Você está na página 1de 5

CICCONE, Roberto. “Surplus”. In: KURZ, Heinz; SALVADORI, Neri (Orgs.).

The
Elgar companion to classical economics. Cheltenham, UK; Northampton, MA, USA,
Edward Elgar, 1998. p. 440-445.

Excedente

O excedente social é um conceito central na análise dos economistas clássicos e de


Marx. Ele equivale à parte do produto social que resta após a dedução tanto da
substituição dos meios de produção como das necessidades de subsistência dos
trabalhadores. Conclui-se que o excedente é tal no que diz respeito aos requisitos para a
repetição do processo de produção em escala inalterada e, portanto, para que a
sociedade continue a existir em seu estado atual.
Consistindo na parte do produto líquido da sociedade que excede a subsistência
dos trabalhadores, a própria noção de excedente implica na definição prévia de
subsistência como sua contrapartida. Por subsistência, os economistas clássicos
compreendiam as quantidades dos diversos bens que os costumes e hábitos tinham
tornado para o trabalhador intolerável ficar sem. O conteúdo histórico e cultural que,
portanto, caracteriza a noção de subsistência torna-o mais complexo do que um mero
mínimo fisiológico, e, consequentemente, sujeito a ser diferente em diferentes países e
em diferentes épocas (SMITH, WN,V.ii.k.3, ver também STIRATI, 1994: capítulo 3
para visões semelhantes de alguns contemporâneos de Smith; RICARDO, Works, I, pp.
96-7). Do ponto de vista analítico, é natural tratar essa recompensa mínima dos
trabalhadores empregados como conhecida para qualquer dada sociedade em qualquer
dado momento, e, portanto, na determinação da parcela do produto social que constitui
o excedente.
Para qualquer nível e composição especificados da subsistência, a capacidade da
economia produzir um excedente depende das condições técnicas na produção direta e
indireta dos bens de subsistência. Estas condições devem ser tais que os trabalhadores
nela empregados, vamos chama-los de Lv produzem mais do que é necessário para sua
própria subsistência e reposição relacionada dos meios de produção. Então, se os
trabalhadores Lv produzem os bens de subsistência (integrados pela reposição dos meios
de produção) para os trabalhadores L, haverá ( L−L v )=Ls trabalhadores empregados
fora da produção direta e indireta dos bens de subsistência, e um excedente será obtido
(cf. Garegnani, 1984: 314). Observe, entretanto, que o nível de subsistência não precisa
ser independente das condições técnicas na produção dos bens de subsistência. Pelo
contrário, nós podemos esperar que, como um resultado do complexo sistema de
circunstâncias pelos quais a subsistência é determinada, esta última geralmente será
estabelecida em um nível compatível, para as dadas condições técnicas, com a produção
de um excedente. Certamente deve ser assim em uma sociedade capitalista, na qual a
existência de grupos de não-trabalhadores implica um excesso necessário do produto
líquido acima da subsistência dos trabalhadores.
A importância da noção de subsistência está nas bases que ela fornece para a
análise da divisão do produto de uma economia capitalista entre salários, lucros
(inclusive dos juros) do capital e rendas dos recursos naturais. De um modo geral, os
economistas clássicos acreditavam que, devido à posição relativamente fraca dos
trabalhadores na barganha com os empregadores, a taxa salarial tendia para o nível de
subsistência. A própria noção de subsistência introduzida por esses autores parece,
portanto, ser estritamente complementar à sua explicação para o salário real. Este último
sendo visto como o resultado de um contrato em que o poder dos compradores é muito
mais forte do que o poder vendedores, a tendência consequente do salário real para cair

1
tinha que ser conciliado com o fato óbvio de que ele nunca se torna nulo. Então a ideia
naturalmente emergiu de que deve existir um mínimo, maior do que zero, no qual a
pressão descendente sobre o salário real cessa (cf. GAREGNANI, 1990: 118-22).
Com base na determinação do salário real que acabou de ser esboçado, o
excedente se revela como o aspecto material dos outros rendimentos que não os salários.
E se, para concentrar a atenção sobre os lucros, as demais rendas são assumidas
inexistentes, todo o excedente corresponde ao conteúdo físico dos lucros. A noção de
excedente, assim, auxiliou Ricardo e Marx a não perderem de vista qual é a fonte dos
lucros mesmo sob o véu dos valores das mercadorias. Como esses autores e, mais
recentemente, Sraffa mostraram (embora de apenas o último sobre as bases de uma
analise plenamente correta dos preços), os lucros não podem surgir como um fenômeno
puro de preço a partir dos atos de compra e venda de mercadorias – isto é, a partir da
“esfera da circulação”. A condição necessária para que os lucros sejam obtidos, e,
portanto, para sua presença nos valores de troca das mercadorias, é a obtenção de um
excedente a partir do processo de produção. Esta conclusão é provada por Sraffa quando
ele mostra que nos preços normais das mercadorias não há espaço para lucros se a
economia não é capaz de produzir um excedente material (SRAFFA, 1960, capítulo I).
Incluindo a subsistência entre os meios de produção e assumindo, por exemplo, que três
mercadorias sejam produzidas, uma economia sem excedente seria caracterizada pelo
seguinte conjunto de equações:

A=A a + Ab + A c
B=Ba + Bb + Bc (1)
C=C a+ Cb +C c

Em cada equação, o lado esquerdo representa a quantidade produzida da


respectiva mercadoria e o lado direito representa a soma das quantidades dessa
mercadoria consumida como meio de produção, incluindo a subsistência, nos vários
setores. Como pode ser visto, as equações (1) implicam que para cada mercadoria o
produto é apenas o suficiente para reintegrar o que foi consumido como insumo no
processo social de produção.
Seguindo Sraffa, nós podemos agora mostrar que nesta economia os preços
normais das mercadorias não podem conter nenhum elemento de lucro, e suas equações
devem consequentemente tomar a forma:

A pa= A a p a+ B a pb +C a p c
B p b= Ab pa + Bb p b +C b pc
C pc = A c pa + B c p b + C c p c

Uma vez que uma das mercadorias, digamos a mercadoria a, deva ser escolhida
como o numerário dos preços, com consequentemente pa=1, nas três equações acima
existe apenas duas incógnitas, pb e pc . Mas se a equações (1) se mantêm, uma dessas
equações de preço não é independente das outras, como poder visto ao multiplicar cada
uma das equações (1) pelo preço da respectiva mercadoria e adicioná-las. Portanto, sob
essas condições, apenas duas das três equações seria independentes, sem espaço para
qualquer incógnita ser inserida nelas. Se, pelo contrário, a economia produz um
excedente, de modo que pelo menos uma das relações (1) o sinal = é substituído pelo
sinal >, as três equações de preço são todas independentes, e haverá espaço para uma
terceira incógnita – a taxa de lucro geral, r. Então as equações de preço tomam a forma
usual (SRAFFA, 1960: capítulo II):
2
A pa=( A a p a+ B a pb +C a p c ) ( 1+r )
B p b=( A b pa + Bb pb +C b pc ) ( 1+r )
C pc =( A c pa + Bc p b +C c p c ) ( 1+r )

Separar a fonte dos lucros na existência de um excedente implica a natureza


puramente residual dessa classe de renda. Esta característica da teoria clássica da
distribuição pode ser melhor avaliada pelo contraste com a posterior teoria marginal (ou
“neoclássica”), que determina simultaneamente salários e lucros sobre as bases da
“escassez” relativa do trabalho e do capital. A noção de subsistência é ausente aqui,
como seria estranha a explicação do salário real fornecido pela teoria, não há parcela do
produto que possa ser concebida como um excedente, e, consequentemente, nenhuma
renda tem a natureza de um resíduo.
Como foi dito acima, os economistas clássicos viam o salário real como
geralmente tendendo para o nível de subsistência. Mesmo aqueles autores admitiam,
entretanto, que sob certas circunstâncias, relacionadas em particular a velocidade da
acumulação de capital, as condições no mercado de trabalho poderia ser tais de forma a
permitir que os trabalhadores obtivessem uma taxa de salário maior do que a
subsistência (SMITH, WN, I, viii. 16-21; RICARDO, Works, I, pp. 94-5). Então surge a
questão da distribuição do excedente: mesmo continuando a negligenciar a renda, o
excedente será agora dividido entre a parte recebida pelos trabalhadores em adição à
subsistência, que então podemos chamar de “salários excedentes”, e a parte que toma a
forma de lucros. Por sua vez, esta questão coloca o problema adicional do canal por
meio do qual parte do excedente é atribuída aos trabalhadores.
A este respeito, poderíamos pensar que, analogamente ao caso em que os
salários são supostos serem ao nível de subsistência, ainda é a taxa de salário real,
tomada como uma cesta de mercadorias, que assume a liderança na relação entre
salários e lucros. Deste ponto de vista, que é aquele proposto pelos clássicos e Marx, as
circunstâncias econômicas e sociais que em última análise determinam a distribuição
mostraria a capacidade dos trabalhadores para impor uma taxa de salário que contém
uma parcela do excedente, com os lucros ainda determinados residualmente. Seguindo
uma sugestão de Sraffa, entretanto, uma rota alternativa pode ser tomada, ao longo da
qual é a taxa de lucro que exerce o papel de “variável independente” nesta parte da
análise, e o excedente contido na taxa de salário é consequentemente determinada
residualmente. Como é argumentado em alguns trabalhos recentes ao longo desta linha
de raciocínio (PIVETTI, 1991), como justificação para tal tratamento da taxa de lucro
depende de dois elementos. A primeira, já presente nos trabalhos dos economistas
clássicos, é a estável relação que pode ser razoavelmente assumida existir no longo
prazo entre a taxa de lucro e a taxa de juros (WN, I.ix.4), com a primeira excedendo a
última como um prêmio pelo “risco e problema” (“risk and trouble”) associado ao
investimento do capital na produção (WN, 1, vi.18; V.ii.f.3). A segunda, e é o elemento
inovativo, é a possibilidade de conceber a taxa de juros determinada fora do sistema de
produção, com base no que é decidido pelas autoridades monetárias. Esta visão não
implica, entretanto, que a divisão do excedente entre salários e lucros cesse de depender
de fatores sociais, e, em particular, da posição de barganha das classes. As políticas
monetárias são obviamente parte das políticas econômicas executadas no país, e são
amplamente afetadas por elementos institucionais tais como os sistemas de taxa de
câmbio, os regimes de movimento de capital, o grau de indexação salarial à inflação, e
assim por diante. Os conflitos sociais podem, então, ser vistos para se fazerem sentir por

