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Rui Sanches pertence a uma geração fecunda de artistas que ganhou visibilidade
ao longo das décadas de oitenta e noventa. Escultor com um corpo de trabalho
claramente reconhecível — sem chegar a ser um artista formulaico — mostrou-se
regularmente e, com naturalidade, foi sendo incluído em praticamente todas as
colecções relevantes.
O desenho em Rui Sanches é sempre uma reflexão sobre o espaço, deixa trans-
parecer uma essência formal da arquitectura que parece ser uma matriz quase
universal em todos os seus objectos — daí, talvez, o fascínio que o seu trabalho
sempre exerceu sobre os arquitectos — mas nunca deixa de haver uma predilec-
ção quase obsessiva pela bidimensionalidade: mesmo quando as peças adquirem
a terceira dimensão, há uma memória da bidimensionalidade intelectualizada que
permanece visível. A série que ocupa a primeira sala interior da galeria, onde o
artista explora em incansáveis variações e declinações a casa onde viveu a infân-
cia e a juventude, é uma investigação das marcas que o espaço inscreve na me-
mória — os desenhos são feitos muitas décadas depois da vivência e apoiam-se
em desenhos técnicos de arquitectura — e abre-se para as infinitas possibilidades
combinatórias que a casa, não como objecto mas como fenómeno afectivo, ofe-
rece à exploração artística. Do espaço da casa, aqui reduzido à sua representação
técnica e bidimensional, passamos ao espaço da folha onde, com vivaz liberdade,
Rui Sanches adiciona desenhos fluidos com a mesma naturalidade com que tra-
balha intuitivamente a poética nas suas peças tridimensionais. Ainda a propósito
antónio castanheira terça-feira, 22 de Outubro de 2019
Rui Sanches — Espelho pag 2
Mas o espaço é apenas uma das obsessões de Rui Sanches. Delfim Sardo, em
1999, dizia que «a escultura de Rui Sanches é dirigida ao tempo». A dimensão
crónica é uma preocupação central no trabalho de Rui Sanches em, pelo menos,
duas vertentes. Se a sua predilecção pelos contraplacados, que vem de longa
data, convoca o tempo no envelhecimento da matéria (as peças humanizam-se,
adoçam-se e amaciam-se à medida que o contraplacado amarelece, ganhando
patine e gradações subtis, e perde o carácter industrial de matéria-prima para se
transformar em matéria afável e doméstica, sendo evidente nas poucas peças
tridimensionais que se apresentam na exposição), o tempo da execução é recor-
rentemente evidenciado nas palavras do próprio artista, revelando a importância
que a decomposição em operações sucessivas e processuais tem para a sua me-
todologia de trabalho. As peças que vemos na antecâmara, no exterior da gale-
ria, são um exemplo da importância do tempo na feitura do trabalho. Rui Sanches
recupera, muito tempo depois, fotografias inquietantes de paisagens despovoa-
das e um pouco, até, inóspitas e cria dípticos onde o desenho que ocupa o pai-
nel complementar vaza para o da fotografia criando uma estrutura que tem a ca-
pacidade de unir os dois. Mais do que um exercício sobre o espaço, o artista faz
aqui um exercício sobre o tempo tripartido: o tempo da fotografia (ainda em pe-
lícula), o tempo do desenho (que racionaliza formalmente a superfície) e o tempo
da recepção (em que recompomos o todo numa entidade com um novo sentido
global).