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ANABELA ALMEIDA COSTA E SANTOS

CADERNOS ESCOLARES NA PRIMEIRA SÉRIE DO ENSINO


FUNDAMENTAL: FUNÇÕES E SIGNIFICADOS

Disser t ação apr esent ada ao I nst it ut o de


Psicologia da Univer sidade de São Paulo,
com o par t e dos r equisit os par a obt ençãode
t ít ulo de Mest r e em Psicologia.

São Paulo

2002
ANABELA ALMEIDA COSTA E SANTOS

CADERNOS ESCOLARES NA PRIMEIRA SÉRIE DO ENSINO


FUNDAMENTAL: FUNÇÕES E SIGNIFICADOS

Disser t ação apr esent ada ao I nst it ut o de Psicologia da


Univer sidade de São Paulo, com o par t e dos r equisit os par a
obt enção de t ít ulo de Mest r e em Psicologia.

Área de concentração: Psicologia Escolar

Orientadora: Prof.a Dr .a Marilene Proença Rebello de Souza

São Paulo

2002
Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca
e Documentação do Instituto de Psicologia da USP

Santos, A. A. C. e
Cadernos escolares na primeira série do ensino fundamental: funções
e significados / Anabela Almeida Costa e Santos. – São Paulo: s.n.,
2002. – 152p.

Dissertação (mestrado) – Instintuto de Psicologia da Universidade


de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do
Desenvolvimento e da Personalidade.

Orientadora: Marilene Proença Rebello de Souza.

1. Psicologia escolar 2. Cadernos escolares 3. Etnografia 4.


Interação professor-aluno 5. Ensino de 1º grau I. Título
CADERNOS ESCOLARES NA PRIMEIRA SÉRIE DO ENSINO
FUNDAMENTAL: FUNÇÕES E SIGNIFICADOS

ANABELA ALMEIDA COSTA E SANTOS

BANCA EXAMINADORA

(Nome e Assinatura)

(Nome e Assinatura)

(Nome e Assinatura)

Dissertação defendida e aprovada em: ___/___/___


AGRADECIMENTOS

Aos alunos da sala de aula estudada, especialmente Severino e Eduardo,


que me ajudaram e ensinaram, de modo encantador, a compreender as funções e
os significados dos cadernos escolares.

A Ana que, mesmo sem compreender completamente minhas intenções e


ações, abriu de modo gentil e corajoso as portas de sua sala de aula, possibilitando
a realização da pesquisa, fornecendo informações valiosas e estando disposta a
conversar e refletir.

A M arilene Proença Rebello de Souza por suas contribuições técnicas e


teóricas que aux iliaram, de modo fundamental, na difícil tarefa de aprendercomo
se faz uma dissertação de mestrado.

A Adriana M arcondes M achado e Belmira Bueno pelas sugestões


apresentadas por ocasião do Ex ame Geral de Qualificação, que aux iliaram no
desenvolvimento e conclusão deste trabalho.

À grande companheira e mestra M . Silvia P.M .L. da Rocha que me ajudou


decisivamente a criar e a desenvolver a idéia desta pesquisa; presente e atuante
em diversos momentos, trazendo sempre questionamentos e acréscimos precisos.

A M aria Helena Patto pelas inestimáveis contribuições teóricas, pela gentil


disponibilidade e pela postura instigante, que impulsionaram e possibilitaram
importantes reflex ões.

Às queridas amigas Walkíria Duarte Raphael e Audrey Rossi Weyler


fundamentais nos melhores e piores momentos; sempre presentes, cuidadosas,
receptivas, dispostas a abrir seus corações e casas para me receber.

A M arinês Lana, sempre amiga e disponível, e M arcelo M ichelsohn leitores


perspicazes, que incentivaram, opinaram e questionaram.
A Lygia Viégas, M arcelo Roman e Valdirene M achado companheiros em
discussões e reflex ões que foram fundamentais na composição deste trabalho.

A Vera Carvalho por seu cuidado na revisão.

A Ivan Girsas pelo incentivo e por sua fé, constante e infindável, na


qualidade do meu trabalho.

A José Artur Fernandes pelo interesse constante, por minhas idéias e meus
escritos, que me ajudou a acreditar e persistir; por suas contribuições teóricas e de
ordem prática, e por ter sido sempre companheiro, nas presenças e nas ausências.

A minha mãe e a minha avó, M aria José Almeida Costa e Santos e Mavilde
Ferreira Dias dos Santos, pelo apoio logístico e afetivo.

À FAPESP pelo apoio financeiro que possibilitou a dedicação integral à


pesquisa.
Fot o: Sebast ião Salgado
Filha de sem-t erra num acampament o em Barra da Onça, Sergipe, Brasil, 1996.
O CADERNO
Toquinho

Sou eu que vou seguir você


Do primeiro rabisco até o bê-a-bá
Em todos os desenhos coloridos vou estar
A casa, a montanha, duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel
Sou eu que vou ser seu colega
Seus problemas ajudar a resolver
Sofrer também nas provas bimestrais junto
a você
Serei sempre seu confidente fiel
Se seu pranto molhar meu papel
Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo se você quiser
Quando surgirem seus primeiros raios de
mulher
A vida se abrirá num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel
O que está escrito em mim, comigo
Ficará guardado se lhe dá prazer
A vida segue sempre em frente, o que se
há de fazer
Só peço a você um favor, se puder
Não me esqueça num canto qualquer
SUMÁRIO

RELAÇÃO DE FIGURAS ............................................................................. ix


RESUMO ..................................................................................................... x
ABSTRACT .................................................................................................. xi
APRESENTAÇÃO ..................................................................................... xii

CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO .................................................................... 1

1.1. Objetiv os ............................................................................................ 8

1.2. A relev ância do estudo do caderno escolar na primeira série


do ensino fundamental .......................................................................... 9

CAPÍTULO 2 – MÉTODO DE PESQUISA ..................................................... 13

2.1. O campo ........................................................................................... 15

2.2. Procedimentos .................................................................................. 19


2.2.1. Observ ações participantes ................................................... 20
2.2.2. Encontros com informantes ................................................... 23
2.2.3. Documentos: os cadernos escolares .................................... 26

CAPÍTULO 3 – OS CADERNOS ESCOLARES ............................................. 29

3.1. A presença dos cadernos e suas utilizações na sala de aula de


primeira série ............................................................................................ 29

3.2. Os saberes necessários à utilização escolar dos cadernos ........ 32


3.2.1. A cópia ..................................................................................... 36
3.2.1.1. Os cadernos e a lousa ....................................................... 41
3.2.2.2. “Copiar não é aprender” ................................................. 51
3.2.2. Os saberes da escrita .............................................................. 52
3.2.3. Recortar e colar no caderno ................................................. 54

3.3. Os cadernos como instrumentos de controle .............................. 56


3.3.1 Os cadernos enquanto instrumentos de controle e 57
av aliação do aprendizado dos alunos ..........................................
3.3.2. O controle hierarquizado ....................................................... 59
3.3.3. O controle mútuo entre pais e professora ........................... 60

3.4. Os bilhetes ......................................................................................... 64

3.5. As frases do dia ................................................................................. 75

3.6. A aparência dos cadernos ............................................................. 79


3.7. Os cadernos e sua terminalidade .................................................. 82

CAPÍTULO 4 – A CRIANÇA E SEU CADERNO: DUAS HISTÓRIAS DESSA


RELAÇÃO .................................................................................................. 86

4.1. Eduardo e o carinho presente no caderno .................................. 87

4.2. Sev erino e o sofrimento no aprender ............................................ 97

4.3. Diferentes apropriações de um mesmo objeto: o caderno ...... 120

CAPÍTULO 5 – REFLEXÕES A RESPEITO DOS CADERNOS ESCOLARES ... 124

5.1. Os bastidores dos cadernos escolares .......................................... 124

5.2. O caderno e sua autoria ................................................................. 127

CAPÍTULO 6 – CONSIDERAÇÕES E PROPOSIÇÕES FINAIS .................... 132

ANEXOS 138

A. Relação das observ ações em sala de aula ................................... 139


B. Relato ampliado .................................................................................. 140
C. Frases do dia ....................................................................................... 147

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 150
RELAÇÃO DE FIGURAS

Figura n. Página

1. Cópia, realizada no caderno da professora, da representação


gráfica utilizada como aux iliar para a ex plicação da multiplicação... 38

2. Cópia, realizada por M ateus em seu caderno, de conteúdo


apresentado na lousa.................................................................................. 45

3. Cópia, realizada por Solange em seu caderno, de conteúdo


apresentado na lousa.................................................................................. 46

4. Correção de somas feita pela professora no caderno de Eduardo..... 90

5. Cópia realizada por Eduardo de tex to, inicialmente, apresentado na


lousa............................................................................................................... 91

6. Comentários escritos pela professora no caderno de Eduardo, sobre


seu desempenho em um ditado................................................................ 92

7. Declaração de amor escrita no caderno por Eduardo em seu


caderno......................................................................................................... 96

8. Trabalho realizado no caderno por Severino no dia 26 de junho de


2000................................................................................................................. 102

9. Tentativa de cópia da tabuada do número 7, realizada por Severino. 104

10. Cópia da tabuada do número 7 no caderno de Solange..................... 105


RESUMO

SANTOS, Anabela Almeida Costa e. Cadernos escolares na primeira série do ensino


fundamental: funções e significados. 2002. 152 f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia). Instituto de Psicologia, Univ ersidade de São Paulo, São Paulo.

O trabalho dedicou-se ao estudo de funções e significados atribuídos aos


cadernos escolares na primeira série do ensino fundamental de uma escola
pública. Foi utilizada a etnografia como perspectiv a teórico-metodológica
orientadora para o desenv olv imento da pesquisa. Durante um ano realizaram-se
observ ações participantes em sala de aula, encontros com professora e alunos,
bem como análise de cadernos. Foram focalizados os momentos iniciais de
utilização dos cadernos e os aprendizados relativ os ao uso desse material.
Constatou-se que o caderno é um importante instrumento didático no início do
processo de alfabetização.

No contexto escolar identificou-se que as funções atribuídas aos cadernos


são as seguintes: suporte para desenv olv imento de ativ idades; registro de
ativ idades e relações; controle de alunos, professores e pais; comunicação entre
escola e família. Para os alunos os cadernos assumem os seguintes significados:
materiais associados à cópia; materiais que dev em ser mantidos esteticamente
bem apresentáv eis; implicam em saberes dos quais muitos alunos não chegam a
se apropriar, nesta fase da escolarização; instrumentos de exercitação, cuja
utilidade reside nas folhas em branco e não nos conteúdos neles registrados.

Os bastidores dos cadernos constituíram-se enquanto elementos


fundamentais para a compreensão das informações contidas nesses materiais,
cuja autoria é fruto de esforço diário de alunos e professores, e rev ela concepções
de aprendizagem e de ensino.
ABSTRACT

SANTOS, Anabela Almeida Costa e. Notebooks in the first grade of the Elementary
school: functions and meanings. 2002. 152 f. Thesis (Master). Institute of Psychology.
Univ ersity of São Paulo, São Paulo.

This research aims to study the functions and meanings of the notebooks in
the first grade of an Elementary Public school. The theoretical and methodological
approach was based on an ethnographic perspectiv e. The fieldwork was
performed for one year when the researcher did participant observ ations in the
classroom, meetings with the teacher and students and analyzed some student’s
notebooks. The research focused on the v ery beginning of notebooks utilization and
the learning process relating to the use of this school material. We realized that the
notebook is an important didactic instrument which is frequently used in the
beginning of the literacy process.

In the school context one could identify the functions attributed to the
notebooks such as: foundation for dev eloping school activ ities; record for activ ities
and relationships; control of students, teacher and parents; communication
between school and family. For the students, the notebooks hav e the meanings
such as: material associated to copy activ ities; material which needs always to
hav e a v ery good appearance; a material which inv olv es knowledge which the
majority of the students do not hav e the possibility of appropriating in this lev el of
schooling; instruments for training, of which utility dwells more in the blank pages
than in the registered contents.

The offstage study of the notebooks constituted a fundamental element for


understanding the information which is inside of these school materials which is
produced by the students and teachers as a result of their daily effort. This study also
rev eals some conceptions for learning and teaching present in the focused schools.
APRESENTAÇÃO

Era nov embro, o ano letiv o aproximav a-se do final, quando um


menino de 7 anos, trazido por sua mãe, procurou atendimento
psicopedagógico. Ele fora encaminhado por sua professora, pois não
estav a acompanhando as ativ idades desenv olv idas na classe de primeira
série. Para que a psicóloga pudesse compreender melhor o que ocorria,
trouxeram o caderno do menino, que tinha pouco conteúdo registrado.
Hav ia, porém, algo nesse caderno que chamav a a atenção: os bilhetes
escritos pela professora quase diariamente. Esses bilhetes seguiam-se a
algumas linhas escritas pelo menino, sempre comunicav am o horário
(inv ariav elmente próximo ao final da aula) e apontav am que o aluno
ainda não hav ia feito nenhuma das ativ idades que tinham sido solicitadas
ao longo do dia. Esse procedimento foi utilizado pela professora durante
todo o ano, não tendo sido v erificados av anços no sentido de o aluno
passar a realizar as tarefas. Alguns fatos ficav am ev identes por meio da
observ ação desse material: o aluno realmente não estav a fazendo as
ativ idades, a professora preocupav a-se com isto, porém utilizav a-se de um
recurso que nos parece ineficiente para lidar com as dificuldades do aluno,
já que essas se mantiv eram, apesar de tantas v ezes terem sido
denunciadas pela professora nas páginas dos cadernos. Em busca de mais
informações procurei a escola, onde fui recebida pela professora. Esta
relatou que o menino passav a todo o período de aulas olhando para o
caderno, com o lápis na mão e com uma expressão de sofrimento.

Apesar de o caderno desse aluno ser um registro claro da situação de


queixa escolar, é um registro que não rev ela informações cruciais sobre o
problema. Afinal, não estav am registrados no caderno os motiv os pelos
quais o aluno não conseguia realizar a tarefa, nem mesmo seus desejos e
expectativ as em relação à escolarização. Os bilhetes registrav am, por um
lado, apenas parcialmente como a professora v ia seu aluno. Por outro
APRESENTAÇÃO x iii

lado, informav am ao menino e à sua família, sobre quem era ele como
aprendiz, e como se dav am algumas relações na escola.

O episódio descrito não foi ímpar. Em div ersas situações, ao longo de


minha atuação profissional, pude conhecer cadernos que ora rev elav am,
ora omitiam, ou encobriam aquilo que ocorria na escola. Eu percebia que
seria útil conhecer mais sobre esses materiais escolares, sobre suas
particularidades, sobre seus usos.

Psicólogos tomam, profissionalmente, contato com cadernos em


alguns tipos de situação: quando trabalham diretamente com instituições
de ensino ou quando trabalham com aprendizes. Nesses casos, cadernos
são entregues ao profissional para que dali retire informações que possam
ajudá-lo a compreender melhor alguma questão relacionada ao âmbito
da escolarização e ao processo de ensino-aprendizagem. No entanto, na
maioria das situações, esse contato do psicólogo com os materiais escolares
acontece sem que tenha conhecimentos e informações sobre como
analisar aquilo que recebe.

Como psicóloga escolar, era exatamente de modo exploratório e


intuitiv o que eu buscav a atribuir significados aos cadernos que me eram
apresentados por pais, professores e alunos, a fim de que eu pudesse
compreender queixas escolares relacionadas, especialmente, com a
aprendizagem.

Sou psicóloga formada pela Univ ersidade de São Paulo em 1997. Ao


longo da graduação realizei estágio junto ao Serv iço de Psicologia Escolar
da USP, participando de um projeto de diagnóstico de queixas escolares
que v isav a abordar essa questão, tendo como foco o contexto gerador
da queixa 1. Essa experiência chamou minha atenção para mecanismos e
situações que ocorrem dentro das instituições de ensino que acabam
resultando em fracassos escolares. Em 1998, trabalhei no Serv iço de

1
Projet o de avaliação ps icológica realizado em parceria com a 14a Delegacia de Ens ino da cidade de São
Paulo, e que foi expos t o na t es e de dout orado de Adriana M arcondes M achado int it ulada Reinventando
a Avaliação Psicológica, e em art igo pres ent e no livro Educação Especial em Debate, publicado pela
Cas a do Ps icólogo em 1997.
APRESENTAÇÃO x iv

Psicologia Escolar da PUC-Campinas2, quando tiv e a oportunidade de


receber div ersas crianças com queixas escolares. Um dos recursos utilizados
corriqueiramente para obter informações sobre a criança, sobre a sala de
aula, e sobre as relações que se dav am no contexto escolar foi a
v erificação dos cadernos junto da criança e de seus pais. Esse
procedimento tev e como objetiv o v erificar quais eram os conteúdos que
estav am sendo ensinados em sala de aula, como o aluno se apropriav a
desses conhecimentos, quais eram os erros cometidos, quais eram os
procedimentos do professor em relação aos erros, e qual era o conteúdo
das observ ações feitas, por escrito, pelo professor. Muitas v ezes os cadernos
rev elaram importantes aspectos não só sobre os alunos, mas também sobre
a dinâmica de sala de aula, sobre as expectativ as e exigências do
professor, sobre os procedimentos utilizados pelo professor para atingir
objetiv os pedagógicos e disciplinares.

O interesse por saber como os cadernos tornav am-se um registro


daquilo que ocorria na escola impulsionou-me a realizar um estudo
exploratório, sob perspectiv a etnográfica, em uma sala de aula de primeira
série do Ensino Fundamental de uma escola pública do município de
Hortolândia. Esse trabalho tev e como objetiv o caracterizar e contextualizar
o papel dos cadernos. As informações obtidas contribuíram para refinar
questionamentos e embasar, com aspectos do cotidiano escolar, a
definição de qual seria o tema abordado em minha pesquisa de mestrado.

A partir dessa pesquisa inicial, foi possív el v islumbrar que o caderno é


muito mais que um conjunto de folhas de papel onde alunos fazem suas
ativ idades. Esse material assume, no cotidiano escolar, funções e
significados importantes que não se encontram descritos e analisados na
literatura. Com o objetiv o de conhecer as funções e os significados dos
cadernos escolares para alunos de primeira série do Ensino Fundamental
propus o estudo que será apresentado mais adiante.

Conheci a escola onde foi realizado estudo exploratório e onde,


posteriormente, realizei o trabalho de campo da presente pesquisa em

2 Trabalho des envolvido durant e part icipação no Programa de Aprimorament o Profis s ional em
Ps icopedagogia I ns t it ucional res ult ado de convênio ent re a FU NDAP e a PU C-Campinas .
APRESENTAÇÃO xv

1998. Naquele momento a Secretaria de Educação, Cultura, Esportes e


Lazer do Município de Hortolândia preocupav a-se de modo especial com
aquela unidade escolar, pois era a que apresentav a os mais altos índices
de repetência e ev asão. Algumas iniciativ as hav iam sido tomadas, alguns
meses antes do meu contato com a escola. Inicialmente as atenções
dirigiram-se para os alunos, e para buscar neles as causas e as possív eis
soluções para índices tão negativ os. Uma equipe multidisciplinar composta
por pedagoga, fonoaudióloga e psicóloga, foi até a escola a fim de
diagnosticar quais crianças necessitav am de atendimento. A equipe
dirigia-se a cada sala de aula e solicitav a às professoras a indicação de
alunos que precisariam ser av aliados; a indicação era feita imediatamente
e a av aliação acontecia na própria escola, logo em seguida. Concluiu-se
que um número bastante alto de alunos necessitav a de atendimento, e o
encaminhamento foi realizado.

O serv iço foi oferecido em um local de dificílimo acesso para as


pessoas da região, já que a clientela da escola morav a em um conjunto
de bairros geograficamente isolado do restante do município, que não era
serv ido pelo transporte coletiv o da cidade de Hortolândia. Assim sendo,
para ter acesso a qualquer órgão público ou serv iço de saúde, as pessoas
precisav am encaminhar-se ao município v izinho e dali, então, dirigir-se à
região central de Hortolândia. Essa dificuldade de acesso fazia com que a
busca pelo atendimento exigisse alto inv estimento de tempo e dinheiro. Por
essa razão, pouquíssimos foram os pais que chegaram a procurar o serv iço,
e nenhuma família v islumbrou possibilidades de dar continuidade ao
atendimento. Todo esse procedimento adotado não resultou no
atendimento de qualquer das crianças, mas tev e conseqüências e deixou
marcas na instituição de ensino. Mais uma v ez foi afirmado pelos
profissionais a quem é atribuído o discurso competente, que as causas do
fracasso escolar estav am nas próprias crianças. Considerando que as
crianças e suas famílias não persistiram em buscar as soluções indicadas,
pouco restav a fazer, senão conv iv er com os mesmos problemas de antes.

No entanto, ainda hav ia preocupação por parte da Secretaria de


Educação, Cultura, Esportes e Lazer em encontrar outras alternativ as.
APRESENTAÇÃO x vi

Buscando recursos para implementar nov as ações foi escrito o Projeto


Apreender, desenv olv ido em parceria com o Ministério da Prev idência e
Assistência Social. Foi ao participar desse projeto, prestando assessoria
psicopedagógica a professores e desenv olv endo Grupos de Leitura com
alunos de primeira e segunda série, que entrei em contato com a escola.
Esse trabalho possibilitou-me conhecer muito sobre essa instituição
educacional, seus alunos, suas famílias, suas condições de v ida, e buscar
formas mais interessantes que as anteriormente propostas para trabalhar
com a questão do fracasso escolar.

Um dos aspectos que mais me chamou atenção naquela ocasião foi


a forma preconceituosa como os profissionais da escola v iam sua clientela:
famílias “desestruturadas”, pais desinteressados pelos conhecimentos que a
escola pudesse oferecer a seus filhos, e pouco empenhados em ajudá-los a
superar as suas dificuldades. Visitando famílias e conv ersando com pais de
alunos, pude conhecer outros aspectos daquela realidade: hav ia pais
extremamente interessados na escolarização de seus filhos, que
v alorizav am os conhecimentos escolares e procurav am auxiliar e fornecer
condições para que seus filhos dessem prosseguimento aos estudos, apesar
da própria falta de conhecimentos e recursos, e de muitas v ezes não
encontrarem na escola a qualidade que esperav am. Ainda quando
realmente os pais não acompanhassem mais de perto a escolarização,
sempre hav ia algum adulto que se encarregav a disso, fosse um irmão mais
v elho ou um tio. Hav ia queixas em relação à forma como a escola
afastav a qualquer tipo de participação da comunidade; algo que
ganhav a um tom ainda mais ácido quando era dito pelas pessoas que
hav iam participado ativ amente das ações para a implantação da
escola, o que ocorreu em caráter emergencial, em condições bastante
precárias e contando decisiv amente com o trabalho dos membros da
comunidade.

Ao longo dos anos, as relações entre a escola e a comunidade foram


se transformando, adquirindo nov as nuanças, determinadas pelas
características e ações dos profissionais que passaram a compor o grupo de
profissionais da escola. A equipe técnica – administrativ a e pedagógica –
APRESENTAÇÃO x vii

foi mudada em 1999, permanecendo até 2000. O quadro de professores


tem, desde 1998, sofrido mudanças a cada ano.

Ainda em 1998, pude conhecer crianças de primeira série que iriam,


dentro de poucos meses, fazer parte dos números do mais alto índice de
repetência do município. No meio do ano letiv o ficou ev idente a existência
de alguns alunos que freqüentav am a escola usufruindo minimamente
daquilo que ali era oferecido. As ativ idades propostas em sala de aula
eram v oltadas para aqueles que dominav am conhecimentos básicos de
leitura e escrita, e os demais, que ainda não eram capazes de ler, ficav am
absolutamente excluídos da possibilidade de cumprir até mesmo
ativ idades que env olv essem conhecimentos de matemática. Aos poucos,
aqueles que hav iam adquirido alguns conhecimentos iam progredindo e
aprendendo nov os conteúdos, enquanto outros acabav am por ficar
cada v ez mais à margem das ativ idades propostas, não as realizando e
não sendo chamados a realizá-las. Desenv olv i ativ idades em grupo com
algumas crianças da escola, dentre as quais estav am esses alunos, v istos
por suas professoras como tendo problemas de aprendizagem e como não
manifestando nenhum empenho para cumprir as ativ idades
desenv olv idas em sala de aula. Esses meninos e meninas que eram
percebidos como tão desinteressados de conteúdos escolares quando
estav am na classe, rev elav am-se curiosos e empenhados em aprender a
ler quando esse aprendizado era proposto de forma acessív el e atrativ a.

Intrigav a-me como ocorriam esses processos cotidianos que excluíam


alunos dentro da própria escola, dentro da sala de aula, que acabav am
por sufocar o desejo de aprender e por transformar crianças curiosas,
criativ as e espertas em alunos copistas ou indisciplinados.

A história de formação do bairro, a forma como cada melhoria foi


conseguida, a solidariedade e a força mostrada pelas pessoas, a
v iv acidade e a potencialidade das crianças, e os fracassos v iv idos por
elas na escola foram fatores que me impulsionaram a realizar a pesquisa
naquele lugar. Meu interesse em conhecer mais sobre os mecanismos que
contribuíam para que alunos ingressantes iniciassem o contato com as
instituições de ensino de forma negativ a, principiando uma história de
APRESENTAÇÃO x viii

fracassos, somou-se ao interesse pelos cadernos, objetos que testemunham,


acompanham e participam de histórias de sucesso e fracasso escolar.

A seguir apresento a pesquisa “Cadernos escolares na primeira série


do ensino fundamental: funções e significados” desenv olv ida a partir das
experiências descritas, e impulsionada pelos questionamentos e
inquietações que expus. O texto div ide-se em seis capítulos.

No primeiro capítulo, Int rodução, é apresentado brev emente, com


base na literatura e em minhas experiências anteriores, o modo como o
caderno se insere no cotidiano escolar. São destacados os objetiv os desta
pesquisa, bem como, as razões para a eleição da primeira série como
objeto de pesquisa.

No segundo capítulo, Mét odo de Pesquisa, são apresentados a


perspectiv a etnográfica de pesquisa e o conceito de cotidianidade de
Agnes Heller, que embasaram o planejamento e condução da pesquisa e
contribuíram para a compreensão dos fenômenos observ ados e estudados.
Há também a descrição do contexto no qual foi desenv olv ida a pesquisa,
e dos procedimentos que foram utilizados para obter informações sobre o
uso do caderno na primeira série.

O terceiro capítulo, intitulado Os Cadernos Escolares, descrev e a


forma como se dav a a utilização dos cadernos na sala de aula
observ ada, abordando as funções e os significados atribuídos a esses
materiais no cotidiano escolar. São enfocados itens presentes nos cadernos,
tais como, os bilhetes e as frases do dia, e aspectos decorrentes de seu uso,
tais como o controle e a necessidade de domínio de saberes específicos ao
uso desse suporte.

No quarto capítulo, A criança e seu caderno: duas hist órias dessa


relação, as trajetórias escolares de dois alunos são apresentadas com o
intuito de ilustrar de modo dinâmico diferentes formas de apropriação do
caderno escolar. É dada ênfase ao uso feito dos cadernos e à forma como
se deram os aprendizados relativ os a esse uso.

O quinto capítulo, Reflexões a respeit o dos cadernos escolares,


contém considerações sobre a autoria dos cadernos e sobre aspectos que
APRESENTAÇÃO x ix

fogem ao alcance de registro desse material, mas que são de fundamental


importância para aqueles que pretendem utilizá-lo como fonte de
informações sobre o contexto escolar.

O último capítulo, Considerações e proposições finais, apresenta


uma síntese da descrição das funções e significados atribuídos aos
cadernos na sala de aula estudada, informações que possibilitaram que
fossem propostas algumas formas para que o uso do caderno possa
constituir-se, efetiv amente, em um aliado na tarefa de ensinar e aprender.
CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO

...Aí, chegô uma época eu fui estudá, foi por eu e minha irmã, aí

nós fomo pro primeiro ano, acho que o primeiro ano eu repeti

bem uns dois ou três anos, depois eu passei pro segundo, eu até

que nesse ponto eu era bem inteligente, passei pro segundo e

depois passei pro terceiro. Quando eu tava no terceiro ano, vai o

fracasso começou bem outra vez e ela [a mãe] não podia...

nessa época do começo do ano, ela não podia comprá

caderno, aí a diretora foi, insistiu, e ela lavava roupa pra essa

diretora, a tal de Iracema, aí a diretora: “Oi, d. Cecília, coitada

da menina, tá tão adiantada na escola, não é pra tirá ela da

escola”. Aí minha mãe falô assim: “Eu não tô em condições nem

de comprá um lápis pra ela”. “Não a senhora manda ela pra

escola que eu dô, eu dô lápis, borracha e caderno até a senhora

comprá”. Tudo bem. O primeiro dia de aula a diretora foi, deu o

lápis, o caderno e a borracha, mas ela já foi falô assim: “M as só

que todo dia depois que terminá a aula você me entrega”.

Terminando a aula, eu ia na diretoria e entregava, no outro dia ia

lá e pegava. Quando foi no terceiro dia ela insistiu: “D. Cecília

ainda não comprou o caderno?” Eu falei assim: “Ô, minha mãe

trabalha pra morrê e compra feix e de lenha quando ela não qué

i buscá, mas ela nunca deix ou nós i no mato buscá lenha. Então

eu não posso fazê nada”. Até falei bastante palavrão com ela,

ela me pôs de castigo, correu atrás de mim, e eu corri na classe e

ela pegô meu caderno, jogou pro lado, eu peguei o caderno,

passei por debaix o da cerca de arame, rasguei a mão na cerca,

até esse tempo tinha sinal na minha mão, da cerca de arame.

Cheguei lá em casa e minha mãe: “Que que é? Que que é?...”

Eu falei assim: “Ói, mãe, Iracema vai vim aqui em casa reclamá

pra senhora porque ela não quis me dá o caderno e eu fiz


I NTRODUÇÃO 2

malcriação com ela mesmo”. Aí minha mãe falô assim: “É melhor

cê saí da escola e pronto”. Saí da escola. Aí fui comprá barrigada

mais ela. (M ello, 1988, p. 125-126) 1

O caderno é um material cuja posse pode determinar a possibilidade


ou não de ingresso e permanência na escola; que serv e de suporte para
grande parte das ativ idades escolares, tornando-se registro de importante
parcela da escolarização, que acompanha o estudante ao longo da v ida
escolar.

A utilização desse material é muito difundida. Nas fotos de Sebastião


Salgado, que retratou crianças em êxodo, v emos cadernos tanto nas mãos
de uma menina no acampamento dos sem-terra, em Sergipe, como
também, nas mãos de crianças do Afeganistão e da Índia.

