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O ENSINO DA TEORIA E METODOLOGIA

NOS CURSOS DE HISTÓRIA

SÍLVIA REGINA FERRAZ PETERSEN / UFRGS

UNISINOS, 6-1-2014

Em primeiro lugar quero agradecer o convite que recebi deste


Programa de Pós-Graduação para, através de uma aula inaugural, dar
as boas vindas a vocês, colegas que vem de tão longe e cuja
presença entre nós certamente constituirá um intercâmbio inédito e
enriquecedor. Que encontrem na UNISINOS e no RGS um ambiente
social e intelectual fraterno e estimulante, e que tenham muito sucesso
profissional e satisfação pessoal neste doutorado que estão iniciando.

Como essa aula inaugura o módulo do curso que abordará os


conteúdos teórico-metodológicos, pensei que seria oportuno tratar de
questões do ensino da teoria e metodologia da pela importância, para
estudantes, professores e pesquisadores de História-, das reflexões
sobre a produção do conhecimento histórico, que é a matéria central
das disciplinas dessa área.

O que vou apresentar fica mais no campo do diagnóstico das


dificuldades que enfrento na minha atividade docente ou que observo
no trabalho de outros professores, do que na prescrição de soluções,
que passam necessariamente pelas características de cada situação
em particular. Mas de qualquer forma, também exporei algumas
opções que tenho assumido em meu trabalho. Ainda que algumas
dificuldades, no meu entender, sejam pertencentes ao próprio caráter
destas disciplinas, no conjunto elas não são um obstáculo insuperável,
e um diagnóstico das características do ensino das disciplinas dessa
área pode ser um bom caminho para que tenhamos mais claros os
limites e as possibilidades de nosso trabalho docente.

Cabe abrir aqui um parêntesis para observar que, se


examinamos o panorama nacional do ensino da teoria e metodologia
nos cursos de graduação, encontramos esses conteúdos ora divididos
entre diferentes disciplinas, ora agrupados em uma única; também se
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observa que, de um curso para outro, há diferenças abissais entre o


nome da disciplina e os conteúdos nela trabalhados como ocorre, por
exemplo, com o título de Metodologia da História. Isto me parece
muito eloqüente para demonstrar que esta temática é complexa, não
redutível a soluções simples, a começar por sua distribuição em
disciplinas.

Devido ao tempo que disponho, selecionei algumas das que me


parecem dificuldades importantes, deixando de lado outras questões
que igualmente deveriam integrar o quadro.
Escolhi priorizar a Graduação, pois aí se dá a formação básica -e
em muitos casos única, como curso superior-, do profissional de
História e porque, no caso daqueles que prosseguem seus estudos na
pós- graduação, a maior ou menor qualidade dessa formação teórica
básica produz efeitos diretos no trabalho de pesquisa que vai ser
desenvolvida na pós-graduação, nas suas disciplinas, dissertações ou
teses.

Mas no final da apresentação tratarei também de algumas


questões que tenho observado nos cursos de pós-graduação e que
considero importantes comentar aqui.

A primeira dificuldade parece ser exatamente a definição dos


conteúdos programáticos: afinal, o que se deve ensinar hoje a um
aluno de Teoria e Metodologia, pergunta que está diretamente
vinculada à outra: o que se entende por conhecimento histórico,
questão que, pelo menos na atualidade não tem uma resposta fácil.

Hoje trata-se de pensar como trabalhar conteúdos


epistemológicos, teóricos, metodológicos e técnicos em um momento
de crise paradigmática (que, em todo o caso, não é exclusiva do
conhecimento histórico). Se as análises sobre os limites da
modernidade e o significado da condição pós-moderna que estão no
centro dessa crise são extraordinariamente variadas, elas têm em
comum, no entanto, aceitar o fato de que vivemos um momento de
transição quanto às formas aceitas de conhecimento e que isso
envolve inúmeros desafios para os historiadores, especialmente
aqueles voltados para o ensino de teoria e metodologia. Hoje, talvez
como nunca, os diagnósticos sobre a situação e mesmo a definição do
conhecimento histórico se revelam diversos, fragmentados,

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contraditórios e não estão isentos de um olhar impressionista, limitado


freqüentemente pela instituição, grupo acadêmico ou país onde
desenvolvemos nossa atividade de ensino e pesquisa.

