existem diversas situações em que as falhas e ineficiências do Setor Privado se


evidenciam em nossa rotina, porém não são atribuídas a uma falência desse setor, como é feito com
a esfera pública. A pandemia COVID-19, por sua vez, levou à tona a real capacidade de mobilização
por parte do Estado de prover ações estratégicas e ser um agente fundamental no desenvolvimento
de um país, em contradição ao Setor Privado. Ao ressaltar a importância do papel estratégico do
Estado, como provedor do desenvolvimento e gerador de inovações de fomento e melhorias sociais,
o Professor Daniel cita a economista italiana Mariana Mazzucato, que ressalta a origem estatal de
inovações que impressionam a humanidade na área tecnológica, por exemplo. Inicialmente são
projetos governamentais que ao ganharem notoriedade e relevância em seu determinado mercado
são capturados pela iniciativa privada. As contribuições da Professora Gabriela partem de uma ótica
107

da Administração Pública, no qual se ressalta a principal agenda dos setores progressistas e dos que
acreditam no Estado e buscam uma atuação estratégica: a melhoria e fortalecimento do Estado
brasileiro. Em sua análise, a destruição do campo estatal imposta pelo Governo brasileiro sucede os
Governos Petistas, que também agiram de forma insuficiente no que se refere à melhoria concreta
das condições de vida da população. Tal crítica não invalida ou nega as grandes ações desses
governos, porém busca alinhar um horizonte futuro, de modo a refletir sobre possíveis caminhos
pelos quais o Estado deve buscar se fortalecer.

O projeto de Bem-estar Social Brasileiro, da Constituição Federal de 1988, instrumentalizou


avanços primordiais citados pela Professora. O Brasil construiu instituições democráticas nos últimos
30 anos, a exemplo da criação dos conselhos de política pública: até 2015 o país apresentava 30.000
conselhos em operação, o que revela a importância da construção institucional levantada por Lotta.
A partir disso, é necessário fazer um diagnóstico desses avanços e os limites encontrados em seu
desenvolvimento, a fim de formular agendas e prioridades públicas para atingir a universalidade das
ações estatais.

Tendo em vista a expansão no sentido de promover a universalização dos serviços públicos,


o grande desafio contemporâneo do Campo de Públicas consiste na melhoria e fortalecimento das
áreas já consolidadas e atenção às áreas que não foram incluídas no processo de universalização. Um
exemplo é a universalização do Ensino Fundamental nas escolas públicas, porém o Brasil ocupa uma
posição não satisfatória no PISA, Programa Internacional de Avaliação dos Alunos, indicador
importante no meio da educação. Por isso, além de continuar com a expansão, que foi desacelerada
nos últimos anos, uma perspectiva essencial é fomentar a qualidade desses serviços já conquistados.

A construção da legitimidade se impõe como advento fundamental para o fortalecimento


das Instituições Democráticas, ao olhar popular o Estado brasileiro não apresenta caráter eficiente e
representativo, tornando a necessidade do diagnóstico estratégico crucial para o fomento de
superação dessa narrativa neoliberal. A formulação de uma agenda que busque a redução da
desigualdade se compõe de maneira intrínseca a essa construção, pois o entendimento de falhas por
parte do Setor Público irá possibilitar a ação nas pautas prioritárias, tornando-se uma perspectiva
fundamental para o profissional do Campo de Públicas.
108

Por fim, Gabriela Lotta elenca ações em que os componentes do Campo de Públicas
necessitam se engajar a fim de que o Estado alcançe uma eficiência mais satisfatória. O avanço na
integração intra-estatal, para que os circuitos de acesso dos cidadãos (principalmente os que se
encontram em maior vulnerabilidade) aos serviços públicos sejam mais facilitados com o aumento
da intersetorialidade do Estado; o desenvolvimento das relações e dinâmicas do modelo Federativo,
para que Estados e Municípios com maior vulnerabilidade sejam capazes de fomentar a produção de
Políticas Públicas efetivas; e uma agenda de construção de capacidades municipais, de
fortalecimento dos municípios são alguns aspectos ressaltados pela Professora.

Outro ponto explicitado pela Professora é uma agenda de Reforma do Estado – que nada
tem a ver com a agenda representada pelo Governo Bolsonaro – uma agenda que passe pela
profissionalização dos agentes que atuam no campo, acompanhado de uma reestruturação
organizacional para a eficiência do setor. Assim como a agenda da Transparência, de suma
importância no processo de melhoria dos serviços públicos, visto que o atual Governo Federal nos
deixou claro que a dependência da boa conduta ética de um determinado governo é uma alternativa
falha. Para que alcancemos um aumento de legitimidade do Estado, o aumento da Transparência se
apresenta como instrumento orgânico importante.
109

AGÊNCIA IPPUR: HISTÓRIAS E DESAFIOS


Equipe Agência IPPUR

Em clima de comemoração - 10 anos do curso de Graduação em Gestão Pública para o


Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES), 100 anos da UFRJ e rumo aos 50 anos do Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) -, compartilhamos a história, perspectivas e
desafios da Agência IPPUR, parte recente dessa trajetória.

O ano era 2016 e o contexto era de greve nas Universidades Federais. No intuito de
contribuir para a produção de textos que pudessem "traduzir" para um público mais amplo os
enquadramentos analíticos produzidos pelos alunos do IPPUR, o mestrando Felipe Villela de Miranda,
que vinha realizando pesquisa etnográfica e discutindo o "jornalismo gonzo" com a orientadora
Soraya Simões, convidou um colega jornalista da BBC para participar de um dos Grupos de Trabalho
formados durante a greve. Com a contribuição do jornalista, foram organizadas oficinas de textos
com aquela finalidade. A orientação da pesquisa de Felipe viria a ser marcada por esse interesse
comum na produção do texto do gênero etnográfico e do chamado "jornalismo gonzo".

A Agência IPPUR nasce então do engajamento político do corpo discente, com o objetivo de
promover o imbricamento entre o pensar e o agir na realidade, marca histórica do IPPUR.

Em 2017, a Professora Soraya Simões, jornalista de formação e antropóloga, então


coordenadora de Pesquisa e Divulgação, hoje nossa Coordenadora de Pós-Graduação stricto sensu,
propôs a Agência IPPUR como um projeto institucional. A proposta, realizada sob a Direção do
Professor Pedro de Novais, teve como concepção estruturar um núcleo gerador de informação e
divulgação das questões e debates produzidos pelos pesquisadores do IPPUR, “o que ganha
contornos mais nítidos quando apresentamos a proposta nos termos de uma agência de notícias, a
Agência IPPUR. A Agência IPPUR teria como objetivo tornar acessível ao público mais amplo a
produção do IPPUR, através do estímulo à participação do corpo de pesquisadores nos debates
públicos”, conta Soraya Simões.

Entre suas atribuições estão: i) acompanhar políticas de planejamento urbano e regional e


gestão pública, para noticiar pontos de vista e interpretações formuladas nas pesquisas em curso no
instituto; ii) fazer o levantamento de dissertações e teses defendidas no IPPUR; iii) estabelecer esta
110

produção como referência para a qualificação dos mais variados debates públicos nos campos do
planejamento e da gestão; iv) realizar entrevistas com os pesquisadores do instituto sobre temas
concernentes às suas pesquisas que estejam em pauta na arena pública; v) divulgar o andamento das
pesquisas do corpo discente, em um espaço próprio destinado a apresentar entrevistas, filmes,
fotografias e relatos das ações de pesquisa; vi) publicar pequenas notas sobre as atividades
acadêmicas do Instituto, como defesa de teses e dissertações, oficinas PUR-GPDES, PUR e GPDES,
seminários, ações de extensão; e vii) acompanhar o noticiário, visando inserir o conhecimento
produzido pelo IPPUR nos debates públicos concernentes ao planejamento territorial e à gestão
pública.

A ideia de pensar o projeto em termos de agência é “a possibilidade de produzir reportagens


com vídeos, fotografia, notas, etnografias e se consolidar como um espaço de exercícios
metodológicos e explicitação de “modos de olhar”, ou seja, das teorias e abordagens que informam
e formam as pesquisas no IPPUR”, completa Soraya, idealizadora do projeto.

Além da Agência IPPUR, o projeto contou com a criação do Boletim Informativo do IPPUR,
divulgado aos contatos do IPPUR com notícias de lançamento de livros, congressos, editais, bolsas,
cursos e eventos acadêmicos, de modo a criar um espaço de circulação de informações de interesse
comum a todos.

Sob a Direção Colegiada de Orlando Alves dos Santos Júnior, a coordenação de Pesquisa,
Divulgação e Documentação foi assumida por Deborah Werner e Lalita Kraus, momento em que a
Agência IPPUR foi articulada à área de Comunicação Social do curso de graduação em GPDES. Através
do Boletim IPPUR, damos publicidade às atividades do Instituto, artigos informativos, pesquisas,
seminários, editais para o público acadêmico e não acadêmico, o que se torna um grande desafio
pela linguagem a ser utilizada, as ferramentas de comunicação a serem dominadas, a gestão de redes
sociais, um mundo novo a ser conhecido.

Desde a concepção do projeto, a Agência IPPUR vem se configurando em um espaço aberto


não apenas para a Comunidade do IPPUR, mas para outros cursos de graduação, pós-graduação e
centros de pesquisa no Brasil e no exterior, além do público não acadêmico. O Boletim chega a cerca
de 2 mil pessoas, entre estudantes, pesquisadores, professores, técnicos, instituições parceiras e
movimentos sociais; número que se amplia quando se considera a interação promovida pelas redes
111

sociais. Para tanto, conta com o apoio de profissionais de jornalismo, pesquisadores da área de
programação, pesquisadores da pós-graduação do IPPUR e extensionistas do GPDES, além dos
Professores e Técnicos do IPPUR, e se consolida como um projeto de construção coletiva, comum,
que envolve várias mãos, mentes e ideias!

O Boletim IPPUR

Stephanie Assad e Rafael Vidal, doutorandos do IPPUR, foram os responsáveis pelo layout
do Boletim IPPUR, relançado em novo formato a partir de 2019. “A concepção do Boletim foi iniciada
pelo esforço de elaborar uma ferramenta simples de criação/edição – o BenchMark, com o intento
não apenas de que toda a equipe pudesse contribuir com a diagramação do Boletim, mas com a
intenção de criar diálogos mais fluidos e horizontais, permitindo a adesão de novos membros na
Agência, sem uma relação de dependência com aqueles que participaram da concepção da
empreitada”, ressaltam eles.

