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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850

resenha
A Infância em Berlim por volta de 1900 In Benjamin, Walter. Obras Escolhidas
II Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo. Editora Brasiliense, 1994. pp. 73-
142.

Pablo F. de A. Porfírio1

Palavras-chave: História, Memória e Narrativa.


Keywords: History, memory and Narrative

A infância em Berlim por volta de 1900. Esse texto de Walter Benjamin


oferece diversas possibilidades para debatermos os mecanismos da memória e
sua narrativa, principalmente, para o trabalho do historiador.
Inicialmente, é importante destacarmos a forma como o texto se
apresenta, ou seja, a sua narrativa. Essa se desenvolve sem seguir nenhuma
linearidade cronológica ou temática, realizando saltos entre os tópicos
narrados, assemelhando-se a um movimento próprio de algumas memórias ao
se manifestarem. Além disso, deve se destacar que as rememorações
estabelecem conexões imprevistas ou que pelo menos não obedecem às
lógicas causais e deterministas.
Em relação a esse último aspecto, tomemos o trecho intitulado por
Benjamin, Manhã de Inverno. Nele, o autor recorda-se de como era o despertar
no inverno em Berlim. Sua narrativa relembra as horas em que se acordava, a
lamparina trazida por sua babá naquela alvorada, sua cama, o café da manhã,
a maçã e a escola. As descrições do despertar são invadidas pelas cores,
desejos e olfatos, promovidos tanto pela lamparina que iluminava o quarto,
quanto pela maçã que saia escurecida e quente do fogão, pronta para ser
mordida. E era o aroma emitido pela maçã o que fornecia coragem para
enfrentar o caminho até a escola. Nesse caso, o cheiro da maçã estabelece
conexões com a memória escolar. E do prazer provocado pelo despertar com o
cheiro da maçã, salta-se para a fadiga promovida pelos bancos da escola.

1
Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro / PPGHIS-UFRJ.

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resenha
Mas, Benjamin vai além e encerra o seu relato de memória sobre aquela
Manhã de Inverno com a seguinte frase, referindo-se à escola: custou-me,
porém, muito tempo para nisto reconhecer que fora sempre vã a esperança
que nutria de ter colocação e sustento garantidos2. Por meio de um movimento
de memória povoado por sensações olfativas e visuais, chega-se a uma
contundente crítica social e resignificação de sentido. O autor que descrevia a
confortável vida de uma criança, no fim, apresenta o fracasso do sustento e da
colocação social, quebrando com qualquer linearidade ou determinismo entre a
formação escolar e a conquista de uma boa vida.
Outro caminho trilhado na leitura do texto de Benjamin refere-se a uma
possível intencionalidade de sua narrativa de memória. Devemos lembrar que
Infância em Berlim foi dedicado ao seu filho, Stefan, e poderíamos pensar que
Benjamin procurou congelar uma imagem de Berlim, ao qual o filho não mais
teria acesso, exceto pelas memórias do pai. As trilhas seguidas pelo autor
parecem tentar imobilizar alguns sons, olfatos, lugares, impressões, formas de
enxergar e assim proporcionar ao leitor reviver aquela Berlim que antecedeu às
devastadoras guerras da primeira metade do século XX. Mais que isso, é
possibilitar ao leitor entrar em contato com uma dinâmica social anterior aos
conflitos.
É interessante pensarmos a estrutura narrativa fragmentada e não linear
apresentada por Benjamin em A Infância em Berlim relacionada com o seu
outro estudo sobre a metrópole Paris no século XIX, intitulado Passagens.
Neste, o autor alemão criou uma coletânea de fragmentos ou um grande
fichário que serviria de material para a escrita de um livro ou poderia se
constituir como banco de dados para a construção de novas histórias. Segundo
Rolf Tiedemann, Benjamin desenvolveu o princípio da montagem na História.
Assim, buscou edificar grandes construções a partir do uso de elementos
mínimos3. Com isso, interessava-lhe o objeto singular, o pequeno momento,

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Benjamin, Walter. A Infância em Berlim por volta de 1900 In Obras Escolhidas II Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo. Editora Brasiliense, 1994. pp. 84-85.
3
TIEDEMANN, Rolf. Introdução à edição alemã (1982). In BENJAMIN, Walter. Passagens.
Organização da edição brasileira Willi Bole. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 15

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que seria confeccionado com um movimento preciso e agudo. Era necessário
ter precisão.
Mas, como proceder a uma escrita da História partindo de um conjunto
ou arquivo de fragmentos? Willi Bole, em seu pósfacio sobre Passagens nos
oferece alguns caminhos a serem percorridos. Em primeiro lugar, reafirmando
a idéia de Tiedemann, a operação da escrita consistiria em uma montagem,
uma construção que ligaria diversos fragmentos, produzindo múltiplas
percepções, simultâneas e polifônicas.
A união desses fragmentos, contudo, não representa o resgate de um
fluxo linear dos fatos. Eles não operam como peças que se encaixariam para
resgatar causas genéticas de uma história épica. Cada tópico apresentado no
texto tem suas questões próprias. Mas, elas também se entrecruzam. O
historiador produz então um tecido historiográfico ao trabalhar com a produção
desses entrecruzamentos.
Essa produção e o seu resultado se apresentam como um mecanismo
móvel e dinâmico. Segundo Willi Bole, nas Passagens, o leitor é chamado para
participar de um trabalho produtivo de construção, desconstrução e nova
construção4. Os fragmentos do passado são usados pelo historiador para
produzir imagens e fisionomias, que oferecem diversas possibilidades de
leituras.
Nessa construção historiográfica, o passado apresenta-se aberto,
inconcluso. Ele não progride para um presente, mas salta por meio do
processo de atualização, a ter como participantes o historiador, bem como seu
leitor.
Assim, precisamos estar sempre atentos aos movimentos da memória,
que por mais direcionados em um sentido, podem apresentar rupturas e
desvios e embaralhar diversos tempos em suas narrativas, pois a crítica de
Benjamin acerca da escola não estava presente em 1900, mas aparece no
passado atualizado no momento da escrita do autor e no momento de nossa
leitura.
4
BOLE, Willi. “Um painel com milhares de lâmpadas” – metrópole & megacidade. In
BENJAMIN, Walter. Passagens. Op. Cit. p. 1152.

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Pensemos então A infância em Berlim também como uma montagem a
partir dos fragmentos de uma infância, onde cada lugar, cada sensação, cada
experiência cria um tecido historiográfico. Deste entrecruzamento, Walter
Benjamin constrói a história de uma cidade, Berlim por volta de 1900,
atualizando memórias, fazendo passados saltar para o seu presente e para o
do leitor, oferecendo a este a possibilidade de participar da construção daquela
história.
É uma refinada e sofisticada metodologia de trabalho operacionalizada
por Benjamin. Esperamos, então, que esta resenha desperte a curiosidade de
mais pessoas para mergulharem na obra deste autor alemão, começando com
A infância em Berlim por volta de 1900, e experimentar seus caminhos e seus
fazeres, intensificando e ampliando o debate sobre a memória e a narrativa no
ofício do historiador.

Referências

BENJAMIN, Walter. A Infância em Berlim por volta de 1900 In Obras


Escolhidas II Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo. Editora Brasiliense,
1994. pp. 84-85.

BOLE, Willi. “Um painel com milhares de lâmpadas” – metrópole &


megacidade. In BENJAMIN, Walter. Passagens. Op. Cit. p. 1152.

TIEDEMANN, Rolf. Introdução à edição alemã (1982). In BENJAMIN, Walter.


Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bole. Belo Horizonte: Ed.
UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 15

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