O cenário onde ocorre o ensino pode ser analisado a partir de


div ersos aspectos. Dentre os itens que compõem esse cenário, o caderno
escolar pode ser considerado como um dos elementos mais presentes. Pode
ser encontrado desde a educação infantil até o ensino superior; e é
instrumento de trabalho dos alunos pertencentes desde as classes sociais
mais altas às mais baixas. Ainda que para as últimas seja, por v ezes,
bastante custoso ter acesso a esse material, ele continua sendo solicitado e
utilizado (Faria, 1988). O uso do caderno atualmente é tão corrente que a
sua utilização não chega sequer a ser discutida ou questionada; desse
modo, o caderno é um objeto que passou a ser v isto como natural no
contexto escolar (Gv irtz, 1999).

Os cadernos são objetos que acompanham a escolarização,


fazendo-se tão presentes nessa etapa, que acabam por tornarem-se
inseparáv eis das idéias de escola e ensino. O estudante pode ser
identificado por carregá-los, e são materiais que, por sua v ez, registram,
ainda que de modos v ariados, conteúdos e relações ocorridas na escola.
Adquirem, ao serem usados, marcas do estudante que os usa, do professor,
da escola. São objetos que fazem parte daquilo que ocorre no contexto de

1 Relat o feit o por Nilza, 26 anos, moradora da Vila Helena, bairro pobre da cidade de São

Paulo.
I NTRODUÇÃO 3

ensino, mas que também, simultaneamente, imprimem peculiaridades ao


cotidiano escolar.

A importância do caderno torna-se ev idente não só pela sua


constância nas escolas, mas também pelas funções que ocupa, já que é
utilizado para registrar, resolv er e corrigir a maioria das tarefas escolares. Ou
seja, o caderno está presente, como elemento importante, em grande
parte das ativ idades que ocorrem no dia-a-dia da escola, e que
constituem o seu cotidiano. Após uma av aliação pouco cuidadosa das
funções do caderno no contexto de ensino, poderíamos considerá-lo um
mero suporte para o registro de conteúdos das v ariadas disciplinas, e para
a resolução de ativ idades escolares, cuja utilização pouco diferiria da de
outros materiais, tais como o fichário ou as folhas soltas. No entanto, o
caderno tem, em suas propriedades físicas, peculiaridades: início, meio e
fim, seqüência de folhas, margens, linhas, capa, contracapa. A seqüência
de folhas, por exemplo, induz e sugere que a realização das tarefas seja
disposta espacialmente uma após a outra. Outras características, tais como
linhas e margens, criam limites para a realização da escrita nesse suporte. As
peculiaridades físicas do caderno somam-se às conv enções que são
estabelecidas para o seu uso e às diferentes funções que lhe podem ser
atribuídas nas div ersas instituições de ensino. Esses aspectos fazem do
caderno um objeto importante e peculiar, que impõe ao trabalho nele
realizado algumas regras e sobre o qual há muito que conhecer.

Anteriormente à realização da presente pesquisa, pôde-se v erificar,


nos registros dos cadernos, alguns aspectos importantes em relação aos
procedimentos de ensino:

• prev alência da v alorização dos aspectos formais, tais como:


limpeza e organização, em detrimento do próprio conteúdo
abordado em sala de aula;

• maior ênfase em explicitar os erros que em mostrar os acertos e


progressos;
I NTRODUÇÃO 4

• alternância apresentada nas formas e critérios de correção,


criando dificuldades para que o aluno pudesse conhecer aquilo
que realmente era esperado dele;

• utilização freqüente, por parte dos professores, de mensagens,


ambíguas ou pouco compreensív eis, que dificultav am a
comunicação e criav am mal-entendidos;

• predominância, nas comunicações direcionadas aos pais, da


sinalização de condutas do aluno consideradas inadequadas.

Resumindo, esses aspectos denotav am, muitas v ezes, descompassos


entre os processos de ensino e de aprendizagem, e dificuldades nas
relações entre os indiv íduos env olv idos. Os cadernos protagonizav am
situações que rev elav am as dificuldades de comunicação entre professor e
alunos, que ev idenciav am a complexidade dos processos escolares.

O desejo de conhecer mais sobre como os cadernos eram


preenchidos no dia-a-dia da sala de aula, e sobre como se tornav am um
registro daquilo que ocorria na escola motiv ou a realização de um estudo
exploratório2, que foi realizado em uma escola pública do município de
Hortolândia.

Por meio dessa estratégia foi possív el observ ar uma série de aspectos
relativ os às funções e significados dos cadernos em uma sala de primeira
série. A atenção e o cuidado marcav am fortemente a relação dos alunos
com seus cadernos. Esse procedimento contrastav a com o conteúdo das
freqüentes queixas das professoras, que relatav am o fato de seus alunos
não cuidarem dos cadernos, os quais acabav am por ficar sujos, amassados
e por serem preenchidos sem o esperado capricho. Ainda que tenha sido
v erificado que muitas v ezes os cadernos apresentav am-se conforme a
descrição das professoras, era perceptív el que não hav ia, de modo algum,
uma despreocupação dos alunos no cuidado com seus cadernos. Os
alunos preocupav am-se com o modo como dev iam transportá-los e

2 O est udo ex plorat ório foi realizado no segundo semest re de 1999, sendo part e int egrant e

da disciplina “A et nografia aplicada à pesquisa educacional”, minist rada na Faculdade de


Educação da U niv ersidade de São Paulo pela Prof ª Dr ª Belmira Bueno.
I NTRODUÇÃO 5

guardá-los, com as atitudes de familiares e, até mesmo da professora, em


relação aos seus cadernos. Demonstrav am cuidado com a limpeza e
decoração dos cadernos, sentiam v ergonha quando mostrav am cadernos
que tinham “orelhas” ou rabiscos feitos pelos irmãos mais nov os. No entanto,
esses cuidados e preocupações não eram suficientes para garantir, aos
cadernos, a aparência desejada pelos professores.

A pesquisa foi realizada em uma escola localizada em uma


ocupação ilegal de terras. Assim sendo, a escola e a casa dos alunos
localizav am-se em ruas de terra; o caminho percorrido diariamente pelos
alunos também não era asfaltado. Por maiores que fossem os cuidados com
a limpeza, os móv eis e o ar tinham sempre pó. Esse pó dav a aos cadernos,
em muito pouco tempo, uma tonalidade amarelada. Também os cadernos
da professora e da pesquisadora, após algumas idas até à escola, já
hav iam sido marcados pela cor da terra. O próprio manuseio necessário à
utilização desse material escolar, somado à falta de pastas ou mochilas
suficientemente grandes contribuía para que os cadernos ganhassem uma
aparência indesejada pelas professoras.

Outro aspecto bastante interessante v erificado nesse estudo


exploratório foi o quanto o conteúdo dos cadernos pode não rev elar sobre
o nív el de aprendizagem do aluno. Cadernos completos e caprichados
pertenciam muitas v ezes a alunos que estav am em um nív el bastante
inicial de alfabetização, enquanto cadernos considerados incompletos,
feios e feitos sem cuidado pertenciam a alunos que se destacav am
intelectualmente, e que demonstrav am grande facilidade para aprender
os conteúdos ministrados. Em determinada situação a professora começou
a mostrar à pesquisadora os cadernos de seus alunos e a fazer comentários
sobre eles. Um desses cadernos tinha uma série de ativ idades realizadas
com esmero, acompanhadas de elogios por escrito da professora. Era o
caderno de uma aluna que, no final do ano, ainda não lia nem escrev ia. A
própria professora surpreendeu-se por v erificar que uma aluna como ela
tiv esse um caderno tão bom e tão bem av aliado.

A possibilidade de que um aluno de primeira série tenha um caderno


completo, apesar de não dominar a leitura e a escrita, aponta para o
I NTRODUÇÃO 6

quanto muitas das ativ idades desenv olv idas nessa sala de aula
baseav am-se em cópias. Ainda quando se fazia necessário que o aluno
resolv esse algum exercício, ao final era-lhe apresentada, na lousa, a
solução que podia ser copiada. Dessa forma, um bom “copista” pode ter
um ótimo caderno, apesar de não dominar os conteúdos ensinados na
escola.

Situações como essa rev elam que apesar de a escola manifestar


empenho em alfabetizar seus alunos, muitas v ezes as ações que são
exigidas dos alunos e v alorizadas pela escola cumprem objetiv os que se
afastam bastante da proposta de ensinar a ler e a escrev er.

Sendo o caderno um elemento tão presente e importante no


contexto escolar é surpreendente o fato de poucos pesquisadores terem se
dedicado a estudar, de modo aprofundado, esse material.

Um trabalho bastante interessante foi feito por Gv irtz (1997) que


apresenta um importante estudo, realizado na Argentina, a respeito dos
cadernos. Por meio da análise de 781 exemplares, cedidos por ex-alunos,
foram abrangidas as décadas de 30 a 80. Tais cadernos prov inham de
escolas particulares e públicas, e eram relativ os às sete primeiras séries de
escolarização. Essa pesquisa buscou apresentar um lev antamento histórico
sobre os cadernos, e sobre os conteúdos e saberes neles registrados. A
autora aponta em seu trabalho que o caderno torna-se uma fonte primária
de acesso às informações sobre o ensino e a aprendizagem, pelo fato de
que, em quase todo o tempo de trabalho escolar, alunos e professores
desenv olv em ativ idades escritas que ficam registradas nos cadernos. Gv irtz
ressalta também que “o caderno é um espaço de interação entre
professores e alunos, uma arena onde se enfrentam os atores do processo
de ensino-aprendizagem e onde, portanto, é possív el v islumbrar os efeitos
dessa ativ idade: a tarefa escolar.” (1997, p. 23, tradução nossa).
A autora ressalta que o caderno não é um mero suporte físico para o
ensino. Além de ser um importante registro dos processos de ensino-
aprendizagem, o caderno é um instrumento didático que produz saberes
escolares:
I NTRODUÇÃO 7

“Estabelecer uma correspondência entre a sucessão espacial das

folhas e a sucessão temporal das tarefas, assim como os

conceitos de margem e cent ro, são alguns dos saberes

necessários, ainda que não suficientes para o uso do caderno.

Tais saberes são produto deste especial dispositivo escolar.”

(1997, p. 26, grifos da autora, tradução nossa).

Desse modo, passam a ser exigidos do aluno procedimentos que são


peculiares ao uso desse material escolar, e que terão de ser aprendidos.
Também precisarão ser aprendidos os códigos que os professores utilizam
para corrigir e comentar a respeito daquilo que o aluno elabora em seu
caderno.
Outra função que Gv irtz apurou ter sido atribuída ao caderno, em
especial com a introdução das idéias escolanov istas, foi o controle. Tal
controle era exercido em v ários nív eis: o professor controlav a os alunos por
meio das ativ idades realizadas, e os diretores de escolas podiam controlar o
trabalho de seus professores por meio daquilo que ficav a registrado. Nessa
intenção de controle estaria um dos germes da padronização de conteúdo
e forma, que pôde ser v erificada no material estudado pela pesquisadora.
Essa padronização passou a ser exigida dos alunos, permitindo que o diretor
controlasse e conhecesse aquilo que estav a sendo ensinado em uma sala
de aula partindo de apenas um exemplar.
A função de controle que caberia aos cadernos foi lembrada
também por Tragtenberg (1982). O autor aponta que o caderno, por ser um
registro, permite a inspeção, sendo mais um dos instrumentos possuídos pela
escola que torna possív el v erificar se os alunos estão em conformidade com
o sistema escolar, o que se contrapõe à av aliação dos resultados obtidos a
longo prazo.
Faria (1988), outra autora que também se dedicou a pesquisar os
cadernos, apresenta um estudo inicial sobre esse material. O referido
trabalho, que busca compreender a realidade escolar de crianças de
primeira série a partir da análise de seus cadernos, discute uma questão
que parece ser uma decorrência da tentativ a de padronização
anteriormente descrita: as raras oportunidades que os alunos têm para se
I NTRODUÇÃO 8

expressar ou para incluir elementos de suas v idas, e de seus cotidianos. Esse


fato nos remete ao questionamento de quem seriam realmente os autores
dos cadernos. Faria, que em seu estudo encontrou crianças que diziam não
gostar de seus cadernos, associa esse sentimento exatamente à falta de
participação das crianças, bem como de elementos de seu dia-a-dia fora
da escola, no conteúdo dos cadernos; nas palav ras da autora: “...a
criança v aloriza e gosta do caderno quando sente-se como seu autor e
como ator daquela história que v ai sendo escrita por ela.” (p. 11). É
importante ressaltar que o fato de os alunos gostarem ou não de seus
cadernos é um fenômeno bem mais complexo e multideterminado.
A questão da autoria dos cadernos também foi tratada por Gv irtz
(1999), que ressalta que apesar de a maior parte do conteúdo dos
cadernos ser escrito pelas mãos dos alunos, o estilo de redação rev ela
claramente a autoria adulta.
Gv irtz (1997) aponta também que o caderno não tem sido um
espaço destinado à expressão da criativ idade ou à produção
espontânea do aluno, assumindo a função de “comunicação escrita da
produção escolar”. A padronização ganha importância em detrimento da
possibilidade de que o caderno seja um espaço de criação e expressão.
É possív el v erificar que estudos aqui apresentados trazem
importantes av anços para a compreensão do caderno como instrumento
auxiliar de ensino, que imprime características e peculiaridades ao
cotidiano escolar. Os conteúdos e o aspecto dos cadernos foram utilizados,
nesses trabalhos, como fonte de informações sobre a realidade escolar e
sobre as relações ocorridas nas instituições de ensino. Com base nas
conclusões anteriormente apresentadas é que se insere o presente estudo,
cujos objetiv os serão apresentados a seguir.

1.1. OBJETIVOS

Considerando a importância que o caderno assume dentro do


contexto de ensino, que faz desse material muito mais que um mero suporte
onde são desenv olv idas as ativ idades escolares, e a escassez de pesquisas
I NTRODUÇÃO 9

que se dediquem a compreender seus aspectos peculiares, esta pesquisa


propõem-se a:

Objetivos gerais:
• descrev er, contextualizar e analisar as funções e os significados
ocupados pelo caderno em sua utilização pelos alunos dentro de uma
sala de aula de primeira série.

Objetivos específicos:

• analisar os modos de utilização desse material, em especial, por


parte dos alunos (funções);

• compreender quais são os significados que os cadernos


assumem para os alunos que os utilizam;

• v erificar como se constituem os saberes relativ os ao uso do


caderno pelos alunos;

• desv elar aspectos das relações do aluno com a escola, e mais


diretamente com o professor, considerando-se o caderno um
importante instrumento mediador dessas;

• conhecer aspectos da construção da auto-imagem desses


alunos enquanto aprendizes.

1.2. A RELEVÂNCIA DO ESTUDO DO CADERNO ESCOLAR NA PRIMEIRA


SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL

A forte presença e as peculiaridades do caderno como recurso de


ensino que foram apresentadas anteriormente chamam-nos a atenção
para a relev ância de conhecer mais sobre esse elemento tão importante
no contexto escolar. Isso se mostrou ainda mais ev idente pelas observ ações
encontradas nos trabalhos que se dedicam exatamente a desv elar
aspectos contidos e registrados nos cadernos. Tanto Faria (1988), quanto
Gv irtz (1997) ressaltam a escassez de trabalhos de pesquisadores que se
I NTRODUÇÃO 10

debrucem sobre essa questão. Gv irtz comenta que a grande maioria dos
trabalhos que têm como objeto os recursos auxiliares de ensino nem ao
menos cita os cadernos. Faria (1988) refere-se a isso dizendo que a falta de
estudos nessa área criou-lhe dificuldades para iniciar a inv estigação,
dificuldade que procurou suprir tomando contato com o maior número e
v ariedade possív el de cadernos.

As pesquisas aqui apresentadas, que procuraram iniciar os estudos


em busca de maior compreensão desse material, trazem uma contribuição
importantíssima mas, certamente, não puderam abarcar tudo aquilo que
ainda pode ser explorado e compreendido por meio do estudo dos
cadernos escolares.

Nóv oa (1993) propõe a utilização dos cadernos escolares, bem como


de outros materiais didáticos, como importantes fontes de informação para
as pesquisas em educação.

Seguindo nessa direção, os estudos citados priv ilegiaram a


compreensão do caderno a partir daquilo que neles estav a registrado. Ou
seja, os cadernos serv iram como material para estudos retrospectiv os. O
contexto em que foram produzidos pôde, em parte, ser deduzido e
compreendido por meio das análises realizadas. Diferentemente disso, a
presente pesquisa propôs-se a estudar o caderno em uso, enquanto este se
constituía como instrumento de registro e de produção de saberes de
div ersas ordens e naturezas, a fim de compreender como são construídas,
no dia-a-dia escolar suas funções e significados. Acredita-se que ao
conhecer mais sobre as ações, relações e expectativ as em meio às quais se
constitui esse documento, que posteriormente passará a ser utilizado como
fonte de informações para pesquisas, seja possív el contribuir para a
adequada e prov eitosa utilização desse material.

A eleição da primeira série para a realização deste estudo dev e-se a


div ersos fatores que serão apresentados. A primeira série do ensino
fundamental tem como um dos seus principais objetiv os ensinar a leitura e a
escrita. Nesse momento, a realização de exercícios ou ativ idades escritas
ganha maior ev idência e, portanto, para que os objetiv os sejam atingidos,
I NTRODUÇÃO 11

um número bastante grande de ativ idades ocorre com a utilização do


caderno.

Faria (1988) aponta que na primeira série o caderno é o instrumento


mais utilizado para o desenv olv imento de ativ idades. A autora cita o fato
de alguns professores considerarem que o caderno só dev e ser utilizado a
partir dessa série, ou seja, quando se inicia efetiv amente a alfabetização
dos alunos. Nesse momento da escolarização, o caderno aparece
fortemente v inculado à utilização da escrita ou às aprendizagens mais
características do ensino fundamental.

São comuns as utilizações não escolares dos cadernos e, portanto, os


alunos, ao chegarem à escola já têm alguma concepção sobre como e
para quê se usam cadernos. Afinal conforme aponta Vygotsky, “qualquer
situação de aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem
sempre uma história prév ia.” (1989, p. 94). No entanto, nossos objetiv os
v oltam-se mais especificamente para as funções e os significados que
passam a ser atribuídos aos cadernos em seu uso escolar.

Na rede pública de ensino a primeira série é o momento no qual o


uso do caderno, mais freqüentemente, é iniciado, ou pelo menos, torna-se
mais formal atrav és do começo da utilização da escrita; é, portanto, nessa
fase que os saberes escolares peculiares à utilização dos cadernos são
aprendidos. Desse modo, com a realização desta pesquisa junto a alunos
de primeira série procura-se compreender como ocorrem esses primeiros
contatos das crianças com seus cadernos. A pesquisa busca compreender
esse momento, no qual a relação entre o aluno e seu caderno ganha
importantes elementos de utilização e exigências.

É também nessa etapa de escolarização que muitos dos sentimentos


que passarão a estar associados aos materiais escolares, e que exercem
influências não somente no desempenho, mas também na qualidade de
relações estabelecidas com a instituição escolar, com a escolarização e
com a aprendizagem, irão começar a se compor.

Sousa et al. (1996) discorrem sobre as articulações existentes entre as


relações de afeto e o desempenho escolar. A partir da análise de relatos
I NTRODUÇÃO 12

autobiográficos de professoras, que se remetiam a sua v iv ência na escola,


as autoras concluíram que as relações com as pessoas e os objetos
escolares tornam-se decisiv as para o estabelecimento de relações com o
conhecimento e com a escolarização. Desse modo, o afeto pela professora
e pelos materiais escolares, dentre eles o caderno, pode influenciar
positiv amente o desempenho do aluno, assim como uma relação ruim
pode colaborar para conduzir um aluno ao fracasso.
Catani, Bueno e Souza (2000) apontam que é comum, no meio
escolar, a utilização de atributos v agos como interesse e desinteresse para
a explicação do tipo de relação estabelecida por alunos com a escola e o
conhecimento. As autoras, indo além dessas explicações simplistas e
superficiais, rev elam a multiplicidade e complexidade de fatores que
podem interferir no tipo de relação estabelecida, e ressaltam a importância
de pesquisas que buscam conhecer as histórias das relações com a escola
e com o conhecimento para que se reflita sobre o processo educativ o. O
estudo dos cadernos e das histórias dos alunos que os utilizam, cria
possibilidades de que se tenha a oportunidade de considerar aspectos
v iv enciais, experenciais e emocionais que compõem as relações dos alunos
com as instituições de ensino e com aquilo que, nesse espaço, é v eiculado.
Sendo o caderno um dispositiv o tão importante dentro do contexto
de ensino, foi possív el v erificar que ao estudá-lo é possív el conhecer
aspectos do dia-a-dia da escolarização e das relações de ensino-
aprendizagem. Além disso, considerando que lhe são atribuídas
significações que contribuem, juntamente com outros elementos, para o
sucesso ou fracasso escolar, v erifica-se que, ao realizar estudos que possam
desv elar como esse material se insere no cotidiano escolar e nesse conjunto
de significados, também é possív el acrescentar elementos à compreensão
desses fenômenos.
CAPÍTULO 2

MÉTODO DE PESQUISA

Os cadernos são objetos que fazem parte do cotidiano da escola e


que assumem div ersas funções dentro do espaço escolar. Assim, o estudo
desse recurso didático torna possív el conhecer aspectos do cotidiano
escolar, assim como, o acompanhamento desse cotidiano pode desv elar
ev entos, aspectos e processos dos quais o caderno torna-se parte. A forte
ligação entre o cotidiano e o objeto do presente estudo, juntamente com
os objetiv os anteriormente apresentados, lev ou esta pesquisadora a optar
por uma perspectiv a etnográfica de pesquisa, considerando que dessa
forma esses âmbitos pudessem ser compreendidos de modo mais
abrangente.

Com a intenção de compreender mais sobre aquilo que permanece


documentado, e sobre aquilo que não chega a ser documentado nos
cadernos, foram priv ilegiadas estratégias que permitissem reconstruir a
história desses materiais escolares, desde o momento em que começam a
ser preenchidos e ocupados por conteúdos. Como o foco desta pesquisa
centra-se nos alunos, foi dada ênfase a ouv i-los a respeito de seus
cadernos, ou seja, foi dada v oz aos que preponderantemente preenchem
os cadernos, tornando-os registros da sua escolarização. Dessa forma,
procurou-se conhecer os significados que os alunos atribuem a esses objetos.

A pesquisa etnográfica caracteriza-se por um trabalho de campo


longo, v isando construir conhecimento sobre realidades sociais (Rockwell,
1982-85). O resultado desse trabalho seria uma descrição, chamada por
Geertz (1987) de “descrição densa”, buscando caracterizar uma cultura e
as significações que atos, rituais ou objetos, assumem para os seus atores.
Ezpeleta (1989) aponta ainda como característica essencial da etnografia
a função de documentar a realidade não documentada, ou seja,
documentar os ev entos que ocorrem e que, por v ezes, nos parecem
familiares, mas cujas peculiaridades e significados não tenham sido
M ÉTODO DE P ESQUISA 14

registrados, analisados e compreendidos de modo aprofundado. Para a


realização da inv estigação etnográfica, cabe ao pesquisador observ ar o
cotidiano, conv ersar com as pessoas sobre aquilo que observ a, e manter
registros escritos sobre todos esses ev entos (Rockwell, 1982-85).

Utilizou-se o conceito de cotidiano de Agnes Heller que define a v ida


cotidiana como a v ida de todo homem, do homem inteiro, na qual
“colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas
capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativ as, seus
sentimentos, paixões, idéias, ideologias.” (2000, p. 17). Estando todas as
capacidades em funcionamento, nenhuma delas é utilizada em toda a
sua intensidade. Isso imprime características à cotidianidade, dimensão
marcada pela espont aneidade, pois não é possív el aplicar a reflexão a
cada uma das ativ idades cotidianas; pelas ações baseadas na
probabilidade, dada a impossibilidade de “calcular com segurança
científica a conseqüência possív el de uma ação” (p. 30); pelo
economicismo de ações e pensamentos, utilizados na justa medida da
necessidade; pelo pragmat ismo; pela imit ação; pelo uso dos precedent es
para interpretar os fatos, impossibilitando que seja captado o único e
irrepetív el de cada situação; pelo uso da ult rageneralização, para reagir a
casos singulares, o que implica no uso de juízos prov isórios e de analogia.

Heller ressalta que “não existe nenhuma ‘muralha chinesa’ entre a


ativ idade cotidiana e a práxis não-cotidiana ou o pensamento não-
cotidiano mas existem infinitos tipos de transição.” (2000, p. 33). Assim sendo,
ao estudar o cotidiano, também se torna importante atentar para as
possibilidades de escapes para a não-cotidianidade, nas quais se encontre
reflexão, descontinuidade, crítica e manifestação da indiv idualidade.

A v ida cotidiana, apesar de ser v iv ida por todos os indiv íduos e,


desse modo, ser relativ a ao gênero humano, também tem características
particulares e indiv iduais, adquirindo peculiaridades para cada homem
(Heller, 1994).

Esta pesquisa pretende, por meio do estudo do cotidiano de uma


sala de aula, apreender como se dá a iniciação das crianças no uso dos
cadernos, abrangendo aquilo que acontece com os alunos de modo geral,
M ÉTODO DE P ESQUISA 15

mas também procurando compreender apropriações particulares dessa


etapa de iniciação à escolarização.

Conforme aponta Heller (2000), faz parte da inserção de todo o


indiv íduo na v ida cotidiana de sua sociedade a aquisição de habilidades
que lhe serão imprescindív eis; é preciso aprender a manipular as coisas que
fazem parte da referida v ida cotidiana. A presente pesquisa debruça-se
sobre o estudo da aquisição da habilidade de trabalhar com os cadernos,
aprendizado que é absolutamente imprescindív el para que o aluno tome
parte na v ida cotidiana da escola, e que não se resume a saberes sobre
como e onde escrev er, mas que abrange a inserção na escolarização e na
rede de relações da instituição de ensino. Heller ressalta que “a assimilação
da manipulação das coisas é sinônimo de assimilação das relações
sociais” (2000, p. 19, grifos da autora), assim ao aprender a manipular o
caderno o aluno é introduzido também em importantes normas de como
dev e proceder e se relacionar na escola.

2.1. O CAMPO

O trabalho de campo foi desenv olv ido, durante todo o período


letiv o do ano de 2000, em uma escola municipal da cidade de
Hortolândia, que tinha classes de primeira a quarta série do ensino
fundamental e pré-escola. A escola atendia crianças moradoras de quatro
bairros, localizados próximos a ela. Os bairros foram formados a partir de
uma ocupação ilegal de terras iniciada há cerca de seis anos pelo
mov imento dos Sem-Teto3, concentrando, presentemente, mais de 2000
famílias.

3 Organização de pessoas que t êm como objet iv o ocupar áreas desabit adas v isando
est abelecer moradia. Diferent es grupos ocuparam a região em quest ão, formando quat ro
bairros; alguns grupos, mais organizados, inst it uíram regras, e buscaram recursos para que as
pessoas pudessem est abelecer-se em melhores condições, fat o que at ualment e rev ela-se
nas diferenças urbaníst icas ent re os bairros. Desse modo, há bairros que t êm
predominant ement e casas de alv enaria, enquant o em out ro são freqüent es os barracos de
M ÉTODO DE P ESQUISA 16

Atualmente os bairros contam com energia elétrica e água


encanada, infra-estrutura conseguida recentemente, após mov imentos de
organização popular e reiv indicações junto aos poderes públicos. Do
mesmo modo, a conquista da escola foi conseqüência de muitos pedidos
da comunidade, que participou efetiv amente da instalação da unidade
de ensino.

A escola foi implantada em 1997, em caráter emergencial, contando


apenas com dois contêineres como salas de aula. No ano seguinte foi
ampliada, ganhando mais salas e mais v agas. Apesar das melhorias, o
espaço ainda era precário, a escola não tinha pátio, nem áreas externas
cobertas. A única área externa disponív el era um campo de futebol
improv isado em um terreno v izinho à escola. As refeições eram feitas nas
classes, sobre as mesmas carteiras utilizadas para fazer as lições, por não
hav er outro espaço que pudesse serv ir para esse fim. As salas de aula eram
mal v entiladas, tornando-se insuportav elmente quentes no v erão. Aos
poucos a infra-estrutura foi melhorando: a escola ganhou um pátio coberto
e bebedouros, e foram tomadas medidas para aumentar a v entilação das
salas.

Em meados de 2000, durante o período de realização do trabalho


de campo, foi concluído o prédio definitiv o da escola, que passou a ter
amplo espaço de lazer, e demais instalações mais espaçosas, confortáv eis
e modernas. Assim sendo, a presente pesquisa foi iniciada enquanto a
escola encontrav a-se no prédio antigo, e sua finalização ocorreu no nov o
prédio.

Até 1998, a escola não oferecia educação infantil, e não hav ia


nenhuma outra opção pública, naquela região, destinada à faixa etária
inferior a 7 anos. Um número reduzido de alunos freqüentav a uma escola
comunitária 4, organizada na residência de uma das moradoras do bairro,

madeira em condições precárias. Em alguns lugares é possív el o t rânsit o de v eículos pelas


ruas, enquant o em out ros os imensos buracos dificult am at é mesmo a passagem a pé.
4 O número de alunos v ariou bast ant e ent re início de 1998 e final de 1999, período em que a

pesquisadora acompanhou as at iv idades desenv olv idas nessa escola comunit ária.
I nicialment e hav ia em t orno de 35 alunos, porém, dev ido a dificuldades econômicas da
escola, em 1999 o número de alunos foi reduzido para cerca de 20.
M ÉTODO DE P ESQUISA 17

educadora leiga, que oferecia ensino para crianças de 0 a 6 anos. Apenas


no ano de 1999 foram criadas na escola municipal duas classes de
educação infantil. O número de v agas oferecidas foi bastante inferior à
demanda; isto se tornou ev idente quando foram efetuadas as matrículas
para 2000: menos da metade dos alunos que cursaram a primeira série
naquele ano hav iam freqüentado escola anteriormente.

A escola selecionada para o desenv olv imento desta pesquisa


adotav a o caderno apenas a partir da primeira série, assim sendo pode-se
considerar que ao acompanhar essa etapa da escolarização estev e-se
acompanhando a iniciação dos alunos na utilização escolar do caderno.
Para a realização da pesquisa, inicialmente foi escolhida uma sala de
primeira série, dentre as quatro existentes na escola, atendendo a alguns
critérios prev iamente definidos. Pretendeu-se realizar o estudo na sala de
aula de uma professora que concordasse com a realização da pesquisa, e
que demonstrasse algum interesse nessa proposta. Esse critério foi
considerado fundamental, dado que para a realização de uma pesquisa
etnográfica faz-se necessário o estabelecimento de uma relação de
confiança entre o pesquisador e os informantes da pesquisa. Tal confiança
foi imprescindív el para que ocorresse a permanência da pesquisadora na
sala de aula. Além disso, possibilitou que fossem mantidos constantes
diálogos, que fav oreceram o acesso a informações de fundamental
importância para a compreensão daquilo que era observ ado em sala.
Outro aspecto considerado ao selecionar-se a sala de aula foi a escolha de
uma professora que não fosse mal av aliada pela equipe técnica –
pedagógica e administrativ a – da escola; acreditav a-se que ao optar por
uma professora bem av aliada deixaria de ser necessário lidar com uma
série de fatores negativ os alheios à questão dos cadernos, tais como:
relações professor-aluno muito negativ as ou incompetência profissional.