O desenvolvimento da diagramação optou por um padrão, um layout, simples, de fácil


edição, mas com uma identidade visual forte que permitiu tanto a periodicidade do Boletim, sem um
novo e exaustivo processo de diagramação, como a abertura de novas peças gráficas a partir de uma
base estabelecida.

“Destacamos que acionamos uma paleta cromática alinhada com a usada no universo
representativo do IPPUR: mantendo a relevância dos tons vermelho, branco e preto. O Boletim foi
diagramado com o esmero merecido para um boletim institucional, mantendo uma relação de
diálogo e proximidade com outros boletins informativos de instituições/universidades públicas
nacionais. Por fim, o mais importante: houve um imenso cuidado na criação de um produto acessível
para os leitores, divulgado por email e com links diretos para o já existente site institucional do IPPUR,
sendo imperativo manter tanto a qualidade como a acessibilidade do Boletim”, completam.

Com o apoio de Thiago Pereira, obtivemos, em 2020, uma nova conquista. A criação de uma
ferramenta de elaboração própria para o Boletim, realizada a partir do layout anteriormente criado
por Stephanie e Rafael, que nos permitiu autonomia para elaborar o informativo em uma plataforma
original, criada sob as demandas da Agência IPPUR. Thiago Pereira é estudante de Física da UFRJ e
de Análise e Desenvolvimento de Sistemas da Estácio e compartilha a experiência:
112

“Participar do processo de criação de uma nova ferramenta para o Boletim foi um grande
desafio, visto que precisávamos manter um layout já existente e criar uma ferramenta de usabilidade
mais simples que a anterior, aproveitando os pontos positivos de outras ferramentas similares e ao
mesmo tempo adicionando funcionalidades exclusivas feitas especialmente para um boletim
acadêmico. Vem sendo um trabalho muito gratificante também, pois estamos promovendo a
autonomia técnica do Instituto, através de um serviço customizado que possa ser ampliado de acordo
com as necessidades do IPPUR. A criação da ferramenta foi feita no formato de módulos, para
permitir a implementação de novas funcionalidades com as seguintes facilidades: módulos de criação
e edição de boletim, de disparo dos boletins via e-mail, de visualização dos boletins no navegador e
os módulos de gerenciamento de listas de recebimento. Atualmente, o foco tem sido criar
funcionalidades adicionais para os módulos existentes e criar outros módulos para adicionar novos
recursos a plataforma”.

Thiago ressalta, ainda, que a característica modular possibilita a adaptação e reutilização


desse sistema para uso em outros institutos, laboratórios, núcleos de pesquisa etc., o que permite
que essa autonomia chegue à universidade como um todo. Por esse aspecto, a partir da Agência
IPPUR, vinculamos o campo de públicas e planejamento urbano e regional, ao campo tecnológico,
com ênfase na inovação. “Atualmente, vem sendo desenvolvida uma nova versão dessa plataforma
que será utilizada e disponibilizada em breve no Github sob licença GPLv3, podendo assim ser usada
por outras instituições que desejarem”, enfatiza Thiago.

A Pauta do Boletim

A partir das orientações de Breno Procópio, jornalista contratado por seis meses pela
Agência IPPUR, aprendemos várias técnicas editoriais, linguagem jornalística e instrumentos e
ferramentas de mídia, transmitidos aos nossos colaboradores, estudantes do GPDES, da pós-
graduação e dos laboratórios do IPPUR. Com a vinda de Raquel Isidoro, Clarice Rocha, Maria Paula
Gusmão e Maria Fernanda Fontenele, as atividades de redação foram por elas assumidas para a
elaboração e consolidação do Boletim desde a pauta até o envio aos leitores. A pauta é montada de
maneira colaborativa, com envio de artigos, chamadas de editais de eventos, revistas, temas
relacionados aos campos de PUR e Públicas e áreas correlatas.
113

Além das chamadas temáticas para artigos, recebemos propostas de publicação dos leitores,
que encontram no Boletim IPPUR um espaço de intensa e profícua troca. Todas as matérias
publicadas no Boletim IPPUR estão disponíveis no site do IPPUR que, a partir do informativo, é
continuamente alimentado com temas diversos, o que o torna mais dinâmico. As colaborações são
propostas pelo corpo social do IPPUR, mas também por pesquisadores de outras instituições da UFRJ,
do Brasil e do exterior, como México, Argentina, Chile, entre outros, e podem, portanto, ser em
português, inglês ou espanhol. Essa experiência evidencia a importância do informativo para o
intercâmbio de ideias e divulgação de pesquisas acadêmicas e contribuições não acadêmicas, como
poemas, crônicas, vídeos, podcasts.

De acordo com Clarice Rocha, “em um ano trabalhando na Agência IPPUR, consegui
perceber claramente o impacto do Boletim IPPUR na divulgação das pesquisas e eventos do Instituto
como um todo. Principalmente no âmbito da graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento
Econômico e Social (GPDES), acredito que o Boletim teve um papel fundamental para a maior
integração do curso às atividades do Instituto, proporcionando o espaço necessário para que os
graduandos pudessem fazer parte da construção de iniciativas dentro do IPPUR. Recentemente,
percebemos um grande aumento no número de contribuições de discentes nas matérias lançadas
pelo Boletim, além de fazerem parte de sua própria construção, através da Agência IPPUR. Na minha
perspectiva, eu percebo que o Boletim é espaço de diálogo fundamental para a difusão do
conhecimento acadêmico, além desse trabalho servir como uma prestação de contas da universidade
para a sociedade como um todo, criando um espaço de debates tão relevante para o atual cenário
do país, frente aos ataques que o espaço acadêmico sofre constantemente”.

Com a pandemia do Covid-19 e diante da necessidade de manter a coesão do corpo social


do IPPUR em tempos de trabalho remoto e isolamento social, o Boletim IPPUR foi lançado
semanalmente e se consolidou enquanto importante meio de comunicação institucional, mas mais
que isso, proporcionou um espaço de manifestação de ideias, reflexões e debates no árduo e hostil
momento em que vivemos. A retomada das atividades de ensino em período excepcional exigiu a
adaptação do fluxo do informativo, agora quinzenal.
114

As redes sociais

Uma ação de suma importância para ampliar a divulgação do Instituto é a gestão das mídias
sociais, que passaram a ser monitoradas por Raquel Isidoro, pesquisadora do Laboratório Espaço e
colaboradora da Agência IPPUR.

“Na atualidade, fazer comunicação científica é aprender sobre o impacto que as mídias
sociais desempenham, impulsionam e influenciam no cenário científico, social, político, cultural”,
afirma Raquel.

As mídias sociais são um importante espaço para compreensão da defesa de investimentos


públicos em ciência, educação e tecnologia. Além de favorecer a interdisciplinaridade, o aprendizado
e o reconhecimento do pesquisador, da pesquisa e da ciência. Entretanto, visualizar as mídias sociais
como um canal apenas de difusão abafa o intenso processo de produção de conteúdo, cuja finalidade
é promover uma comunicação que ensine, engaje, atraia e informe.

“As mobilizações para que instituições de ensino e fomento incentivem pesquisadores a


produzir conteúdo nas mídias sociais aumentaram. No entanto, a produção de conteúdo e a gestão
das mídias sociais com qualidade é trabalhoso, exige técnica, recursos financeiros e, em alguns casos,
reconhecimento do próprio campo científico. As mídias sociais ainda não são populares nos espaços
científicos. Um dos debates sobre a produção de conteúdo no ciberespaço é sobre pontuação em
métricas de avaliação acadêmica, ou seja, que possam ser pontuados de modo semelhante aos
artigos científicos. Nesse sentido, algumas revistas passaram a exigir, além do artigo, um mini vídeo
do resumo do artigo”, ressalta Raquel.

No caso do Boletim IPPUR, nos últimos cinco meses, o objetivo foi consolidar o IPPUR nas
mídias sociais. Apesar das plataformas do Facebook, Instagram e Twitter já existirem, não tinham
engajamento e interação. O Facebook tinha um grande número de seguidores, aproximadamente 5
mil, mas com apenas 1% de interação. Ao assumir a gestão das mídias sociais, Raquel teve como
proposta a consolidação da lista de e-mails internos para melhorar o fluxo de ações internas ao
Boletim e engajar a rede interpessoal dos colaboradores e pesquisadores do Instituto. Além disso, o
projeto envolve a consolidação do IPPUR no Instagram, uma plataforma em crescimento no aspecto
de busca de conteúdo rápido, informativo e educativo. Como resultado, os engajamentos das mídias
115

sociais do Instagram e Facebook, aumentaram para 8%. O número parece baixo, porém sem um
investimento específico e sem impulsionamento de campanhas, nosso caso, a média é de 5%. Além
disso, as visitas ao site do IPPUR aumentaram.

“Ter uma instituição nas mídias sociais envolve entender qual é a melhor mídia e o objetivo
em um período de tempo específico, análise de rede, métricas e outros, além de assumir o risco de
não ter o resultado esperado. No momento que assumi a gestão das mídias sociais, eu não era
especializada em plataformas e mídias sociais. Sou pesquisadora científica sobre o que podemos
chamar de ciência do digital, mas as expertises de ação demandaram horas de dedicação. Na Agência
IPPUR tive esse incentivo, de aprendizado contínuo. O trabalho em equipe e assumindo as redes
sociais dentro da Agência IPPUR fui aprimorando meu conhecimento, realizando cursos de análise e
gestão de mídias sociais e de ciência de dados, além de monitorar páginas diversas (desde empresas,
institutos e projetos). Recentemente, passei a focar minhas consultorias em projetos de impacto
social para mídias sociais. Participar da Agência IPPUR foi e é ser direcionada a diversas possibilidades
de crescimento. Eu cresci, a Agência cresceu, nossa comunicação cresceu e as interações nas mídias
sociais também. O resultado foi superior ao esperado”, conta Raquel Isidoro, que é colaboradora
voluntária da Agência IPPUR.