Daí a questão que quero colocar é a seguinte: considerando que


o conhecimento histórico não é um discurso como qualquer outro,
distinguindo-se no mínimo por sua aspiração de representar um
passado com existência real e que, portanto, sua produção significa
romper com a visão do senso comum, com a apreensão empírica,
então questões clássicas da epistemologia não podem ser
simplesmente abandonados, sob pena de que o conhecimento
histórico mergulhe num subjetivismo onde as diferenças entre história
e ficção desapareçam. E eu me refiro, a questões como as relações
entre sujeito e objeto no processo cognitivo, a ruptura com as
aparências do conhecimento empírico, a mediação teórica, a idéia de
representação, os requisitos de veracidade, para citar alguns
exemplos.

Por outro lado, não há como desconhecer os limites desta


epistemologia que tem no seu horizonte o conhecimento científico,
especialmente pelas várias interpelações que, no campo do
conhecimento histórico, ela recebe da chamada “virada lingüística”.
Creio que para os historiadores parece não haver dúvidas de que a
linguagem se transformou no princípio articulador do debate
epistemológico contemporâneo e que a diluição ou não do
conhecimento histórico no domínio do literário-ficcional é o grande
divisor de águas entre as concepções moderna e pós-moderna sobre
este conhecimento.

Diante disto, a meu ver, o professor tem a difícil tarefa de


desenvolver um programa que dê ao aluno elementos para pensar
este encontro entre a perspectiva científica do conhecimento
histórico e sua própria crítica.

A tarefa se complica mais por algumas circunstâncias, como as


que exemplifico a seguir:

A Não podemos esquecer que as disciplinas desta área de


conhecimento tem a peculiaridade de serem geralmente
desconhecidas para os que ingressam na graduação em História, ao

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contrário das demais disciplinas, que, de alguma maneira foram


“apresentadas” aos estudantes durante o ensino fundamental e médio.
Selecionar um elenco de temas capaz, no mínimo, de informar o
aluno sobre as reflexões que têm, no passado recente e no presente,
fundamentado a produção do conhecimento histórico é uma tarefa
bastante difícil no curto espaço das disciplinas (às vezes apenas uma
ou duas) destinadas ao ensino desta matéria.

b) Outra dificuldade, paradoxalmente, provém do próprio crescimento,


nos últimos anos, do “mercado de ofertas” de referenciais analíticos.
Por um lado, o campo do conhecimento histórico se alargou, trazendo
para o historiador a necessidade de estender também as reflexões
teóricas no sentido destes novos objetos; por outro, houve uma
multiplicação daquelas tendências que vêm se construindo no debate
com o paradigma vigente. Estas discussões não podem ser ignoradas,
mas implicam conteúdos extensos e heterogêneos que devem ser
trabalhados no espaço limitado de uma ou algumas disciplinas.

c) A ampliação do leque de objetos também nos aproximou da


atividade interdisciplinar, o que a meu ver coloca outra exigência para
o ensino da teoria e metodologia. Ela deve contribuir para que o
estudante entenda a operação complexa que é a interdisciplinaridade.
As demais disciplinas têm desdobramentos tão problemáticos como o
conhecimento histórico e não é importando -e freqüentemente
importando mal- alguns conceitos de outros campos teóricos
(descrição densa, capital simbólico, análise de discurso, etc.) que a
investigação se torna mais qualificada. O aluno necessita perceber
que, se a interdisciplinaridade é um caminho muito promissor, não se
trata, no entanto, simplesmente de “misturar” a reflexão histórica com
pitadas de Semiótica, Antropologia, Psicologia ou qualquer outra
disciplina vizinha (para as quais, aliás, em razão de sua própria
formação acadêmica, tanto os estudantes como os professores de
História estão muito menos capacitados). O efeito disto aparece em
alguns projetos de pesquisa histórica, que invocam a
“interdisciplinariedade”, mas que não passam de incursões ingênuas
por referências analíticas de outras disciplinas, que os autores do
projeto não dominam ou dominam insuficientemente, deixando de
lado, sem se dar conta, aquilo em que estão mais capacitados: sua
formação em História. Ou seja, é preciso mostrar que o trabalho