A partir disso foi escolhida a sala de aula de uma professora bastante


jov em, com cerca de 20 anos, Ana 5. Essa professora ingressou na carreira

5 Todos os nomes present es nest e t rabalho são fict ícios. O nome da professora,
part icularment e, foi escolhido por ela própria, sendo que os demais foram t rocados pela
pesquisadora. Essa medida t em como objet iv o prot eger e resguardar a ident idade daqueles
que t ão gent ilment e se dispuseram a ajudar, e que se ex puseram, ao permit ir o
M ÉTODO DE P ESQUISA 18

docente em 1999, naquela mesma escola, quando lecionou na quarta


série. É considerada na escola como bastante criativ a e como a professora
que melhor adota a proposta pedagógica orientada pela Secretaria de
Educação do Município, o Construtiv ismo. Em 2000, tev e sua primeira
experiência com a primeira série e com a alfabetização.

Desde os primeiros contatos, a professora mostrou-se interessada pela


realização da pesquisa e mantev e-se sempre disponív el para conceder
esclarecimentos ou ouv ir comentários da pesquisadora sobre aquilo que
era observ ado em sua sala. A partir das informações trocadas, pensav a a
respeito de sua prática, procurav a compreender melhor seus alunos, e
tomav a prov idências no sentido de contornar as dificuldades observ adas.

Os alunos que participaram da pesquisa eram prov enientes de


famílias pobres, residentes nos quatro bairros próximos à escola, como já dito
anteriormente. A escola era a única do município que ficav a próxima a
esses bairros. Todos costumav am ir a pé para a escola, já que a região não
contav a com transporte público. Dessa forma, alguns percorriam apenas
alguns metros, e outros chegav am a caminhar cerca de 20 minutos até
chegar à escola. Não hav ia asfaltamento em nenhuma das ruas daquela
região. Assim, quando chov ia muito se tornav a quase impossív el o acesso à
escola a pé. Por outro lado, quando o tempo estav a seco o pó pairav a no
ar e deixav a cheios de terra os móv eis, as roupas e todos os demais objetos.

O número de alunos da sala oscilou ao longo do ano. Essa oscilação


implicou também em mudanças na configuração da turma, dado que
durante a realização da pesquisa houv e uma grande rotativ idade de
alunos. A lista de chamada que v igorav a no primeiro dia de aula continha
32 alunos, dos quais apenas 17 chegaram ao final do ano nessa sala.
Algumas crianças saíram, dando lugar a outras, logo no primeiro mês de

acompanhament o de suas at iv idades, ao dar v alorosas informações, e ao confiar na


pesquisadora. “Como, de fat o, não ex periment ar um sent iment o de inquiet ação no
moment o de t ornar públicas conv ersas pr ivadas, [grifos do aut or] confidências recolhidas
numa relação de confiança que só se pode est abelecer na relação ent re duas pessoas? ”
(Bourdieu, 1997) O próprio Bourdieu responde essa quest ão da seguint e forma: “prot egendo
aqueles que em nós confiaram (...) e acima de t udo, procurar colocá-los ao abrigo dos
perigos aos quais nós ex poríamos suas palav ras, abandonando-os sem prot eção, aos
desv ios de sent ido.”
M ÉTODO DE P ESQUISA 19

aulas. Ao final dos primeiros dois meses letiv os a classe tinha 33 alunos, dos
quais 3 foram transferidos para outras escolas, e outros 7 foram incluídos, até
o final do ano letiv o. Essas saídas e entradas foram acontecendo ao longo
de todo o ano, e até mesmo no mês de nov embro houv e a inclusão de um
aluno à classe. Em geral, as transferências de alunos ocorriam dev ido às
mudanças de residência das famílias das crianças, ou por necessidade de
mudança de horário em que o aluno freqüentav a a escola.

Essa rotativ idade trouxe elementos à pesquisa. Em alguns momentos,


alunos sobre os quais recaía o foco das observ ações deixav am a escola
sem que fosse possív el pedir-lhes esclarecimentos sobre alguma situação, ou
fazer uma cópia de seus cadernos. Outros alunos chegav am à escola
trazendo cadernos iniciados em outras instituições escolares, fato que
permitiu incluir informações div ersificadas às observ ações realizadas.

Os lugares dos alunos em sala de aula não eram fixos, assim a cada
observ ação os alunos estav am posicionados de modo diferente. Hav ia
empenho por parte da professora em garantir que os alunos com
problemas de v isão estiv essem sentados mais à frente. Em alguns momentos
os alunos que estav am mais atrasados em relação à aquisição dos
conteúdos escolares, ou que eram considerados indisciplinados também
eram colocados à frente. Exceto nesses casos, eram os próprios alunos que
escolhiam os seus lugares.

2.2. PROCEDIMENTOS

Os procedimentos utilizados para a realização do presente estudo


foram: observ ações de sala de aula, encontros informais com professora e
alunos, e a análise de cadernos escolares.
M ÉTODO DE P ESQUISA 20

2.2.1. Observações participantes

Foram realizadas 29 observ ações em sala de aula 6, sob uma


perspectiv a etnográfica de pesquisa, por meio das quais foram
acompanhadas as ativ idades didáticas, e uma reunião entre pais e
professora. Não houv e um interv alo regular entre uma observ ação e outra;
em alguns períodos o trabalho de campo foi intensificado por considerar-se
que o momento tev e fatos importantes a serem conhecidos e pesquisados,
como por exemplo, nas primeiras e últimas aulas do ano. Em outros
momentos a necessidade de analisar e rev isitar as informações obtidas
interrompia a seqüência de observ ações. Durante a permanência da
pesquisadora em sala de aula foram feitas anotações daquilo que ocorria,
material que constituía o diário de campo. Houv e preocupação de
observ ar e anotar a maior quantidade de acontecimentos possív el, sem
que fosse feita uma pré-seleção daquilo que dev eria ou não ser registrado.
Partia-se do pressuposto que não era possív el antecipar, no momento em
que ocorria a observ ação, quais seriam exatamente as informações
importantes e quais não seriam. Embora houv esse a intenção de observ ar
de modo amplo o cotidiano da sala de aula, sempre foi necessário fazer
opções, baseadas nos questionamentos surgidos ao longo do trabalho,
sobre qual dev eria ser o foco da observ ação. Em algumas situações era
dado enfoque àquilo que ocorria na sala como um todo, outras v ezes a
atenção recaía sobre um único aluno ou sobre a professora.

O diário de campo era, posteriormente à estada em campo,


acrescido de tudo aquilo que podia ser recordado. Esse segundo
documento passav a a constituir o relato ampliado, escrito com a utilização
da simbologia e pontuação proposta por Mercado (1987). Tal relato, mais
completo e organizado que o original, tem como objetiv o documentar de
forma mais detalhada a realidade que se pretende conhecer. A partir
desses documentos cuidadosamente elaborados torna-se possív el a
realização das sucessiv as análises das informações recolhidas.

6 A relação das observ ações realizadas, cont endo as dat as e a duração de cada uma das

observ ações encont ra-se no Anex o A.


M ÉTODO DE P ESQUISA 21

Conforme anteriormente descrito, os alunos não tinham lugares fixos


na sala de aula. Assim, também a localização dos lugares v agos, que
poderiam ser utilizados pela pesquisadora, v ariav a bastante. Hav ia
preferência pelos lugares localizados ao fundo da sala, que permitiam uma
v isão mais geral dos acontecimentos no recinto. Em geral, eram os lugares
disponív eis. Quando não hav ia assentos v azios, era comum os próprios
alunos encarregarem-se de liberar ou de ir buscar uma cadeira para a
pesquisadora.

Hav ia a intenção, por parte da pesquisadora, de não interferir no


andamento das ativ idades cotidianas da sala de aula, nem distrair ou
desv iar os alunos de seus trabalhos. Ainda assim, em div ersos momentos, a
pesquisadora circulav a pela sala de aula, ou aproximav a-se de algum
aluno para observ ar suas ações ou conv ersar sobre algum aspecto
considerado relev ante. Sempre que era percebida alguma situação que
pudesse trazer informações sobre as funções e os significados dos cadernos
a pesquisadora aprov eitav a para, junto dos protagonistas, esforçar-se
para compreender e esclarecer os acontecimentos.

Desde os primeiros contatos com a professora foram esclarecidos


quais seriam os objetiv os da pesquisa a ser realizada em sua sala de aula e
foi estabelecido o compromisso de hav er troca de informações sempre que
isto fosse possív el e desejado. A postura de Ana sempre foi de
receptiv idade, logo que a proposta de realização da pesquisa foi feita,
pela pesquisadora, esta respondeu: “Será um prazer.”

Nas primeiras semanas, a pesquisadora av isav a com antecedência


em que dias e horários pretendia estar na sala de aula, porém aos poucos
Ana foi indicando que isto não era necessário. A partir de então, a
pesquisadora passou a não av isar e nem estabelecer dias ou horários pré-
determinados para a realização das observ ações. A opção por essa falta
de regularidade implicav a em algumas v isitas pouco frutíferas. Certa v ez,
por exemplo, a classe preparav a-se para fazer uma v isita a outra escola.
Em outros momentos, no entanto, contribuiu também para que uma
div ersidade maior de tipos de ativ idades pudesse ser acompanhada.
Desse modo, não somente ativ idades com o caderno, ou outras ocorridas
M ÉTODO DE P ESQUISA 22

dentro de sala de aula, puderam ser observ adas, mas também momentos
de brincadeira, de jogos ou de desenv olv imento de outras ativ idades que
utilizav am materiais diferentes do caderno. Apesar de tais observ ações não
contribuírem diretamente para a compreensão das funções e significados
dos cadernos para os alunos dessa classe, possibilitaram que a
pesquisadora estabelecesse relações mais próximas com os sujeitos da
pesquisa e conhecesse melhor a dinâmica das relações e do
funcionamento da sala de aula.

Era perceptív el o empenho de Ana em manter o andamento das


ativ idades da sala conforme o planejado, independentemente da
presença da pesquisadora. De modo geral, ela parecia estar bem à
v ontade apesar da presença de uma pessoa estranha à sala. Em nenhum
momento Ana dirigiu-se à pesquisadora para conv ersar. Por outro lado,
sempre que a pesquisadora a procurav a para obter informações ou
compartilhar algo que hav ia sido observ ado, Ana mostrou-se disponív el e
procurou ora contribuir para o andamento da pesquisa, ora usufruir a
presença de um olhar atento àquilo que ocorria em sua sala de aula. Essa
postura foi extremamente importante, pois garantiu à pesquisadora a
liberdade necessária para transitar pela sala e conv ersar com os alunos,
sempre procurando não atrapalhar o andamento das ativ idades.

As informações compartilhadas pela pesquisadora com Ana


resultav am, com alguma freqüência, em reflexões, por parte desta, que
possibilitaram mudanças em práticas, ou em reav aliação de concepções
anteriormente adotadas.

Apesar do fato de a relação entre Ana e a pesquisadora ter sido


predominantemente de confiança e colaboração, houv e um episódio
após a finalização do trabalho de campo, no qual a professora expressou
não compreender exatamente qual era o papel e quais eram as intenções
daquela pessoa que, quase semanalmente, circulav a por sua sala de
aula. Desconhecimento que não a impediu de disponibilizar materiais
pessoais, tais como seu próprio caderno de planejamento de aulas, e suas
periódicas av aliações do nív el de alfabetização de seus alunos.
M ÉTODO DE P ESQUISA 23

O projeto inicial de trabalho prev ia utilizar as observ ações, realizadas


durante o primeiro semestre letiv o, como fonte de informações para a
estruturação de entrev istas indiv iduais com cinco alunos. Tais entrev istas
seriam realizadas fora do ambiente escolar, tendo como elemento auxiliar e
desencadeador do conteúdo das entrev istas o próprio caderno. Supunha-
se que não seria possív el, em sala de aula, desenv olv er conv ersas com as
crianças e que, portanto, seria conv eniente que a situação para isso fosse
criada pela pesquisa. Porém, ao longo do trabalho de campo foi possív el
v erificar que a utilização de uma metodologia que permitisse acompanhar
os ev entos enquanto estes ocorriam, rev elou-se bastante rica, pois
possibilitou que aspectos da realidade fossem comentados e/ou
esclarecidos pelos sujeitos à medida que se desenrolav am, além de tornar
possív el ouv ir diferentes v ersões dos membros env olv idos em cada ev ento
focalizado. Desse modo, av aliou-se que seria mais prov eitoso ampliar o
número de observ ações em sala de aula, com a intenção de registrar maior
número de informações, aprofundar temas lev antados ao longo do primeiro
semestre letiv o, e criar mais oportunidades para conv ersar com os
colaboradores da pesquisa.

Considerando que o objeto deste estudo é o caderno, produto final


de uma série de tarefas e de relações, acompanhar o preenchimento desse
material em seu uso cotidiano permitiu que ele fosse v isto como um objeto
construído ao longo de um processo que inclui muito mais elementos que
aqueles que ficam registrados.

2.2.2. Encontros com informantes

Os encontros ocorreram ao longo de todo o ano letiv o de 2000, de


modo informal, e consistiram em conv ersas com os alunos, com a professora
da sala de aula onde foi desenv olv ida a pesquisa, e com a coordenadora
pedagógica da escola. O caráter informal dev eu-se, em especial, ao fato
de nenhuma dessas conv ersas ter sido marcada com antecedência ou ter
obedecido a um roteiro prev iamente definido de informações que
dev eriam ser obtidas.
M ÉTODO DE P ESQUISA 24

Apesar da informalidade que caracterizou os encontros, destaca-se


a presença constante da intencionalidade da pesquisadora nessas
conv ersas utilizadas para obter informações, esclarecer fatos observ ados,
identificar a forma como os informantes interpretav am situações. Sempre
que possív el esses encontros também eram utilizados pela pesquisadora
para apresentar suas reflexões a respeito dos ev entos ocorridos, a fim de
que os informantes pudessem se manifestar. Dessa forma, as compreensões
formuladas ao longo da pesquisa podiam ser confrontadas, confirmadas,
rev istas ou reformuladas de acordo com os pontos de v ista dos indiv íduos
env olv idos na pesquisa.

Até nov embro, a pesquisadora adotav a o procedimento de anotar,


ao longo dos encontros, os temas e algumas frases textuais, para que o
conteúdo dos diálogos pudesse ser retomado e documentado em forma de
relato ampliado (RA), posteriormente. Apenas nos dois últimos meses a
pesquisadora passou a utilizar grav ador e, então, houv e alguns encontros
informais grav ados.

As conv ersas com a professora ocorriam sempre na própria escola,


durante o período de aulas, ou no período oposto, quando ela ministrav a
aulas de reforço. A duração era v ariáv el, dependendo do tema sobre o
qual v ersav a a conv ersa, e das possibilidades circunstanciais existentes.
Houv e uma situação em que os alunos hav iam sido dispensados, pois a
escola estav a sem luz, nesse caso foi possív el conv ersar com ela por cerca
de duas horas. Porém essa foi uma situação excepcional. Em geral, as
conv ersas dav am-se na própria sala de aula, enquanto os alunos faziam
as ativ idades. Eram diálogos entrecortados, Ana falav a ou ouv ia
enquanto dav a recomendações ou atendia os alunos que a procurav am.
Apesar das condições adv ersas, essa forma de obter informações rev elou-
se bastante interessante por hav er a possibilidade de conv ersar sobre
situações ocorridas num tempo muito próximo. Quando o tema referia-se a
algo ocorrido em sala de aula, hav ia a possibilidade de que Ana se
remetesse a objetos presentes, que pudesse mostrar à pesquisadora como a
situação hav ia ocorrido. Dessa forma, os relatos ganhav am riqueza de
M ÉTODO DE P ESQUISA 25

detalhes que não poderia ser obtida em uma entrev ista feita
posteriormente.

Após o encerramento da pesquisa de campo, houv e duas


oportunidades nas quais a pesquisadora v isitou a escola e encontrou
brev emente Ana. Um desses encontros ocorreu em 2001 e o outro no início
de 2002. Em ambos os momentos foi possív el a troca de algumas
informações entre pesquisadora e professora.

Os diálogos entre pesquisadora e alunos ocorriam ao longo das


observ ações. Dado que o foco da pesquisa foi conhecer as funções e os
significados dos cadernos para os alunos, foi considerado que esses seriam
os principais informantes. As conv ersas ocorriam sempre que a pesquisadora
v erificasse a pertinência de esclarecer algum aspecto do caderno, ou
algum procedimento adotado pela criança. Em outros momentos, hav ia a
intenção de v erificar como as crianças av aliav am aquilo que ocorria com
elas, ou com outros alunos. Sempre houv e a preocupação de não
atrapalhar o desenv olv imento das ativ idades. Porém, o fato de a
pesquisadora aproximar-se de alguma criança e conv ersar com ela,
despertav a o interesse e a curiosidade de outros alunos. Nas primeiras v ezes
que o grav ador foi utilizado esse interesse foi multiplicado. O fato de atrair
muitos alunos, por v ezes lev av a a pesquisadora a optar por interromper a
conv ersa; em outros momentos, a situação era aprov eitada para
aumentar o número de informações, pois possibilitav a que div ersas
crianças se posicionassem e dessem suas opiniões. As decisões entre
interromper ou dar prosseguimento a uma conv ersa sempre lev av am em
consideração a preocupação com o andamento das ativ idades; dessa
forma os momentos em que eram propostas ativ idades menos formais eram
aprov eitados para a intensificação dos contatos com os informantes.

A relação entre a pesquisadora e os alunos foi, aos poucos,


tornando-se muito próxima. Houv e situações nas quais os alunos tratav am
a pesquisadora como se esta fizesse parte do grupo de alunos, o que pode
ser ilustrado por algumas das situações ocorridas. Por ocasião da saída da
professora da sala de aula, João começou a anotar na lousa o nome dos
alunos que estiv essem bagunçando, o nome da pesquisadora foi um dos
M ÉTODO DE P ESQUISA 26

anotados. Freqüentemente os alunos perguntav am à pesquisadora se já


hav ia concluído a cópia da lousa, ou se já hav ia recebido a folha onde
dev eria ser realizada a lição de casa. O fato de a pesquisadora também
ter um caderno, no qual realizav a anotações, parecia contribuir para a
identificação dos alunos, que em alguns momentos passav am a incluí-la
em suas ativ idades e tratá-la como membro do grupo de alunos. Uma
situação ilustra bem esse fenômeno: em uma das manhãs toda a classe foi
para a quadra para jogar basquete, a pesquisadora acompanhou o
grupo; ao retornarem à sala de aula, a professora solicitou que os alunos
fizessem um desenho sobre a ativ idade. Em um dos desenhos a
pesquisadora foi representada por uma figura pequena, do mesmo
tamanho que os demais alunos, diferenciando-se da professora, esta
representada por uma figura maior.

Essa relação de proximidade, apesar das diferenças ev identes de


idade e nív el sócio-cultural, parece ter sido bastante interessante para o
desenv olv imento dos diálogos. Bourdieu (1997) alerta para a conv eniência
de que haja entre o pesquisador e seus informantes proximidade e
familiaridade, condição que contribui para que se tenha uma
comunicação “não v iolenta”, conseguindo informações menos distorcidas.

Houv e um único encontro com a coordenadora pedagógica, logo


no início do trabalho de campo. A iniciativ a foi dela, que estav a bastante
interessada em conhecer quais seriam os objetiv os da pesquisa. As
informações solicitadas foram dadas e o momento foi aprov eitado também
para que a pesquisadora tiv esse acesso às concepções da coordenadora,
pessoa que teria papel importante no sentido de acompanhar e orientar o
trabalho pedagógico das professoras em relação à importância do
caderno, e sobre a forma como esse material dev eria ser utilizado.

2.2.3. Documentos: os cadernos escolares

O enfoque deste trabalho v oltou-se para a compreensão das


funções e significados dos cadernos escolares em sua utilização diária,
enquanto esses materiais constituem-se importantes componentes do
M ÉTODO DE P ESQUISA 27

cotidiano escolar. Conforme foi apontado anteriormente, a metodologia


adotada buscou estudar a utilização dos cadernos enquanto esta se
dav a, por meio do acompanhamento da execução do trabalho nos
cadernos, e de conv ersas com alunos e profissionais da escola no decorrer
das ações que tornav am os cadernos registros, completos ou incompletos,
rev eladores ou omissores, do trabalho escolar e do desempenho dos alunos.
Considera-se que a análise dos cadernos pôde ser um recurso útil para a
tarefa de compreender quais são as funções e os significados dos cadernos
escolares, especialmente por ter sido utilizada como estratégia
complementar às demais utilizadas. Assim buscou-se realizar esta análise à
luz daquilo que foi observ ado em campo e como forma de complementar
as informações prev iamente obtidas.

A presente pesquisa não se propôs a esmiuçar o conteúdo dos


cadernos. Ainda assim, compreende-se que a análise desses materiais possa
ser importante para compor uma descrição mais completa e abrangente
das funções e significados dos cadernos.

Ao longo do trabalho de campo, foram recolhidos alguns cadernos


de alunos. Esse procedimento deu-se em dois momentos. Primeiramente, no
início do segundo semestre, a pesquisadora solicitou a quatro alunos que
cedessem seus cadernos para que fossem feitas cópias. Nessa ocasião não
hav ia a possibilidade de conseguir os originais, pois ainda estav am sendo
utilizados diariamente pelos alunos, porém hav ia a intenção de garantir
que não fossem perdidos os registros que ilustrav am cenas que se
mostraram, durante as observ ações, rev eladoras. Foram feitas cópias de
dois cadernos de alunos que demonstrav am estar tendo dificuldades em
relação ao domínio dos saberes específicos à utilização desse material, e de
outros dois alunos que já tinham esse domínio, possuindo cadernos mais
completos no que se refere ao conteúdo abordado em sala de aula.

No último dia de aulas houv e a possibilidade de solicitar os cadernos


originais aos alunos, dado que não seriam mais utilizados para a realização
de ativ idades diárias. Nessa ocasião hav ia apenas sete alunos em sala,
todos emprestaram à pesquisadora seus cadernos. Foi solicitado também o
M ÉTODO DE P ESQUISA 28

caderno da professora, que continha todas as ativ idades propostas ao


longo do ano. Ana cedeu prontamente seu caderno.

Os cadernos de alunos recolhidos referiam-se aos trabalhos realizados


nos últimos meses escolares. Dois exemplares abrangiam quase a totalidade
do segundo semestre, outros dois referiam-se ao último mês, e os demais
continham ativ idades apenas dos últimos dias de aulas. Os cadernos foram
analisados tendo como ponto de referência categorias de análise
compostas a partir das informações recolhidas em campo. Os conteúdos
dos cadernos foram importantes na composição das descrições de cada
uma dessas categorias, fornecendo dados adicionais e imagens que
incluímos no presente trabalho.
CAPÍTULO 3

OS CADERNOS ESCOLARES

“Anabela: ‘At é quando você vai


guardar (o seu caderno)?’
Renat o: ‘Não sei’
Anabela: ‘At é quando você ficar
grande?’
Renat o: ‘S e não cair as folhas...’”
RA-25

3.1. A presença dos cadernos e suas utilizações na sala de aula de


primeira série

Logo no início do ano, foi entregue aos pais de alunos uma lista de
materiais a serem comprados, incluindo itens div ersos tais como papéis,
cola, lápis, e também os cadernos. Todo esse material dev eria ser deixado
na escola aos cuidados da professora. Quanto aos cadernos, não hav ia
recomendações a respeito do tamanho ou tipo que dev eria ser adquirido.
Dev ido às dificuldades financeiras, tão presentes na v ida da população
estudada, muitos pais compraram apenas uma parte daquilo que hav ia
sido solicitado, outros foram adquirindo a totalidade dos materiais aos
poucos.

Na primeira reunião de pais, ocorrida em meados de fev ereiro, a


necessidade de compra de alguns itens e/ou a quantidade solicitada foram
questionadas pelos pais, que em nenhum momento fizeram ressalv as em
relação à necessidade de adquirir cadernos para seus filhos. Ao longo do
ano também não houv e episódio algum no qual alunos deixassem de ter
cadernos para a realização de suas ativ idades.

Os cadernos env iados pelos pais eram guardados na escola e


entregues aos alunos à medida que os anteriores fossem acabando.
Quando também os cadernos-reserv a terminav am era solicitado que os
pais adquirissem nov os exemplares. Somente ocorria o fato de um aluno
estar em sala de aula sem o caderno quando este era esquecido em casa,
OS C ADERNOS ESCOLARES 30

fato bastante raro. Mesmo em dias nos quais não seria desenv olv ida
nenhuma ativ idade formal, como por exemplo, no último dia de aula
dedicado à ativ idade lúdica, os cadernos estav am presentes. Desse modo,
pode-se afirmar que ir à escola para assistir aulas significav a ir com o
caderno.

O caderno de nenhum aluno dessa sala de aula abrangeu todas as


ativ idades desenv olv idas durante o ano. Alguns alunos fizeram apenas uma
troca de caderno, enquanto outros trocaram div ersas v ezes. É possív el
apontar fatores que interferiam no número de cadernos utilizados ao longo
do ano: o tamanho do caderno adotado, o tamanho da letra do aluno, o
estilo pessoal na utilização do espaço, e a perda ou inutilização de
cadernos ainda em uso.

Durante as ativ idades desenv olv idas em sala de aula, o caderno


estev e bastante presente, rev elando-se um elemento intensamente utilizado
na etapa de alfabetização, como suporte para a realização das tarefas
escolares.

Especialmente no primeiro semestre, a utilização desse material deu-


se de modo menos direto. Em v ez de o caderno ser o suporte para a
realização das ativ idades, era, na grande maioria das v ezes, um suporte
que recebia ativ idades prontas. A professora preparav a folhas
mimeografadas com o enunciado da ativ idade e os espaços para que o
aluno preenchesse. Depois de terminada a execução da tarefa essas folhas
eram cortadas e coladas nos cadernos, pelas próprias crianças. Nos dias
em que isso ocorria, era solicitado aos alunos que colocassem a data, que
dev eria ser escrita por eles diretamente no caderno.

A colocação da data foi proposta diariamente, ao longo de todo o


ano. Apesar de sempre conter dia, mês e ano em que se realizav a a
ativ idade, a data era feita em diferentes formatos, e acompanhada de
diferentes informações extras. A seguir estão os formatos que a
pesquisadora pôde v erificar no decorrer do acompanhamento das
ativ idades da sala de aula:
OS C ADERNOS ESCOLARES 31

“HORTOLÂNDIA 17 DE FEVEREIRO DE 2000.


QUINTA-FEIRA”
e

“HORTOLÂNDIA, 16 DE M ARÇO DE 2000


EM EF JARDIM OSÓRIO”

A partir da última observ ação do mês de maio (RA-15), foi v erificado


que a professora passou a acrescentar à data uma frase que dev eria ser
copiada. As frases tinham conteúdos v ariados, destacando-se a presença
dos seguintes temas: expectativ as da professora e da escola quanto aos
procedimentos de seus alunos em relação aos colegas, aos estudos, às
tarefas escolares e aos materiais escolares; características pessoais dos
alunos que são bem-v istas e esperadas; frases de cunho religioso.

“HORTOLÂNDIA 30 DE M AIO DE 2000


TERÇA-FEIRA
‘EU SOU CAPAZ DE SER M ELHOR DO QUE JÁ SOU.’”

Especialmente, a partir do final do mês de setembro, a forma


simplificada, que exclui o nome da cidade e indica o mês numericamente
passou a ser predominantemente adotada:

“29/11/00
QUARTA-FEIRA
‘É TÃO BOM AM AR A NATUREZA’”

A presença do dia da semana e da frase não era constante. Hav ia


dias em que apenas um desses elementos era colocado na lousa para que
fosse copiado e, em outros, apenas a data, indicada numericamente, era
proposta.

A data e a frase foram conteúdos freqüentemente utilizados pela


professora para iniciar seus alunos na utilização dos cadernos, já que essa
cópia era uma ativ idade de execução diária.
OS C ADERNOS ESCOLARES 32

Somente no final do primeiro semestre a professora começou a


propor que os alunos fizessem algumas lições diretamente no caderno.
Primeiramente eram lições bem curtas. Especialmente, a partir do início do
segundo semestre passaram a ser mais extensas, incluindo cópias longas da
lousa. Contudo, em nenhum momento o uso das folhas mimeografadas, a
serem anexadas aos cadernos dos alunos, foi abandonado pela professora.

As ativ idades presentes nos cadernos dirigiam-se


predominantemente à alfabetização, ao aprendizado dos números e das
operações matemáticas.

Considerando-se que durante todo o primeiro semestre as folhas


mimeografadas constituíram a maior parte do conteúdo dos cadernos,
passou-se a considerá-las, também, como objeto de observ ação.

3.2. Os saberes necessários à utilização dos cadernos

Os alunos entram na escola para aprender, adquirir conhecimentos.


Para que a inserção no meio escolar se dê, faz-se necessário o aprendizado
de uma série de saberes fundamentais para a escolarização e conv iv ência
nesse nov o espaço. Dado que o caderno faz parte do cotidiano escolar, o
aprendizado de sua utilização se constitui como um dos saberes necessários
à escolarização.

Gv irtz (1997) apontou que o caderno, muito além de ser um mero


suporte físico para o ensino, torna-se um instrumento didático que produz
saberes escolares. Ou seja, cria a necessidade de que alguns saberes sejam
dominados pelos alunos, dentre os quais, a autora ressalta a sucessão
espacial das folhas, a sucessão temporal das tarefas, a margem e o centro.
Os saberes que são associados à utilização do caderno tornam-se
imprescindív eis ao aluno. Dessa forma, o caderno requer, para sua
utilização a aprendizagem das regras, v ariáv eis em cada época, contexto
ou instituição, que determinam o seu funcionamento (Gv irtz, 1999).
OS C ADERNOS ESCOLARES 33

Por meio das observ ações realizadas, nessa classe de primeira série,
ao longo do primeiro ano de utilização formal dos cadernos, foi possív el
v erificar outros saberes que passav am a ser exigidos, dos alunos, para a
utilização desse material. O caderno tem páginas iniciais e finais, assim
como cada folha tem as primeiras e as últimas linhas. Cada tarefa dev e ser
feita seqüencialmente à anterior. Algumas linhas dev em ser deixadas em
branco, outras dev em ser usadas em sua totalidade. Há ainda linhas nas
quais apenas algumas palav ras dev em ser registradas. Esses procedimentos
div ersos ilustram o fato de a utilização do caderno exigir que a todo
momento sejam executadas ações de organização e tomadas decisões a
respeito de como utilizar o espaço.