Os Debates IPPUR e o Canal da Agência IPPUR

Em função da pandemia, outros projetos que estavam apenas nos planos precisaram ser
executados. Esse foi o caso do Canal Youtube da Agência IPPUR. A partir da proposta da doutoranda
Nathália Azevedo, o canal foi criado para promover os Debates IPPUR, com o intuito de promover a
discussão sobre temas relevantes da área de planejamento urbano e regional, gestão pública e áreas
afins, a partir de propostas dos pesquisadores, graduandos, pós-graduandos, técnicos e professores
do Instituto.

Durante a suspensão das atividades de ensino, os debates ocorreram semanalmente. Com


o retorno do período letivo excepcional, a atividade ocorre nas terceiras segundas-feiras de cada
mês. Desde abril de 2020, quando realizamos o primeiro debate, já foram transmitidas inúmeras
atividades, com a participação da Comunidade IPPUR e do público externo. O canal conta com mais
de 2 mil seguidores que acompanham as transmissões do canal e enviam comentários, perguntas e
sugestões.
116

A criação do canal viabilizou ainda a realização de seminários, cursos e atividades de


extensão em caráter remoto, assim como um espaço para a postagem de entrevistas, vídeos e
palestras. O Canal se consolida, portanto, como mais uma ferramenta de difusão do conhecimento e
troca de saberes. Para a transmissão, contamos com a colaboração de extensionistas dos projetos de
extensão do Instituto e do servidor Will Boente, que realizam a divulgação, a transmissão e matérias
sobre o evento para o Boletim, entrevistas, etc.

A partir do canal da Agência IPPUR, ampliamos o alcance de nossas discussões para além do
Boletim IPPUR e de produções acadêmicas, se configurando em uma excelente ferramenta de difusão
para públicos distintos.

Desafios para o futuro

As ações futuras envolvem a publicação do Boletim em outros idiomas, o que demanda uma
reformulação e tradução do site institucional do IPPUR; a tradução Português-Libras das atividades
no Canal da Agência IPPUR; e a consolidação da ferramenta própria de envio do Boletim.

Além disso, a Agência está organizando os vídeos institucionais dos laboratórios, núcleos e
grupos de pesquisas do Instituto, entrevistas com professores, técnicos e discentes, assim como a
publicação em nosso canal de palestras e atividades realizadas presencialmente, por ora arquivadas.

Dessa maneira, buscamos consolidar a Agência IPPUR como um informativo de referência


para as áreas de Planejamento Urbano e Regional e Gestão Pública e um espaço de difusão do
conhecimento e promoção do intercâmbio entre o público acadêmico e não acadêmico. Todos esses
desafios estão subordinados a um maior: o de fortalecer o projeto institucional da Agência IPPUR,
como um espaço de registro e preservação da memória, perene, capaz de expressar a pluralidade, a
diversidade e interdisciplinaridade que marcam o IPPUR, sua contribuição intelectual e política em
seus 50 anos de história.
117

A DESCONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA
SOCIAL E DA CIDADANIA URBANA NO
BRASIL64
Maria Fernanda Fontenele Azevedo, Laura Fernandes Oliveira Meres, Yeda Assunção e Ebraim
Souza65

Depoimentos de Liara Lima, Leandro Tavares e Matheus Mendonça

A Professora e Pesquisadora Sonia Fleury, expoente da Reforma Sanitária no Brasil, que


resultou na criação do Sistema Único de Saúde – SUS, em 1988, abordou, em conferência virtual, a
questão das políticas sociais no contexto democrático contemporâneo. Fleury apresentou o
surgimento do estado de bem-estar social, que deu início à implementação de políticas sociais, no
segundo pós-guerra, e o seu desmoronamento, a partir da década de 1970, com o advento das
políticas neoliberais.

A proteção social nos estados se consolida em torno de três modalidades: o assistencialismo,


a previdência e a seguridade social, sendo a última comum ao Estado de bem-estar social. A primeira
delas, o assistencialismo, baseia-se em valores liberais, segundo os quais os indivíduos devem buscar
sua ascensão no mercado, restando aos que fracassarem as transferências governamentais. Esse
modelo geraria uma cidadania invertida, pois o cidadão deve mostrar sua incapacidade de
sobrevivência para garantir o auxílio e ser reconhecido como cidadão. O segundo modelo é o de
previdência, no qual os benefícios são meritocráticos, acarretando uma cidadania regulada pela
ocupação no mercado de trabalho. A última modalidade é a da seguridade, oferecida pelo estado de
bem-estar social, cuja cidadania é universal, financiada pelo trabalho, mas também através de
subsídios governamentais.

Fleury apresenta a questão do patriarcalismo frequente nos programas sociais, que vem
sendo combatida com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e também com o aumento

64
Memória da aula inaugural do IPPUR em 2020 com Sonia Fleury. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=UA6mTkWN8tg&t=25s
65
Graduandos de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
118

da expectativa de vida, a partir do tríplice: estado, mercado e cidadania. Contudo, esse triângulo tem
sido alterado pela globalização, tendo em vista o surgimento de poderes supranacionais (as empresas
transnacionais que se tornam mais fortes que o próprio Estado) e mercados internacionalizados
(desterritorialização da produção). De acordo com a pesquisadora, a única variável que se mantém é
a cidadania.

Diante da dominância financeira, o Estado deixa de ser um ente arrecadador para se tornar
devedor. A grande questão torna-se o fato de como financiar políticas públicas, já que o Estado não
consegue arrecadar o suficiente e o pouco que arrecada é destinado ao pagamento de juros da dívida.
Desse modo, gera-se uma desconfiança quanto à legitimidade da democracia e da participação
popular no processo decisório. A partir disso, o mercado financeiro ganha cada vez mais força,
tornando o capital o grande gerenciador da questão social.

Para a Sonia Fleury, a individualização dos riscos torna as pessoas ricas ainda mais ricas, o
que foi ilustrado durante a atual pandemia, em que houve maior concentração de grupos ativos na
bolsa de valores. Além disso, segundo a sanitarista, as novas tecnologias devem ser adicionadas a tal
questão pois alteram a forma produtiva, acarretando uma precarização do trabalho e em políticas de
austeridades, através da contenção dos gastos públicos e redução da proteção social. Após o projeto
social-democrata ruir no Brasil, sobretudo a partir de 2016, a cidadania universalizada vem sendo
cada vez mais fragilizada e ameaçada, dando lugar ao processo de instauração de uma democracia
oligárquica.

Sonia Fleury resgata a Constituição Federal de 1988, com ênfase nos artigos que tratam da
cidadania e da questão social, para afirmar que as demandas sociais deveriam ser equacionadas, com
o propósito de encontrar soluções para problemas cruciais no atendimento da população em relação
às questões sanitária, de saúde, de mobilidade social, habitação, entre outras, em busca de uma
estratégia para o enfrentamento desses desafios, abarcada na tecnologia e na ciência, trazendo para
a cena política tanto novos sujeitos como aqueles à margem do processo decisório.

O enfrentamento da questão social não deve ser apenas uma proposta de combate à
pobreza, mas deve promover a construção da cidadania. A partir dos anos 1990, houve a implantação
dos planos universais com arquitetura democrática-participativa, inovadora, promovendo o acesso
da população a uma diversidade de benefícios antes reservados às elites: educação pública, regras
119

para o salário mínimo, saúde universalizada, cotas raciais etc, de modo a propiciar à população um
conjunto de direitos. Por outro lado, o período também foi marcado pela política de austeridade,
aspecto recrudescido a partir de 2016, o que promoveu um retrocesso nos direitos adquiridos:
redução de direitos trabalhistas, desmantelamento das forças sindicais, precarização do trabalho e a
Emenda Constitucional 95, o “teto dos gastos”, entre outras medidas, que expressam o
fortalecimento da extrema-direita no país.

Por tais aspectos, a construção da cidadania no processo democrático tem sido ameaçada
por um populismo autoritário e assistencialista que aparece em resposta à pandemia do Covid-19. A
discussão do estabelecimento de uma renda mínima universal, hoje, está distante da realidade
brasileira.

Expressa esse quadro as condições de moradia e mobilidade precárias em contexto de


pandemia: evidencia-se que as pessoas mais afetadas são as que têm acesso precário ou inexistente
aos serviços públicos, o que revela as consequências da pandemia em contexto de ausência de
políticas públicas, o que as torna mais vulneráveis. As desigualdades sociais sempre existiram, mas
apenas quando ameaçam a coesão social, os fundamentos da ordem social, é que são vistas como
questões sociais. A despeito desses aspectos, é necessário reconhecer também o crescimento das
lutas em torno do comum, o que tem mobilizado e propiciado a formação de lideranças forjadas
nessas lutas.

Em linhas gerais, devemos lutar por políticas públicas eficazes e combater o arrefecimento
de direitos e a perpetuação da cidadania invertida, por uma reforma urbana-sanitária e um sistema
de políticas justas e universais.

Depoimentos

A brilhante contextualização histórica e teórica da pesquisadora Fleury permitiu


compreender, de forma crítica, o contexto em que estamos vivendo hoje, possibilitando visualizar a
relevância das questões urbanas e como as mesmas passaram a ser questões sociais com demandas
inadiáveis, tendo em vista o cenário de grande desordem política, social e econômica oriunda de
transtornos sanitários.
120

Para nós, futuros gestores públicos, o entendimento de questões sociais vinculadas às


questões urbanas é de suma importância para que possamos compreender, estudar essas
problemáticas e, consequentemente, elaborar soluções e intervenções políticas. Além disso, a
palestra foi um convite para que tenhamos propostas que possam ir além do auxílio emergencial,
promovendo, por exemplo, uma renda universal de cidadania, uma reforma urbana e o
fortalecimento dos sistemas universais de proteção social.
121

POLÍTICAS SOCIAIS E PLENO EMPREGO: A


TEORIA MODERNA COMO ALTERNATIVA66
Clarice Rocha e Lucas Dipp67
Colaboração de Daniel Conceição e Kaio Pimentel68

O Seminário “Políticas Sociais e Pleno Emprego: a Teoria Moderna da Moeda como


alternativa”, contou com a participação de Randall Wray, professor de economia no Bard College,
senior scholar no Levy Economics Institute e um dos principais autores sobre a Teoria Moderna da
Moeda. O evento, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), também contou com a mediação
de Carlos Gadelha, professor do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz, além da presença de Pedro Rossi, professor do
Instituto de Economia da Unicamp, e José Márcio Camargo, professor do Departamento de Economia
da PUC-Rio.