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interdisciplinar, um recurso muito importante para o historiador, pode


ser facilmente desvirtuado.

d) Outra circunstância que dificulta a elaboração de um programa é


que o campo destes conteúdos, já por si imenso e complexo, se torna
ainda maior se considerarmos que a ele somam-se inúmeras
apropriações enviesadas, vulgarizadas ou de senso comum que
circulam velozmente em nosso meio acadêmico, exigindo que o
professor também dedique boa parte do tempo à desconstrução
destes vieses.

-Neste sentido, por exemplo, embora os estudantes em geral


entendam que o conhecimento histórico é um artefato, ou seja o
resultado de uma operação submetida a regras e disposições que são
históricas, contingentes e portanto sujeitas aos imperativos da
temporalidade, não reconhecem esta mesma historicidade/
transitoriedade quando se tratam das teorias, de seus dispositivos de
validação das hipóteses e da conseqüente transição de um espaço
teórico para outro. A possibilidade de ser refutado é uma das
condições de instauração de um discurso científico, mas ocorre que,
às vezes os alunos, por desconhecerem a própria história da ciência,
lhe atribuem um caráter absoluto e a-histórico que ele não possui,
confundindo ciência com cientificismo. Se não desfizermos esta idéia
simplista, estará perdida qualquer virtualidade que o procedimento
científico possa ter para o conhecimento histórico. E isto tudo remete à
questões de epistemologia, que assim também ocuparão espaço nas
disciplinas desta área.

-Um outro exemplo de dificuldade que um o programa tem que


enfrentar é a facilidade com que se incorporam ao vocabulário teórico-
metodológico do estudante expressões que, pretendendo ampliar as
ferramentas analíticas do historiador, muito freqüentemente são
descoladas dos campos teóricos que lhes dão sentido e por isso
produzem um rebaixamento da análise histórica. Não basta substituir
no vocabulário conhecimento por “saberes” ou “fazeres”, conceitos por
“representações”, hipóteses ou problemas por “indagações”, verdades
por “verossimilhanças”, etc., etc. Se este deslocamento léxico (a
palavra é deliberada) parece alinhar um trabalho às ultimas modas, ele
apenas tangencia a questão fundamental, que é pensar quais os

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alcances e quais os limites destes conceitos ou campos teóricos para


a análise histórica da sociedade; ou seja em que eles alteram,
ampliam ou substituem conceitos ou proposições teóricas
precedentes. Para este tipo de reflexão que é, afinal, como o
conhecimento avança, não basta um novo vocabulário. Isto, aliás, não
novidade na trajetória do conhecimento histórico; talvez apenas sua
marca contemporânea seja a “alta rotatividade”, recepção e descarte
grandemente acelerados. Acho levar o estudante a esta percepção
deve ser um dos objetivos de um professor de Teoria e Metodologia
preocupado com o refinamento da reflexão historiográfica.

Em suma, estou querendo mostrar que uma boa parte do espaço


dos programas das disciplinas teórico-metodológicas é utilizado nesta
tarefa de corrigir vieses, distorções. Se eles se manifestam
geralmente pela simplificação do que é complexo, sua desconstrução
implica fazer o caminho inverso, de restituição da complexidade. E
isto não se faz rápida nem simplesmente. Considero que é parte
fundamental do ensino fazer que o aluno perceba a complexidade e a
incompletude das teorias da História, o que passa no mínimo por
algum conhecimento de seus eixos e questões centrais. Sem isso não
há como enfrentar o natural desejo de receitas prontas, conclusivas e
desconhecedoras da própria história das teorias da História, o que
leva inevitavelmente a vulgarizações, reducionismos e deformações.