Por ocasião do planejamento da presente pesquisa, imaginou-se ser


conv eniente reserv ar especial atenção aos primeiros dias de aula,
intensificando, nesse momento, a permanência em campo. Conforme
aponta Ball (1984), os primeiros encontros entre professor e alunos têm
importância crucial para compreender aquilo que ocorrerá posteriormente,
pois nesses momentos ocorrem mais intensamente negociações relativ as
àquilo que será esperado e tolerado do aluno, quanto ao comportamento
e quanto ao desenv olv imento das ativ idades. Supunha-se que nos primeiros
dias seriam adotados procedimentos cujo objetiv o seria introduzir os alunos
no uso dos cadernos, nas regras a serem seguidas e nas expectativ as da
escola e da professora em relação ao uso desse material.

No entanto, pôde ser v erificado que não houv e um momento


dedicado especialmente ao esclarecimento de como os cadernos
dev eriam ser utilizados, não foi v erbalizado em que página os alunos
dev eriam fazer as primeiras anotações, nem qual linha dev eria ser
preenchida. As indicações geralmente eram dadas ao longo da realização
dos trabalhos, à medida que a professora identificav a dificuldades e
procedimentos contrários às suas expectativ as. O fato de que não sejam
planejadas e prev istas ações, cujo objetiv o seja o ensino do uso do
caderno, rev ela o quanto tem sido desconsiderada a necessidade de que
isto precise ser ensinado.
OS C ADERNOS ESCOLARES 34

O aprendizado desse conjunto de saberes foi acontecendo ao longo


de todo o ano letiv o. Para que isso ocorresse, a professora utilizav a-se de
instruções v erbais dadas a toda a sala ou indiv idualmente. Por exemplo,
eram dadas instruções para que os alunos deixassem os cadernos abertos
após colarem ativ idades mimeografadas, a fim de ev itar que as folhas se
colassem umas nas outras, ou para que não deixassem de pular linhas. Os
alunos também buscav am, com a professora, indicações sobre o modo
como dev eriam proceder, como exemplifica esta frase de Luís: “Tia, é para
deixar uma linha em branco?” (RA-9). Outra estratégia utilizada pela
professora para ensinar aos alunos como trabalhar com os cadernos era
escrev er recados, ou fazer assinalamentos diretamente no caderno
indicando onde uma determinada tarefa dev eria ser feita ou apontando
algo feito de modo incorreto.

“Ana vem até Horácio. ‘Vamos lá, Horácio, organizar este


caderno.’ Procura pela borracha dele, não encontra. Ana vai
buscar. (...) ‘Horácio, tem que ser aqui.’ Ana faz um X no início da
linha onde Horácio deve começar a copiar.”

(RA-10)

As instruções, tanto v erbais quanto escritas, estiv eram presentes até


mesmo em observ ações realizadas no mês de nov embro, ou seja, após
quase um ano inteiro de uso intenso do caderno. A necessidade de que a
utilização escolar dos cadernos suscite uma mediação tão prolongada
rev ela a complexidade dos saberes exigidos para que o aluno use o
caderno conforme aquilo que é considerado adequado. O tempo lev ado
para que os alunos se apropriassem do modo como dev eriam utilizar os
cadernos v ariou bastante. Em observ ações realizadas nos últimos meses do
ano, hav ia alunos que se desv iav am daquilo que deles era esperado em
apenas alguns detalhes, como, por exemplo, mudar de linha, quando isso
não dev eria ser feito. Hav ia outros, porém, que, pelo fato de ainda não
terem o domínio das regras de utilização do caderno, acabav am por gastar
quase todo o tempo da aula para realizar a cópia da data.
OS C ADERNOS ESCOLARES 35

A professora Ana, em seu primeiro ano de trabalho com a primeira


série, reconheceu que não hav ia cogitado, anteriormente à realização da
pesquisa, o fato de a utilização do caderno ser algo que requer uma
aprendizagem tão repleta de detalhes. Mesmo após um ano de trabalho
junto a crianças que se iniciav am no uso escolar desse material, pareceu à
professora difícil compreender as razões pelas quais algumas crianças
demorav am para aprender, mas reconheceu: “Não é natural para elas (as
crianças) usar o caderno.” (RA-23).

O reconhecimento das dificuldades dos alunos para realizar as


primeiras ativ idades no caderno foi ocorrendo ao longo dos meses iniciais.
Nos primeiros dias de aula, Ana manifestou a intenção de solicitar
diariamente que os alunos copiassem uma lista com as ativ idades que
seriam desenv olv idas no dia (RA-14). Tal procedimento tinha como objetiv o
fornecer aos pais a possibilidade de saber o que ocorria diariamente na
escola. No entanto, logo nas primeiras tentativ as, Ana percebeu que essa
tarefa tomav a muito tempo, e era feita em v elocidades muito diferentes
pelos alunos da sala, criando descompassos para iniciar as ativ idades
programadas propriamente ditas.

A decisão pelo uso preferencial das folhas mimeografadas também


tev e como principal razão a preocupação com o tempo demorado pelos
alunos para fazer cópias da lousa. Ao optar pelo uso das folhas restav a ao
aluno apenas resolv er a ativ idade, ficando dispensado de copiar os itens e
o enunciado.

O empenho em priv ilegiar a resolução da ativ idade, deixando em


segundo plano a ativ idade de cópia, não foi uma constante no cotidiano
dessa sala de aula. Isso ficou ev idente em RA-27, quando Ana colocou na
lousa uma seqüência longa de conteúdos a copiar juntamente com
algumas contas para resolv er. Os alunos passaram longo tempo copiando
da lousa todo o conteúdo e as contas, sendo que não chegaram a resolv ê-
las. Essa situação está mais detalhadamente descrita no próximo item, A
cópia.
OS C ADERNOS ESCOLARES 36

3.2.1. A cópia

Ao longo das observ ações foi identificado que a cópia assumia


importância e destaque, no que se refere ao uso do caderno no cotidiano
dessa sala de aula. A execução dessa ativ idade exigia e abrangia grande
parte dos saberes env olv idos no uso do caderno.

A principal ativ idade a que se prestav a o caderno, nessa primeira


série, era a cópia: da data e de frases, de conteúdos ensinados e de
exercícios a serem resolv idos.

“M e aprox imo do grupo de Vivian e Eduardo, fico agachada ao


lado da mesa escrevendo em meu caderno de anotações, (...)
Vivian me pergunta: ‘De onde você está copiando?’ Respondo
que não estou copiando.”

(RA-17)

Na situação descrita acima, Viv ian v iu que a pesquisadora estav a


escrev endo em seu caderno, fato que foi interpretado pela aluna como se
estiv esse sendo feita a copia de algo. A pergunta de Viv ian ev idencia o
quanto, para os alunos, o ato de escrev er no caderno está associado à
cópia.

A frase a seguir, dita por João, aluno a quem a pesquisadora hav ia


explicado anteriormente que seu trabalho consistia em anotar aquilo que
ocorria na sala de aula, contém também a idéia de que aquilo que se fazia
no caderno era cópia. Destaca-se a forma insólita de utilização do v erbo
copiar:

“Estou com várias folhas encadernadas, tal como se fossem


cadernos, junto comigo. João pergunta: ‘Esse tanto de caderno é
para copiar tudo a gente?’”

(RA-8)
OS C ADERNOS ESCOLARES 37

O fato de os alunos associarem os cadernos à cópia pode ser


facilmente compreendido se nos ativ ermos aos tipos de ativ idades
desenv olv idas por eles, utilizando esse suporte, ao longo do ano.

“Ana diz: ‘Agora nós vamos falar sobre uma coisa muito legal’ Vai
escrevendo na lousa a palavra ANIM AL. Renato imediatamente
pergunta: ‘É para copiar?’ Ana responde: ‘É, mas calma.’ Ana
continua falando. Os alunos começam a copiar, e ela diz séria:
‘Ninguém copiando, fecha o caderno, e coloca em baix o da
mesa... Só quem não copiou a data continua.’ Seguindo a
recomendação os alunos guardam os cadernos. Aqueles que
ainda copiam a data mantêm o caderno na mesa (Toni, M ateus,
Vando). No caso de M ateus e Vando, percebo que muitas vezes
deix avam de prestar atenção e participar daquilo que estava
sendo discutido para concluir a cópia.”

(RA-18)

Nesse trecho podemos identificar dois fatores bastante presentes no


cotidiano da sala: a preocupação dos alunos em realizar a cópia dos
conteúdos da lousa, e a ênfase dada, pela professora, à realização da
cópia.

Nessa situação, a cópia do conteúdo foi considerada uma etapa


posterior da ativ idade, no entanto o mesmo não se aplicou à cópia da
data e da frase do dia. O fato de considerar primordial que a data e a frase
estejam diariamente registradas no caderno implicou em que os alunos que
demorav am mais para concluir essa ativ idade deixassem, muitas v ezes, de
ter a possibilidade de dedicar atenção integral às falas da professora e ao
ensinamento de conteúdos.

Houv e situações nas quais a cópia era considerada primordial


também em relação à resolução de exercícios, algo que pôde ser v isto no
dia 29 de nov embro (RA-27). Nesse dia foram colocadas na lousa quatro
somas e quatro subtrações, que a princípio dev eriam ser resolv idas pelos
alunos. No entanto, em seguida à escrita das contas, foi iniciada outra
OS C ADERNOS ESCOLARES 38

ativ idade. Ana começou a explicação de um tipo de operação


matemática nov o para os alunos, a multiplicação. Entregou aos alunos
bolinhas e copos, para que estes pudessem praticar de forma concreta
essa operação. Conforme a explicação ia sendo feita, Ana representav a
na lousa com desenhos e números o conteúdo abordado, como pode ser
v isto na figura a seguir:

Figura 1 – Cópia, realizada no caderno da professora, da represent ação gráfica


ut ilizada como aux iliar para a ex plicação da mult iplicação.

Dessa forma foram feitas representações para toda a tabuada do


número dois. Encerrada a explicação, caberia aos alunos copiar tudo o que
hav ia sido colocado na lousa. A partir de então, passou a hav er insistência
da professora para que fosse concluída a cópia do conteúdo referente à
multiplicação; e a resolução das operações ficou em segundo plano.

“João acabou de copiar as contas. Faltam agora as multiplicações.


(...) João leva o caderno para que Ana veja, e ela diz: ‘Isso, lá do
outro lado, na outra folha’, dando indicações para que ele prossiga
a cópia.
Verifico que João não resolveu nenhuma das contas, e a indicação
de Ana foi para que ele copiasse as multiplicações. Apesar de não
haver resolvido nenhuma das contas, não parece que ele ache
que isso seja necessário, pergunto a ele sobre as contas e ele
OS C ADERNOS ESCOLARES 39

responde: ‘Tá certo, a professora falou que tá certo.’ Continuo


perguntando se já está tudo pronto, ele diz que sim. Verifico que
João traçou quadros em volta das contas, sem deix ar, sequer,
espaços para a resolução.”

(RA-27)

A preocupação dos alunos em copiar tudo aquilo que é colocado


na lousa foi v erificada com bastante freqüência:

“Ana identifica a dificuldade de fazer os alunos acompanharem a


música impressa em suas próprias folhinhas, e decide passar o texto
na lousa.
Ana: '
Vou passar a musiquinha na lousa.'
Renato pergunta: '
Professora, pode copiar?'
Ela responde: '
Não.'
Renato insiste, alegando: '
Eu copio rápido.'

(RA-15)

“M e aprox imo de Daniel e percebo que ele está copiando os


nomes colocados na lousa (não ouvi nenhuma indicação para que
isso fosse feito e nem vi nenhum outro aluno que copiasse isso).
P7: ‘Que que é isso?’ (referia-me ao conteúdo da cópia de Daniel)
D: ‘Aquilo ali, ó.’ (aponta na lousa onde está escrita uma lista de
nomes)(...)
P: ‘Hum...’
D: ‘Não é pra copiar, não?’
P: ‘Não sei, é?’
D: ‘Também não sei.’
Daniel prossegue copiando os nomes.”

(RA-27)

As situações apresentadas mostram o empenho e o interesse que os


alunos costumam ter em copiar os conteúdos passados na lousa. A última

7
Nest e t recho, assim como em v ários t rechos apresent ados a seguir, a let ra P represent a
falas da pesquisadora.
OS C ADERNOS ESCOLARES 40

cena, em especial, ilustra o fato de que o conteúdo daquilo que é copiado


parece ter pouca importância para os alunos, sendo um fator que pouco
interfere na decisão de copiar ou não. Fato bastante compreensív el ao
considerar-se que, a esta altura da escolarização, eram raros os alunos
capazes de compreender o significado de informações escritas. Daniel
chegou ao final do ano sendo classificado pela professora como silábico
em relação ao nív el de conhecimentos de leitura e escrita. Desse modo,
dificilmente o aluno teria tido condições de saber o significado daquilo que
copiav a.
As restritas possibilidades que a grande maioria dos alunos tem, ao
longo da primeira série, de ter acesso ao significado daquilo que copia,
indicam o caráter mecânico dessa tarefa. Questiona-se, portanto, quais
seriam as razões para que esta seja uma prática tão comum no cotidiano
escolar.
Algumas das informações, recolhidas ao longo do ano, podem
ajudar a compreender o que motiv aria o fato de a cópia ser, em muitas
circunstâncias, priv ilegiada em detrimento de outras ativ idades tais como,
resolução de exercícios, leitura de liv ros ou acompanhamento de
explicações feitas pela professora. Aquilo que é copiado no caderno
permanece registrado, comunicando, portanto, a todos aqueles que o
consultarem, ativ idades que compuseram o dia escolar. Desse modo, pais,
familiares e profissionais da escola podem, por meio do caderno, checar
que determinadas ativ idades foram desenv olv idas.
Ao longo do ano foram comuns as queixas de pais de alunos a
respeito da insuficiência de ativ idades desenv olv idas em sala de aula.
Considerando que o caderno tenha sido o instrumento disponibilizado aos
pais para acompanhar o trabalho escolar de seus filhos, o recurso utilizado
pela professora para aplacar as reclamações dos pais foi exigir que maior
número de ativ idades passasse a estar registrada no caderno8. Logo após a
ocorrência das reclamações dos pais, foi sensív el o aumento no número de

8 O cont role ex ercido pelos pais e profissionais da escola por meio dos cadernos escolares,

bem como as conseqüências que esse cont role t raz ao desenv olv iment o do t rabalho
pedagógico, encont ra-se mais det alhadament e descrit o a seguir, no it em ‘O caderno como
inst rument o de cont role’.
OS C ADERNOS ESCOLARES 41

v ezes em que a cópia foi proposta, bem como a elev ação no grau de
exigência aplicado a essa ativ idade.

3.2.2.1. Os cadernos e a lousa

Em nossa cultura escolar, o caderno e a lousa são instrumentos


didáticos bastante relacionados. Elizarrarás (1990) realizou um estudo sobre
o uso que professores fazem da lousa em seu trabalho docente. A autora
aponta que, em especial na primeira série, a lousa funciona como um
suporte muito utilizado pelos professores para indicar aos alunos o que
dev em fazer. Lousa e caderno relacionam-se, primordialmente, pela
ativ idade de cópia. Para que esta seja realizada, a lousa funciona como
um indicativ o daquilo que dev e ser feito. Desse modo, faz-se necessário que
o aluno domine as relações entre esses dois elementos para que possa
realizar o seu trabalho no caderno.

Elizarrarás (1990) ressalta que a ativ idade de cópia é algo que dev e
ser aprendido, sendo um dos importantes aprendizados da primeira série.
Em suas notas de campo, a autora registra como, nessa etapa de
aprendizado, é comum que o professor reproduza na lousa a estrutura física
do caderno, dando indicações aos alunos de como dev e ser feito o seu
trabalho nos cadernos. Isso também pôde ser observ ado na presente
pesquisa.

Logo nos primeiros dias de aula a lousa foi preparada para serv ir
como modelo para a cópia no caderno. Nela foram riscadas linhas e
margens, reproduzindo a folha de um caderno. Até julho, foi essa a lousa
utilizada pelos alunos; a partir de então, com a mudança de prédio da
escola, e conseqüente mudança de lousa, passou-se a ter uma situação
um pouco diferente. A maioria dos alunos já dominav a a tarefa de cópia e,
portanto, a lousa não foi preparada para se parecer com um caderno.
Ainda assim, a professora empenhav a-se em dar necessárias indicações
feitas na lousa e/ou instruções v erbais que pudessem auxiliar os alunos a
realizar a cópia: “Esta é a linha da margem do caderno. Aqui [na lousa] é
azul, no caderno é v ermelha” (RA-20). Ana referia-se à linha feita por ela na
lousa, div idindo conteúdos que dev eriam ser colocados em páginas
OS C ADERNOS ESCOLARES 42

diferentes. Houv e alunos que, em v ez de considerar a linha como um


indicativ o de mudança de página, reproduziram-na no caderno, div idindo
a folha ao meio e colocando todo o conteúdo em uma única página. Esse
procedimento dos alunos ilustra a complexidade da tarefa de copiar da
lousa conforme o esperado e desejado pela professora; fazê-lo implica em
uma interpretação constante do contexto e no seguimento de regras,
muitas v ezes pouco explícitas e inconstantes.

Mateus pode nos ajudar a compreender a complexidade da tarefa


de copiar no caderno algo escrito na lousa. Não foi possív el acompanhá-lo
ao longo de todo ano, pois dev ido à mudança de endereço de sua família,
foi transferido para outra escola.

Durante o tempo em que estev e nessa escola foi possív el identificar


que Mateus era um aluno mal-v isto por Ana. Dentre as razões apontadas
pela professora para isso, destacav am-se o fato de ele nem sempre cumprir
as ativ idades propostas em sala de aula e o fato de falar pouco.

Os colegas também percebiam Mateus como um mau aluno. Como


pode ser v erificado no diálogo a seguir, em que ele é citado como um dos
alunos que costuma lev ar bilhetes9:

“Dinorah comenta: ‘Eu nunca levo bilhete.’ Fala isso com orgulho,
como se fosse um grande mérito. Pergunto: ‘Quem leva bilhete?’
Ela responde: ‘M ateus, João, Bernardo...’”

(RA-17)

Em sala de aula, Mateus adota, algumas v ezes, uma postura insólita


para a realização de cópias da lousa. Seu caderno fica colocado em cima
da mesa v irado para a cadeira, conforme os materiais dos demais alunos.
No entanto, Mateus em v ez de sentar-se à mesa, fica de pé de costas para
a lousa e de frente para a sua cadeira, à frente de sua mesa.

9 Conforme será apresent ado no it em ‘Bilhet es’, o recebiment o de bilhet es é v ist o pelos
alunos como algo est rit ament e negat iv o, já que est es cost umam ser direcionado aos alunos
que não cumprem suas t arefas e/ou prat icam ações consideradas de indisciplina.
OS C ADERNOS ESCOLARES 43

Nessa posição, fazer a cópia implica em que ele se v ire para trás, a
fim de olhar para a lousa, além de que faça as letras inv ertidas e
espelhadas, para que saiam conforme o esperado. Os trabalhos resultantes
desse intrincado procedimento não diferem sensiv elmente dos que Mateus
realiza sentado à sua mesa. Tanto quando está sentado, como quando
realiza as ativ idades em pé, de costas para a lousa e com o caderno
inv ertido, é possív el encontrar cópias feitas com letras bastante grandes,
razoav elmente compreensív eis, e contendo algumas letras inv ertidas. Algo
que indica que Mateus é capaz de copiar, de modo razoav elmente legív el,
letras colocadas na lousa, bem como, que tem boa coordenação v iso-
motora, e boa capacidade de rev erter figuras.

A seguir são apresentados trechos de um relato de observ ação (RA-


18), nos quais é possív el acompanhar a realização da cópia de um
conteúdo relativ amente longo. Até o momento nunca hav ia sido solicitado
que os alunos copiassem conteúdos tão extensos da lousa. Ana hav ia
colocado inicialmente na lousa o alfabeto, div idido em duas colunas. Em
seguida, pediu aos alunos que dissessem nomes de animais iniciados com
cada uma das letras. Os animais sugeridos pelos alunos eram anotados na
lousa, sendo que para cada letra foram anotados até cinco nomes. Ao final
dessa etapa da ativ idade a lousa estav a repleta, e a solicitação foi de que
os alunos copiassem.

“Para iniciar a cópia, Ana recomenda a M ateus, que já havia


copiado a data e a quase toda a frase do dia: ‘M ateus, debaix o
da data que você fez hoje.’

M ateus começa copiando, em coluna, as letras do alfabeto da


primeira lousa. Hugo também faz dessa forma... Apaga as letras já
copiadas e começa a copiar novamente, agora pulando uma
linha entre o cabeçalho e as letras. Não copia o título (ANIM AIS).
Pergunto a ele: ‘Por que você apagou?’ M ateus responde: ‘Tava
errado.’ Insisto: ‘O que tava errado?’ Ele aponta as letras copiadas
novamente e diz: ‘Aqui.’ Prossegue copiando em coluna. Apaga os
Ds. Copia agora os Es como se fossem letras soltas, não coloca
próx imo da letra D. As colunas vão sendo copiadas corretamente,
OS C ADERNOS ESCOLARES 44

porém M ateus não leva em consideração as linhas, e o resultado


começa a ficar um pouco confuso já que algumas colunas
começam em uma linha, outras na linha de baix o, em algumas
colunas as letras são copiadas mais apertadinhas, em outras, faz
mais espaçadas.

11h. M ateus parou longo tempo depois de copiar os Es. Me agacho


junto dele e pergunto: ‘E aí, M ateus, tá fazendo?’

Ele responde: ‘Não.’

Pergunto: ‘Por quê?’

M ateus responde: ‘Tá difícil.’

Insisto: ‘O que tá difícil?’

Ele responde: ‘A lição.’

Tento estimulá-lo para que prossiga: ‘M as você já fez uma parte,


tenta o resto.’”

Imagino que a dificuldade de M ateus nesse momento fosse dar


continuidade a sua cópia em colunas, pois passou a ser difícil
encontrar colunas naquilo que Ana escreveu na lousa. M ateus
recomeça, novamente copiando, porém coloca a primeira letra
uma linha acima do que seria o correto. Ele prossegue. Levanta-se
para ver a letra seguinte (a terceira da quarta coluna). Quando
volta, escreve na mesma posição que eu havia observado em
outra ocasião: em pé, junto à parte da frente de sua mesa,voltado
de costas para a lousa, o caderno disposto sobre a mesa virado
para a cadeira. Incrivelmente faz as letras corretas e legíveis.

Até agora M ateus permanece copiando em pé, de frente para sua


carteira. Agora fica mais difícil para ele copiar, pois a lousa não se
apresenta mais em colunas, as letras não estão dispostas uma
abaix o da outra, e ele parece se confundir ao copiar a sex ta
coluna.

M e aprox imo de novo e pergunto: ‘Tá fazendo?’ E ele diz:


‘Tô.’Comento sobre a posição em que escreve, ex presso minha
opinião dizendo que deve ser difícil copiar daquele jeito. Ele sorri e
continua. Pergunto: ‘Continua difícil?’ Ele diz: ‘Continua.’ ‘Tá mais
ou menos difícil?’, ele responde: ‘M ais.’
OS C ADERNOS ESCOLARES 45

Observando aquilo que ele fez, não é mais possível encontrar


palavras. Consigo, porém, encontrar, naquilo que ele escreveu a
cópia ex ata de uma possível coluna escrita na lousa. Isso
demonstra o quanto M ateus se esforçou para encontrar colunas
naquilo que estava na lousa, ou seja, se a lógica era copiar em
colunas ele persistiu nela. Em nenhum momento levou o caderno
para que Ana visse. Ana também não se aprox imou, permaneceu
todo o tempo à frente da sala (M ateus estava sentado na última
carteira da segunda fileira).”

(RA-18)

Figura 2 – Cópia, realizada por Mat eus em seu caderno, de cont eúdo apresent ado
na lousa.

A fim de que a lógica utilizada para a realização da cópia feita por


Mateus possa ser melhor compreendida serão apresentados: a cópia bem
OS C ADERNOS ESCOLARES 46

sucedida de outra aluna, Solange, e uma reprodução do conteúdo,


exposto na lousa, que o aluno tentav a reproduzir em seu caderno:

Figura 3 – Cópia, realizada por Solange em seu caderno, de cont eúdo apresent ado
na lousa.

A DE ABEL HA AGU I A

B DE B E I J A-F L O R

C DE CABRA CAVALO

D DE DRAGÃO

E DE ELEFANT E
OS C ADERNOS ESCOLARES 47

Ev identemente não conseguimos aqui reproduzir com a fidelidade


necessária a forma como esse conteúdo estav a apresentado na lousa, mas
as letras em negrito e sublinhadas procuram destacar as “colunas” em que
estav am dispostas as letras, que podem ser reconhecidas também na
tentativ a de Mateus de copiar.

Mateus iniciou a cópia pela coluna de letras do alfabeto, algo


possiv elmente sugerido pela própria ação da professora, que iniciou a
escrev er na lousa também por essa coluna de letras. Depois prosseguiu
copiando seis letras D, também em coluna, em seguida as letras E.
Nov amente houv e uma seqüência de letras em ordem alfabética. A última
“coluna” copiada por Mateus contém apenas três letras, A, F e C, mas
também ajuda a compreender a lógica utilizada pelo aluno: as letras A e C
são as primeiras letras dos próximos animais apresentados com essas letras,
o F diz respeito à palav ra “flor”, de beija-flor.

Pode-se observ ar que as três primeiras colunas são iniciadas uma


linha abaixo da frase do dia. As linhas seguintes passam a ser iniciadas na
linha acima, somente nas últimas “colunas” Mateus retorna à linha inferior.
Também é possív el observ ar que nas colunas há espaçamento irregular:
para a terceira, foram utilizadas sete linhas; enquanto para a quarta coluna,
que contev e o mesmo número de letras, foram utilizadas apenas cinco.

Esse fato ilustra a complexidade e a multiplicidade de saberes


associados à tarefa, aparentemente simples, de reproduzir nas folhas do
caderno aquilo que diariamente é escrito na lousa. É preciso saber quando
a cópia dev e ser feita seguindo a orientação da esquerda para a direita,
quando é possív el copiar de cima para baixo. A cópia da escrita segue
algumas regras que podem comprometer definitiv amente o resultado final.

Utilizando como exemplo a cópia de Mateus, caso ele tiv esse elegido
as linhas como unidades de cópia, pouco afetaria o resultado a mudança
no espaçamento das letras; no entanto, por ter feito a cópia em colunas a
irregularidade do espaçamento compromete a compreensão do
conteúdo; por exemplo, para que se encontre a palav ra “abelha” é preciso
mudar para linha inferior após a letra L. O resultado final de seu trabalho é
algo confuso, incompleto e incompreensív el. A lógica utilizada por Mateus
OS C ADERNOS ESCOLARES 48

dificilmente teria sido apreendida se não fosse o fato de a pesquisadora ter


acompanhado atentamente o desenv olv imento da tarefa.

Diferenciar quando o que está na lousa tem que ser reproduzido


exatamente do modo como é apresentado, de quando são possív eis
adaptações, requer div ersas habilidades. São necessários: domínio da
tarefa de cópia e da utilização do caderno; conhecimentos sobre leitura e
escrita; interpretação de cada situação a fim de que os alunos tomem as
decisões deles esperadas.

Sev erino10 foi um dos alunos dessa sala de aula que v iv eu com
maiores dificuldades a aprendizagem dos saberes relativ os ao uso dos
cadernos. Por div ersas v ezes, durante as observ ações, foi possív el observ ar
que ele chegav a a passar mais de uma hora tentando copiar a data e a
frase do dia. Por meio do acompanhamento de seus procedimentos e de
conv ersas com Sev erino, foi possív el identificar que a demora dev ia-se ao
fato do aluno pretender copiar as informações exatamente como eram
apresentadas na lousa. Desse modo, quando a data era apresentada em
uma única linha ele tentav a múltiplas estratégias para fazer do mesmo
modo em seu caderno. Na maioria das v ezes, especialmente no início do
ano, os resultados obtidos pelo aluno afastav am-se bastante do objetiv o
eleito por Sev erino: copiar exatamente conforme o modelo. A percepção
de que o resultado de seu trabalho não estav a adequado, lev av a Severino
a fazer, apagar e refazer suas cópias inúmeras v ezes. Ana comentou em
entrev ista informal, acreditar que, se Sev erino iniciasse a primeira série após
os meses lev ados para aprender a trabalhar com o caderno, poderia
efetiv amente fazer as lições propostas e aprender mais. Ev identemente,
Sev erino deixav a, muitas v ezes de realizar as ativ idades propostas pela
professora pelo fato de estar excessiv amente dedicado a reproduzir no
caderno aquilo que estav a escrito na lousa. Isto o impossibilitou de
apropriar-se de outros saberes ensinados na escola. Aprender a ler e a
escrev er acabou ficando em segundo plano, para o momento posterior à
cópia da data e da frase do dia. Ana, percebendo isso, liberou Sev erino

10 A descrição mais det alhada a respeit o desse aluno, de sua escolarização, e de sua

relação com o caderno encont ra-se no capít ulo 4.


OS C ADERNOS ESCOLARES 49

algumas v ezes dessa ativ idade que lhe tomav a muito tempo, esforço e
dedicação, para que ele pudesse fazer outras, direcionadas a
aprendizados tais como leitura, escrita e matemática.

Algo que aparece, de modo sutil, nos casos de Sev erino e Mateus,
mas que merece mais atenção e detalhamento é o fato de hav er,
freqüentemente, ambigüidade e falta de clareza nas instruções que são
dadas para que os alunos realizem a cópia de conteúdos da lousa em seus
cadernos. Por exemplo, foi bastante comum que Ana desse indicações que
informav am aos alunos que o correto seria reproduzir exatamente aquilo
que estav a na lousa: “Assim que alguns copiam da lousa, lev antam-se para
mostrar à professora. Ana diz: ‘Não precisa me mostrar, se está igual ao da
lousa está certo’.” (RA-12).

Em outro episódio, foi feita a correção de uma ativ idade na lousa e


Ana recomendou à classe: “tem que v er se tá igual à lousa... v ai corrigindo
o caderno de v ocês”. (RA-20).

Apesar dessa ênfase dada à importância da semelhança com o


conteúdo que está na lousa, nem sempre é isso que é esperado. Sev erino
esforçav a-se por fazer exatamente desse modo, porém, nesse caso, não
era conv eniente fazer exatamente igual. Mudar de linha quando a
professora o fez na lousa não é sempre o que é considerado correto, muitas
v ezes o aluno dev e basear-se no término de linha de seu próprio caderno
para que possa utilizar a seguinte.