A partir da perspectiva brasileira sobre a “crise econômica” hoje vigente no país, o debate
trazido por Randall Wray é de fundamental importância para o entendimento das finanças públicas
como propulsoras do desenvolvimento econômico no país. O discurso predominantemente aceito
pela opinião pública sugere que o Estado está quebrado e precisa urgentemente reduzir o
crescimento dos gastos públicos. No entanto, a Teoria Monetária Moderna (MMT, sigla em inglês),
proposta pelo professor, apresenta uma perspectiva distinta a essa, compreendendo que, para um
governo que gaste na moeda que ele mesmo emite, é possível o financiamento de políticas públicas
enquanto houver capacidade produtiva suficiente para atender um aumento na demanda agregada.
Nesse sentido, há, segundo Wray, a possibilidade de adoção de novas políticas públicas, responsáveis
por atender as demandas da população. Levando em consideração a disseminação do pensamento
hegemônico, é de relevante necessidade que outras perspectivas, assim como a MMT, sejam

66
Evento ocorrido em 26 de novembro de 2019.
67
Graduandos de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
68
Professores do IPPUR/UFRJ.
122

apresentadas ao público brasileiro, com o objetivo de abrir espaço para novas concepções sobre o
atual cenário econômico em que o país se encontra.

Durante o seminário, Randall Wray apresentou brevemente seu estudo, iniciado há 25 anos.
Segundo ele, a MMT não seria exatamente inovadora, mas sim uma adaptação à atualidade de
diversas teorias econômicas heterodoxas, ajustadas às características da sociedade contemporânea.
Assim, o professor refutou a visão convencional de que estados soberanos enfrentam restrições
orçamentárias e que as políticas monetárias existem apenas com o objetivo de controlar a inflação.
Alternativamente, a teoria do professor apresenta a moeda como uma criatura do Estado, e
requalifica os impostos como os principais instrumentos para dar valor às moedas estatais, ao invés
de serem caracterizados como financiamento do gasto público. Assim, a Teoria Moderna Monetária
apresenta as origens e a natureza da moeda, o papel do Estado nesse entendimento, junto ao papel
das taxações, a criação de uma moeda soberana e também gera o questionamento sobre a
possibilidade de um governo ficar sem dinheiro.

De maneira bastante simplificada, as proposições centrais da Teoria Monetária Moderna


focam na relação entre Estado, emprego e inflação. Segundo essa teoria, o Estado deve direcionar
seus gastos em busca do pleno emprego, com a estabilidade de preços, através das chamadas
Finanças Funcionais. A partir disso, Wray contesta diretamente a ideia que se precisa aceitar
desemprego para que não haja inflação, assim como rejeita a hipótese de que exista uma taxa de
desemprego natural. Segundo ele, seria possível superar essa relação a partir da atuação do Estado
como o “empregador de última instância” (Employer of Last Resort, ou ELR). O ELR, por sua vez, é
uma política pública que garante emprego a todo indivíduo que assim desejar, com um salário base,
mínimo, que ajudará a estabilizar os preços da economia. A ideia é que, no cenário de vigência do
ELR, o governo incremente não apenas a demanda agregada - tendo um salário para todos os que
quiserem um posto de trabalho - mas também aumente o produto da economia. Portanto, a oferta
agregada seria estimulada, nesse sentido, pelos esforços do governo.

Um ponto a ser destacado na teoria de Wray é a relação dos trabalhadores do ELR com o
setor privado, onde o último poderia facilmente absorver trabalhadores no programa governamental
mediante uma oferta de emprego com acréscimo de salário. O fato dos participantes do programa já
demonstrarem disposição para trabalhar facilitaria a sua absorção pelas firmas. Assim, o que
sustentaria essa política seria a troca do desemprego como estabilizador de preços da economia pelo
123

salário do ELR. Isso não significaria, por outro lado, abandonar todas as demais políticas fiscais e
monetárias, mas sim direcioná-las como políticas anticíclicas, buscando induzir a demanda do setor
privado para o equilíbrio dos preços e pleno emprego. Em outras palavras, o desemprego deixaria de
servir como âncora dos preços graças ao exército industrial de reservas, deixando de lado o
pressuposto de que exista uma taxa “natural” de desemprego que não acelera a inflação, baseando
o nível de preços da economia no salário mínimo pago aos participantes do programa. A ideia de
manter a população economicamente ativa em atividade, mesmo em períodos de crise, com o
objetivo de estabilizar a economia é bastante atrativa, e os estudos da Teoria Monetária Moderna se
aprofundam nesse sentido. Assim, há oferecimento de um contraponto ao senso atual de
contracionismo ferrenho e à análise orçamentária voltada para a adequação à agenda neoliberal
internacional.

Sendo assim, o seminário tratou, basicamente, da importância da conexão entre a economia


com as políticas sociais, a saúde e os direitos humanos, o que se sustenta como uma barreira no
âmbito acadêmico e prático. Tanto José Márcio Camargo quanto Pedro Rossi relacionaram a Teoria
Moderna da Moeda à perspectiva econômica brasileira. Enquanto Camargo discordou de Wray e
afirmou que o estado brasileiro enfrenta uma restrição orçamentária, Pedro Rossi concordou com
Wray sobre a inexistência de restrição orçamentária e alegou que o orçamento deve se ajustar às
demandas sociais para a consolidação de um sistema político e econômico democrático. Deste modo,
foi evidenciado o papel fundamental do Estado brasileiro na reafirmação dos direitos sociais em meio
à crise vigente no país, em divergência com a insistência em cortes de gastos realizados pelo governo.
Nesse sentido, as políticas de austeridade centradas na redução do gasto público acabam implicando
em recessão e desemprego, o que diminui a arrecadação tributária. Por outro lado, assim como no
Brasil desde 2015, o conjunto de medidas de austeridade sequer consegue resolver o “problema”
das contas públicas que diz combater.
124

O DESMONTE DAS POLÍTICAS DE


PLANEJAMENTO NO BRASIL69
Clarice Rocha70

A mesa de encerramento da XXV Semana PUR, teve como tema “O desmonte das políticas
de planejamento no Brasil”, e contou com a presença de Cristiano Vilardo, analista ambiental do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Claudio Crespo,
antigo diretor de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Nabil Bonduki,
arquiteto, urbanista, professor universitário e político. Neste espaço, foi construída a ideia de que o
evento organizado pelo IPPUR é uma resistência frente ao atual cenário político-estrutural brasileiro.
O tema do evento, nesse sentido, foi considerado de extrema relevância para as instituições
brasileiras de modo geral, principalmente aquelas que possuem a pesquisa como principal meio de
sobrevivência, assim como a UFRJ propriamente dita.

Claudio Crespo iniciou a fala a partir do entendimento da “informação” como principal


elemento produtor de conhecimento, configurando-se como um meio de detenção do poder.
Atualmente, tal poder passou a representar um instrumento do retrocesso, sendo necessário que
haja o questionamento sobre a maneira de dar sentido ao conjunto de informações diariamente
disponibilizadas. Como defender a informação, uma vez que ela está sendo usada para o uso
ideológico do atraso?

Neste cenário defensivo, Crespo analisa que o ataque à informação é uma das principais
causas dos enfrentamentos às instituições responsáveis por criá-las, estando inserido o desmonte de
políticas públicas como meio de desconstrução do conhecimento científico e de ataque direto à
democracia. Este processo acentuou-se ultimamente, sendo responsável por gerar uma
reconfiguração da estrutura social brasileira – iniciada a partir da ruptura política – que impactou
diretamente os segmentos da população que representam a força de trabalho. A irracionalidade da
informação e do trabalho, nesse sentido, impactou diretamente as estruturas do IBGE, que sofre
constantemente ataques contra sua estrutura e seu ideal. Por fim, Crespo deu fim à sua fala

69
Memória da mesa de encerramento da XXV Semana PUR – 2019.
70
Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
125

incentivando a criação de uma unidade das forças de trabalho, sendo esta necessária a partir da
complexidade da sociedade contemporânea.

Como conseguinte, Cristiano Vilardo evidenciou a desconstrução da pauta ambiental hoje


presente nas estruturas do governo vigente, sendo responsável por realizar embates diretos a tudo
aquilo conquistado frente às lutas populares. Nesse sentido, o discurso ambiental possui um caráter
extremamente importante em sua simbologia, uma vez que é responsável por criar uma realidade
almejada, transformando a ideia em uma mudança concreta. Ele analisa que está em curso, nesse
sentido, a tentativa de destruição – ou da redução da importância – de mecanismos fundamentais
para a preservação ambiental, como, por exemplo, por meio de ataques diretos ao CONAMA.

Assim, os impactos diretos na preservação do meio ambiente, de comunidades indígenas,


populações tradicionais e instituições componentes do arcabouço de proteção ambiental estão
sendo concretizados por meio da paralisação de órgãos responsáveis pela manutenção orgânica dos
mesmos. Vilardo conclui, nesse sentido, que a resistência por meio da narrativa é extremamente
necessária frente às mudanças vigentes no âmbito das políticas públicas.

Por fim, Nabil Bonduki contribuiu para o debate a partir de uma ampla caracterização acerca
do desmonte do Estado, analisando a desconstrução daquilo que foi democraticamente conquistado
pelo povo. A destruição das políticas públicas, deste modo, se dá em diversas esferas
governamentais, estando impregnada até mesmo no discurso do corpo social brasileiro, que cada
vez mais acredita que o Estado deve ser liberalizante e não regulador. Sabe-se que o Estado é
responsável por conter os avanços dos interesses privados frente aqueles de interesse público, no
entanto o que ocorre é a desconstrução desta maneira de governança estatal. Deste modo, assim
como os outros participantes da mesa, Bonduki apresenta a necessidade da luta pelo direito à cidade
e da resistência como principal meio de combater o pensamento retrógrado então incorporado pela
sociedade brasileira.
126

OS “DESASTRES DA MINERAÇÃO” NO BRASIL71


Carla Beatriz Januario, Clarice Rocha72
Colaboração Suyá Quintslr e Deborah Werner73

A Aula Pública “Desastres da mineração no Brasil”, vinculada à disciplina de Política e


Planejamento Ambiental, do curso de Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento
Econômico e Social, foi ministrada pelo Professor Luiz Jardim Wanderley e discorreu sobre as
implicações territoriais da exploração de minérios no Brasil.

