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Rui Sanches — Espelho pag 1

Numa articulação entre as Galerias Municipais e o Museu Colecção Berardo, o


trabalho de Rui Sanches dá-se-nos a ver em duas exposições entrelaçadas, uma
no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, com curadoria de Delfim Sardo, e
esta, com curadoria de Sara Antónia Matos.

Rui Sanches pertence a uma geração fecunda de artistas que ganhou visibilidade
ao longo das décadas de oitenta e noventa. Escultor com um corpo de trabalho
claramente reconhecível — sem chegar a ser um artista formulaico — mostrou-se
regularmente e, com naturalidade, foi sendo incluído em praticamente todas as
colecções relevantes.

Muito cedo no decurso da investigação, os curadores perceberam que o corpo


da obra de desenho de Rui Sanches deveria ser mostrado numa exposição autó-
noma, não por ser uma actividade desligada do pensamento que estrutura a
produção escultórica, mas por ser dotado de uma extensão considerável e de um
carácter autónomo no que respeita à sua prática. O desenho e a escultura têm
percursos paralelos no quotidiano de atelier mas não se misturam, limitam-se a
partilhar convicções, modos de ver e modelos de estruturação, não só do espaço
visível mas, mesmo, das componentes predominantemente intelectuais e feno-
menológicas do contexto imediato. É interessante a opção da curadora pela in-
clusão de peças que, embora não isentando a escolha de polémica, considerou
desenhos tridimensionais. Esta classificação das peças no interior disciplinar do
desenho é um statement importante e corajoso que justifica uma reflexão, e a
consequente argumentação, muito mais profunda do que no contexto desta ex-
posição se pode fazer, e que pode trazer nova luz à ontologia do desenho e à
delimitação das suas fronteiras. Se outras qualidades não reconhecêssemos a Rui
Sanches, a preocupação de empurrar o desenho para territórios bem afastados
do cânone bastaria para lhe assegurar um lugar incontornável no nosso panora-
ma artístico.

O trabalho de Rui Sanches desenvolve-se na exploração dos meta-conceitos kan-


tianos de espaço e tempo. Estes dois conceitos, que são mais facilmente intuídos
do que verdadeiramente compreendidos, são o campo mais-do-que-perfeito
para o trabalho artístico, tanto para a produção como para a recepção, oferecen-
do possibilidades de interpretação e de “ligação à vida” muito mais amplas do
que aqueles universos artísticos que com eles se relacionam apenas tangencial-
mente.

O desenho em Rui Sanches é sempre uma reflexão sobre o espaço, deixa trans-
parecer uma essência formal da arquitectura que parece ser uma matriz quase
universal em todos os seus objectos — daí, talvez, o fascínio que o seu trabalho
sempre exerceu sobre os arquitectos — mas nunca deixa de haver uma predilec-
ção quase obsessiva pela bidimensionalidade: mesmo quando as peças adquirem
a terceira dimensão, há uma memória da bidimensionalidade intelectualizada que
permanece visível. A série que ocupa a primeira sala interior da galeria, onde o
artista explora em incansáveis variações e declinações a casa onde viveu a infân-
cia e a juventude, é uma investigação das marcas que o espaço inscreve na me-
mória — os desenhos são feitos muitas décadas depois da vivência e apoiam-se
em desenhos técnicos de arquitectura — e abre-se para as infinitas possibilidades
combinatórias que a casa, não como objecto mas como fenómeno afectivo, ofe-
rece à exploração artística. Do espaço da casa, aqui reduzido à sua representação
técnica e bidimensional, passamos ao espaço da folha onde, com vivaz liberdade,
Rui Sanches adiciona desenhos fluidos com a mesma naturalidade com que tra-
balha intuitivamente a poética nas suas peças tridimensionais. Ainda a propósito
antónio castanheira terça-feira, 22 de Outubro de 2019
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do espaço afectivo, é importante assinalar que nesta exposição abundam dípti-


cos que estabelecem diálogos entre fotografias do espaço íntimo que é o atelier
e desenhos que as reinterpretam numa tensão entre a bidimensionalidade da
folha e a tridimensionalidade da ilusão perspéctica a que Rui Sanches não se
chega a render canonicamente.

Mas o espaço é apenas uma das obsessões de Rui Sanches. Delfim Sardo, em
1999, dizia que «a escultura de Rui Sanches é dirigida ao tempo». A dimensão
crónica é uma preocupação central no trabalho de Rui Sanches em, pelo menos,
duas vertentes. Se a sua predilecção pelos contraplacados, que vem de longa
data, convoca o tempo no envelhecimento da matéria (as peças humanizam-se,
adoçam-se e amaciam-se à medida que o contraplacado amarelece, ganhando
patine e gradações subtis, e perde o carácter industrial de matéria-prima para se
transformar em matéria afável e doméstica, sendo evidente nas poucas peças
tridimensionais que se apresentam na exposição), o tempo da execução é recor-
rentemente evidenciado nas palavras do próprio artista, revelando a importância
que a decomposição em operações sucessivas e processuais tem para a sua me-
todologia de trabalho. As peças que vemos na antecâmara, no exterior da gale-
ria, são um exemplo da importância do tempo na feitura do trabalho. Rui Sanches
recupera, muito tempo depois, fotografias inquietantes de paisagens despovoa-
das e um pouco, até, inóspitas e cria dípticos onde o desenho que ocupa o pai-
nel complementar vaza para o da fotografia criando uma estrutura que tem a ca-
pacidade de unir os dois. Mais do que um exercício sobre o espaço, o artista faz
aqui um exercício sobre o tempo tripartido: o tempo da fotografia (ainda em pe-
lícula), o tempo do desenho (que racionaliza formalmente a superfície) e o tempo
da recepção (em que recompomos o todo numa entidade com um novo sentido
global).

Homologamente ao percurso de Rui Sanches, a exposição vai-se tornando orgâ-


nica à medida que penetramos mais profundamente na galeria. Sensivelmente a
meio encontramos um conjunto de desenhos que pode surpreender os visitantes
menos familiarizados com Rui Sanches. Trata-se de representações alegóricas de
figuras do panteão católico, uma incursão no desenho narrativo que é dissonante
do percurso formalista bem definido que caracteriza o seu trabalho mas que nos
fornece pistas para entender a pessoa por trás do artista. Como Delfim Sardo
disse há muitos anos, Rui Sanches é um racionalista que opera por sensações e
isso é evidente nesta exposição.

antónio castanheira terça-feira, 22 de Outubro de 2019

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