e) Diante deste extenso campo de conteúdos, é provável que


professor opte por organizar o programa ao redor de algumas
questões pontuais, monográficas, verticalizadas. Esta escolha, a meu
ver, tem o grave problema de obscurecer a unidade necessária dos
vários momentos do processo de produção do conhecimento.
Penso que de nada adianta verticalizar o estudo, por exemplo, das
relações entre estrutura e sujeito, ou da ficção com a História, ou das
transformações do conceito de classe de Marx a Thompson, ou as
questões do discurso em Foucault, ou da noção do tempo histórico em
Koselleck, se aluno não puder perceber a posição e a hierarquia que
estas ou outras questões ocupam no processo de produção do
conhecimento, que outros raciocínios precedem, ou se desdobram
delas e quando é possível associá-las em uma análise ou quando
partem de supostos que as tornam excludentes, o famoso
“Frankenstein teórico”. A produção do conhecimento histórico não é
um processo aleatório, uma prática espontânea: ao contrário, é um

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processo que obedece a uma lógica e a regras que pretendem afastá-


lo das armadilhas da visão factual e empirista e aproximá-lo da
verdade do acontecido

f) Também existe uma tendência, quando se estuda teoria, e


especialmente para estudantes da graduação, para buscar “idéias
reguladoras”, princípios estáveis, uma espécie de selo de qualidade
que garantiria o “bom conhecimento”. Esta ansiedade insolúvel por
“receitas” algumas vezes desemboca em um pessimismo com relação
ao futuro do conhecimento ou em uma adesão, tipo “tábua de
salvação”, à ultima moda historiográfica seja ela o “modo de
produção”, as “mentalidades”, as “representações”, as “identidades” ou
os “discursos”.

Cabe ao professor, portanto, mostrar que produzir conhecimento


histórico é um processo mais amplo e que precisa ser entendido no
seu conjunto para que as novas preocupações historiográficas que
vão emergindo não se transformem em conceitos inúteis que só
nomeiem o visível, mas, ao contrário, sejam referenciais úteis de
análise, ou seja, ajudem a descortinar práticas sociais que estavam lá,
na sociedade concreta, mas que o historiador não tenha percebido.

g) Uma outra observação refere-se à justificada impaciência com que


os alunos desejam “aplicar” os conteúdos de teoria e metodologia, por
exemplo, em seus trabalhos de pesquisa e na elaboração de suas
monografias e TCC’s. Isto é muito desejável, mas seus temas, via de
regra, por sua pouca experiência em delimitar um objeto, são
extremamente complexos e implicam um conjunto de variáveis que
não podem ser analiticamente sustentadas pelas noções ainda muito
elementares que um aluno iniciante possui de teoria e metodologia. É
difícil, por exemplo, convence-los a fazer recortes que aproximem de
modo mais realista o tema que escolheram e as referências analíticas
que possuem ou podem dominar em um determinado momento de sua
formação.

h) No que se refere à bibliografia, ela é uma base fundamental para


as disciplinas teórico-metodológicas: a extensão deste campo aponta
para a necessidade de levar o aluno a acompanhar a divulgação cada
vez mais rápida de uma extensa produção bibliográfica de conteúdo
teórico que em geral se apresenta como abordagens voltadas para um

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ângulo ou questão particular. E isto, às vezes, é um verdadeiro cipoal


que enreda o estudante. Se tomamos, por exemplo, a temática das
relações entre História e Literatura, é extraordinária a quantidade de
livros e artigos nacionais e estrangeiros que tratam o assunto, onde se
misturam contribuições notáveis, que fazem avançar esta questão e
publicações medíocres, que apenas multiplicam intranscendências.

A oferta bibliográfica obviamente é heterogênea, de desigual


qualidade, orientada por perspectivas diferentes ou mesmo
antagônicas e geralmente tem propostas analíticas muito mais amplas
que as modestas possibilidades de trabalho de nossas disciplinas.
Acrescenta-se ainda, como já disse, que a ampliação das fronteiras do
conhecimento histórico faz com que se incluam neste elenco outras
tantas produções no campo da Psicologia, Antropologia, Semiótica,
Hermenêutica, Filosofia da Linguagem, Estética, etc., etc. Então é bem
difícil, tanto para o professor e mais ainda para o aluno, trabalhar com
estes materiais bibliográficos e não perder o eixo dos conteúdos e
questões que foram priorizadas para o programa.