A partir dos desastres ocasionados pelo rompimento das barragens do Fundão, em Mariana
e da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas em Minas Gerais, nos anos de 2015 e 2019, e
sob a responsabilidade das empresas Samarco e Vale, respectivamente, Luiz Jardim enfatizou os
efeitos socioambientais, econômicos e jurídicos decorrentes da dependência econômica das regiões
às atividades da mineração, assim como as contradições oriundas da perspectivas de
desenvolvimento que derivam desses projetos.

Mineração e Impactos Territoriais

A expansão da mineração deve ser compreendida à luz das transformações territoriais


decorrentes da atividade mineradora e dos conflitos territoriais que envolvem, de um lado, a
apropriação de recursos naturais para a acumulação capitalista e, de outro, a apropriação dos
territórios por outros grupos sociais como camponeses, ribeirinhos, posseiros e povos tradicionais
que, frente aos ditames econômicos da acumulação capitalista, têm inviabilizadas suas formas de
reprodução social. Agrava-se o caráter conflituoso, a ocorrência de racismo ambiental e processos
de desigualdade ambiental vinculados à exploração mineral, perspectiva que denuncia que os riscos
e as violações de direitos humanos associados aos projetos recaem, recorrentemente, sobre grupos
vulneráveis em termos étnicos, raciais e socioeconômicos.

71
Memória de palestra proferida pelo Professor Luiz Jardim Wanderley (UFF) em aula pública intitulada “Os desastres
da mineração no Brasil. A palestra ocorreu em 13 de novembro de 2019.
72
Graduandas em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
73
Professoras do IPPUR/UFRJ.
127

Em contraposição à sustentabilidade atribuída à mineração, Luiz Jardim destacou os impactos


cotidianos na vida das populações afetadas pela exploração mineral, como a contaminação do lençol
freático e a inviabilidade de outras formas de relação com a natureza.

Aponta-se ainda a incompatibilidade da mineração aos preceitos de sustentabilidade, uma


vez que a recomposição físico-ambiental torna impossibilitada a retomada de sua estruturação
original. Portanto, a atividade de mineração por si só, a despeito de “desastres”, deve ser considerada
como geradora de impactos e processos disruptivos, o que remete ao conceito de “Amputação da
Natureza”, de Gudynas.

A recompensa viria pelo bom desempenho da balança comercial, geração de empregos e


aumento da renda, elevação nas receitas fiscais, desenvolvimento tecnológico, entre outros aspectos
relacionados ao entendimento da ideia de desenvolvimento. No entanto, tais aspectos devem ser
relativizados, em decorrência da especialização em produtos primário-exportadores de baixo valor
agregado, baixos salários dos trabalhadores da mineração, dependência da região à atividade
mineradora e vulnerabilidade diante do ciclo de preços das commodities, conforme os dados
apresentados por Jardim.

Fragilidade e Negligência fiscalizatória

Os conflitos mencionados, somados ao caráter disruptivo da própria atividade mineradora,


em decorrência dos procedimentos para a extração de minério, requerem a gerência territorial
intensiva por parte de órgãos reguladores do Estado. No entanto, os casos analisados revelaram
indícios de negligência por parte das empresas aos procedimentos de segurança das barragens, assim
como a corrupção de agentes públicos e privados vinculados aos procedimentos regulatórios e de
fiscalização.

Por outro lado, revelaram-se também a fragilidade financeira, humana e material dos órgãos
fiscalizadores por parte do Estado em seus diferentes níveis de governo e o inadequado marco
regulatório, que estabelece o processo de autorregulação por parte das empresas, responsáveis por
fornecer informações para que, a partir delas, os agentes fiscalizadores emitam pareceres sobre os
danos e riscos das barragens. Os casos de Mariana e Brumadinho evidenciaram conflitos de
128

interesses entre as empresas contratantes e as auditorias contratadas para a elaboração de relatórios


de fiscalização, que alegaram a segurança das barragens.

Entretanto, apesar da ocorrência de 9 desastres entre os anos de 1986 e 2019 (1986, 2001,
2006, 2007, dois em 2008, 2014, 2015 e 2019), ainda se tem consolidada na opinião pública a ideia
de que a mineração é uma atividade de “baixo ou insignificante” risco para a população e o meio
ambiente, o que evidencia o poder desse setor em conformar um discurso contrário às evidências
empíricas, para o que contribui a campanha midiática em favor da mineração.

Cabe ressaltar o imbricamento entre os interesses da classe política e os interesses das


empresas de mineração. O financiamento das campanhas no ano de 2014 revelou a importância dos
recursos oriundos da mineração aos candidatos, o que pode justificar a influência das mineradoras
sobre os legisladores, aspectos identificados na elaboração do Plano Nacional de Mineração, na
participação de Conselhos e Fóruns deliberativos e na elaboração de propostas de marcos
regulatórios e flexibilização da legislação ambiental. Ainda assim, cada vez mais gestores privados
têm ocupando cargos públicos, o que leva a uma transferência da lógica privada para a gestão pública
e para a forma de planejar e gerir os territórios.

Diante dos impactos sociais e ambientais, por que ficar à mercê das barragens?

A resposta estaria na dependência econômica da União, dos estados e municípios à


exploração mineral, o que leva à especialização, à vulnerabilidade e à subordinação econômica e
política do país e das regiões aos processos decisórios dessas empresas. Além da dependência na
geração de empregos diretos e indiretos gerados pela mineração, apesar dos baixos salários médios
pagos, as regiões tornam-se dependentes das contrapartidas financeiras das empresas aos
municípios, estados e União - a Compensação Financeira pela Exploração de recursos minerais
(CFEM). Ressalta-se que para muitos municípios essa é a principal receita, o que reforça a
dependência dos entes federados aos recursos e dificulta maiores questionamentos por parte do
poder público e da sociedade à ação das mineradoras.

A situação dos entes federados é agravada pela Lei Kandir (lei complementar n°87, de 1996),
que isenta de pagamento de ICMS as exportações de produtos primários e semielaborados, a serem
compensados aos estados pela União, repasse esse ainda não regulamentado. Como consequência,
129

os estados primário-exportadores alegam perda de arrecadação em suas receitas. Se de um lado a


mineração geraria receitas para a região, por outro, a especialização primário-exportadora condena
os estados a renunciar sua principal fonte de receita, impactando inclusive o pacto federativo.

Frente à oscilação dos preços dos minérios, as empresas buscam compensar perdas
financeiras, quando da queda dos lucros, o que pode levar à contenção de gastos com segurança das
barragens e medidas compensatórias, culminando nos “desastres”. Logo, além das condições fiscais
e da dependência econômica dos estados e municípios à mineração, agrava-se a vulnerabilidade dos
territórios à reversão cíclica dos preços no mercado de commodities. Jardim apresentou uma relação
estreita entre a queda dos preços das commodities minerais e os rompimentos de barragens, o que
evidencia que as empresas alteram não apenas suas decisões de investimentos frente às expectativas
de lucro, mas também seus dispêndios com medidas de segurança e compensações ambientais, caso
tais gastos afetem sua rentabilidade frente à queda das receitas. Tal situação, somada à fragilidade
regulatória, revela a grave situação a que são expostos os territórios da mineração.

Mineração e Desenvolvimento?

Resta-nos o questionamento quanto a possibilidade de desenvolvimento das regiões


mineradoras e para o próprio país, caso sejam mantidas a subordinação de geração de emprego e
renda aos mercados internacionais, a fragilidade regulatória em termos ambientais, sociais e
trabalhistas e a estrutura fiscal oriunda da especialização primário-exportadora de commodities
minerais que caracterizam a economia brasileira. Tal modelo nos coloca à mercê das reversões
cíclicas nos preços internacionais, inibe atividades econômicas de maior valor agregado, restringe os
encadeamentos produtivos e pressiona pela eliminação de grupos sociais e ecossistemas não
vinculados ao uso intensivo e espoliativo dos territórios. O alcance de um desenvolvimento
entendido como autônomo, potencializador da diversidade econômica, social, ambiental e cultural,
que amplie os horizontes de possibilidade da sociedade brasileira, exige imediata alteração da rota
em curso.
130

SAÚDE MENTAL NO AMBIENTE


UNIVERSITÁRIO74
Por Bruna M. M. Fagundes75

Em roda de conversa organizada pelo Centro Acadêmico do curso de Gestão Pública para o
Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES), tratou-se da saúde mental do corpo social da
Universidade. A mesa foi composta pelas psicólogas Driele Francisco, Gabriela Leite e Rebecca Alcici
e pela médica Gabriela Fidelis, que fazem parte do Projeto Ressignificar.

Foram discutidas as medidas de prevenção ao sofrimento psíquico no ambiente


universitário, do trabalhador ao estudante, na medida em que se verifica o aumento de doenças
como a síndrome do impostor, a depressão e ansiedade no meio acadêmico. Possivelmente, a
cobrança por produtividade, a competição, a incerteza de um futuro e a quantidade de informações
relativas ao futuro da Ciência no Brasil têm gerado o aumento das doenças psíquicas.

A roda de conversa abordou diversos assuntos, como as pressões sociais que os estudantes
recebem das famílias, da sociedade e de si próprios. Vale ressaltar que a UFRJ recebe muitos
estudantes de outros estados brasileiros, e que, muitas vezes, fazer a formação universitária longe
da família exige mais do aluno e, por isso, recomenda-se que tenha um acompanhamento psicológico
ao longo do curso.

O corpo docente foi citado diversas vezes, pois são eles que estão diretamente relacionados
na troca de conteúdo intelectual e no acompanhamento do semestre. Por conseguinte, entende-se
a necessidade de escutar esses, pois lidam com uma rotina de prazos e pressões diárias. Os técnicos
administrativos — que são profissionais vistos muitas vezes como invisíveis dentro do espaço
acadêmico — também foram lembrados pela importância no funcionamento da instituição.