O aprendizado da diferenciação de quando é importante fazer


exatamente conforme é apresentado na lousa, e de quando é possív el
seguir o espaço disponív el no próprio caderno, não chegou a ser dominado
por alguns alunos. Um bom exemplo disso ocorreu em outubro (RA-23),
quando foi colocada na lousa a seguinte frase, div idida conforme
apresenta-se a seguir:

“SOU FELIZ E JESUS


M E AM A”
OS C ADERNOS ESCOLARES 50

João, que hav ia copiado exatamente conforme estav a o modelo


apresentado na lousa, v iu o trabalho de Catarina, que hav ia copiado toda
a frase em uma única linha, e disse à pesquisadora que a colega hav ia feito
de modo incorreto, pois o correto seria colocar o M de ME na linha debaixo,
conforme estav a na lousa. Nessa mesma ocasião foi possív el v erificar que
div ersos alunos tinham copiado a div isão de linhas tal e qual estav a na
lousa, apesar de em seus cadernos hav er espaço suficiente para que toda
a frase fosse copiada em uma única linha.

Outro exemplo ilustra as diferenças entre aquilo que é colocado na


lousa e aquilo que dev e constar no caderno. Algumas v ezes são feitas na
lousa, marcas que não dev em ser reproduzidas, mas serv em apenas para
comunicar um procedimento. Por exemplo, anteriormente ao dia das mães
todos os alunos copiaram um texto passado na lousa. Como essa produção
destinav a-se às mães, houv e maior preocupação por parte da professora
quanto à legibilidade. Para garantir que o texto copiado pudesse ser
compreendido, Ana utilizou riscos azuis entre as palav ras, indicando onde os
alunos dev eriam deixar um espaço maior:

“Para que os alunos não copiassem as palavras todas juntas, Ana


coloca um risquinho azul entre elas. ‘As palavras têm um espaço
entre elas’, repete algumas vezes que o risquinho azul não é para
ser copiado, é só para indicar que tem que dar espaço.”

(RA-13)

Para que o aluno copie conforme aquilo que é esperado, precisa


interpretar o conteúdo e o contexto do que v ai ser escrito; e, em algumas
v ezes, é necessário até mesmo contar com a sorte, v isto que as regras a
seguir são inconstantes, pouco explícitas e sem uma razão lógica para sua
existência. Desse modo a relação entre lousa e caderno não é algo que
possa ser facilmente deduzido pelos alunos, mas que requer aprendizado e
estabelecimento de conv enções entre professora e alunos. Na etapa de
escolarização estudada pela presente pesquisa, identifica-se que muitos
OS C ADERNOS ESCOLARES 51

dos conhecimentos relativ os ao uso do caderno permanecem exteriores


aos alunos.

Edwards (1997) caracteriza o que seria a relação de exterioridade em


relação ao conhecimento. Essa relação estabelecida pelo sujeito que
aprende não inclui uma relação significativ a com o conhecimento. É algo
repetido, utilizado, por v ezes com sucesso, mas que se mantém exterior ao
aluno, alheio a ele. Assim parecem apresentar-se os conhecimentos
relativ os ao uso do caderno, em especial os saberes relativ os à ativ idade de
cópia. São conhecimentos que obedecem a uma lógica formal, nem
sempre completamente apreendida pelos alunos, e que, apesar de
freqüentemente obedecidos, não chegam a tornar-se significativ os para
eles.

3.2.2.2. “Copiar não é aprender”

Nem somente da lousa é possív el copiar. Os alunos logo descobrem


que também é possív el copiar as resoluções das ativ idades dos cadernos
de outros alunos. Nesse caso, quando a cópia refere-se às respostas dos
exercícios, esta deixa de ser um procedimento bem-v isto pela professora,
passando a ser sujeita a críticas e repreensões. Aquele que copia algo do
colega é repreendido, bem como aquele que permite que o colega
consulte o seu trabalho para realizar o próprio.

“Ana repreende Luís que está sempre dando dicas para os


colegas e permitindo que eles copiem de seu trabalho: ‘Copiar
não é aprender, Luís.’”

(RA-9)

“Um menino traz seu trabalho para mostrar a Ana, que olha e diz:
‘Já sei de quem a Tainara copiou. Não é para deix ar a Tainara
copiar.’”

(RA-13)
OS C ADERNOS ESCOLARES 52

É interessante observ ar que a cópia, procedimento freqüentemente


utilizado nesse cotidiano, pode adquirir v alores bastante div ersos. Em
algumas situações, apresenta-se como algo desejado, bem-v isto, promotor
de aprendizagens e pertencente ao conjunto de obrigações que o aluno
dev e cumprir, e, em outros momentos, passa a ser considerada uma atitude
transgressora, contrária à promoção de aprendizagens, e passív el de
sev eras repreensões.

A professora manifesta considerar que quando um aluno copia a


resolução de um exercício de seu colega não está realizando um
procedimento que propicie a aprendizagem do conteúdo. No entanto, a
mesma lógica não é utilizada quando são propostas as ativ idades diárias
aos alunos, que utilizam o procedimento de cópia.

3.2.2. Os saberes da escrita

Os cadernos são instrumentos didáticos que, nessa etapa da


escolarização, prestam-se especialmente a ativ idades de aprendizagem do
código escrito. Dessa forma, alguns dos saberes relativ os ao uso do caderno
coincidem com aprendizagens relativ as à escrita. Por exemplo, a distância
entre as linhas, impõe limites e dá a quem escrev e parâmetros de qual deve
ser o tamanho das letras, assim o caderno funciona como contexto que
contribui para a formação do texto nele escrito (Gv irtz 1999).

O uso adequado do caderno implica em que as conv enções da


escrita ocidental sejam seguidas. Dessa forma, é necessário que a escrita
seja feita da esquerda para a direita, e de cima para baixo.

Foi possív el acompanhar algumas situações que ilustram como esses


aprendizados coincidem com o início do domínio do uso do caderno.
Patrícia foi uma das alunas que no início do ano costumav a escrev er e fazer
cópias, começando pelos conteúdos posicionados à direita e seguindo
para a esquerda, o que resultav a em uma escrita em ordem inv ertida desta
forma:
OS C ADERNOS ESCOLARES 53

“AICÍRTAP

0002 ED OÇRAM ED 82 AIDNALÔTROH”

Uma das estratégias utilizada pela professora para que isso fosse
superado, possibilitando que se compreendesse melhor a escrita de Patrícia,
foi associar o início da escrita à margem esquerda do caderno:

“Ana para Patrícia: ‘Começa copiando aqui (indica o H de


Hortolândia) perto da linha vermelha... Tá perto da linha vermelha?’
Patrícia (que havia colocado o H próx imo à outra margem)
responde: ‘Não.’”

(RA-09)

A orientação dada pela professora, para que a aluna escrev esse


utilizando a orientação conv encional, ou seja, da esquerda para a direita,
foi associar a primeira letra a ser copiada a um elemento presente no
caderno, a margem. Patrícia mostrou adaptar-se às conv enções da escrita
logo nas ativ idades subseqüentes à observ ação citada. Algo que parece
ter contribuído decisiv amente para isso foi a possibilidade encontrada pela
aluna de interagir com a professora, de aproximar-se, mostrar seu trabalho e
receber indicações precisas sobre como dev eria proceder. Outra aluna que
apresentou um procedimento semelhante foi Bruna. No entanto a aluna
saiu da escola logo nos primeiros meses, impossibilitando que fossem
v erificadas as implicações e o desenrolar dessa dificuldade.

Mateus também deixou de seguir as conv enções da escrita, ao


realizar a cópia de conteúdos da lousa, conforme anteriormente
apresentado. Isso ocorreu quando, em v ez de realizar a cópia seguindo a
orientação conv encional da escrita ocidental, da direita para a esquerda,
Mateus arriscou copiar de cima para baixo, em colunas. O resultado da
cópia foi desastroso, impossibilitando completamente a compreensão.
Mateus percebendo a complexidade da tarefa que hav ia se proposto –
OS C ADERNOS ESCOLARES 54

copiar em colunas um texto escrito em linhas – acabou por desistir da


ativ idade antes de concluí-la.

3.2.3. Recortar e colar no caderno

A opção pelo uso freqüente de folhas mimeografadas liberav a os


alunos de muito trabalho de cópia, pois estas traziam o enunciado e demais
indicações necessárias para a realização da ativ idade, tais como palav ras,
números ou desenhos. Assim sendo, a utilização das folhas possibilitav a que
os alunos se dedicassem unicamente à resolução da tarefa proposta.

A quantidade de folhas utilizadas a cada aula v ariav a bastante,


sendo que, algumas v ezes, chegav am a ser entregues até quatro pedaços
de papel em um mesmo dia. Essa quantidade de folhas soltas trazia alguma
desorganização ao material dos alunos, como v erificamos na situação em
que: “André lev anta-se, segurando o caderno. Caem folhas de dentro. Ana
diz: ‘Tá caindo folhinha, v ocê dev ia ter colado.’”(RA-10)

A solução para que o material ficasse organizado era apresentada


pela professora: colar as folhas no caderno. Essa foi uma medida que
também implicou numa série de aprendizagens que relacionav am o objeto
colado e o suporte onde isso seria feito, o caderno: o lugar onde a colagem
podia ser feita; em que posição isso dev ia ser feito; quando o espaço era
restrito, como fazer o tamanho do papel adequar-se; e como impedir que a
cola utilizada para fazer a colagem colasse juntamente as folhas do
caderno. Para que tudo isso pudesse ser aprendido, inúmeras
recomendações eram necessárias:

“Ana dá recomendações sobre o recorte da atividade, que deve


ser colada no caderno: ‘Quem quiser recortar o papel branco que
está sobrando, pode... Só que tem que ser longe das letrinhas.’ Ana
prossegue: ‘Abre o caderno, debaix o da última linha que a gente
fez, deix a uma linha em branco, e escreve a data.’ (...)‘Primeiro faz
a data, e depois cola o calendário.’”

(RA-11)
OS C ADERNOS ESCOLARES 55

“Ana diz a um aluno que colou a folha no lugar errado, deix ando
uma em branco: ‘Não pode ficar pulando folha.’”

(RA-11)

“Ana dá bronca em Rebeca que passou cola em todo verso da


atividade mimeografada: ‘Não tem espaço, por que você passou
cola? Primeiro a gente dobra, depois passa cola para colar.’
Rebeca havia desconsiderado que o papel não caberia aberto,e
portanto deveria ser colocado dobrado na folha do caderno, e
acabou por passar cola em todo o verso da folhinha.”

(RA-13)

“Ana para Patrícia que já fez a atividade, e acabou de colá-la no


caderno: ‘Agora não fecha o caderno, deix a aberto para não
grudar.’”

(RA-8)

Nem sempre esse conjunto de recomendações garantiu que se


tiv esse um resultado organizado nos cadernos dos alunos. É possív el
identificar, nos cadernos, a falta de div ersas ativ idades que foram
propostas, e até mesmo realizadas pelos alunos. Em outros casos, as folhas
podem ser encontradas, dev idamente coladas, sem que isso garantisse a
organização desse material:

“João, que ainda não tinha terminado a lição, prossegue por


algum tempo copiando. M e aprox imo dele e pergunto se posso
olhar o que ele está fazendo. Ele permite, tinha acabado de colar
a lição de hoje. Observo primeiramente o caderno aberto, tal
como está, e vejo que seu caderno tinha uma série de folhas
coladas, cada uma virada para um lado. Na primeira folha um
recado na orientação correta, depois a lição de hoje invertida, na
página seguinte a data de hoje na orientação correta. Ele
OS C ADERNOS ESCOLARES 56

comenta: ‘Tá de ponta cabeça.’ Nas páginas anteriores do


caderno há várias folhas coladas de ponta cabeça.”

(RA-13)

O trecho acima se refere aos primeiros meses de utilização dessa


estratégia. Ao longo do ano, a desorganização no modo de colar passou a
ser menos freqüente. No entanto, ainda era possív el detectar a ausência de
muitas ativ idades nos cadernos de alguns alunos.

Essa forma de utilização do caderno como suporte que colige,


protege e guarda as ativ idades desenv olv idas, atribui a ele a qualidade de
material organizador, de suporte que possibilita a reunião das ativ idades
escolares, ainda que estas não tenham sido feitas diretamente nele.

3.3. Os cadernos como instrumentos de controle

Dev alle de Rendo e Perelman de Solarz11, citadas por Gv irtz, fazem


uma descrição bastante interessante de um dos importantes papéis
atribuídos ao caderno no contexto escolar: “articula uma rede de relações,
serv indo ao controle mútuo que, por sua v ez, conduz ao autocontrole.
Todos se sent em vist os at ravés do caderno.” (1999, p. 13, grifo e tradução
nossas).

Conforme foi apontado anteriormente, na literatura existente tem


sido dada pouca atenção ao estudo dos cadernos. Porém, dentre as
poucas informações disponív eis sobre esses materiais escolares, a função de
controle é uma das características mais freqüentemente associada a eles
(Gv irtz, 1997; Tragtenberg, 1982).

As informações obtidas pelo presente estudo rev elam como a função


de controle disciplinar, entendido neste trabalho conforme descrito por

11 DEVALLE DE RENDO, A.; PERELMAN DE SOLARZ, F.¿Qué es el cuaderno de clase?. Revista

Argentina de Educación, Buenos Aires, ano VI , n. 10, 1998.


OS C ADERNOS ESCOLARES 57

Foucault (1987), ocorre na escola tendo como elemento de v igilância e


exame o caderno. A disciplina, segundo o autor, seria configurada por uma
série de procedimentos cujo objetiv o seria “fabricar” indiv íduos,
potencializando-se a força desses, controlando minuciosamente as
operações dos corpos v isando dominá-los e torná-los úteis ao máximo. Para
que a disciplina possa ser exercida, fazem-se necessários dispositiv os que
permitam a observ ação, “o exercício da disciplina supõe um dispositiv o que
obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem
v er induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção
tornem v isív eis aqueles sobre quem se aplicam” (Foucault, 1987, p. 143).

Desse modo, o caderno, sendo um dispositiv o que registra parte dos


processos e dos produtos do trabalho desenv olv ido em sala de aula, presta-
se ao controle sobre o trabalho dos indiv íduos env olv idos e de uma parte
importante daquilo que ocorre no processo de ensino-aprendizagem. Tal
controle rev ela-se de múltiplas formas e é utilizado por diferentes pessoas
com div ersos fins, conforme apresentaremos a seguir.

3.3.1. Os cadernos enquanto instrumentos de controle e avaliação do


aprendizado dos alunos

Controlar, e obter informações sobre o aluno são instâncias que


muitas v ezes se confundem e sobrepõem na prática do professor. Àquele
que observ a, v igia e controla é dada a possibilidade de constituir um saber
sobre aquele que é controlado (Foucault,1996). Conforme aponta Foucault,
“o exame permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite o seu
saber, lev antar um campo de conhecimentos sobre seus alunos.” (1987, p.
155).

O caderno serv e como registro, cuja v erificação permite ao professor


o controle e o conhecimento, de parte daquilo que seus alunos fazem. Nas
páginas do caderno fica registrada a elaboração ou não da tarefa
solicitada, os erros e os acertos. Essas informações que v ão sendo
registradas, ao longo do tempo, possibilitam que o professor adquira
OS C ADERNOS ESCOLARES 58

conhecimento sobre seus alunos, ajuda a fazer hipóteses sobre o nív el de


aprendizagem, sobre o interesse dedicado à execução das ativ idades.

Ainda que os cadernos permitam o registro e a conserv ação de


informações, criando a possibilidade de serem utilizados para o
acompanhamento do trabalho dos alunos, nem sempre são utilizados em
toda a sua potencialidade. Há, nas características físicas desse material
escolar, fatores que dificultam essa forma de utilização. O caderno é
v olumoso, algo que ganha grandes proporções quando se pensa no
conjunto de cadernos de uma sala de 30 alunos. Ou seja, transportar os
cadernos acaba não sendo um procedimento adotado pela professora.
Dessa forma, quando a intenção é fazer uma análise mais apurada dos
aprendizados dos alunos, raramente os cadernos são os instrumentos
utilizados. Nesse caso, as folhas soltas são consideradas o suporte mais
prático e adequado.

Ainda que ocasionalmente as av aliações sejam feitas utilizando


outros materiais, no dia-a-dia são os cadernos que registram as ativ idades
desenv olv idas, os av anços e retrocessos pontuais, as tentativ as. São
também esses os materiais que acabam por ser v istos, diariamente, pela
professora.

Algumas situações podem exemplificar como ocorre esse controle


dos alunos a partir daquilo que fica registrado nas páginas dos cadernos. A
professora Ana comenta que um aluno é preguiçoso e, para exemplificar
isso, conta que ele copiou apenas a data (RA-8); ou justifica a suposta falta
de interesse de outro aluno pelas ativ idades escolares, pelo fato de ele não
hav er realizado tarefas propostas, como pôde ser observ ado, quando Ana
referiu-se a seu aluno Mateus: “Alguns alunos fazem muito pouco das lições.
Esse fato lev a a professora a criar hipóteses sobre os alunos: ‘a maioria ele
não faz, não tem motiv ação.’” (RA-17).

O acompanhamento sistemático das ativ idades realizadas pelos


alunos possibilita à professora presumir qual é o tipo de desempenho que
cada aluno pode ter. Um episódio ocorrido com a aluna Isabel mostra
como um desempenho que se diferencia muito dos anteriormente
apresentados é v isto como não sendo produção do próprio aluno:
OS C ADERNOS ESCOLARES 59

“Isabel foi até a frente da sala mostrar a Ana o que havia feito.
Após olhar o caderno, Ana diz: ‘Você copiou de alguém, você não
sabe escrever... Copiou de alguém que ainda nem sabe direito... Eu
sei como cada um aqui escreve.’”

(RA-21)

Isabel que em relação ao seu nív el de alfabetização era classificada


pela professora como silábica, apresentav a nesse momento uma escrita
silábico-alfabética. Também em relação às lições de casa, que mostram
desempenhos superiores àqueles apresentados em sala de aula, a
interpretação da professora é de que outra pessoa realizou a tarefa.

O caderno funciona como instrumento que, também, permite ao


professor formular hipóteses relativ as à personalidade do aluno, e ao modo
como estes se relacionam com o saber e com a escola.

O não fazer uma ativ idade, ev idenciado pelo conteúdo do caderno,


pode ser compreendido como tendo razões e justificativ as intrínsecas ao
aluno: falta de interesse, falta de motiv ação, não gostar da escola, ser
preguiçoso.

“Pergunto a ela (Ana) sobre Severino. Ana diz não saber o que
acontece com ele: ‘Não faz, não gosta de estar aqui, não queria
estar aqui.’ Sempre que Ana olha seu ‘caderno está em branco’.”

(RA-17)

3.3.2. O controle hierarquizado

Os conteúdos dos cadernos são, quase que totalmente, executados


pelos alunos. Mas, não se prestam apenas ao controle do trabalho destes.
Conforme hav ia sido apontado por Gv irtz (1997), o caderno é também um
espaço de registro daquilo que é ensinado, guardando informações sobre a
OS C ADERNOS ESCOLARES 60

interação entre professores e alunos. Assim sendo, também o professor pode


ser controlado por meio desses registros.

Na escola onde foi realizada a pesquisa a coordenadora


pedagógica informou, em entrev ista informal, considerar que os cadernos
eram úteis para o controle do trabalho do professor. Por meio dos cadernos
dos alunos, a coordenadora v erificav a se estav am compreendendo aquilo
que o professor explicav a. A aparência do caderno também era utilizada
como informação para saber se o professor ensinav a os alunos sobre como
se dev e cuidar desse material. Desse modo, além da possibilidade de
acompanhamento do trabalho dos alunos, proporcionada pelo
acompanhamento dos cadernos, passa a ser associada ao caderno a
oportunidade de acesso ao trabalho do professor e seus efeitos no
desempenho dos alunos.

Além dos cadernos dos alunos, a coordenadora utilizav a também os


cadernos das professoras como forma de controle. Nessa instituição, cada
professor tinha o seu próprio caderno, no qual dev iam ser registradas todas
as ativ idades planejadas e propostas aos alunos. A coordenadora relatou
v erificar esses cadernos semanalmente a fim de constatar se hav ia
planejamento das aulas, e de conhecer quais eram os tipos de ativ idades
desenv olv idas.

3.3.3. O controle mútuo entre pais e professora

Os cadernos pertencem aos alunos e caracterizam-se por estar na


quase totalidade do tempo em poder destes. Assim sendo são objetos que
os acompanham quando retornam para suas casas. Dessa forma, são os
objetos que lev am para a família das crianças registros feitos na escola,
criando a possibilidade de v erificação daquilo que ocorre na sala de aula.
Alguns pais recebem os cadernos como uma possibilidade de conhecer,
controlar e av aliar seus filhos, a professora e a escola.

Entrev istas informais com Ana possibilitaram identificar que os pais dos
alunos utilizam os cadernos como instrumento primordial para terem acesso
ao trabalho da professora. É importante ressaltar que os pais não
OS C ADERNOS ESCOLARES 61

costumav am ter liv re acesso à escola e à professora nos dias de aula; os


alunos eram deixados no portão da escola no horário de entrada e nesse
mesmo lugar podiam ser encontrados ao final do horário letiv o. As
possibilidades oficiais de comunicação eram oferecidas pela escola nas
reuniões de pais. Nos interv alos entre uma reunião e outra, o caderno serv ia
como instrumento de comunicação entre a escola e a casa da criança,
propiciando que as informações circulassem entre esses dois espaços.

Aquilo que era observ ado pelos pais era comunicado à escola nas
esporádicas reuniões de pais ou atrav és de reclamações feitas diretamente
à equipe técnica – pedagógica e administrativ a. Nessas ocasiões,
predominav a a comunicação de aspectos considerados, pelos pais, como
negativ os. Tais aspectos referiam-se:

• ao conteúdo:

O pai de Sev erino reclamav a que no caderno do filho hav ia “coisas


que nem letras são” (RA-11). A mãe de Rebeca também se queixav a que só
hav ia datas no caderno de sua filha (RA-11).

• à quantidade:

A irmã de João comentou que hav ia pouco conteúdo no caderno


de seu irmão (RA-19). A preocupação da mãe de Rebeca, citada no item
anterior, em relação ao conteúdo do caderno, também rev elav a
insatisfação com a quantidade daquilo que estav a registrado no caderno.

• a procedimentos adotados pela professora:

A mãe de Luís exigiu que houv esse a utilização da letra manuscrita,


em v ez da letra de forma utilizada na grande maioria das ativ idades
pedagógicas propostas (RA-14). A professora relatou que div ersos pais
reclamaram pelo fato de ela não corrigir diariamente as tarefas realizadas
pelos alunos (RA-15).
OS C ADERNOS ESCOLARES 62

Essas reclamações dos pais não foram consideradas justas por Ana,
que alegou desenv olv er muitas ativ idades que não ficav am registradas nos
cadernos, tais como leitura e jogos. Na primeira reunião de pais, Ana hav ia
chamado a atenção dos pais para o fato de que desenv olv eria muitas
ativ idades sem o uso do caderno.

Quanto ao fato de não corrigir os cadernos de todos os alunos, Ana


disse que não hav ia tempo para fazer isso diariamente. Porém as
reiv indicações dos pais não foram inócuas, já que, ao longo do ano, a
professora adotou algumas mudanças no seu trabalho pedagógico, a fim
de reduzir as reclamações: “Às v ezes eu mudo tudo o que estou fazendo
para dar conta do que o pai está pedindo.” (RA-13). A primeira mudança,
registrada por meio das observ ações de sala de aula, foi a utilização, pela
professora, de comunicações escritas nos cadernos indicando que o aluno
não realizou a tarefa ou que não a terminou. Esse procedimento passou a
informar aos pais que o que estav a registrado no caderno não era a
totalidade das ativ idades desenv olv idas em sala de aula, ao mesmo tempo
que responsabilizav a o aluno pela não realização daquilo que foi solicitado.

Outra estratégia adotada foi passar a colocar indicadores de certo


ou errado nas tarefas realizadas pelos alunos. Ana passou, ainda, a realizar
av aliações dos cadernos como um todo. Para aqueles que tiv essem um
bom caderno, Ana colav a um adesiv o com um palhaço sorridente e uma
frase elogiosa; para aqueles que não tiv essem um bom caderno era
reserv ado o adesiv o com um palhaço triste. Em entrev ista informal, a
professora disse considerar esse procedimento interessante, pois funcionav a
como um incentiv o, mostrav a que hav ia alguém “olhando, dando v alor”
(RA-15). Conta também que os critérios utilizados para definir um bom
caderno baseav am-se, predominantemente, em aspectos estéticos. Algo
considerado por Ana como pouco importante. Em suas palav ras “a criança
não tem que ter letra bonita, tem que ter letra legív el”, porém, a principal
razão para a adoção dessa prática seria o v alor dado pelos pais à questão
estética.
OS C ADERNOS ESCOLARES 63

Assim, a professora passou a v alorizar e a exigir aspectos


considerados, por ela, como menos importantes, dev ido às cobranças e às
exigências feitas pelos pais, que tinham como fonte de informações o
caderno. Ana, por sua v ez, respondeu a essas solicitações com ações que
também passaram a ficar registradas nos cadernos. As razões e as
motiv ações para sua mudança de atitude escaparam ao registro das
páginas do caderno, mas os seus efeitos permaneceram registrados.

Desse modo o caderno foi intermediando as relações entre pais e


professora naquele contexto escolar. O que resultou em mudanças na
atuação docente e no modo como os alunos eram av aliados.

Se o caderno presta-se ao controle dos pais sobre as práticas do


professor, também possibilita ao professor o controle de ações dos pais. O
caderno possibilita que o professor tenha informações sobre o modo como
os pais acompanham a escolarização de seus filhos. Algumas estratégias
utilizadas pelos pais para auxiliar na alfabetização de seus filhos ficam
registradas nos cadernos. Por exemplo, no caderno de Mateus, a professora
Ana v erificou que hav ia letras isoladas colocadas para que ele copiasse,
tipo de tarefa que não era adotada por ela em sala de aula, e que foi bem
executada pelo aluno. O env io, atrav és do caderno, de bilhetes que não
eram assinados sugeria que os pais não costumav am v erificar o conteúdo
desse material sistematicamente. O fato de alguns pais irem até a escola,
conv ersar com Ana sobre o conteúdo ou a aparência do caderno, foi
considerado como mostra de que estav am interessados na escolarização
de seus filhos.

O caderno conforme v ai sendo preenchido, transforma-se em um


instrumento que serv e ao controle dentro da instituição de ensino, serv indo
para que o professor controle o trabalho dos alunos e as ações dos pais,
para que o coordenador controle o trabalho de professor; serv e também
ao controle fora da escola, sendo utilizados pelos pais para controlar aquilo
que os seus filhos e o professor fazem. Desse modo, os registros feitos tanto
por alunos, pais e professores, acabam por mediar relações entre eles. A
função de controle aparece fortemente associada a esse material escolar,
OS C ADERNOS ESCOLARES 64

influenciando no modo como se configuram práticas dos diferentes


membros da instituição escolar.

3.4. Os bilhetes

Bilhete era o nome dado, na sala de aula observ ada, às


comunicações feitas por escrito pela professora no caderno do aluno. Esses
bilhetes eram bastante comuns, podendo ser encontrados em quantidades
v ariáv eis nos cadernos de quase todos. Alguns alunos recebiam bilhetes
todas as semanas, por v ezes, mais que um na mesma semana. Outros
receberam apenas um ou dois durante todo o ano.

Algumas outras formas de comunicação também foram


ocasionalmente chamadas de bilhetes, sem, no entanto, serem aquilo a
que os informantes desta pesquisa se referiam quando lhes era solicitado
que falassem sobre bilhetes. Foi o caso dos recados mimeografados,
também elaborados pela professora, e colados nos cadernos de todos os
alunos, cujo conteúdo referia-se a comunicados direcionados aos pais, em
geral sobre reuniões ou festas. Nesse caso, os bilhetes assemelhav am-se
bastante às ativ idades mimeografadas que também eram coladas nos
cadernos.

Alguns pais escrev iam nos cadernos de seus filhos quando


precisav am responder a alguma comunicação anterior ou informar algo à
escola e/ou à professora. Essas comunicações escritas também foram em
algumas circunstâncias chamadas pelo nome de bilhete. A partir desse
momento serão feitas referências mais especificamente ao primeiro tipo de
bilhete, que era escrito a mão pela professora diretamente no caderno dos
alunos.

Ao longo da escolarização, o fato de a professora escrev er algo no


caderno de um aluno poderia adquirir para este uma multiplicidade de
significados. Os significados v ão sendo construídos à medida que as
OS C ADERNOS ESCOLARES 65

experiências de receber bilhetes, bem como de acompanhar o


recebimento de bilhetes, por colegas e irmãos, ocorre. Ao realizar a
pesquisa em uma classe de primeira série, momento em que são recebidos
os primeiros bilhetes, foi possív el conhecer sobre como se formam essas
significações.

Ao realizar entrev istas informais com os alunos, perguntando a


respeito dos bilhetes foram unânimes as respostas que caracterizav am os
bilhetes como algo negativ o. Dinorah contou com orgulho e felicidade: “eu
nunca lev o bilhete” (RA-17). A mesma aluna ao ser questionada sobre
quem lev av a bilhete citou: “Mateus, João, Bernardo...” (RA-17), alunos que
apresentam dificuldades no que se refere à realização das tarefas
escolares. Vanderlei contou certa v ez: “nunca lev ei, nem v ou lev ar bilhete”
(RA-18). Menos de um mês depois dessa declaração, seu caderno
registrav a um bilhete que dizia que ele estav a bagunçando e por isso não
hav ia feito a tarefa. Nessa ocasião, Vanderlei mostrou-se bastante
env ergonhado, não quis falar sobre o bilhete, nem sobre a repercussão que
este causou em sua casa.

Para que se compreenda como os alunos passaram a considerar os


bilhetes como algo necessariamente negativ o, é interessante que se retome
os conteúdos e as funções que eles assumem em sala de aula.

O presente trabalho não tem a pretensão de fazer análises


quantitativ as. Contudo, as ev identes diferenças no número de ocorrências
encontradas para os div ersos tipos de conteúdos de bilhetes, permitem que
sejam apresentadas suas div ersas freqüências na sala de aula observ ada:

a) A quase totalidade dos bilhetes referia-se a comunicações sobre o


não cumprimento das tarefas escolares e/ou atos considerados de
indisciplina 12.

“M ãe, a Catarina não está fazendo suas lições direito, não tem feito
a lição de casa, seu caderno não tem capricho, fica brincando o

12 As referências a ações consideradas de indisciplina aparecem predominant ement e


associadas a comunicações de não cumpriment o das at iv idades escolares; muit o rarament e
foram encont radas queix as disciplinares isoladament e.
OS C ADERNOS ESCOLARES 66

tempo todo, arruma confusão com os colegas e não me obedece,


ela precisa mudar seu comportamento urgente.

Ana”

(RA-27)

“Não fez a lição

Ana”

(Bilhete recorrente no caderno de Isabel, escrito nos dias 10/08;


23/10; 26/10).

b)Encontramos também, embora com pequena freqüência, alertas


sobre os procedimentos esperados na utilização dos cadernos:

"cuidado para não pular a folha"

(Caderno de Tainara – RA--26)

c) Raramente, foram encontrados bilhetes cujo intuito era comunicar


fatos ocorridos com o aluno: pequenos machucados, indisposições e, até
mesmo, o fato de uma aluna ter sido classificada em um concurso de
dança realizado na escola.