Como as obras traduzidas também constituem uma importante


fatia das referências bibliográficas, quero observar que convivem nas
livrarias, como se coetâneas fossem, publicações que nos seus locais
de origem obedecem a uma outra cronologia, de modo que aquele que
está iniciando estas leituras algumas vezes coloca inadvertidamente
em diálogo idéias que já foram superadas por seus próprios autores,
com outras, que são suas concepções atuais.

O que estou querendo dizer é que temos que encontrar, como


nunca, formas de ensinar ao nosso aluno percorrer criticamente esta
produção, que ele não pode desconhecer se quiser ser um profissional
qualificado.

Quero agora comentar algumas opções que tenho assumido


diante das dificuldades que enfrento nestas disciplinas. Inicio
enfatizando que a visão crítica que acumulei ao longo do tempo não
significa que tenha encontrado soluções para elas, mas sem ter ao
menos consciência das dificuldades, tenho certeza que minha atuação
seria muito mais aleatória, improvisada e errática.

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Pelas razões que apontei, prefiro, no curso de Graduação,


desenvolver programas que proporcionem uma visão extensiva e não
monográfica ou verticalizada das diferentes tendências teórico-
metodológicas da produção do conhecimento histórico, abarcando
tanto as que se constituíram no bojo da epistemologia racionalista
como as que questionam- em diferentes medidas- esta epistemologia.

Tal opção tem uma decorrência prática imediata: requer uma


seleção rigorosa e uma articulação lógica dos eixos e das questões
mais relevantes destas tendências analíticas, sem deixar ao menos
apontados os alguns desdobramentos, contradições ou convergências
nelas presentes e que não podem ser ignorados por um estudante de
História razoavelmente qualificado.

Estou cada vez mais convencida que elaborar um programa


com estas características exige uma atenção muito particular do
professor, pois envolve uma arquitetura onde não há espaço para a
improvisação, o que não significa, por outro lado, que não tenha
abertura para adaptações em função das características das turmas e
interesses específicos dos alunos. Creio que um programa é tanto
melhor quanto consegue articular estes interesses específicos com os
próprios objetivos gerais da disciplina, mostrar que nada é isolado no
campo da teoria e metodologia.

Por muito bem sucedido que seja o professor na tarefa de


selecionar e articular os conteúdos básicos para introduzir o aluno nas
reflexões sobre o conhecimento histórico, os desdobramentos
inevitáveis que estas questões teórico-metodológicas produzem
sempre ultrapassarão a carga horária de uma disciplina. Por isso,
considero igualmente importante que ele aprenda a se movimentar de
forma autônoma nestes conteúdos, não ficando confinado aos limites
do programa ou à dependência de um professor. Ou seja, tenho o
propósito de trabalhar tanto conteúdos teóricos, o lado erudito da
disciplina, como o de exercitar a reflexão crítica do aluno, e às
vezes, mais simplesmente, que ele “fale”. Sem esse exercício de
enunciação, é muito difícil que ele possa se apropriar, fazer seu, os
conteúdos do programa e outros conteúdos ou textos que não foram
nele incluídos.

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Acho muito importante estimular o aluno a refletir sobre seus


próprios enunciados, às vezes inconsistentes até mesmo no plano da
lógica; a avaliar a propriedade de suas intervenções em relação ao
que está sendo trabalhado; a perceber quando está incorporando de
forma a-crítica conceitos ou discursos teóricos de grande circulação,
cujo significado nem sempre tem claro, mas que supostamente dariam
uma “griffe” ao seu trabalho.

Neste sentido, desejo contribuir para que o aluno entenda em


que consiste uma reflexão teórica voltada à produção do
conhecimento histórico, o que significa a mediação teórica neste
processo, suas possibilidades e limites como instrumental para argüir
o objeto. Da mesma forma, as condições de produção de um discurso
teórico, sua historicidade, como se produzem os viéses e as
vulgarizações, e os caminho de sua desconstrução não só pelo
retorno aos enunciados originais, como pelo cultivo de uma atitude
receptiva para a diferença e para o contraditório.