Por fim, foram discutidos o papel do SUS, o funcionamento do Núcleo de Apoio à Saúde da
Família (NASF) e o desmonte na saúde pública como um todo. Com isso, levantou-se a questão dos
cortes que já estão recebendo as áreas da psicologia e psiquiatria, e como tudo isso irá afetar a saúde

74
Memória do debate promovido pelo Centro Acadêmico dos Estudantes de Gestão Pública para o Desenvolvimento
Econômico e Social (CAGesP/GPDES/IPPUR), no dia 04 de novembro de 2019.
75
Graduanda de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
131

daqueles que precisam desses atendimentos em especial a população vulnerável, composta em sua
maioria por negros, pardos e indígenas.
132

MINERAÇÃO E TERRITÓRIOS EM TEMPOS DE


COVID-1976
Por Beatriz Gomes, Daiane Sousa, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro77

A primeira live do Ciclo de Debates IPPUR, ocorrida no dia 25/05/2020, abordou a temática
“Mineração e territórios em tempos de Covid-19”, com a participação Thiago Ferreira, doutorando
no IPPUR/UFRJ e funcionário da Petrobrás na área de Responsabilidade Social da empresa, e Francine
Damasceno Pinheiro, advogada popular atuante nos direitos humanos e pesquisadora pós-
doutoranda do IPPUR/UFRJ, debateram, em conferência virtual, os efeitos da pandemia Covid-19 nos
territórios da mineração.

Thiago Ferreira abordou a temática a partir da Mina Guaíba, no Rio Grande do Sul, e Francine
Pinheiro tratou dos casos de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.

Em um primeiro momento, expôs-se a exploração mineral a céu aberto de carvão na Mina


Guaíba, um projeto da empresa nacional COPELMI, localizada a 16km de Porto Alegre/RS e que,
segundo os dados de Thiago Ferreira, se tornará a maior mina deste tipo da América Latina. Com isso,
o pesquisador apontou que esta área, segundo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) elaborado pela
empresa, proporcionará geração de empregos em massa, royalties e crescimento econômico.
Contudo, movimentos sociais apresentam divergências em relação ao diagnóstico ambiental
realizado pela empresa devido à desocupação crescente em outras atividades essenciais para a
economia local, como o turismo e os serviços.

Além disso, há na região um assentamento pioneiro na produção de arroz orgânico que será
compulsoriamente removido, todavia mantendo resistência à atividade mineradora.

Ressalta-se, ainda, que o papel ativo do Poder Público como viabilizador da atividade,
fornecendo apoio jurídico e embasamento econômico, assoma às disputas de narrativa a dicotomia
de benefícios socioeconômicos desvinculados dos impactos ambientais causados pelas empresas
mineradoras. Desse modo, menciona-se a condição atual de atividade essencial deferida pelo

76
Memória do 1º Debates IPPUR, realizado em maio de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=22w2Tc8QtL4
77
Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
133

governo, em meio à pandemia do Covid-19, menosprezando as consequências da poeira tóxica,


emitida pela exploração, aos pacientes com quadros de insuficiência respiratória.

Considerando o contexto pandêmico, Thiago Ferreira apresentou a condição enfrentada


pelos trabalhadores da mina, ressaltando a relação direta entre o número de infectados e a
precariedade da atividade. É questionada, portanto, a primazia atribuída à exploração mineral como
retomada do crescimento pós-pandemia, pois desconsidera a posição da sociedade civil, que a
identifica como propensa a causar doenças respiratórias na população local, além dos
reassentamentos compulsórios.

O eixo do debate encaminha-se para a questão humanitária com a apresentação de Francine


Pinheiro, ao abordar as violações das empresas mineradoras, com foco naquelas da Bacia do Rio
Doce. Analisa-se, então, a trajetória da atividade mineradora, configurando-se como um conflito
socioambiental, visto que viola os direitos difusos desde o início da proposta de implementação da
exploração mineral, quando, no momento decisório, são omitidas informações, processo que suscita
embates com populações locais.

As empresas mineradoras buscam compensar os danos socioambientais causados através


de doações, todavia muitos dos projetos são implementados em regiões já marcadas pela negligência
do poder público em prover serviços públicos de qualidade, o que tende a se agravar com a instalação
dos projetos. A pandemia adiciona mais um fator de precariedade ao impactar a saúde dos
trabalhadores, já expostos a altos níveis de contaminação. Francine Pinheiro cita os desastres de
Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), abordando questões técnicas de implementação dos
projetos, como a construção de um refeitório ao lado da barragem, e questões financeiras, como as
indenizações, realizadas de forma lenta para os atingidos pelos rompimentos das barragens, aspectos
que impactam na integridade física dos trabalhadores.

No âmbito da pandemia, o Poder Público definiu a atividade mineradora como essencial, o


que se opõe à preservação da saúde da população local. Francine Pinheiro atenta-se, ainda, para o
compromisso estatal com políticas públicas capazes de reparar integralmente a sociedade, preservar
áreas ambientais determinantes, além de rever os impostos cobrados sobre a exploração mineral.
134

Diante da pandemia do Covid-19, a questão sobre mineração e territórios trazida à tona por
Thiago Ferreira e Francine Damasceno Pinheiro aponta para a necessidade de ação assistencialista e
reparadora por parte das autoridades públicas aos trabalhadores e moradores locais. As disputas de
narrativas em torno da mineração demonstram a precariedade promovida pela atividade mineradora
e a luta social que vai de encontro aos graves impactos ambientais causados pelas empresas.

De acordo com os pesquisadores, ao final do debate, em resposta às perguntas do público,


a destinação do carvão explorado no Sul brasileiro para geração de energia, tratado como o novo
pré-sal, torna-se preocupante, assim como o devido cumprimento do Marco Regulatório da
Mineração, cuja efetivação reforçaria conflitos sociais entre as populações indígenas, quilombolas e
agrárias contra os empresários e o Poder Público.

Os debatedores também apontaram para o fato da essencialidade da atividade mineradora,


em tempos de Covid-19, ser de interesse privado e não público, confrontando com os direitos
humanos no que concerne à proteção do indivíduo. Em suma, os pesquisadores destacam como
problemática a prevalência da questão econômica frente à social, uma vez que os retornos à
população não são tão benéficos quanto a repercussão negativa da exploração mineradora, o que
leva à necessidade de rever o próprio modelo de desenvolvimento brasileiro, orientado para a
exportação de commodities agrícolas e minerais.
135

O SEGREDO SOBRE O GASTO PÚBLICO QUE A


PANDEMIA REVELOU AO MUNDO78
Beatriz Gomes, Daiane Souza, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro 79

Diante do contexto da maior crise sanitária desde a Gripe Espanhola (1918-1920), a


discussão sobre o futuro da economia no Brasil tem sido pauta de diversas frentes políticas e
preocupação geral de toda a população brasileira. Daniel Conceição explicou como o governo
precisou aumentar muito os seus gastos, em um momento no qual a arrecadação de impostos caiu
substancialmente, para amenizar os efeitos econômicos da pandemia. A importância do gasto
público é defendida, principalmente, a partir da atuação do Estado como transferidor de renda, em
um momento de recuo da economia, uma vez que o cidadão com dinheiro poderá continuar
consumindo o que ainda pode ser produzido.

Conceição apresenta que, antes da pandemia, o entendimento de que o Estado não


precisava se preocupar com os gastos até certo ponto, ou seja, até o limite da inflação, era visto como
insensatez. A partir do quadro crítico desenvolvido ao longo da quarentena, a população deixou de
lado essa visão limitada e, assim, Daniel Conceição defende a importância do gasto público e afirma
que, após a pandemia, será inevitável que os Estados aprendam sua necessidade ativa, independente
da arrecadação. O pesquisador aponta que, por conta da pandemia, a “Teoria Monetária Moderna”
veio à tona e o mundo precisou admitir que o discurso dos Estados não poderem emitir moeda é
falacioso, tendo em vista que o Banco Central sempre pode financiar o gasto deficitário do governo
federal de qualquer tamanho. Casos ao redor do mundo assim ocorreram, como nos EUA, cujo
Federal Reserve System (Fed) emitiu base monetária para conter o colapso do sistema financeiro,
inclusive através da oferta de empréstimos a governos municipais. Mesmo na Inglaterra a cultura de
austeridade não impediu o financiamento em massa de políticas públicas no combate ao Covid-19
pelo Banco da Inglaterra.

Por conseguinte, a “Teoria Monetária Moderna” molda-se a partir do entendimento


diferenciado sobre moeda, permitindo imaginar políticas fiscais de acordo com a realidade social e

78
Memória do 2º Debates IPPUR, realizado em 1 de junho de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OySZRLR_u_U
79
Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
136

econômica, ao passo que encontra o equilíbrio sobre as demandas socioeconômicas da atual crise
sanitária. Conceição alega, então, ser necessário pensar a economia em função de dois fatos pouco
conhecidos. Primeiramente, deve-se reconhecer que o Banco Central (Bacen) pode criar recursos
para satisfazer as necessidades do Tesouro Nacional. Por isso, os Estados podem gastar mais do que
arrecadam. Afinal, a moeda é uma relação contratual, ou seja, uma relação de crédito estabelecida
entre o Estado e a sociedade.

Para Daniel Conceição, entender o que é moeda compõe entender que a moeda em si é uma
dívida pública e, portanto, o endividamento estatal é uma inevitabilidade em uma economia
monetária. O problema não é se o Estado terá dinheiro para gastar, pois é ele quem emite a moeda,
todavia a preocupação deve ser com a aplicação dos recursos e a formulação de políticas públicas já
que a má compreensão sobre a definição de dinheiro e sobre a natureza dos títulos públicos limita a
ação estatal.

Kaio Pimentel argumenta que o debate econômico no Brasil está orientado pela defesa da
austeridade fiscal e aponta que, por mais que concorde com Daniel Conceição sobre o fato do Estado
brasileiro não ser fiscalmente restrito, existem diversos posicionamentos contrários a isso. Diante da
pandemia, muitos dos agentes econômicos defensores da austeridade estão mirando no pós-
pandemia. Apesar de aceitarem que devem haver uma expansão dos gastos públicos deficitários para
enfrentar a pandemia, não abandonam a ideia de que será necessário equilibrar as contas públicas
no futuro.

É importante frisar que, para Pimentel, foi crucial o fato de o governo suspender as medidas
que regulam as políticas fiscais do país, a partir do reconhecimento do estado de calamidade pública
e o teto dos gastos (EC 95), para que o Estado brasileiro pudesse dar resposta à pandemia.