O diálogo abaixo, ocorrido entre a pesquisadora e um aluno que


hav ia recebido um bilhete desse último gênero, pode ilustrar como a
freqüência na ocorrência de cada tipo de bilhete é percebida pelos
alunos:

“P: ‘Luís, o que a professora escreveu aqui?’

L: ‘Um bilhete que eu não tava passando bem, eu vomitei, eu


vomitei, eu vomitei duas vez...’ (...)

P: ‘Quando mais que a professora escreve no seu caderno?’

L: (Luís pergunta para certificar-se do que eu quero saber) ‘Quando


eu tô doente?’
OS C ADERNOS ESCOLARES 67

P: ‘É, quando que ela escreve, quando você tá doente... Tem mais
alguma hora que ela escreveu?’

L: ‘Iii, quando faz bagunça... Tem um monte aqui de bagunça que


eu fiz.’

P: ‘É... Só quando você tá doente e quando faz bagunça que ela


escreve? (ele concorda e eu continuo) ‘É mais quando você tá
doente ou mais quando você faz bagunça que ela escreve?’

L: ‘M ais quando faz bagunça.’”

(RA-27) 13

Tainara também comentou sobre as razões para que a professora


escrev esse os bilhetes:

“Pergunto o que costuma estar escrito em bilhetes e Tainara


novamente pensa, sempre sorridente e simpática. Diz que quando
não se faz lição, a professora enche uma folha inteira de recados.”

(RA-22)

Os bilhetes, escritos diretamente pela professora no caderno,


caracterizav am-se por ser indiv idualizados e utilizados para comunicar
acontecimentos diretamente relacionados ao aluno. Na maioria das v ezes
os temas referiam-se a algo negativ o julgado relev ante para ser
comunicado à família.

A conotação negativ a atribuída pelas crianças ganhav a ainda mais


força, pois os bilhetes eram utilizados por Ana como um castigo, como
ação que pretendia promov er disciplina, e garantir que os alunos fizessem
as ativ idades. Para exemplificar essa utilização dos bilhetes é possív el
apresentar algumas situações: dois alunos estav am conv ersando, rindo e

13 É int eressant e ressalt ar que Luís era o aluno que, nessa sala de aula, encont rav a-se mais

adiant ado no que se refere à aprendizagem de cont eúdos escolares. Assim sendo, não
cost umav a encont rar dificuldades para realizar as t arefas, cumprindo-as pont ualment e.
Dessa forma, compreende-se o fat o de ele não se referir ao uso de bilhet es para a não
realização de t arefas escolares.
OS C ADERNOS ESCOLARES 68

andando pela sala, Ana disse: “se os dois não fizerem (a tarefa) v ão lev ar
bilhete” (RA-14); em outra ocasião os alunos estav am de pé, conv ersando
alto, Ana repreendeu perguntando: “Hoje é festiv al de bilhete?” (RA-20). As
ameaças de Ana tinham conseqüências sobre as ações dos alunos. Um
exemplo ocorreu com Eduardo (RA-27), que não hav ia concluído as lições
de casa solicitadas no dia anterior, e que passara quase a totalidade do
período de aulas recortando palav ras de rev istas e colando-as no caderno:

“Eduardo me chama até a sua mesa. Está com uma revista,


pergunto a ele o que está fazendo, e ele diz: ‘Estou terminando a
lição de casa para não levar bilhete.’ Durante boa parte da aula
Eduardo estará recortando palavras e colando-as em seu
caderno.”

(RA-27)

Também em relação ao comportamento, a utilização dos bilhetes


parece interferir:

“Toni e Daniel (...) brincam de brigar, trocam alguns socos, pegam-


se, não parecem machucar-se. Procuro não interferir. João observa
a briga e comenta: ‘Vai escrever bilhete no seu caderno.’ (...)
Pouco tempo depois os dois interrompem a brincadeira.”

(RA-27)

Ana ressaltav a costumar escrev er bilhetes apenas nos casos


extremos, pois sabia que muitos alunos apanhav am dos pais quando
recebiam reclamações por escrito. Este seria o caso de João e de Renato.
Por outro lado, Ana dizia hav er alunos cujos pais não tomav am prov idência
alguma.

Os bilhetes eram direcionados, predominantemente, aos pais dos


alunos. Algumas v ezes, as destinatárias eram mais especificamente as mães.
Algo que pode ser v erificado pelos v ocativ os utilizados no texto dos bilhetes:
OS C ADERNOS ESCOLARES 69

“Senhores pais, o Severino não está fazendo as lições nem de classe


e nem as de casa. Passa o tempo brincando e não se esforça para
fazer as lições, isso prejudica o aprendizado dele. Ana”.

(RA-27)

“M ãe, o João está conversando, brincando, brigando, correndo


pela sala, falando palavrão provocando os colegas e não faz lição
por preguiça?”.

(RA-26)

O fato de que os bilhetes dirigiam-se aos pais era adequadamente


percebido pelos alunos, como se pode deduzir a partir de frases como esta:

“Pergunto o que dizem os bilhetes e para que servem, e Rebeca


que se aprox imou (do grupo com o qual converso) há algum
tempo responde ‘para as mães ler’.”

(RA-17)

Além dos v ocativ os, há outros aspectos, menos explícitos, que


ajudam a compreender a quem eram e a quem não eram direcionados os
bilhetes. Os bilhetes apresentav am-se sempre escritos em letra manuscrita.
Na escola onde foi realizada a pesquisa, a alfabetização iniciav a-se na
primeira série. A professora Ana trabalhav a predominantemente com letras
de forma, tendo inserido as letras manuscritas apenas no mês de setembro.
Desse modo, a grande maioria dos alunos cursou a primeira série sem
conseguir ler o que diziam os bilhetes escritos em seus cadernos. Sem que
pudessem decodificar aquilo que foi registrado, restav a a eles fazer
suposições sobre o que pode estar ali escrito.

O fato de a quase totalidade das comunicações escritas


encontradas nos cadernos direcionarem-se aos pais dos alunos, indica que
OS C ADERNOS ESCOLARES 70

estas sejam um elemento importante para que se conheçam aspectos de


como se dão as relações entre a família e a escola.

Conforme foi descrito anteriormente, a escola foi fundada em


caráter emergencial. Para que fosse prov idenciada, pela prefeitura, a infra-
estrutura básica necessária ao funcionamento da escola (terreno,
contêineres, professores, mobiliário) foi necessária a mobilização da
população da região. Desse modo, inicialmente a participação da
comunidade junto à escola foi bastante grande, sendo que alguns pais
chegaram a assumir as responsabilidades por manter a escola limpa e
prov idenciar o preparo das refeições das crianças. O terreno da escola não
era cercado até 1999 quando, após fortes reiv indicações da comunidade e
da equipe da escola, foi construída uma cerca de arame.

Antes da existência da cerca era comum que os pais


acompanhassem seus filhos até à porta da sala de aula e que, ao final do
período letiv o, também fossem buscá-los no interior da escola. A
inexistência de barreiras físicas possibilitav a a proximidade entre os pais e os
professores, bem como a troca de informações. No início de 2000, houv e a
determinação de que o acesso dos pais à escola seria limitado: os filhos
dev eriam ser deixados no portão da escola. A decisão desagradou alguns
pais que se manifestaram logo na primeira reunião. Ana sugeriu aos pais
que lev assem a reclamação à direção, e os bilhetes nos cadernos foram
propostos como uma possibilidade de comunicação. Nesse encontro inicial,
foi acordado que essa seria uma das importantes v ias de comunicação
entre pais e professora.

“M ãe pergunta sobre a possibilidade de mandar recados: ‘Pode


mandar no caderno?’

Ana responde: ‘Pode mandar, que eu respondo.’”

(RA-03)

“Ana: ‘Se antes da reunião precisar (falar comigo), manda


bilhete.’”

(RA-03)
OS C ADERNOS ESCOLARES 71

Ainda que o acordo tenha sido proposto por uma mãe, raras foram
as situações em que os pais se utilizaram dessa forma de comunicação. A
professora, por sua v ez, utilizou-se com freqüência dos cadernos para
comunicar-se com os pais de seus alunos.

O env io freqüente de bilhetes implicav a e pressupunha que os pais


fizessem freqüentemente o acompanhamento do conteúdo dos cadernos
de seus filhos. O conteúdo dos bilhetes rev elav a a concepção, v igente no
meio escolar, de que os pais são co-responsáv eis pelas atitudes de seus
filhos que digam respeito à escolarização. Na maioria dos bilhetes essa
concepção ficou subentendida. Porém, em algumas situações isto é
explicitado nos textos escritos:

“M ãe, o Cassiano não fez a lição de casa isso é muito importante


para ele e também é responsabilidade dos pais cuidada (sic) para
que o aluno vá bem na escola.”

(Trecho de bilhete – RA-27)

No bilhete acima, a professora atribui aos pais responsabilidade pelo


sucesso ou fracasso escolar de seu filho. A situação desencadeadora para
que essa comunicação fosse feita foi o não cumprimento da lição de casa.
Nesse caso, a queixa referia-se a uma ativ idade que costumav a ser
realizada em casa, ou seja, não se tratav a de uma ação que dizia respeito
exclusiv amente ao interior da escola. No entanto, também em relação
àquilo que ocorria no espaço escolar, e que dizia respeito ao
desenv olv imento de ativ idades estritamente escolares, encontramos
chamados, por parte da escola, para que os pais assumissem a
responsabilidade e tomassem prov idências:

“Srs Pais,
OS C ADERNOS ESCOLARES 72

Peço a gentileza de que converse com sua filha, ela não está se
comportando bem às aulas de Educação Física, atrapalhando seu
desenvolvimento. Obrigada.”

(Bilhete escrito pela professora de Educação Física no caderno de


Isabel em 6/11).

Esse tipo de expectativ a da escola em relação aos pais também foi


encontrado por Ribeiro (2000), que apurou por meio de entrev istas com pais
de alunos e professores que os principais assuntos tratados nas reuniões de
pais foram a aprendizagem e o comportamento do aluno. Tais assuntos
foram abordados como forma de solicitar à família que auxiliasse na tarefa
de educar.

Algumas v ezes os destinatários dos bilhetes, os pais dos alunos,


demonstrav am estar cientes por meio de suas assinaturas. Raramente foram
encontradas, nos cadernos, respostas dos pais aos bilhetes v indos da
escola. Ao longo de toda a pesquisa encontramos apenas duas respostas,
efetuadas pela mesma mãe. Apesar dessa pequena freqüência, o
conteúdo pareceu relev ante:

“M ãe

A Sueli não está fazendo suas lições, seu caderno está uma
bagunça. Não fez a lição de casa e fica brincando na hora que
deveria fazer a lição

Ana”

“Shra Professora

Eu não sei que lição é essa do filme que ela assistiu, eu não assisti.
Se ela não sabe eu é que não sei.

Ela vai apanhar aqui hoje por isso, é a shra. pode ficar brava com
ela pega no pé dela não dá moleza não

Obrigada
OS C ADERNOS ESCOLARES 73

Silvia”

(bilhete escrito pela professora em 30/11, e a resposta da mãe da


aluna)

Em resposta ao comunicado da professora a respeito do não


cumprimento das tarefas escolares, a mãe de Sueli mostrou à professora a
limitação que teria para tomar prov idências e até mesmo a inadequação
de que ela assumisse essa responsabilidade, diante das circunstâncias.
Afinal a tarefa referia-se a algo que hav ia sido tratado no espaço escolar,
muito restritamente aberto aos pais. Assim sendo, a mãe desconhecia o
conteúdo do filme v isto por sua filha na escola, bem como o que dev eria
ser executado. Silv ia comunicou ainda que, diante de sua impotência para
auxiliar a filha, restav a-lhe puni-la e solicitar à professora que assumisse a
responsabilidade sobre aquilo que dizia respeito ao âmbito escolar
cobrando com sev eridade a realização das tarefas. O conteúdo da
resposta de Silv ia denota ainda o quanto essas expectativ as atribuídas aos
pais pela escola eram inatingív eis, e as repercussões que um bilhete podia
ter: agressões físicas, repreensões.

Situações como a anteriormente descrita rev elam que o caderno


pode funcionar eficientemente como v eículo de comunicação entre
escola e família, pois possibilita a troca de informações, de forma rápida e
prática. No entanto, v erificou-se que o conteúdo dessas comunicações
priv ilegiou o negativ o. Fatos positiv os, tais como a melhora de desempenho
acadêmico, a realização com sucesso de alguma ativ idade escolar ou
alguma atitude considerada positiv a não eram registrados nos cadernos14.
Ana chegou a comentar sobre isso em uma das conv ersas com a
pesquisadora:

“Ana conta: ‘A mãe de Renato bate nele quando ele leva bilhete.’
Ana prossegue contando que, depois que ela mandou um bilhete,
a mãe mandou outro perguntando: ‘O Renato melhorou?’ Esse

14 Ex cet o em duas sit uações: a classificação no concurso de dança, coment ado

ant eriorment e, e o dit ado de 05/12, que será coment ado mais det alhadament e a seguir.
OS C ADERNOS ESCOLARES 74

bilhete Ana não respondeu por escrito: ‘Não tive tempo.’ Falou
com Renato, e pediu que ele transmitisse o recado à mãe: ‘Mandei
falar que ele estava melhorando.’”

(RA-24)

Esse fato exemplifica quais eram as situações priv ilegiadas para


serem comunicadas por escrito, registradas. Enquanto às queixas foi dado o
registro escrito, aos elogios coube a v olatilidade das palav ras ditas.

Ainda que os alunos não conseguissem ler o conteúdo dos bilhetes, o


seu significado não lhes era completamente desconhecido. Durante a
realização das observ ações foi possív el v erificar que a professora fazia
v erbalizações, ao escrev er nos cadernos, que sugeriam ao aluno o que
estav a sendo escrito. Como exemplo cita-se um episódio no qual Ana
passav a pelas carteiras v erificando os cadernos de todos os alunos,
chegando à carteira de Taís perguntou: “Como, Taís, v ocê não fez a lição?”
e logo, em seguida escrev eu em seu caderno (RA-10).

Nas entrev istas informais, houv e situações em que os alunos foram


questionados sobre o conteúdo de bilhetes escritos anteriormente, e diziam
aquilo que imaginav am estar escrito; não olhav am para o caderno
enquanto pensav am no significado, dado que a escrita não podia ajudá-
los a descobrir o significado. Alguns diziam não saber e nem supor o que
pudesse estar escrito, outros diziam estar escrito “não fez lição” ou “fez
bagunça”, ainda que o conteúdo fosse outro. Mateus disse que estav a
escrito “não fez lição” em um bilhete que comunicav a que ele hav ia se
machucado (RA-20). É compreensív el que Mateus dissesse isso, afinal, ao
longo do ano foram freqüentes os bilhetes que se referiram ao não
cumprimento de tarefas escolares. Nov amente, nesses episódios fica
ev idente o significado negativ o associado, pelos alunos, aos bilhetes.

Apesar dessa marcada conotação negativ a associada às


comunicações por escrito feitas nos cadernos dos alunos, houv e uma
possibilidade de descontinuidade no modo como se dav am essas
comunicações. Em uma das entrev istas informais (RA-24) a pesquisadora
OS C ADERNOS ESCOLARES 75

comentou com Ana a respeito de alguns aspectos que tinham sido


observ ados, ao longo da pesquisa, sobre os bilhetes: o fato de as
comunicações terem sido sempre direcionadas aos pais, e não aos alunos,
aqueles a quem, realmente, pertenciam os cadernos; a utilização de letras
manuscritas que não permitiam aos alunos a compreensão da mensagem;
a utilização dos bilhetes apenas para a comunicação e registro de
aspectos negativ os.

Algum tempo depois, já nos últimos dias de aula (05/12), Ana utilizou-
se dos bilhetes de forma única e diferenciada. Hav ia sido feito um ditado e
Ana av aliou que, de modo geral, os alunos tinham tido um desempenho
bom. Iniciou escrev endo um bilhete elogioso no caderno de Luciano. Ana
contou que o bilhete dizia “muito bem”, e foi escrito em letra de forma.
Após escrev er, a professora incentiv ou que o aluno lesse. Prosseguindo a
correção, Ana encontrou outros alunos que estav am tendo progressos no
processo de letramento, e procedeu da mesma forma: escrev endo bilhetes
elogiosos, em letra de forma, para que pudessem ser melhor
compreendidos pelos alunos e incentiv ando que estes os lessem.

“M UITO BEM , CONTINUE ASSIM ANA”

(Bilhete escrito no caderno de Isabel em 05/12)

“M UITO BEM CONTINUE SE ESFORÇANDO ANA”

(Bilhete escrito no caderno de Severino em 05/12)

3.5. As frases do dia

Especialmente a partir do final do mês de maio, a professora passou


a adotar, quase que diariamente, a prática de escrev er uma frase, logo
abaixo da data, para que fosse copiada pelos alunos em seus cadernos. A
escolha dessas frases era feita comumente pela professora, sendo que em
algumas ocasiões os alunos eram conv idados a dar sugestões.
OS C ADERNOS ESCOLARES 76

A leitura dessas frases fazia parte da rotina da sala de aula. Ana


procurav a promov er a participação dos alunos nessa leitura, utilizando esse
procedimento como mais uma das estratégias para o ensino e prática da
leitura e escrita, como podemos acompanhar na cena descrita a seguir, na
qual a professora utiliza-se da frase “A fé remov e montanhas”, para
estimular que os alunos leiam:

“Ana, à frente da sala, pede a atenção dos alunos: ‘Pessoal,


atenção, por favor.’ Chama a atenção de vários alunos. Lê a frase
do dia com eles. Todos os alunos voltam aos seus lugares,
momentos antes a maioria estava em pé. Ana nomeia as letras
com a ajuda dos alunos, depois lêem as sílabas juntos, depois
palavras e, por fim, a frase. As crianças vão falando em coro. Ana
critica o fato de os alunos ‘esticarem a letra’ ao falarem em coro.”
(RA-26)

Nessa, como também em outras situações, o conteúdo da frase era


discutido:

“Em seguida, Ana pergunta o que a frase quer dizer e ex plica: ‘quer
dizer que se a gente acreditar muito em uma coisa...”
(RA-26)

Os conteúdos das frases 75 frases15 reunidas ao longo da pesquisa


rev elam predominantemente os seguintes conteúdos:

• expectativ as da escola quanto aos procedimentos de seus alunos


em relação aos colegas:
“Amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito” (02/06/2000)
“Devo brincar e não brigar com meus colegas” (27/11/2000)

• expectativ as relativ as aos estudos, às tarefas escolares e aos


materiais escolares:
“Sou um bom aluno e venho à escola para estudar” (19/06/2000)

15 As frases encont ram-se no Anex o C


OS C ADERNOS ESCOLARES 77

“Faço as minhas lições e só depois converso” (05/09/2000)

• características pessoais dos alunos que são bem-v istas e


esperadas:
“Adoro ser educado” (01/06/2000)
“Sou uma criança inteligente e obediente” (08/06/2000)

Há, ainda frases de cunho religioso:


“Somos criaturas de Deus” (27/10/2000)
“Deus nos ama” (16/10/2000)

E, com menor freqüência, foram identificados conteúdos ecológicos


e de incentiv o à prática de ativ idades físicas:
“É tão bom amar a natureza” (29/11/2000)
“Ex ercício físico faz bem à saúde” (09/08/2000)

As qualidades v alorizadas nas frases foram: inteligência, educação,


obediência, responsabilidade, persev erança e simpatia. As ações
estimuladas por meio dessas frases foram a dedicação aos estudos, o
capricho e a atenção; o cuidado com materiais e lições; o gosto pelo
aprender; o respeito à professora e aos colegas; não mentir.
É interessante ressaltar de que forma as frases foram apresentadas.
Quase sempre foram escritas em primeira pessoa do singular, de modo
afirmativ o. Dessa forma, os alunos escrev iam em seus cadernos que eram e
agiam conforme o que a professora e a escola deles esperav a, ainda que
nem sempre isso fosse v erdadeiro ou concordassem com isso:

“Ana diz: ‘Luís, lê a frase do dia para mim.’ Luís levanta-se e vai até
a lousa e lê, em voz alta, apontando para a lousa. Algum aluno
pede para ler, e Ana diz que já pediu a Luís. Assim que Luís termina
Ana pergunta, referindo-se ao conteúdo da frase (‘sou muito
caprichoso e atencioso com meu caderno e minhas lições’): ‘Todo
mundo é assim?’ A classe responde em coro: ‘Não.’ Ou seja, a
maioria dos alunos afirma não ser atenciosa e caprichosa com seus
OS C ADERNOS ESCOLARES 78

cadernos e lições. Ana pergunta: ‘M as, todo mundo vai ser?’ A


classe dá uma resposta afirmativa.”
(RA-18)

O procedimento acima exemplificado, de promov er a brev e


discussão e/ou reflexão a respeito da mensagem contida na frase, ocorreu
de modo não sistemático. A algumas frases foi dedicada maior atenção,
enquanto outras apenas eram lidas pela professora em v oz alta.
Algumas frases eram dedicadas aos temas da amizade e da relação
com os colegas. A amizade foi altamente v alorizada, como algo muito
importante. Respeito e afeto eram os sentimentos que dev eriam permear
essa relação na qual as brincadeiras eram permitidas e as brigas,
condenadas. É interessante observ ar que, enquanto em algumas frases
aparece a v alorização do cultiv o da amizade, em outras é registrada a
desv alorização das conv ersas entre os alunos.
Os temas religiosos, algumas v ezes trazidos também pelos alunos
ressaltam a importância da fé, da oração e da crença em Deus,
apresentado como o responsáv el pela v ida, pela amizade. Durante um
mês, as frases foram constituídas por ditados populares e logo em seguida
os temas iniciais foram retomados.

Essas frases indicav am aos alunos como a escola esperav a que eles
fossem e procedessem: dev iam ser educados, atenciosos, caprichosos,
responsáv eis, prestar atenção às aulas, cuidar de seus materiais escolares.
Dev iam amar a natureza, respeitar seus amigos, gostar de estudar e
acreditar em Deus, bem como, ser educados e inteligentes. Não dev iam
mentir e nem brigar com seus colegas.

Ao conter tais frases, o caderno tornav a-se um depositário de um


conjunto de características que comporiam o papel de um bom aluno.

Heller (2000) descrev e que o homem nasce em um mundo no qual


há usos, v alores e reações que já estão pré-determinadas. É necessário que
ele os aprenda, para que se insira na conv iv ência social. A autora aponta,
ainda, que “no dev er-ser, rev ela-se a relação do homem inteiro com os seus
OS C ADERNOS ESCOLARES 79

‘dev eres’, com suas v inculações, sejam essas econômicas, políticas, morais
ou de outro tipo”.

Os cadernos com suas frases tornam-se um dos v eículos utilizados


pela escola para comunicar às crianças qual é o papel do “aluno”. Assim,
por meio das frases, os cadernos tornam-se pequenos receituários, nos quais
os alunos encontram informações sobre formas de agir, v alores a adotar,
formas de se relacionar que são bem v istos e esperados pela escola. São
informações que os introduzem no meio escolar.

3.6. A aparência dos cadernos

A aparência dos cadernos foi um item citado de modo unânime no


contexto escolar. Professores, alunos, pais e coordenação da escola
manifestaram-se, ao longo da pesquisa, sobre esse tema. Hav ia uma
constante preocupação para que os cadernos mantiv essem-se limpos, bem
conserv ados, completos e bonitos.

Logo nos primeiros contatos entre a professora e os pais de alunos


tratou-se desse assunto. Ana lembrou, durante a primeira reunião de pais e
mestres, que muitos dos cadernos não estav am encapadas, enfatizou a
importância de que essa medida fosse tomada, e pediu aos pais que
explicassem aos filhos sobre a importância de lav ar as mãos antes de
pegarem os cadernos. Uma das mães presente no encontro manifestou a
sua preocupação com o fato de o filho estar usando um caderno v elho.

Durante as aulas também foi freqüente a professora chamar a


atenção dos alunos para que mantiv essem os cadernos bem cuidados,
limpos, sem a presença de páginas rasgadas e com “letra bonita”. Além
das recomendações, também foram observ ados elogios às iniciativ as dos
alunos em manter a boa aparência desse material, algo ilustrado por esse
elogio feito pela professora ao enfeite colado no caderno pelo aluno:
OS C ADERNOS ESCOLARES 80

“Horácio aponta a figura colada em seu caderno, para que a


professora veja. Ana responde: ‘Bonita a figurinha.’”

(RA-13)

Alice, outra professora da escola, que substituiu Ana em uma aula,


também demonstrou preocupação com a manutenção da boa aparência
dos cadernos dos alunos, e em ensiná-los como fazer isso. Ao precisar de
uma folha de papel pediu aos alunos da seguinte forma: “Alguém pode me
arranjar uma folha de caderno? De araminho para não estragar o
caderno.” (RA-24).

Houv e épocas nas quais a professora fazia av aliações dos cadernos


dos alunos. Para os bons cadernos era reserv ada uma figura com a
fisionomia de um palhaço alegre, enquanto nos maus cadernos era colado
um palhaço triste. Ana rev elou considerar predominantemente os aspectos
estéticos ao fazer essa av aliação. Apesar de usar esse critério, Ana
manifestou não considerá-lo o mais importante para a av aliação do bom
caderno:

“Pergunto a Ana quais são os critérios que ela tem utilizado para
decidir o que irá colar e escrever no caderno de seus alunos Ana
pensa um pouco e admite que acaba observando mais a questão
da estética ao avaliar os cadernos, logo acrescenta que não é a
estética o mais importante: ‘A criança não tem que ter letra bonita,
tem que ter letra legível.’”

(RA-14)

Ainda que houv esse ponderação e reflexão, por parte da professora,


a respeito do fato de a aparência do caderno ser um atributo de
importância inferior a outros, tais como a possibilidade de se comunicar
eficientemente por meio da escrita, v erifica-se que manter o caderno
bonito, passou a ser uma das preocupações dos alunos. As crianças
OS C ADERNOS ESCOLARES 81

passaram a considerar o aspecto estético como um dos principais fatores


que compõem um bom caderno.

“Pergunto a Hugo como deve ser um caderno. E ele diz: ‘Tem que
ser bem cuidado.’”

(RA-23)

“Pergunto a Daniel: ‘O que tem num caderno bom?’

Daniel responde: ‘Letra bonita.’ (...)

Continuo perguntando: ‘O que mais que tem num caderno bom?’

Daniel: ‘É... colorido.’”

(RA-27)

Essa preocupação nem sempre se rev ela na aparência dos


cadernos, mas está presente até mesmo nos alunos considerados mais
desleixados. Como exemplo apresenta-se João, um aluno que ao longo do
ano sempre aparentou preocupar-se pouco com seu caderno e com as
ativ idades escolares de modo geral. Seu caderno caracteriza-se por ter
poucas lições completas, e por ser desorganizado:

“Pergunto: ‘João, seu caderno é um caderno bom?’

João: ‘Caderno bom? Precisa encapar meu caderno.’

P: ‘Se encapar ele vai ficar bom? (ele faz sinal afirmativo com a
cabeça)

A conversa sobre o caderno de João prossegue e, ao final, ele


retoma sua preocupação com a capa do caderno:

J: ‘Falá pra minha mãe encapá.’”

(RA-27)
OS C ADERNOS ESCOLARES 82

Alguns dias antes, João hav ia demonstrado preocupar-se com o


aspecto estético de seu caderno:

“João prossegue conversando comigo, vira-se para trás (onde


estou sentada) e começa a me ex plicar por que o seu caderno
está amassado e com orelhas. Ele me pergunta: ‘Sabe por que o
meu caderno tem orelhas?’ Respondo que não, e ele ex plica:
‘Porque a mochila é pequena, e quando fecha, amassa.’”

(RA-23)

Era comum os alunos considerarem seus cadernos feios, fosse por


estarem sujos, amassados ou por terem parte da capa esfolada. Nesses
casos a v ergonha, manifestada pela recusa em mostrar o caderno ou por
uma série de explicações para justificar a “feiura”, estav a quase sempre
presente.

Concluindo, percebemos que ter um caderno bem cuidado,


colorido, preenchido de modo colorido e com letras bonitas, não fazia de
uma criança um bom aluno, mas contribuía para que o aluno fosse bem-
v isto no contexto escolar. As crianças perceberam isso, e passaram a tomar
prov idências para que os cadernos tiv essem bom aspecto. Quando as
prov idências não chegav am a ser tomadas, v erificav a-se que, ao menos, a
preocupação com a questão estética estav a presente.

3.7. Os cadernos e sua terminalidade

O fim dos cadernos: esta foi uma situação bastante rev eladora sobre
os significados construídos para esses objetos, ao longo de sua utilização. Os
cadernos chegav am ao fim quando as suas folhas estav am todas
preenchidas, quando eram perdidos ou inutilizados.
OS C ADERNOS ESCOLARES 83

As duas últimas situações citadas, de perda ou inutilização do


caderno, foram bastante raras; ocorreram apenas com Sev erino.
Primeiramente, em meados de junho (RA-17), foi observ ado que Sev erino
estav a utilizando um nov o caderno. Época que coincidia com os primeiros
términos de cadernos ocorridos nessa sala de aula. O fato de Sev erino
também utilizar um caderno nov o causav a estranheza, pois, dev ido às suas
dificuldades, era raro que ele conseguisse finalizar a execução de alguma
ativ idade solicitada. Desse modo, em seu primeiro caderno era possív el
encontrar apenas tentativ as, ora melhor, ora pior sucedidas, de realização
de cópia da data e a colagem das ativ idades mimeografadas, que nem
sempre eram completadas. Seu caderno tinha menos conteúdos que os da
maioria de seus colegas; portanto, não seria possív el que tiv esse terminado
a possibilidade de utilização desse material. Quando questionado a respeito
do caderno antigo respondeu: “Já era”. Contou inicialmente que o pai teria
queimado, pois já não prestav a mais. Nov amente houv e oportunidades
para conv ersar mais sobre o destino daquele caderno, e Sev erino contou
outra v ersão, confirmada por sua mãe: que o caderno teria sido queimado
por ele próprio, depois que sua irmã menor o rasgou. Também foi Sev erino o
único aluno que contou ter perdido um caderno, fato relatado por ele
próximo ao final do ano. Sempre que o uso do caderno anterior era
impossibilitado um nov o caderno era disponibilizado, ora pela professora,
ora pelos pais, para que o aluno pudesse acompanhar as ativ idades
desenv olv idas em classe.

Quanto aos demais alunos, foi possív el v erificar que passav am a


utilizar cadernos nov os quando as folhas dos antigos esgotav am-se. Vários
foram os destinos que os alunos relataram ter dado aos seus cadernos
antigos:

“Perguntei pelo caderno antigo, e Eduardo disse: ‘Brinquei de


escolinha com minha irmã.’”
(RA-25 )

“Pergunto a Renato: ‘E o caderno antigo?’