Há algumas outras atitudes que considero valiosas para o


trabalho com esta disciplina. Assim, acho que o professor deve levar o
estudante a perceber sua condição de iniciante em um campo de
conhecimento extenso e complexo e, portanto, que tem um percurso
extenso diante de si se quiser ser um profissional qualificado. Ou seja,
procuro desencorajar uma petulância intelectual muito disseminada
atualmente no meio acadêmico e que bloqueia novos aprendizados.
Este elenco de objetivos, que me parecem importantes no
desenvolvimento de um programa de Teoria e Metodologia da História
convergem para a constatação de que eles só podem ter algum
sucesso em um tipo de aula absolutamente ativa, embora seja muito
difícil para mim coordenar discussões que às vezes deslizam para
questões muito distantes do que está sendo tratado e mostrar as
várias mediações que é preciso ter em conta para estabelecer uma
relação que, para o aluno, às vezes é direta. Some-se a isto o
crescimento do tamanho das turmas, o que às vezes é quase
insuperável do ponto de vista da docência.

Acho que as exposições mais formais do professor devem ser


reservadas para apresentações e conclusões de unidades ou outros
momentos em que o conteúdo exija um tratamento mais abrangente e
integrado, pois estou convencida de que o aluno só aprende, -no

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sentido de fazer seu- este tipo de conteúdo através da elaboração


pessoal, que só acontece expondo seu pensamento, ouvindo
perguntas sobre seu próprio enunciado, corrigindo rumos,
incorporando novas idéias, etc. Ou seja, escutar, anotar e estudar,
continuam sendo imprescindíveis, mas não suficientes neste caso

A bibliografia é a principal fonte para a discussão dos conteúdos


do programa. Além do pressuposto de que sua leitura é indispensável,
para que seja trabalhada de forma mais produtiva, penso que o
professor deve fazer um comentário prévio sobre as características do
texto ou do conjunto de textos, o que pretende com eles, que interesse
podem ter para o tema em estudo, informações sobre o autor em suas
circunstâncias e também dar esclarecimentos sobre como os
resultados da leitura serão trabalhados em aula.

Enfim, na minha opinião, preocupações como estas devem


integrar um programa de Teoria e Metodologia para estudantes da
Graduação, mas como disse antes, fiz aqui um diagnóstico parcial,
centrado em algumas questões importantes, mas que não esgotam
em absoluto o tema e que correspondem, -obviamente-, à minha
perspectiva de pensar estas disciplinas.

Como é fácil concluir, a formação teórico-metodologica que


o aluno recebe na graduação incide necessariamente na pós-
graduação. Então agora quero comentar apenas um aspecto
neste sentido: O que se deve ensinar sobre Teoria e Metodologia na
Pós- Graduação?

A pós-graduação, supostamente, deveria contar com a base


teórico-metodológica que vem da graduação, pois necessita dela para
então, num outro nível de trabalho, abordar questões de maior
complexidade teórica e empírica. Assim, não é sua finalidade
preencher lacunas de etapas anteriores.

É certo que o processo de seleção ao mestrado ou doutorado


procura avaliar as possibilidades do candidato acompanhar estudos de
pós-graduados e desenvolver uma dissertação ou tese, mas também é
certo que nem sempre a seleção revela as condições que ele possui
enfrentar o que lhe será solicitado em termos de teoria e metodologia
ao longo do mestrado ou doutorado.

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Além disso, a bagagem teórico-metodológica dos estudantes é


muito heterogênea. Então o que para alguns é absoluta novidade,
para outros pode ser um caminho já bastante percorrido. Por outro
lado, tanto no mestrado como no doutorado, os pós-graduandos estão
muito voltados às suas dissertações e teses e buscam muitas vezes,-
com um certo pragmatismo utilitarista-, quase exclusivamente aqueles
conteúdos que interessam ao seu tema de pesquisa. Levando em
conta que estes temas constituem um leque amplo, é verdadeiramente
difícil estabelecer o que ensinar sobre Teoria e Metodologia, e até
mesmo se deve ou não existir uma ou mais disciplinas específicas
para estes conteúdos. Assim acho que nós, professores
inevitavelmente oscilamos entre ficar em um nível muito genérico, ou
voltar-se para algumas questões que presumivelmente possam servir
de referência a um maior número de trabalhos ou ficar colados às
necessidades particulares de cada tese ou dissertação.
Esta alternativa de conduzir as discussões teórico-metodológicas
específicamente para cada dissertação ou tese, entre outras
conseqüências, tem o risco de transformar o pós-graduado, mais que
em um historiador, em um hiper-especialista, -às vezes
prematuramente- perdendo de vista o conjunto do campo do trabalho
histórico, com conseqüências fáceis de entender, por exemplo, para
sua atuação docente.