Partindo-se de um relativo consenso de que o governo deve agir para combater os impactos
econômicos da pandemia, deve-se definir a maneira como o Tesouro Nacional obterá recursos para
gastar. Neste caso, há certa controvérsia, pois há quem acredita que o financiamento via emissão
monetária, por meio do Banco Central (Bacen), teria um custo menor em termos de impacto no nível
de endividamento público. No entanto, a ideia de que o déficit público não viraria dívida pública é
uma falácia, pois a transformação de base monetária em dívida pública remunerada é regulada pelo
setor privado, através da compra e venda dos títulos públicos. Outro fator relevante, apresentado
137

por Pimentel, é a rotatividade do dinheiro na classe trabalhadora, tendo em vista que os mais pobres
consomem sua renda integralmente, retornando aos bancos as reservas bancárias que poderiam
então ser aplicadas em dívidas públicas remuneradas.

Dado que os economistas em geral concordam com a atuação do governo, há quem defenda
o retorno das políticas de austeridade no pós-pandemia. Isto significa que o Brasil voltaria a respeitar
o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal, suspensa por conta do decreto de Calamidade
Pública. Kaio Pimentel aponta que o governo pediu empréstimos externos para pagar o auxílio
emergencial e que, com isso, elabora uma narrativa visando a volta da austeridade, no pós-pandemia.
Contudo, a pandemia mostrou que o governo não se encontra quebrado, sendo essa uma falácia
utilizada para constranger o gasto público e restringir o espaço para a implementação de políticas.
Por conseguinte, o pesquisador aponta que, se o possível que aconteça uma abrupta queda na
reconstrução econômica do país, visto a crise ocasionada pela pandemia.

Sobre a possibilidade do risco de inflação, os Professores entendem como remoto, pois


mesmo num contexto de significativa desvalorização cambial os índices não têm sido afetados,
existindo apenas uma mudança relativa nos preços de alguns produtos, como, por exemplo, a
inflação de alimentos cuja concentração de consumo está mais alta, devido à quarentena. Contudo,
isto não tem contaminado o restante dos preços, apesar da existência de um problema, causado pela
desvalorização cambial, em certos produtos, como combustível e custos da indústria, que podem ser
repassados ao longo da cadeia produtiva.

Kaio Pimentel aponta, ainda, que o perigo inflacionário derivado de aumento de emissão de
moeda é falacioso, tendo em vista a queda da demanda. Daniel Conceição afirma que pressões
inflacionárias não são por excesso de demanda agregada, que seria a única razão para um esforço
contracionista. Além disso, o país encontra-se em situação de rearranjo de comportamento de gastos
individuais como da estrutura produtiva, podendo causar eventos pontuais de inflação, como
acontecido no começo da quarentena em produtos como álcool em gel e máscaras cirúrgicas.

Quanto aos setores importantes no pós-pandemia, Conceição aponta que o esforço mais
urgente é aquele que funciona como resposta à crise sanitária. Em segundo momento, a melhor
forma de combater os desarranjos pontuais através de políticas públicas não é reduzir gastos, mas
apontar os setores críticos, estimulando a produção. De um modo geral, para sair dessa depressão
138

socioeconômica, o professor aponta que o estímulo do setor público deve ser capaz de reverter a
queda da demanda privada.

No que se refere à taxação dos mais ricos e à implementação de uma Renda Básica Universal,
apesar de bem-vindas do ponto de vista redistributivo (macroeconômico), Daniel Conceição afirma
que não se deve usar como forma de financiamento para o Estado, visto que não é necessário, já que
o Estado pode simplesmente criar mais moeda para gastar, e não seria suficiente para tal objetivo.
Sobre a questão de um auxílio permanente, o professor afirma que tais políticas dialogam com as
políticas de garantia de emprego, pois são formas de colocar dinheiro na mão das pessoas e de
mobilizar recursos materiais da economia. Seria importante avançar, assim, na proposta de renda
básica, não somente como forma de garantir a sobrevivência das pessoas, mas também para nos
preparar para o processo de automatização dos processos produtivos.

Por fim, no debate sobre o gasto público durante a pandemia e a recessão, devido à crise
sanitária, os pesquisadores ressaltam a necessidade de desmistificações de conceitos econômicos
falaciosos. O primeiro deles, a teoria de falência do Estado e por último, o conceito de moeda. As
reflexões dos Professores contribuem para esclarecer sobre diversos conceitos macroeconômicos e
sanar confusões acerca do tema durante o cenário de crise sanitária e econômica, enfrentado pelo
Brasil atualmente.
139

A RECONSTRUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL


DE DESENVOLVIMENTO URBANO80
Maria Fernanda Fontenele81

Em conferência virtual, Ana Paula Bruno, doutora em Arquitetura e Urbanismo e servidora


pública federal, e Marco Aurélio Costa, economista e técnico em Planejamento e Pesquisa do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), abordaram a temática do desenvolvimento urbano
no cenário político atual.

Com atuação no antigo Ministério das Cidades e atual Ministério do Desenvolvimento


Regional, Ana Paula Bruno ilustra a transformação pela qual o mesmo passou, desde o início da
gestão do Presidente Jair Bolsonaro (2018-2022). Apresentou a fusão de cinco secretarias nacionais,
com eixos diversos, perpassando segurança pública, mobilidade, saneamento e habitação. Para a
servidora pública federal, deve-se assinalar as perdas e ganhos dessa incorporação, tendo em vista
como positiva a possibilidade de resolução e abordagem de assuntos territoriais dentro de uma
instituição estruturada. Contudo, desde 2007, aponta-se que não há protagonismo da Política
Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), à medida que os temas urbanos passam a ocupar um
papel secundário no debate político.

Ao apresentar as bases da PNDU, Bruno afirma que há incorporação de novas agendas e


perspectivas sistêmicas, como o desenvolvimento urbano sustentável, que abarca temas transversais
em torno da dimensão do desenvolvimento econômico. Desse modo, é indicada a organização geral
da política, que possui uma visão estratégica sobre o território brasileiro, com uma abordagem
multiescalar e interfederativa. Ao fim de sua fala, Ana Paula Bruno apresenta as parcerias estratégicas
da política, como entre Brasil e Alemanha (Projeto Andus) e com o IPEA.

Marco Aurélio Costa, por sua vez, contextualiza e ilustra as diretrizes gerais da PNDU, tendo
em vista a Constituição Federal de 1988. Desse modo, o economista destrincha a política, explorando
os pormenores da lei, abordando, também, questões de financiamento, a partir de limites e conflitos

80
Memória do 6º Debates IPPUR, realizado em 29 de junho de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=gi_1pK-2Ovc
81
Graduanda de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ
140

do federalismo fiscal brasileiro. Além disso, Costa reforça as agendas, temas e desafios que Ana Paula
Bruno aborda, a partir de uma diversidade territorial e múltiplas escalas.

Por fim, são respondidas questões dos internautas, como a questão do processo de
elaboração da Carta Brasileira sobre Cidades Inteligentes e sobre a possibilidade de inserção da
temática metropolitana no processo da PNDU, no contexto atual. Evidencia-se que, em um momento
de reformulação política, a questão urbana passa por uma reestruturação conceitual, alinhando
desenvolvimento sustentável com produção econômica, baseada em uma visão multidimensional do
território.
141

ATUALIZAÇÃO PROFISSIONAL DE SERVIDORES


PÚBLICOS NA ÁREA DA SEGURIDADE
SOCIAL82
Rodolfo Leonardo Nunes83

O IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) participou ativamente do


Festival do Conhecimento da UFRJ de 2020. Ressalta-se, neste artigo, a atividade promovida pela
Professora Renata Bastos da Silva, do IPPUR, e da egressa da Escola de Serviço Social da UFRJ, Aline
Souto Maior.

A proximidade das participantes com o tema, no caso da professora Renata, adveio de sua
atuação como coordenadora da Secretaria de Educação do Município de São Gonçalo, no Rio de
Janeiro, onde também teve proximidade com a Secretaria de Saúde da municipalidade. Também
atuou como professora no curso de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF) para
alunos do curso de Serviço Social. É Membro-Fundadora do Instituto Gramsci Brasil. É professora do
IPPUR, e na graduação atua como professora no curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento e
Social e faz pesquisas nas áreas de políticas públicas, educação, assistência e também na área das
políticas públicas ligadas à economia e cultura. Já Aline Souto Maior, com 23 anos de experiência na
área, é formada em assistência social pela UFRJ, Mestre em Política Social pela UFF e Doutora em
Ciências Sociais pela Universidade de Guanajuato no México.

A atividade do Festival do Conhecimento decorreu do curso de extensão da UFRJ


coordenado pela professora Renata Bastos com o tema “Busca de Capacitação por Profissionais da
Área de Seguridade Social”, que fora ministrado no ano de 2019 pela equipe da professora na
Prefeitura do Rio de Janeiro. O curso tem por premissa a capacitação para profissionais da área e está
disponível para outras Secretarias da Seguridade Social, bastando que se tenha disposição de local

82
Memória da live no Festival do Conhecimento da UFRJ, realizada em 20 de julho de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=-dQ1yOCXPDQ
83
Graduando de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social -IPPUR/UFRJ.
142

com equipamento para sua realização. O curso de extensão foi criado a partir do reconhecimento,
por parte da Pró-reitoria de Extensão (PR5), de demandas por profissionais da área.