3
meio desses canais, e assim, em última análise, ter uma influencia sobre os níveis das
taxas de juros.
Nos trabalhos dos clássicos, a disponibilidade de um excedente é uma condição
necessária para a acumulação de capital. Para a maioria deles também era visto como
uma condição suficiente, pelo menos no que diz respeito à parcela do excedente que
assume a forma de lucros: na verdade, estes últimos são em grande parte poupados, e
aqueles autores assumiam que qualquer decisão de poupança se transformaria, direta ou
indiretamente, em investimento (ver, por exemplo, RICARDO, Works, I, pp. 290-91,
396; cf. também GAREGNANI, 1978: 338-91).
Podemos agora fazer uso do princípio de Keynes da independência do
investimento das decisões de poupança de forma a reconsiderar a relação entre
excedente e acumulação (a este respeito, ver também CICCONE, 1994). Admitamos,
por enquanto, que a subsistência é inteiramente consumida, de modo que a capacidade
da economia produzir um excedente físico é ainda uma condição necessária para a
acumulação. Podemos excluir, entretanto, essa capacidade sendo também uma condição
suficiente. A independência do investimento da poupança implica, aplicando as
concepções keynesianas, que qualquer excesso de renda excedente poupada acima do
investimento “desapareceria” por meio da redução do tamanho absoluta tanto do
excedente como do produto social, em uma extensão suficiente para reestabelecer a
igualdade entre produto e gasto, e, portanto, entre as decisões de poupança e
investimento. Segue-se que, dado o nível de subsistência, e consequentemente a relação
Ls
entre as quantidades de trabalho mencionadas acima, a magnitude de Ls assim como
Lv
a Lv , será menor, menor o nível de investimento (líquido).
De qualquer forma, com base em uma consideração adequada da noção de
subsistência, mesmo a premissa de que a poupança venha apenas das rendas excedentes,
para que um excedente seja estritamente necessário para a acumulação, não precisa ser
válido em geral. Em uma sociedade desenvolvida, a subsistência pode incluir a
capacidade do trabalhador poupar alguma parcela do salário, por exemplo de forma
sustentar seu padrão de vida após a aposentadoria, para fornecer a educação futura das
crianças, e assim por diante. Em tais casos a “propensão a poupar” dos trabalhadores
pode ser positiva mesmo ao nível de subsistência dos salários, e com respeito para a
formação de poupanças para a produção de um excedente não seria, em princípio, uma
condição necessária para a acumulação de capital. Naturalmente, que isto não nega que
os lucros sejam uma característica inerente de uma economia capitalista, e que sob essa
forma de produção a disponibilidade de um excedente é de fato um requisito para a
acumulação, bem como para o processo de produção em geral, a ser realizado.

Ver também:

Accumulation of Capital; Capital; Classical Political Economy; Consumption;


Necessaries, Conveniences, and Luxuries; Profits; Reproduction; Subsistence; Wages.

Bibliografia:

Ciccone, R. (1994), ‘Surplus approach’, in P. Arestis and M. Sawyer (eds), The Elgar
Companion to Radical Political Economy, Aldershot: Edward Elgar.

Garegnani, P. (1978), ‘Notes on consumption, investment and effective demand’, pt I,


Cambridge Journal of Economics, 2.

4
Garegnani, P. (1984), ‘Value and distribution in the classical economists and Marx’,
Oxford Economic Papers, 36,291-325.

Garegnani, P. (1990), ‘Sraffa: Classical versus Marginalist Analysis’, in K. Bharadwaj


and B. Schefold (eds), Essays on Piero Sraffa. Critical Perspectives on the Revival of
Classical Theory, London: Unwin Hyman reprinted London: Routledge, 1992.

Pivetti, M. (1991), An Essay on Money and Distribution, London: Macmillan.

Você também pode gostar