Enfim, esta uma situação bastante complexa e um desafio para o


qual nenhum Programa de Pós Graduação tem uma receita
inteiramente satisfatória, salvo se fechar os olhos e varrer para
embaixo do tapete estas dificuldades.

Vou apontar apenas uma decorrência desta dificuldade do


ensino da teoria e metodologia na pós-graduação, sobretudo para os
alunos que trazem uma base pouco consistente desses conteúdos:
a dificuldade da formulação de problema(s), questões ou
hipóteses que serão o eixo da sua investigação e da delimitação
do tema a ser pesquisado, ou seja, daquele conjunto de
conteúdos que são significativos para desenvolver o problema da
pesquisa.

O que a teoria tem a ver com isso? A teoria, como se sabe, é


uma representação abstrata das características intrínsecas, das

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propriedades recorrentes dos fenômenos e não são visíveis quando os


apreendemos pela observação direta, empírica. Na teoria, através de
seus conceitos, estão expressas as relações fundamentais que
conformam um fenômeno histórico ou um campo da realidade
histórica. Por isto a teoria é uma ferramenta que nos ajuda a perceber
não só as relações inerentes ao fenômeno que desejamos pesquisar
como entender a hierarquia, o grau de relevância que estas relações
possuem na constituição do referido fenômeno ou campo da realidade
histórica.

É muito comum hoje, quando há uma tendência às abordagens


muito especializadas, pontuais, que o estudante não consiga perceber
as conexões mais amplas que estruturam uma determinada temática e
dentro das quais emergem as questões que são significativas para
transformar aquilo que era apenas um tema em um problema de
pesquisa.

É claro que a teoria não é uma “varinha mágica” para solucionar


nossas dificuldades de pesquisa, mas certamente é um recurso
indispensável para formular o problema ou hipótese da pesquisa e
delimitar os elementos que são significativos para desenvolver este
problema ou hipótese. Só assim é possível evitar que o trabalho perca
o rumo, que a pesquisa seja dirigida pelo que se encontra e não pelo
que se procura. E isto não se resolve apenas pela delimitação espacial
e cronológica: é no campo da teoria e metodologia que o pesquisador
pode encontrar, em alguma medida, as referências que o auxiliem a
formular o problema e interrogar as fontes para responde-lo. Como
escreveu Edward Thompson, “Os dados históricos tem determinadas
propriedades. Ainda que se possa fazer a eles qualquer pergunta, só
algumas serão apropriadas”[ M. de la T., p. 69]

Tenho observado que a maior ou menor dificuldade na


formulação das questões que orientarão a pesquisa está na razão
direta do domínio teórico que o estudante possui. Pois é a teoria que
lhe ajuda perceber as relações fundamentais que são constitutivas de
seu tema, a hierarquia entre estas relações, ou seja, aquelas mais
determinantes e aquelas que lhes são subordinadas. É nesse âmbito
que sua a pergunta de pesquisa tem que ser formulada.

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É certo que a delimitação do tema e a formulação do problema


implicam também o conhecimento -ao menos das obras fundamentais-
daquilo que já foi discutido na historiografia; do contrário, o
pesquisador não terá um mínimo de informações que lhe permitam
movimentar-se dentro de um determinado conteúdo. Mas, repito, isto
não é suficiente sem uma base teórico- metodológica mais abrangente
que lhe permita descortinar a estrutura de seu objeto de pesquisa.

Bem, concluo por aqui. Espero ter trazido para vocês algumas
reflexões sobre o ensino da teoria e metodologia e sobre a importância
destas questões para a formação do historiador, desde seu ingresso
na Universidade, até sua pós-graduação.

Muito obrigado pela atenção.

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