R: ‘Tá em casa.’
OS C ADERNOS ESCOLARES 84

P: ‘E o que você vai fazer com ele?’


R: ‘Não sei.’
P: ‘Onde ele está?’
R: ‘Na minha casa.’
P: ‘Em que lugar?’
R: ‘No meu guarda-roupa.’
P: ‘E você já mex eu nele?’
R: ‘Não, não posso.’
P: ‘Por quê?’
R: ‘Para não cair as folhas.’
P: ‘Até quando você vai guardar?’
R: ‘Não sei.’
P: ‘Até quando você ficar grande?’
R: ‘Se não cair as folhas.’
(RA-25)

“Pergunto a Vanderlei sobre o que ele fará com seu caderno


quando acabar, e ele diz que vai jogar fora, pois ‘tá velho, não
serve mais’. M ostra uma folha em branco e diz que essa serviria.”

(RA-17)

“Pergunto, ainda, a Toni para que ele usará o caderno antigo,e ele
me responde que vai mostrar para o primo. Pergunto o que ele
mostrará, e ele conta que vai mostrar a letra de mão que fez, diz
que houve uma vez em que fez uma letra de mão tão boa, que
acha que nunca mais conseguirá fazer igual. Pergunto por que ele
quer mostrar isso ao seu primo, e ele diz que talvez ajude o primo a
fazer letra de mão.”

(RA-25)

“Quando ele (Eduardo) vai voltando para sua carteira me mostra a


contracapa de seu caderno, onde escreveu o nome de todos (ou
pelo menos de muitos) os alunos da sala, o título colocado por ele é
‘colegas da 1 aB’. Quando converso com ele, mais adiante,
aproveita para acrescentar o meu, depois de escrever meu nome
OS C ADERNOS ESCOLARES 85

escreve o de Ana. Pergunto por que ele escreveu os nomes e ele


diz que é para lembrar os colegas. Pergunto de quem foi a idéia,e
ele diz: ‘A idéia foi minha.’”

(RA-27)

Foram apresentados cinco exemplos de destinos dados ou


planejados, pelos alunos, para cadernos que acabam: brincar, guardar
como algo intocáv el, jogar fora, utilizar para o aprendizado ou para
recordar algo.

As duas últimas formas citadas foram as mais raras. Somente os alunos


apresentados referiram-se aos cadernos antigos como algo que tiv esse um
conteúdo que pudesse ser aprov eitado. Toni destacou a possibilidade de
que o seu trabalho pudesse serv ir como modelo para outra criança, e
Eduardo utilizou-se do caderno para registrar o nome pessoas queridas,
preocupado com a possibilidade de lembrá-los.

Exceto esses dois alunos, quando as crianças falav am do caderno


usado como algo que guardasse uma possibilidade de utilização, quase
sempre, referiam-se aos espaços em branco ou às folhas que não hav iam
sido utilizadas. Desse modo, a utilidade residiria no objeto caderno, e não no
seu conteúdo, no material de registro construído ao longo de seu uso. Essa
mesma significação aparece nas referências ao caderno antigo que serv e
para brincar, já que os alunos brincam com as folhas em branco.

Percebe-se que era atribuído ao caderno v alor enquanto objeto que


serv ia de suporte para a realização de ativ idades, para o exercício. Porém,
o produto desse trabalho, registrado nas suas páginas, deixav a de ter v alor
ou utilidade com a finalização desse material. Essa efemeridade atribuída
ao caderno fica ainda mais ev idente nas freqüentes declarações dos
alunos que pretendiam jogá-los fora quando não fossem mais utilizados na
escola.
CAPÍTULO 4

A CRIANÇA E SEU CADERNO: DUAS HISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO

Eduardo e Sev erino foram os dois alunos selecionados para ilustrar,


de modo mais abrangente, dinâmico e completo, como se dão os
aprendizados, os manuseios, os usos e as atribuições de significados aos
cadernos. Ou seja, as histórias dessas duas crianças foram utilizadas para
que se pudesse acompanhar como se constituem as funções e os
significados dos cadernos, em sua utilização.

Para descrev er, cuidadosamente, como cada um desses alunos se


apropriou do caderno ao longo do ano, fez-se necessária a utilização de
informações relativ as às histórias pessoais, à escolarização, às relações com
o saber, às personalidades e às estratégias utilizadas para agir e cumprir
tarefas escolares.

A escolha de Eduardo e Sev erino não foi casual. Acreditou-se que


esses dois alunos poderiam ilustrar, de forma intensa, os modos de uso e
relação com os cadernos identificados, também nos demais alunos dessa
sala.

Eduardo e Sev erino eram crianças diferentes entre si. Suas trajetórias
na primeira série também foram bastante desiguais, chegando a ser
opostas. O primeiro era bastante extrov ertido, falante e destacou-se por ser
um dos melhores alunos da sala de aula; o segundo, por sua v ez, mostrou-se
muito introv ertido, introspectiv o, calado, e tev e baixo aprov eitamento
acadêmico.

As diferenças também caracterizaram as relações desses dois alunos


com seus cadernos. Eduardo tev e o caderno como um bom companheiro
ao longo da primeira série: utilizou-o para registrar aprendizagens e
emoções, podendo estabelecer uma relação de carinho com esse
material. Sev erino, por sua v ez, tev e o caderno como testemunha e prov a
de seu insucesso escolar, algo que contribuiu para que a sua relação com
esse material fosse marcada pelo sofrimento.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 87

Considerou-se que essas diferenças, manifestadas e v iv idas no


mesmo contexto de ensino, seriam úteis para a apreensão e discussão de
possibilidades existentes no uso do caderno.

4.1. Eduardo e o carinho presente no caderno16

“Eduardo vai à frente da sala de aula ler um livro. Fica de pé com o


livro na mão, todas as atenções voltadas para ele. (...) Ele lê cada
página e, em seguida, mostra as figuras para toda a classe. Está
muito empenhado, e esforça-se por fazer de modo correto e
completo. Em alguns momentos a leitura fica lenta, tornando difícil
a compreensão da história, mas de modo geral, lê com
desenvoltura, conseguindo manter a atenção da platéia que se
mantém silenciosa e atenta.”

(RA-19)

Era início de agosto, época na qual poucos dos alunos da primeira


série observ ada eram capazes de ler, quando Eduardo propôs a Ana fazer
a leitura de um liv ro para toda a sala. Após ter sua proposta aceita pela
professora, Eduardo lev ou o liv ro para casa e dedicou-se a ensaiar a leitura.
No dia 10 de agosto foi à frente da sala e leu em v oz alta, para todos os
seus colegas, com propriedade e desinibição, uma história sobre as
peripécias de três tigres.

Essa situação rev ela algumas das características de Eduardo: bom


aluno, que se destacav a por aprender os conteúdos escolares mais
rapidamente que a maioria de seus colegas, e que apreciav a a
oportunidade de expor seus conhecimentos. Ousado, extrov ertido, disposto
a participar ativ amente das ativ idades desenv olv idas em sala de aula;
capaz de tomar iniciativ as, e de propor situações.

16
As informações que se seguem foram obt idas a part ir das observ ações realizadas em sala
de aula, e da análise de cadernos do aluno, que abrangem o período de 5 de junho a 10 de
agost o, e de 8 de nov embro a 13 de dezembro.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 88

Essas características faziam com que Eduardo fosse um menino que


chamav a a atenção das pessoas. Seu jeito falante e desinibido lhe garantia
popularidade na escola; era bastante conhecido entre os alunos,
funcionários e professoras, ainda que nunca tiv esse sido aluno destas.
Parecia ser querido pelas pessoas e mantev e, quase sempre, uma
expressão sorridente e simpática.

Na sala de aula, estav a sempre pronto a emitir opiniões sobre fatos


ocorridos, contar histórias, fazer comentários sobre suas lições, denunciar
colegas que desrespeitav am regras ou que não cumpriam as tarefas
propostas, propor e conduzir ativ idades. Nas situações em que a professora
solicitav a que os alunos se manifestassem v erbalmente, sua participação
sempre foi das mais constantes. Sugeria ativ idades, dizia o que pensav a e
participav a assessorando a professora em ativ idades. Demonstrav a
satisfação ao assumir posições de destaque ou quando era incumbido, por
Ana, de alguma tarefa, tais como buscar o giz que acabou ou entregar as
lições de casa aos alunos.

“Eduardo me mostra sorridente sua camiseta com a frase que


acabava de ser escrita na lousa. Perguntei: ‘Você deu a frase?’,ele
faz que sim com a cabeça.”

(RA-23 - situação em que Eduardo fica orgulhoso por ter sugerido a


frase do dia a ser colocada na lousa)

Eduardo era tido pela professora como um dos melhores alunos da


sala, tendo sido um dos seis alunos que chegaram ao fim do ano
classificados como ortográficos, em relação ao nív el de desenv olv imento
na alfabetização. Costumav a cumprir corretamente tanto as ativ idades
desenv olv idas em sala de aula, quanto as lições de casa.

Para ilustrar como Eduardo era v isto pela professora, cabe relatar
uma situação na qual Ana expressou v erbalmente algo sobre ele. Em um
dos últimos dias de aula, outra professora da escola, Lilian, entrou na sala de
aula de Ana para dar um recado. Eduardo chamou Lilian para mostrar-lhe
seu caderno. Ao perceber essa situação, Ana disse algo a Eduardo que
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 89

parece ser rev elador a respeito de sua opinião sobre ele: “Nada de cair
com a Lilian na segunda, v ai ficar comigo pra não me dar trabalho.” (RA-
29). Fica ev idente o quanto Ana gostav a de ter Eduardo como aluno, ao
manifestar a intenção de continuar a ser sua professora no próximo ano.
Chamav a a atenção, especialmente, a característica de Eduardo
ressaltada pela professora: ser um aluno que não “dá trabalho”.

As características pessoais de Eduardo ajudav am muito para que ele


fosse bem-v isto na escola, e por sua professora. Eduardo demonstrav a uma
constante preocupação com o produto final de suas ativ idades escolares.
Preocupav a-se tanto com a questão estética, quanto com o fato de serem
feitas corretamente. Dessa forma, realizav a aquilo que era proposto com
correção e boa qualidade estética com bastante independência,
requerendo pouco auxílio da professora.

Ainda que o empenho em cumprir corretamente as tarefas estiv esse


sempre presente, Eduardo mostrav a-se crítico em relação ao tipo de
ativ idade que era proposta. Algo que ficou ev idenciado na conv ersa entre
a pesquisadora e o aluno, a seguir reproduzida:

“E: ‘Você fazia lição quando era pequena?’


P: ‘Eu fazia, por quê?’
E: ‘É ruim, né?’
P: ‘É, por quê?’
E: ‘Porque tem que copiar, copiar desenho cansa... Ler é mais
legal.’”
(RA-19)

O caderno de Eduardo caracterizav a-se por ser bastante completo.


De modo geral, ele copiav a todas as informações passadas na lousa, e
realizav a as ativ idades propostas. A partir do meio do ano passou a
escrev er com letra manuscrita, algo bem v isto tanto pelos alunos, quanto
pela professora.
Ana, por sua v ez, acompanhav a com certa freqüência as produções
realizadas no caderno por Eduardo, o que foi rev elado pela constante
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 90

presença de grandes letras C, utilizadas para indicar que os exercícios


foram feitos corretamente, como v emos na figura que segue:

Figura 4 – Correção de somas feit a pela professora no caderno de Eduardo.

Eduardo chegou ao final do ano demonstrando grande familiaridade


com o uso do caderno e com as regras para seu uso. Utilizav a as folhas
seguindo corretamente a seqüência temporal, sem deixar folhas
incompletas ou em branco; em geral, tomav a decisões corretas a respeito
de quando era necessário, ou não, deixar linhas em branco em seu
caderno. Ao copiar da lousa, conseguia distinguir quando era necessário
seguir fielmente a div isão em linhas feita pela professora no quadro negro, e
quando era possív el adequar a cópia ao tamanho da linha de seu
caderno. Algo que pode ser observ ado na figura abaixo, que mostra o
modo como Eduardo copiou algo que se apresentav a da seguinte forma
na lousa, em 9 de nov embro:

“O TRÂNSITO

O TRÂNSITO É O MOVIMENTO

DE PESSOAS E VEÍCULOS NAS RUAS E

ESTRADAS.

OS SINALEIROS OU SEMÁFO-
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 91

ROS SÃO SINAIS QUE DEVEM

SER RESPEITADOS PARA EVITAR

ACIDENTES.”

Figura 5 – Cópia realizada por Eduardo de t ex t o, inicialment e, apresent ado na lousa.


A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 92

A cópia de Eduardo mostra que ele era capaz de copiar em letra


manuscrita aquilo que foi colocado na lousa em letra de forma, ainda que
em alguns momentos v oltasse a utilizar este último tipo de letra. Pode-se
perceber também que a div isão em linhas utilizada pelo aluno obedecia ao
espaço disponív el em seu caderno, diferenciando-se do modo como hav ia
sido feito na lousa. A pintura de algumas linhas com lápis de cor rev ela
preocupação estética e um modo personalizado de utilização do caderno.

A forma diferenciada como o aluno realizav a a tarefa,


aparentemente muito simples, de reproduzir em seu caderno o pequeno
texto escrito na lousa, mostra sua familiaridade tanto com a tarefa, quanto
com o uso do caderno.

Os bilhetes apareciam no caderno de Eduardo de modo bastante


peculiar. Sob esse aspecto, o caderno do aluno destacav a-se e
diferenciav a-se dos pertencentes aos demais colegas. Não hav ia bilhetes
comunicando atos de indisciplina, e não realização, ou realização parcial,
de tarefas escolares. Foi encontrado apenas um bilhete fazendo
comentários sobre a ativ idade realizada (05/12).

Figura 6 – Coment ários escrit os pela professora no caderno de Eduardo, sobre seu
desempenho em um dit ado.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 93

O comentário acima dizia respeito a um ditado, no qual Eduardo


acertou sete de dez palav ras, tendo cometido erros ortográficos nas
demais. A letra manuscrita, utilizada pelo aluno, criav a, em alguns
momentos, dificuldades de compreensão que justificav am o alerta da
professora em relação à qualidade da letra.

O fato de não ser comum receber bilhetes, não liberou Eduardo da


preocupação com esse tipo de repreensão. Algo que pode ser
exemplificado por sua atitude em 29 de nov embro (RA-27): “enquanto os
alunos, sob o comando da professora, ensaiav am uma música que seria
cantada na festa de encerramento do ano, Eduardo recortav a palavras de
uma rev ista, e colav a os pedaços de papel em seu caderno. Ao ser
questionado sobre a razão de estar recortando pedaços da rev ista
respondeu: ‘Estou terminando a lição de casa para não lev ar bilhete.’” (RA-
27).

Os pais de Eduardo faziam uso do caderno de modo particular e


interessante, não v erificado no caderno de nenhum outro aluno da sala de
aula observ ada 17. Em algumas situações a mãe de Eduardo mandou
recados, por escrito, nas folhas dos cadernos, que desse modo tornav am-se
efetiv amente v eículos de comunicação entre a família e a escola.

“Bom dia Ana tudo bom


Ana aque horas faz matricula
pode ser as 7 da manha porque
é o único horário que eu poso ir
um abraço”
(dia 04/12 reprodução do conteúdo de bilhete enviado pela mãe
de Eduardo para a professora)

Além de ser uma criança que se destacav a por suas atitudes e


iniciativ as, Eduardo diferenciav a-se por fazer uso do caderno de modo

17No caderno de alguns out ros alunos t ambém foram encont rados bilhet es escrit os pelos
pais. No ent ant o, est es se diferenciav am dos encont rados no caderno de Eduardo, por
consist irem basicament e em respost as a algo escrit o, ant eriorment e, pela professora.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 94

peculiar. Alguns aspectos, que serão apresentados a seguir, rev elam o


quanto o caderno desse aluno era utilizado de modo pessoal.

Para que serv e um caderno quando acaba? Esta foi uma das
perguntas mais freqüentemente feita aos alunos ao longo da pesquisa. O
destino dado pelos alunos ao caderno, após o fim de sua utilização, parece
ser bastante rev elador a respeito das funções e significados construídos, ao
longo do uso e preenchimento, em relação a esse material. Eduardo
respondeu a essa pergunta de forma peculiar e rev eladora:

“Converso com Eduardo sobre os nomes dos alunos da sala que ele
escreve na contracapa de seu caderno; ele continua
completando com os nomes que faltam, vai olhando para a sala e
anotando:
P: ‘Pra quê vai servir fazer assim?’
E: ‘Quando... Quando eu tiver... Quando eu sair da escola,
pra eu lembrar deles.’
P: ‘Ah... O que você vai fazer com esse caderno quando
você sair da escola?’
E: ‘Vou guardar ele.’
P: ‘Vai guardar... E como você vai fazer para lembrar dos
seus colegas?’
E: ‘É... Tá escrito aqui, eu lembro o nome deles.’
P: ‘Você vai olhar? (Ele acena afirmativamente com a
cabeça.) Onde você vai guardar?’
E: ‘No meu guarda-roupa. Quando eu sentir saudade... (ele
continua escrevendo o nome de um colega dizendo em voz alta as
letras) Como é o seu nome?’
P: ‘Anabela. (Eduardo escreve meu nome em seu caderno,
também) Quando você sentir saudades de mim você vai olhar aí
também?’
E: ‘Vou... Legal.’ (ele começa a escrever o nome da
professora, vai soletrando em voz alta).
P: ‘E quando você guardar seu caderno lá no guarda-
roupa, você vai olhar ele pra mais alguma coisa, além de você
lembrar dos seus colegas?’
E: ‘Vou... Posso lembrar do que eu escrevi.’
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 95

P: ‘Hum...’
E: ‘Lembrar o que eu aprendi... Aqui tá o nome da minha
namorada, sabe?’ (Eduardo mostra algo que eu já havia visto em
outra ocasião: há o nome de uma menina da sala e uma
declaração de amor)
P: ‘Ah, mas... É aqui da sala?’
E: ‘É.’ (resposta rápida)
P: ‘Tá aí?’
E: ‘Tá ali.’ (Eduardo indica que ela está um pouco atrás de
nós)
P: ‘Ela sabe que é sua namorada? (ele estala a língua em
sinal negativo) Não?’
Eduardo continua escrevendo o nome de alguns colegas,
sempre falando em voz alta os nomes: Jéssica, Angélica...
E: ‘É bem legal lembrar dos amigos, né?’
P: ‘O quê?’
E: ‘É legal lembrar dos amigos.’
P: ‘Eu acho que é bem legal lembrar.’
E: ‘Jéssica...’ (continua escrevendo os nomes dos colegas)”
(RA-27)

O diálogo acima mostra que, diferentemente de seus colegas,


Eduardo conseguia v islumbrar utilidades para o caderno e seu conteúdo,
mesmo depois que o ano acabasse, e esse material deixasse de ser
utilizado. Aquilo que foi escrito por ele e as lições poderiam serv ir para
lembrá-lo do que fez e para recordar aquilo que foi aprendido. Os colegas
e a namorada também poderão ser lembrados a partir do caderno.

Era usual, na sala de aula em questão, que a primeira folha do


caderno fosse utilizada para fazer um desenho. Não hav ia modelos nem
padronizações, ficav a a critério do aluno a decisão sobre o quê e como
desenhar. Assim como os demais alunos, Eduardo fez um desenho nessa
primeira folha: uma casa, árv ores, personagens de desenho animado. Mas
muito além disso, Eduardo utilizou a contracapa para colocar o nome dos
seus colegas de sala. Sob o título “colegas da 1a B”, foram colocados os
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 96

nomes de 28 alunos, o nome da professora e ainda o nome da


pesquisadora 18.

Também em uma página inicial de seu caderno, Eduardo colocou o


nome de seus pais. Ao lado disso desenhou um coração atrav essado por
um flecha com o seu nome e o nome de outra aluna da sala, que segundo
Eduardo, era sua namorada. Junto ao coração hav ia algumas frases
escritas por ele:

Figura 7 – Declaração de amor escrit a por Eduardo em seu caderno.

Ao utilizar o caderno Eduardo inclui nesse material didático não


somente conteúdos escolares relacionados com o aprendizado e com o
cumprimento de tarefas escolares, mas também marcas pessoais, tais
como: desenhos, nomes de pessoas queridas, expressões de sentimentos
por escrito. Dessa forma, o caderno, além de ter a função de guardar
aprendizados e realizações acadêmicas, serv iu ao registro de sentimentos,
para a recordação de pessoas com as quais o ano foi passado. Ou seja, o
caderno passou a ter significados, pessoais e afetiv os, marcadamente
positiv os.

Ao final do ano, a pesquisadora solicitou que Eduardo lhe


emprestasse o caderno por algum tempo. Por algumas v ezes, no ano
seguinte, ao encontrar a pesquisadora, Eduardo perguntou pelo caderno,
querendo saber em que momento poderia tê-lo de v olta. Esse tipo de

18 A imagem da cont racapa do caderno de Eduardo, assim como out ros t rechos que
incluíam nomes de pessoas, foram omit idos para que se preserv asse a ident idade dos
part icipant es da pesquisa.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 97

preocupação não foi manifestado por nenhum dos outros alunos que
também cederam temporariamente seus cadernos à pesquisadora.

Prov av elmente, a preocupação de Eduardo com seu caderno


estav a relacionada com o conjunto de significados atribuídos ao caderno.
É possív el identificar que ao longo da primeira série o caderno adquiriu para
esse aluno uma importância especial, passando a ser considerado um
objeto querido, útil, merecedor de preocupações, de cuidados e do qual
ele não gostaria de se desfazer.

4.2. Severino e o sofrimento no aprender 19

Fisicamente Sev erino rev elav a suas origens nordestinas. Chegou a ser
apelidado por seus colegas de classe de “cabeça amassada” e de
“cabeça de panela”. Não fosse pela pequena estatura, sua aparência
pouco lembraria uma criança de 7 anos. Sua fisionomia rev elav a seriedade,
e sua postura, sobriedade. Raramente conv ersav a com os colegas, ou
env olv ia-se em brincadeiras. Passav a a maior parte do tempo só. Em sala
de aula estav a sempre sentado à sua mesa, tendo à frente os materiais
escolares env olv idos nas tarefas propostas. Raramente adotav a o
procedimento, bastante comum nessa classe, de mostrar à professora o
resultado de cada ativ idade cumprida. No recreio fazia as refeições,
andav a pelo pátio e, muito raramente, brincav a com os colegas. Falav a
pouco, sua v oz era rouca e grav e. Em geral, Sev erino respondia de forma
brev e quando alguém lhe dirigia a palav ra.
Até mesmo quando participav a de brincadeiras nas quais tinha uma
participação bem sucedida, sua seriedade era mantida. Algo bem
exemplificado na cena que apresentamos a seguir, na qual os alunos da
sala de aula foram div ididos em dois times. Um aluno por v ez dev eria quicar
uma bola de basquete por alguns metros. O grupo que terminasse primeiro

19
As informações que se seguem foram obt idas a part ir de: observ ações realizadas em sala
de aula; v isit a realizada à casa de Sev erino; e análise de cadernos do aluno.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 98

seria o v encedor. Sev erino foi o último do grupo v encedor, sendo, portanto,
responsáv el pela concretização da v itória de sua equipe:

“Severino bate a bola baix inho, sempre de cara amarrada,


persistindo eficientemente, e fechando a vitória de seu time. Ao
chegar não comemora. M antém a mesma ex pressão e reclama de
algo que dói. Seus companheiros de time comemoram bastante.”
(RA-25)

A família de Sev erino era prov eniente de Pernambuco. Vieram para


São Paulo em busca de uma v ida melhor. No tempo em que se realizav a o
trabalho de campo do presente trabalho morav am em um barraco
pequeno para o casal e os seis filhos. O caminho até a escola lev av a cerca
de 20 minutos a pé.
O pai trabalhav a como entregador de pizzas, cursou até a quinta
série do ensino fundamental. Era ele o responsáv el por acompanhar o
desempenho acadêmico dos três filhos que estudav am. Sev erino era o
segundo filho, e estav a tendo dificuldades na escola, assim como o irmão
mais v elho, que cursav a a segunda série. O pai de Sev erino costumav a
acompanhar a execução das lições de casa. Demonstrav a conhecer o
conteúdo dos cadernos ao fazer reclamações à professora. No início do
ano reclamou de que no caderno do filho só hav ia “coisas que nem letras
eram”. Também era possív el encontrar nos cadernos de Sev erino, em
algumas ativ idades, a letra de seu pai.
Durante a primeira semana de aulas, Sev erino era um aluno que
chamav a a atenção de todos. Chorav a durante quase todo o tempo que
passav a na escola, não conv ersav a com nenhum outro aluno, nem com
adultos que, porv entura tentassem acalmar o seu choro. Os colegas de sala
observ av am Sev erino, ora com curiosidade, ora comov idos pelo sofrimento
expresso pelo companheiro de sala:

“Severino volta a ficar em pé ao lado de sua carteira, soluçando.


Um aluno se aprox ima e, carinhosamente, pergunta: ‘Por que você
está chorando?’. Ele não responde. O aluno se afasta e ele
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 99

continua soluçando e pintando o desenho. Eduardo se aprox ima


da mesa e olha para ele curioso.”
(RA-1)

Os adultos, professoras e funcionários, tentav am aproximaram-se, dar


algum tipo de acolhimento que pudesse aplacar tanta tristeza: ofereciam
colo, tentav am conv ersar ou propor alguma brincadeira. Nenhuma dessas
iniciativ as parecia ter bons resultados. Sev erino continuav a triste, isolado,
em seu choro silencioso.

“Severino chora. João diz: ‘Ele tá chorando.’ Ivana (professora que


substitui Ana, que se recupera de uma cirurgia) aprox ima-se dele e
diz: ‘O que está acontecendo?’ Alguém diz: ‘Ele tem problema de
vista, ele quer ir embora.’ Ivana conversa com ele. Ele soluça.
Coloca-o no colo e conversa com ele:
I: ‘Gosta de brincar?’
S: ‘Não.’”
(RA-1)

Ainda que nesse primeiro contato com a escola seu sofrimento fosse
ev idente, Sev erino cumpria, e participav a das ativ idades propostas, que
consistiam basicamente em desenhos e jogos.
Depois de alguns dias, os momentos de choro foram ficando mais
raros, a tristeza parecia ter diminuído, mas a sua expressão mantev e-se, até
ao final do ano, bastante séria; em raros momentos de descontração, era
possív el v ê-lo sorrir. O sofrimento, ainda que expresso de formas menos
explícitas, foi algo que marcou o primeiro ano de Sev erino na escola.
Aos poucos, Sev erino deixou de ser o aluno que mais chamav a a
atenção para ser um dos mais discretos da sala.
Seu desempenho acadêmico foi bastante fraco; ao final do ano, foi
classificado pela professora em relação à aquisição de conhecimentos de
leitura e escrita como silábico. Em relação à aquisição de conteúdos de
matemática a situação não foi melhor. No final do ano, Sev erino ainda não
conhecia a representação gráfica dos números de 1 a 10, como pode ser
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 100

v erificado no trecho a seguir, retirado de uma observ ação realizada em


dezembro, quando uma aluna auxiliav a Sev erino a realizar uma ativ idade:

“Severino resolve a folhinha com desenhos de dominós. A


quantidade de pintas de cada lado da peça de dominó deve ser
transformada em números, que devem, por sua vez, formar uma
conta de subtração. Rosana aux ilia. Observo por algum tempo o
processo. Rosana não parece em nenhum momento ensiná-lo a
fazer a conta. Apenas diz a Severino que número deve colocar em
que lugar. Anteriormente ele havia colocado números errados. Por
ex emplo, onde deveria ser posto cinco, colocou oito. O três foi feito
invertido (como se fosse a letra E maiúscula). Rosana apaga e faz o
dois que Severino não sabe fazer. Como nem sempre ele consegue
fazer o número a partir da indicação oral, algumas vezes ela indica:
‘Faz o dois, que nem esse.’ (apontando um anteriormente feito)”
(RA-28)

Não é possív el conhecer o primeiro ano de escolarização de


Sev erino, sem dedicar atenção aos seus cadernos e ao seu trabalho com
esses materiais.

Ao longo do ano, Sev erino utilizou v ários cadernos. Apesar do esforço


realizado ao longo da pesquisa para acompanhar os destinos dados a esses
materiais, nem sempre foi possív el obter informações sobre os fins dados aos
cadernos. O primeiro foi utilizado por mais tempo, tendo durado desde o
início do ano, até meados de junho.

“Severino também está com caderno novo. Pergunto: ‘E o antigo?’


Ele responde: ‘Já era.’ Investigo: ‘Onde tá?’ E ele responde: ‘Tá em
casa... M eu pai queimou.’ Continuo perguntando: ‘Por que?’
Severino responde: ‘Não prestava mais.’”
(RA-17)

Ainda inv estigando sobre o destino dado ao primeiro caderno, outras


informações foram obtidas:
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 101

“Severino folheia o seu caderno. M e aprox imo dele para conversar


e pedir o caderno emprestado.
Pergunto: ‘E o caderno antigo?’
S: ‘Já era.’
P: ‘O que aconteceu?’
S: ‘M inha irmã rasgou.’
P: ‘O que você achou?’
S: ‘Não gostei.’
P: ‘Por quê?’
S: ‘Porque não pode rasgar o coitado do caderno.’
P: ‘Você ia usar?’
S: ‘Ia escrever.’”
(mais adiante saberei que a irmã rasgou o caderno e, então,
Severino decidiu queimá-lo).
(RA-19)

Após essa conv ersa, houv e a oportunidade de realizar uma v isita à


casa de Sev erino. Nessa ocasião, uma v ersão mais completa sobre o fim do
primeiro caderno foi contada pela mãe de Sev erino. O menino estav a
presente e confirmou a v ersão relatada pela mãe. A irmã mais nov a, que
freqüenta a pré-escola, riscou e rasgou o caderno de Sev erino. Depois de
v er o resultado, Sev erino decidiu queimar o caderno.
Outros cadernos v ieram depois desse: um deles foi perdido, outro a
professora guardou após ter sido iniciado, o último foi cedido
temporariamente à pesquisadora. Sobre outros cadernos utilizados no
decorrer do ano não foram obtidas informações. No entanto, nenhum deles
foi utilizado em sua totalidade.
Essas informações poderiam sugerir uma atitude de descaso em
relação aos materiais escolares. No entanto, não foi isso que se pôde
v erificar. Uma situação ocorrida logo após as férias de julho pode ilustrar a
preocupação de Sev erino com seu caderno. A pesquisadora solicitou a
quatro alunos que lhe emprestassem seus cadernos por apenas um dia.
Todos entregaram os cadernos logo que a aula acabou, exceto Sev erino.
Ele disse que só emprestaria com a permissão de sua mãe. Dado que ela
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 102

não foi buscar o filho à escola, foi necessária a ida da pesquisadora até a
residência do aluno para que o caderno lhe fosse cedido.
Nos cadernos de Sev erino não foi possív el encontrar dias em que as
lições foram feitas de modo completo e correto. Em geral, hav ia
cabeçalho, ou pelo menos uma tentativ a do aluno para copiá-lo da lousa.
Algumas das folhas mimeografadas entregues aos alunos para serem
preenchidas e afixadas nos cadernos também foram coladas ao caderno,
mas nem sempre hav iam sido preenchidas. O dia 26 de junho será utilizado
para exemplificar a forma como as ativ idades elaboradas por Sev erino
costumav am ficar registradas em seu caderno.