O diálogo entre as participantes tratou dos desafios do caráter gratificante da atuação na


área, tanto do ponto de vista da intervenção quanto do ponto de vista da formação para subsidiar e
influenciar tais intervenções. As participantes falaram sobre a importância do marco fundamental da
política de assistência social, a Constituição Federal de 1988. Com a CF/1988, ficou posto que as
políticas de assistência social, um dos pilares da Seguridade Social, são um tipo de política pública e,
como tal, seria dever do Estado realizá-la. Também foram tratadas algumas particularidades desta
política, como o seu caráter não contributivo, fortalecendo a ideia de cidadania onde este tipo de
política se ancora.
143

EPIDEMIA E ORDEM PÚBLICA – A CIDADE DO


RIO DE JANEIRO NO SÉCULO XIX84
Por Beatriz Gomes de Souza, Daiane M Sousa Santos, Maria Fernanda Fontenele e Mayara
Pinheiro85

A partir de uma perspectiva histórica, a Professora Fania Fridman, o doutor em


Planejamento Urbano e Regional, Carlos Henrique Ferreira Júnior, e o doutorando do Programa de
Pós- Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Rafael Vidal, abordam a cidade do Rio de
Janeiro, no século XIX, no que diz respeito à relação entre os problemas de saúde pública decorrentes
de diversas epidemias da época e o território. Os pesquisadores apresentaram as duas correntes
ideológicas que pautaram os debates da época e as proposições feitas para abrandar os efeitos das
crises sanitárias que assolaram a cidade no início do século. Com base no artigo de autoria de
Friedman e Ferreira Jr., publicado no livro “Na Saúde e na doença: história, crises e epidemias:
reflexões da história econômica na época da Covid-19”, organizado por Rita Almico, James Goodwin
Jr. e Luiz Fernando Saraiva, a professora Fania aponta as diversas epidemias que afligiram o território
central do Rio de Janeiro no século XIX, sob as perspectivas do Socialismo Romântico e do trabalho
do médico, vereador e presidente da Junta de Saúde, José Pereira Rego, o barão do Lavradio. Por
conseguinte, os autores aprofundam as análises sobre as medidas adotadas do ponto de vista do
planejamento urbano e regional.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar a definição teórica de Socialismo Utópico, definido por
Friedman como uma forma de denúncia da modernidade europeia, desde o século XVIII. Desse modo,
apesar dos avanços civilizatórios, a modernidade causava enorme sofrimento às grandes cidades. Em
função disso, propunha-se, como via de resolução de conflitos, a criação de um socialismo cristão ou
de uma cidade republicana, cuja organização possuísse respaldo no setor industrial, no descanso
dominical, na igualdade das mulheres, nas sociedades de auxílio mútuo e na homeopatia.

84
Memória do 4º Debates IPPUR, realizado em 15 de junho de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=AG86yc2IKg0
85
Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ.
144

A higiene pública, tratada como um movimento higienista, consistia em uma medicina com
o intuito de implementar políticas de prevenção de doenças e para ornar uma cidade sã. Era, para os
Socialistas Românticos, um modelo de organização para tornar a cidade um corpo saudável.

Além disso, Fania Fridman apresenta duas perspectivas complementares à noção higienista.
A primeira é que as doenças podem ser transmitidas pelas condições sociais, isto é, pela
insalubridade do ambiente de trabalho e o excesso da jornada de trabalho, e, por fim, com a filosofia
presente no Socialismo Utópico, com autores como Charles Fourier, Victor Considerant, Saint Simon
e Pierre Leroux, a professora ressalta a contribuição destes no processo de formação do
planejamento urbano como forma de solução aos problemas sanitários das cidades. Fourier afirma
que as cidades são o epicentro das graves dificuldades sociais, sendo uma das soluções a organização
em falanstérios. Contudo, o discípulo de Fourier, Victor Considerant, também contribuiu para a
reflexão do higienismo nas cidades, a partir da ideia de construção de uma cidade com a eliminação
dos cafés e casas de jogos, limpeza das ruas e abolição da escravidão. Entretanto, Saint Simon
defende que a verdadeira higiene ou verdadeira base cristã estaria na organização científica da
indústria e dos homens. O discípulo de Saint Simon, Pierre Leroux, por sua vez, defende que o
socialismo consiste na não repressão das mulheres pelos homens, dos estrangeiros pelos nacionais
e dos proletários pelos burgueses. Os higienistas propunham soluções mais concretas com um viés
global, tal como um rascunho para a solidificação de ideais de planejamento urbano a partir de uma
reestruturação total das cidades.

Considerada a primeira experiência concreta do Socialismo Romântico no Brasil, o fracasso


dos falanstérios na cidade do Rio de Janeiro contrapõe-se à chegada de médicos como Benoit Mure,
editor do jornal O Socialista da Província do Rio de Janeiro, assim como a construção de Casas de
Saúde Homeopáticas e de um Instituto para o ensino da homeopatia. O periódico de 1845 já
abordava a questão socialista como um progresso universal e o seu fim no ensino aos homens a se
amarem uns aos outros. Por isso, eram abordadas questões como a demarcação de terras indígenas,
a abolição da escravidão, reformas e a conservação do que era bom e o aperfeiçoamento do
insuficiente.

A partir da análise de diversos periódicos, Fania Fridman conclui que, para os discípulos de
Fourier, fundadores do Instituto Homeopático, a distribuição de medicamentos homeopáticos era de
suma importância, já que, a homeopatia era considerada a medicina dos pobres. É o caso observado,
145

por exemplo, no periódico A Nova Minerva, que veiculava os benefícios da homeopatia, em 1846,
cujas críticas ao uso da violência no controle das epidemias eram feitas constantemente. Era criticada
a ideia de que os pobres eram responsáveis pela sua condição de pobreza e falta de higiene. Muitos
dos autores do periódico, inclusive, criaram Juntas de Caridade, resguardadas por um fundo
municipal de impostos sobre aluguéis. O semanário A Abelha afirmava a importância da fiscalização
de estabelecimentos pelas autoridades sanitárias e administrativas e, além dos processos industriais
com preceitos da higiene pública, propunha a criação de uma legislação de regulação de duração do
trabalho nas oficinas.

A professora encerra sua fala pontuando a importância do grupo de médicos homeopatas


que propunham uma intervenção nas cidades, no sentido de amenizar os efeitos das epidemias, sem
violência. Isto significaria, portanto, uma maior atuação do Poder Público.

Em seguida, o professor Carlos Henrique Ferreira Jr aborda os comentários do Segundo


Barão do Lavradio, José Pereira Rego, na obra ‘Esboço Histórico das Epidemias Que Tem Grassado na
Cidade do Rio de Janeiro: Desde 1830 a 1870”, na qual o autor faz um grande levantamento a partir
de todas as fontes então existentes sobre as doenças que afetaram o território.

O professor Ferreira Jr. define as décadas de 1850 e 1860 como foco de sua pesquisa, as
quais coincidem com a ocupação pelo barão de um cargo na Junta de Higiene e Saúde. Devido ao
cargo ocupado, José Pereira Rego tinha acesso a dados para estruturação de seu estudo. Sendo assim,
é apresentada uma série de comentários sobre as medidas e as propostas a respeito do sucesso e do
fracasso das políticas aplicadas na época em função das crises sanitárias. A partir disso, o autor
aproxima-se e afasta-se do Socialismo Utópico, especialmente em relação à condenação da
escravidão que, segundo José Pereira Rego, partiria de uma visão estritamente epidemiológica,
sendo degradadora da moral pública e disseminadora de doenças provenientes do continente
africano. Visto isso, o Barão menciona a criação de um órgão estatal especializado em ações públicas
voltadas à saúde e à política sanitária.

A partir da consolidação da ideia da importância da promoção de saúde pública e seu


controle, criou-se, no Rio de Janeiro, um órgão capaz de levantar dados estatísticos e epidemiológicos
sobre as causas mortis na cidade. Evidencia-se uma preocupação do médico em levar em conta o
conhecimento acerca dos aspectos de saúde, como a causa das mortes dos indivíduos e as condições
146

em que os mesmos viviam, configurando para o autor uma melhoria do sistema administrativo de
saúde para o controle de epidemias na cidade.

Carlos Henrique Ferreira Jr. aponta para outro ponto interessante no texto de Rego que
enfatiza a importância da criação de um hospital offshore para marinheiros, ou seja, fora da mancha
urbana da cidade do Rio. A existência de um local específico para alocar os marinheiros e tripulantes
em quarentena garantia à cidade uma infraestrutura que salvaguardava os navios mercantes de
aportarem na cidade. Em suma, em caso de uma epidemia a bordo, haveria um espaço adequado
para tratamento.

Ademais, Rego também aponta para os melhoramentos públicos da estrutura pública


urbana como um dever do Estado, dialogando com as ideias dos Socialistas Românticos, como a
criação de uma rede de abastecimento de água e de esgoto para melhoria no saneamento básico da
cidade. Por outro lado, entende que não é papel do poder público a criação de moradias sociais.

Aposta, portanto, na criação de uma legislação a ser cumprida para a criação de casas e
expansão da cidade, embora uma das principais dificuldades para o enfrentamento de epidemias na
cidade do Rio de Janeiro fosse a negligência da Câmara Municipal em cumprir a legislação da
Repartição de Saúde. O professor Ferreira Jr afirma que, de um modo geral, o barão do Lavradio
compreendia que o papel de construção das casas e extensão das cidades, exceto água e esgoto, era
de responsabilidade dos particulares e cabia ao Poder Público cobrar o cumprimento das regras pré-
estabelecidas pela Repartição de Saúde e Polícia Sanitária.

Em decorrência da exposição dos pesquisadores, surgiram questionamentos sobre a


atuação dos grupos políticos frente às epidemias, também como as instituições de polícia e justiça se
posicionavam tendo em vista a possibilidade de implementação de medidas autoritárias e sobre a
dicotomia entre política pública e processo disciplinador nesse período. Em resposta, Fridman
apresenta as epidemias da Febre Amarela, considerada uma doença de 'branco', e do Cólera,
considerado uma doença de 'negro'. Nesse sentido, segundo Fridman, as medidas contra a Febre
Amarela eram mais intensas que o Cólera, um tipo de racismo 'abrasileirado', pois a expectativa era
a substituição de negros por brancos estrangeiros. Desta forma, Fridman conclui que esse combate
contra as epidemias, na época, era muito ideológico, assim como o higienismo, no sentido de que
147

existem técnicas de prevenção contra o surgimento de determinadas doenças e técnicas neutras que
iriam funcionar em qualquer lugar.

Ferreira Jr complementa falando sobre a existência de jornais operários e de medicina, de


diversas e variadas tendências, nos quais aconteciam os debates dos grupos políticos. Na época,
existia um número grande de analfabetos, que recebiam uma informação mediada, existindo assim
aqueles capazes de ler e de reproduzir as opiniões e outros não. Por fim, Ferreira Jr elucida diversos
pontos do texto de Rego e suas contribuições para o que se entende hoje como importante para a
manutenção da saúde pública. Vale refletir sobre o atual cenário político que o Brasil tem vivido,
desde o negacionismo científico até a censura de dados sobre as mortes por conta da COVID-19, e
como isso deve impactar diretamente no desenvolvimento de pesquisas e elaboração de políticas
públicas, sobretudo saneamento básico.
148

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