Figura 8 – Trabalho realizado no caderno por Sev erino no dia 26 de junho de 2000.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 103

A figura anterior mostra a tentativ a de Sev erino de realizar as tarefas


apresentadas a seguir.
Inicialmente, dev eriam ser copiadas a data e a frase do dia:

“HORTOLÂNDIA 26 DE JUNHO DE 2000


SEGUNDA FEIRA
NÃO HÁ NADA M ELHOR OU M AIS IM PORTANTE DO QUE CULTIVAR
VERDADEIROS AM IGOS”

Após esse conteúdo, dev eria ter sido copiada da lousa a seguinte
ativ idade a ser realizada:

LIGUE:

UM 12
VINTE 40
DOZE 20
QUARENTA 1

Por fim, uma folha mimeografada contendo ativ idade na qual


palav ras dev eriam ser ligadas às respectiv as figuras, dev eria ser preenchida.

Nesse trabalho de Sev erino, realizado no meio do ano, momento em


que alguns dos aprendizados importantes sobre o uso do caderno já tinham
sido obtidos, é possív el v erificar que a data foi copiada sem algumas letras,
mas ainda possibilitando a identificação do dia em que foi realizada a
ativ idade. A frase foi copiada de forma que não permite sequer que se
suponha o seu conteúdo original. A tarefa a ser copiada da lousa para,
posterior resolução, não chegou a ser registrada. Hav ia uma observ ação
feita por escrito pela professora, denunciando que uma parte das
ativ idades propostas não hav ia sido feita 20. Por fim, folha mimeografada foi
colada conforme as indicações, no entanto é possív el perceber que há
poucos acertos na execução do exercício.

20 Apesar de Sev erino rarament e realizar as t arefas, e de o procediment o de escrev er


coment ários nos cadernos t er sido freqüent ement e adot ado por Ana, foram poucos os
bilhet es que encont rados no caderno desse aluno.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 104

Ao longo do ano foi possív el identificar mudanças importantes no


conteúdo registrado nos cadernos desse aluno. Nas primeiras semanas, o
caderno de Sev erino mostrav a apenas tentativ as, mal sucedidas, de cópia
do cabeçalho. Ainda não familiarizado com o formato de letras e números,
ele tentav a reproduzir as formas colocadas na lousa. Ao longo do ano,
Sev erino passou a conseguir obter mais sucesso nessa ativ idade diária,
chegando a conseguir, em alguns dias, concluir a cópia da data e da frase,
passando a dedicar-se às demais ativ idades propostas. Porém, com o
passar do tempo, um número maior de alunos passou a dominar a
ativ idade de copiar da lousa, o que possibilitou a Ana solicitar mais esse tipo
de tarefa dos alunos. Ao ter uma grande quantidade de conteúdos a
copiar, Sev erino acabav a por dedicar-se durante todo o tempo de aula a
essa tarefa, que na maioria das v ezes tinha sua execução priv ilegiada pela
professora. O resultado era que ele não realizav a nenhuma ativ idade mais
direcionada à aprendizagem de leitura e escrita ou de matemática. A
figura a seguir mostra uma cópia realizada em 12 de dezembro, um dos
últimos dias aula:

Figura 9 – Tent at iv a de cópia da t abuada do número 7, realizada por Sev erino.


A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 105

Na lousa hav ia uma representação, feita por meio de desenhos, da


tabuada do número 7. Pode-se v erificar no caderno de Solange, que foi
av aliado pela professora como feito corretamente, como era esperada que
fosse feita essa cópia.

Figura 10 – Cópia da t abuada do número 7 no caderno de Solange.

A cópia de Sev erino rev ela o quanto, ao copiar esse conteúdo,


pouco, ou até mesmo nada era aprendido sobre a tabuada do 7.
Analisemos a cópia da primeira seqüência. Em v ez de copiar 7 grupos de 1
elemento, Sev erino fez 10. O grupo final, que dev eria conter 7 bolinhas,
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 106

contém 11. As operações eram copiadas de modo confuso. O resultado


final do trabalho do aluno não possibilitav a que o conteúdo ensinado em
sala de aula pudesse ser retomado ou estudado.
Para que se possa conhecer o modo como foram realizados os
trabalhos desse aluno no decorrer do ano, apresenta-se, a seguir, uma das
manhãs de Sev erino em sala de aula 21:

“Quando chego à escola são cerca de 7h40. Os alunos acabaram


de tomar o café da manhã, e iniciam suas atividades. Luís está na
porta da sala, me viu chegando, e logo me cumprimentou: ‘Oi,
Anabela’. Quando entro na sala, outros me cumprimentam do
mesmo modo. Estão copiando da lousa a data e a frase do dia.
Ana não está na sala, os alunos estão sossegados, entretidos em
sua atividade. Pela primeira vez sento-me bem à frente da sala,na
fileira próx ima à porta. Lugar em geral ocupado por João (que
faltou) ou Toni. (...)

Na lousa, a data com um erro: 29, em vez de 30 de maio. A frase do


dia é ‘EU SOU CAPAZ DE SER M ELHOR DO QUE JÁ SOU’.

Passo a observar o trabalho de Severino mais de perto. Ele inicia o


trabalho de cópia em uma folha do caderno que está em branco.
Copia inicialmente o 2000 no canto superior direito da folha.

Ana chega depois de alguns minutos que estou sentada. M e diz oi,
quando entra na sala, e dá prosseguimento ao seu trabalho.
Pergunta aos alunos se conseguiram ler a frase. Luís diz que leu.

Eduardo anuncia a minha presença: ‘Professora, a Anabela’.

Ana responde: ‘Eu vi a Anabela’.

Severino prossegue escrevendo da direita para a esquerda. O


caderno bastante inclinado, quase invertido. Já fez várias letras,
apaga. Vira o caderno pra lá e pra cá, enquanto copia da lousa.

Ana aprox ima-se de mim com um papel na mão e diz: ‘Eu não
esqueci hoje’, e me entrega a prometida mensagem. Leio. A

21 Essa narrat iv a result ou de uma seleção de t rechos do relat o ampliado número 15,
elaborado a part ir de observ ação em sala de aula realizada em 30 de maio de 2000. Desse
relat o foram omit idos alguns t rechos por serem considerados pouco relev ant es para a
apresent ação de Sev erino.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 107

mensagem é bastante carinhosa e fala sobre as pessoas que


passam pela vida de outras, comparando-as a folhas de árvores.

Severino apaga novamente, me aprox imo, e verifico que o que


resta escrito no caderno é: M AO 2000. Quando me aprox imo ele
fica muito sério enquanto eu tento uma oportunidade para
conversar com ele. Continua virando muito o caderno. Faz, apaga.
Parece um trabalho ex austivo. Lucas copia, levanta-se. Renato já
terminou, seu caderno está embaix o da carteira.

Para os alunos que já terminaram Ana sugere que pintem a data no


calendário. Alguma aluna pergunta que dia é hoje e vários dão
sugestões de dias, 30, 31, 13; não me lembro se alguém chega a
dizer 29, mas essa variedade de datas sugerida pelos alunos me faz
pensar em qual é o significado para os alunos da data copiada no
caderno, afinal eles acabaram de copiar e não sabem bem em
que dia estamos. Sugere que os alunos vejam qual é o primeiro dia
sem pintar que aparece no calendário da parede da sala e assim
conseguem verificar que estão no dia 30. Ana se dirige à lousa e
percebe que fez a data errada. Logo apaga e coloca o dia certo e
pede: ‘Corrige todo mundo... É só apagar o numerozinho’. Severino
ainda não chegou ao número, prossegue copiando. Ora apaga
aqui, ora apaga ali, ainda está na primeira linha e não apaga
somente coisas que acabou de fazer, mas também algumas do
começo.

Rebeca se aprox ima de Ana para mostrar-lhe o seu caderno, Ana


diz: ‘Isso aqui tá parecendo A em vez de O... Senão fica SAU em vez
de SOU.’

Severino fica em pé ao lado da carteira e continua copiando.


Acredito que desse modo ele consiga ver melhor aquilo que está
escrito na lousa. Caderno sobre a carteira. Apaga uma letrinha e
continua.

Ana, pretendendo falar com a classe, pede que todos se sentem.


Diversos alunos estão em pé. Severino senta-se. M ex e em seu
envelope da APM , que está embaix o da carteira. Severino presta
atenção na fala de Ana sobre a festa junina. Continua copiando.
Parece estar terminando a primeira linha. Vejo um H. Apaga tudo
do H ao 2000. 8h10
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 108

Recomeça agora a copiar da esquerda para a direita. Está de pé e


vai fazendo.

Ana fala sobre as coisas que os alunos devem trazer para a festa
junina: prendas e alimentos. Cada aluno trará aquilo que puder,e a
cada coisa trazida será atribuída uma pontuação previamente
definida, e que Ana comunicou agora aos alunos. A classe que
obtiver a melhor pontuação terá direito a um passeio grátis.
Parece-me que ainda não está definido para onde será o passeio,
mas quando o prêmio é comunicado diversos alunos dão
sugestões: bosque, zoológico, Parque da M ônica.

Severino tem um lápis em cada mão. Ana vai dizendo quantos


pontos vale cada coisa. Fala das bebidas, pinga para o quentão,
vinho para o vinho quente. Alunos fazem um som e uma cara de
repugnância. Ana esclarece que não é para as crianças, apenas
para os adultos beberem: ‘só um pouquinho’. Severino continua
copiando sentado, não se manifesta em nenhum momento, ao
contrário da maioria dos alunos que faz comentários, diz o que vai
trazer, comenta sobre o passeio. Ele vira o caderno, parece estar
desenhando. Levanta o caderno e observa mais de perto, apaga
uma letra, sopra, termina a palavra HORTOLÂNDIA.

A conversa com a sala continua, os alunos querem saber o que


acontecerá se houver empate. Ana diz: ‘Se todo mundo fizer o
mesmo ponto, todo mundo vai’.

Horácio está com o caderno aberto, mas não copia, presta


atenção em Ana. Ninguém, ex ceto Severino, está copiando. (...)

Luís pergunta se o passeio vai ser de carro. Ana diz que vai ser de
ônibus.

(...)

Ana passa a ler com os alunos a data. Primeiro os alunos vão


nomeando as letras, e depois Ana passa a perguntar como ficam
algumas letras juntas: ‘E o L e o A? LA. Quando junta o N o que dá?’
Severino continua ainda apagando a primeira linha. Parece muito
ex igente e/ou crítico com seu próprio trabalho.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 109

Quase todos ajudam Ana a ler, todos olham. Severino não, apaga
de novo algo e continua copiando. Olha de perto, vira o caderno
prá lá e prá cá. Olha para a lousa. Olha para o caderno, apaga.

Ana continua, do mesmo modo lendo a frase. É perceptível a


diferença de desenvoltura dos alunos. Enquanto na data eles
‘lêem’ praticamente todas as sílabas, na frase têm alguma
dificuldade até mesmo para ler EU. A tarefa de leitura acaba
ficando mais por conta dos alunos que lêem melhor
(especialmente Luís). Os alunos nomeiam as letras, lêem algumas
sílabas, e Ana ajuda a ler as palavras. Em M ELHOR, Ana pergunta:
‘O que é isto?’ Referindo-se ao HOR. Alguns alunos dizem ‘or’ outros
respondem Hortolândia, reconhecendo o início da palavra.

Severino apaga algo na primeira linha.

Ana continua conversando com a classe: ‘Quem ex plica esta


frase?’

O primeiro a se manifestar é Eduardo que diz: ‘Posso cuidar mais do


caderno do que eu cuido.’

Luís diz: ‘Deve cuidar dos materiais.’

Patrícia: ‘Deve cuidar do material, fazer a lição e não fazer barulho


na escola.’

Eduardo: ‘Pode cuidar mais das nossas coisas do que já cuida.’

8h30. Severino passa para a próx ima linha e escreve o T. M e


aprox imo para ver qual foi o resultado da primeira linha:
HOTROLNDIA M AI DE 2000.

Pergunto a ele: ‘Posso ver?’ Ele me deix a ver. Pergunto: ‘Por que
você apagou o que tinha feito?’ Severino responde baixinho,quase
sem me olhar, sério: ‘Por que não deu certo.’ Pergunto: ‘Agora deu
certo?’ Faz que sim com a cabeça.

Severino olha para fora. As crianças do pré estão saindo da sala.


Sorri (algo muito raro).

A segunda linha prossegue bem mais rápido o resultado é: TE FEAR.


(...)
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 110

Um aluno começa distribuir uma folhinha com um tex to e duas


figuras para pintar.

Severino passa para a frase e copia corretamente a primeira


palavra: EU.

Olha para trás, vê que Toni pinta, e volta para seu caderno. Fica
longo tempo ‘desenhando’ o S, que ao final fica parecendo um Z
invertido, faz o O e o U rápido. Olha para sua própria folhinha.

A minha sensação, acompanhando o trabalho de Severino, é de


que ainda falta uma quantidade imensa de trabalho para que ele
possa terminar e pintar a folhinha. (...)

Severino volta ao caderno que vira pra cá, vira pra lá, copiando.
Renato pinta a folhinha. Horácio também pinta, mas mantém o
caderno aberto. (...)

Quando volto ao meu lugar verifico como anda a cópia de


Severino: EU SOU CAPZ DE. O resultado é sensivelmente melhor e a
velocidade maior.

Renato vai até Ana, que lhe diz que ele é responsável por Severino.
Renato se aprox ima de Severino e pergunta a ele onde está sua
folhinha, passam a procurar a folhinha que havia sumido. Renato se
afasta e Severino continua procurando.

Ana vai ler o tex tinho com os alunos. Começa letra a letra. Severino
encontra sua folhinha. Não acompanha a leitura, continua
copiando.

Horácio escuta.

Ana verifica a dificuldade de fazer os alunos acompanharem em


suas próprias folhinhas, e decide passar o tex to na lousa. ‘Vou
passar a musiquinha na lousa.’ (...)

Ana passa na lousa o tex to, e Luís lê para a classe


apontando na lousa.

Severino continua copiando: DE ERS M H a linha de seu


caderno acaba. Severino prossegue escrevendo, dentro do espaço
da espiral. Apaga parte daquilo que havia copiado no começo (que
estava correto!)
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 111

Tainara traz dois papéis para Ana, que diz para a classe: ‘Acharam
duas lições’.

Severino apagou uma parte que estava correta e prossegue


copiando. Não consigo ver claramente o que ele está fazendo,mas
parece-me que faz errado. Apaga toda essa linha.

Ana fala com a classe: ‘Nós vamos colar esta lição no caderno...
Embaix o da data.’

Severino faz novamente EU, e começa a pintar a lição. Me aproximo


da carteira de Severino, há um outro aluno utilizando sua carteira
como apoio para colar a lição em seu próprio caderno. Peço para
ver a música desse aluno, já colada. Pergunto a Severino o que ele
está fazendo, e ele diz: ‘Pintando.’ Pinta a baleia de verde forte e o
restante da folha de azul bastante forte. Pergunto se ele terminou de
copiar, e ele diz: ‘Depois eu termino.’ Pergunto se falta muito, e ele
faz que sim com a cabeça e indica na lousa: ‘Aquela última linha.’
9h10.

Essas cenas mostram os esforços de Sev erino para cumprir a tarefa.


Porém, algumas questões surgem, e ficam ainda sem resposta após essa
observ ação. Por que ele apagav a tanto? Por que usav a os procedimentos
descritos? Por que não parecia ficar satisfeito com o resultado, ainda
quando este não parecia ruim à pesquisadora? Foi necessário o
acompanhamento de outro de seus dias em sala de aula para que se
pudesse responder a essas perguntas. Nov amente repetiu-se esse
incansáv el e sofrido trabalho de cópia de algo colocado na lousa. Houv e,
então, esforço por parte da pesquisadora para conv ersar com Sev erino,
buscando compreender as suas razões para realizar a ativ idade desse
modo.

“Pergunto: ‘O que foi?’ E ele responde: ‘Eu não consigo’, procuro


compreender: ‘O que você não consegue?’ Ele não responde.
Insisto: ‘Copiar?’ E aí Severino conta o que eu acredito estar sendo
sua principal dificuldade: ‘A linha de lá [da lousa] é grande e essa
[a do caderno] é pequena.’”
(RA-16)
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 112

Desse modo, fica ev idente que as dificuldades de Sev erino


originav am-se em sua intenção de reproduzir aquilo que estav a na lousa,
exatamente do modo como estav a no modelo. Assim, quando uma frase
estav a colocada na lousa, em uma única linha, ele procurav a fazê-la
também em uma linha de seu caderno, tarefa que se rev elav a difícil na
maioria das v ezes, especialmente pelo fato de seu caderno ser pequeno e
de sua letra ser grande. Ainda assim, Sev erino prosseguia insistentemente
tentando; sempre bastante capaz de av aliar o seu próprio desempenho e
de v erificar que não estav a adequado àquilo que foi estabelecido como
ideal: a lousa.

Sua hipótese a respeito de como dev eria proceder não parece, de


modo algum, absurda. Inúmeras v ezes ao longo de todo o ano, foi dito e
repetido que os alunos dev eriam fazer em seus cadernos assim como
estav a na lousa. Esse seria o procedimento correto. Assim agia Sev erino no
relato apresentado; e foi buscando corresponder àquilo que lhe era
comunicado como o correto que ele foi criando div ersas estratégias para
copiar da lousa. Uma delas foi escrev er o início e o final da data para
depois completar o meio:

“_HOTROL__________________________________DE 200”

(RA-17)

Outra estratégia utilizada:

“Severino copia a data da lousa, vai copiando da esquerda para a


direita chegando até ao final da palavra ‘setembro’, percebo que
ele coloca 25 em vez de 4, que seria o correto. Depois que chega
ao final da palavra setembro, Severino passa a copiar da direita
para a esquerda, começando pelo 0 de 2000, fazendo assim:
HORTOLÂNDIA, 25 DE SETEM BRO DE 2000.”
(RA-20)
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 113

As estratégias foram ajudando Sev erino a conseguir copiar a data


mais rapidamente, para poder dedicar-se às demais ativ idades propostas
em sala de aula. Conseguir isso foi motiv o de satisfação:

“M e aprox imo dele e pergunto se conseguiu escrever o nome da


galinha, e ele diz que não. M as abre seu caderno e me mostra a
cópia de hoje da data e da frase. M e surpreendo pois a cópia está
completa. Severino acrescenta, com orgulho, ‘ fiz rapidinho’.”
(RA-22)

O trecho acima apresentado mostra que aos poucos Sev erino


adquiriu os conhecimentos básicos para a utilização do caderno e a
realização das tarefas cotidianas. No entanto, até que esses aprendizados
acontecessem, houv e uma perda significativ a. No trecho anteriormente
apresentado, percebe-se que a ativ idade proposta, que consistia em
escrev er uma história sobre uma galinha, não hav ia sido realizada; Sev erino
não tinha naquele momento conhecimentos suficientes para isso. Durante
muito tempo as atenções do aluno estiv eram v oltadas para a cópia,
enquanto outros conteúdos eram ensinados.

Ana chegou a afirmar que seria interessante que Sev erino pudesse
fazer nov amente a primeira série, assim ao iniciar o ano “já saberia mexer
no caderno”. (RA-21).

A relação entre a professora e Sev erino sofreu modificações ao longo


do ano. No início, chegaram a acontecer aproximações carinhosas e
acolhedoras:

“Severino chora. Eduardo: ‘Tia leva ele para casa dele. Ana
responde: ‘Não, não pode. Ele vai ficar sem estudar?’ Carinhosa,
passa a mão na cabeça de Severino. Ana diz: ‘Ele está chorando
porque não tem amigos ainda na escola.’”
(RA-2)
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 114

Eram comuns ações no sentido de garantir que Sev erino conseguisse


fazer as ativ idades propostas:

“Ana: ‘Eu vou dar um pedacinho de papel crepom e vai fazer uma
bolinha...’
Aluno pergunta: ‘Tia, para que vai servir?’
Ana: ‘A gente vai brincar de bingo agora. Bingo das Letras’...‘Vamo
lá! Tá fazendo a bolinha, Severino?’”
(RA-3)

No entanto, essa preocupação, e essa atenção duraram pouco


tempo. A partir de maio, era comum que durante toda a observ ação não
ocorresse nenhuma ev idência de que a professora acompanhasse o
trabalho do aluno. Esse distanciamento tornav a-se ainda mais acentuado
pelo fato de Sev erino, ao contrário dos demais alunos, raramente lev antar-
se para mostrar à professora o andamento de seu trabalho.
Em junho houv e uma momentânea modificação ocorrida logo após
a uma troca de informações entre pesquisadora e professora, na qual
foram expostas algumas das informações obtidas por meio das observ ações
realizadas em sala de aula. A pesquisadora contou à professora a respeito
das hipóteses que Sev erino tinha sobre a cópia da lousa, e como isso o
estav a prejudicando e impedindo de dedicar-se às demais ativ idades.
Foram, ainda, ressaltados o empenho e esforço demonstrados pelo aluno
para realizar o trabalho conforme o que ele considerav a correto. Ana
surpreendeu-se com essas informações. Até então, imaginav a que o aluno
passasse todo o tempo de aula sem nada fazer, algo que ficav a
ev idenciado pelo resultado registrado em seu caderno; nas palav ras de
Ana: “caderno está em branco”. (RA-16).
Perceber seu aluno sob nov a perspectiv a possibilitou que, ao menos
circunstancialmente, Ana acompanhasse mais de perto o trabalho de
Sev erino. As mudanças foram imediatas tanto no que diz respeito ao
trabalho do aluno, quanto à aproximação entre ele e a professora.
Sev erino, que em nenhuma outra época tev e o hábito de lev antar-se para
mostrar o caderno à professora, chegou a fazê-lo quatro v ezes em um
mesmo dia (RA-17). A seguir reproduzimos o conteúdo da cópia realizada
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 115

em 15 de junho (apenas nov e dias após a observ ação na qual foram


identificadas as dificuldades de Sev erino):

“No caderno:
HORTOLÂNDIA 15 DE JU
JUNHO DE 200
QUINTA FEIRA
EU SOU UM A PESSGA M UTO
ESPECIAL POIS IGUALAM
NINGUÉM
Ainda que se perceba que nem tudo está copiado
corretamente, há uma sensível melhora. Severino passou a
mudar de linha, quando isto se fazia necessário, conseguindo
concluir a cópia, e ficando liberado para fazer as demais
atividades.”
(RA-17)

No entanto, Ana não atribuiu essas melhoras a uma mudança nos


seus procedimentos. Atribui a um “estalo” (RA-17) tido por Sev erino.
O fato de não assumir a responsabilidade por essas modificações
pode ser uma das razões para que a proximidade entre professora e aluno
não se tenha mantido. O distanciamento entre aluno e professora foi se
acentuando ao longo do restante do ano. Sev erino não procurav a o auxílio
da professora, e esta, por sua v ez, raramente dedicav a-lhe alguma
atenção especial. Assim como a aproximação tev e resultados positiv os, o
nov o afastamento passou a contribuir para a cristalização das dificuldades
anteriormente encontradas por Sev erino.
Ana, no decorrer do ano, emitiu opiniões sobre Sev erino em div ersas
ocasiões. Algumas dessas opiniões foram recolhidas por ocasião das
conv ersas entre professora e pesquisadora, e outras em situações de sala
de aula, quando Ana fez comentários, em v oz alta, para toda a classe. A
opinião mais freqüentemente manifesta foi a de que Sev erino era
“preguiçoso” ou “safado”. A essas características de Sev erino estariam
associadas as suas dificuldades para acompanhar aquilo que era ensinado.
Ana chegou a se referir ao aluno como preguiçoso em um dos bilhetes
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 116

escritos no caderno. As frases a seguir foram ditas em v oz alta para toda a


sala, apesar de terem sido dirigidas a Sev erino:

“...todo dia fica enrolando. Antes pelo menos você tentava.’


(RA-27 – início da realização das atividades)

“11 h. Ana diz que vai escrever um bilhete para o Vanderlei, a


Isabel, o Severino: ‘Todo mundo que tá enrolando.’”
(RA-19)

Apesar dessas opiniões apresentadas terem sido as mais


freqüentemente emitidas sobre Sev erino, houv e momentos em que
características bem diferentes foram atribuídas ao aluno como causa de
suas dificuldades na escola. Em RA-24 encontra-se o seguinte comentário
de Ana a respeito de Sev erino: “muito perfeccionista, perde muito tempo”.
Algumas v ezes, as causas das dificuldades escolares de Sev erino
foram atribuídas a sua família. A seguir temos algumas declarações de Ana
sobre a família de Sev erino:

“Ana diz que é importante que os alunos tenham alguém para


quem mostrar aquilo que fazem; é importante que alguém em casa
olhe, dê importância àquilo. Como ex emplo de alunos que Ana
supõe não terem esse tipo de cuidado em casa são citados
Severino e Bernardo, alunos cujos cadernos tem ‘coisas coladas em
todo lugar’. A falta de interesse de algum familiar seria a causa
dessa desorganização.”
(RA-14)

“São pais que cobram muito e devem ex ercer cobrança sobre os


filhos.”
(RA-16)

As opiniões acima expostas foram expressas com um interv alo de


apenas duas semanas, sem que nesse período houv esse ocorrido algum
fato capaz de modificar tão radicalmente a impressão de Ana a respeito
dos pais de seu aluno.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 117

As opiniões contraditórias a respeito de Sev erino e sua família


rev elam o quanto não houv e possibilidade de que tanto o aluno, quanto os
seus pais fossem, efetiv amente, conhecidos pela professora. Desse modo,
quaisquer características, ainda que incompatív eis encaixav am-se nas
explicações das ações dessas pessoas. Ao defini-los são utilizados os v ários
estereótipos possív eis para um aluno que pouco aprende, e para sua
família. Em qualquer dos estereótipos utilizados, a culpa pelo mau
desempenho escolar, sempre recaiu sobre o indiv íduo e seu núcleo familiar.
O empenho de Sev erino em cumprir suas tarefas pode ser
considerado como uma das características desse aluno. No entanto, as
dificuldades crescentes encontradas para a realização das ativ idades
escolares foram contribuindo para que Sev erino não demonstrasse, ao final
do ano, a mesma persistência anteriormente v ista.
As informações que lhe foram transmitidas, nesse início de
escolarização, contribuíram para que ele formasse uma auto-imagem
como estudante bastante negativ a:

“Pergunto o que está fazendo, e ele diz que está terminando de


copiar. Pergunto se falta muito e ele aponta a lousa. Pergunto por
que ele ainda não havia acabado, e ele diz: ‘É que eu sou
preguiçoso.’ Questiono se a razão de ele não ter feito tudo é
mesmo esta, dizendo que já o vi fazendo muita coisa, e ele me
responde: ‘eu tenho um pouco de preguiça.’”
(RA-25)

A afirmação de que Sev erino é preguiçoso, pode ser desmentida


apenas pela observ ação de suas ações no decorrer das aulas. Isto já pôde
ser exemplificado no relato apresentado inicialmente. São inúmeros os
registros obtidos que rev elam que Sev erino persistia na realização da tarefa
proposta ainda quando a maioria de seus colegas já hav ia finalizado, ou
quando ativ idades mais descontraídas eram propostas:
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 118

“Ana senta-se à frente da sala para ler um livro: ‘O pequeno


polegar.’ Classe silenciosa aguarda. Severino continua
preenchendo as folhas com números.”
(RA-11)

Durante todo o ano foi possív el observ ar as tentativ as de Sev erino


para cumprir as ativ idades solicitadas no dia-a-dia da sala de aula. Apesar
das dificuldades, demonstrav a sempre ser capaz de av aliar criticamente o
resultado de seu trabalho. Conhecia também suas limitações, e procurav a
cumprir as ativ idades utilizando os conhecimentos de que dispunha. Como
em uma situação na qual foram entregues quatro figuras que formav am
uma seqüência de acontecimentos, e que tinha como personagem uma
galinha. Aos alunos cabia escrev er uma história que pudesse ser ilustrada
por aquelas figuras. Sev erino, sabendo que não seria capaz de escrev er
uma história completa, propôs-se a escrev er exclusiv amente o nome da
galinha. Para isso utilizou-se dos conhecimentos que possuía sobre o nome
das letras:

“Severino escreve letras, números e desenhos em seqüência,como


se fosse uma única grande palavra. Escreve da direita para a
esquerda, sendo que a primeira letra feita (a posicionada mais à
direita) é um H.
M e aprox imo dele, e pergunto: ‘Está fazendo?’
S: ‘Eu não sei fazer.’
P: ‘E o que você fez aqui?’
S: ‘Eu queria fazer o nome da galinha.’
Peço que ele diga o que está escrito e ele não lê, apenas aponta
para o H e diz: ‘Esse é o H da galinha.’”22
(RA-22)

Apesar de o resultado da escrita estar bem distante daquilo que ele


pretendia comunicar, é possív el encontrar alguma lógica em sua tentativ a.

22 É import ant e lembrar que a let ra H é muit o familiar para esses alunos, já que o nome da

cidade, copiado diariament e junt o com a dat a, é Hort olândia.


A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 119

Sev erino associa o som da letra H, tão presente no dia-a-dia dos alunos de
Hortolândia, com o início da palav ra “galinha”.
Em alguns momentos, as tentativ as de fazer as tarefas diárias eram
interrompidas para fazer desenhos. Para isso, o caderno, a mesa, a régua
ou a borracha serv iam como suporte:

“Enquanto Leila lê, Severino faz desenhos na parte de cima de uma


das folhas de seu caderno. Faz uma minhoca, uma cara com
braços. Logo em seguida apaga os desenhos.”
(RA-28)

Os desenhos de pessoas, flores e animais parecem ser uma das raras


formas usadas por Sev erino para burlar, ainda que de modo fortuito, aquilo
que é proposto pela escola. Nas demais situações, Sev erino está sempre
tentando agir de acordo com aquilo que imagina ser o esperado dele.
Tentando, de modo custoso e persistente, todo o tempo, realizar com
perfeição aquilo que lhe é solicitado. Pouco consegue, e sabe disso. As
razões para sua falta de sucesso são muitas: a falta de clareza das regras
sobre como dev e proceder para ser um bom aluno; os ritmos que lhe são
impostos; a solidão, em meio à qual busca estratégias para cumprir as
tarefas; as suas dificuldades pessoais; uma série de concepções, que
permeiam o cotidiano escolar, sobre as razões pelas quais os aluno não têm
sucesso na aprendizagem.
Em meio a tantas razões fica ev idente o sofrimento de Sev erino, tão
grande que por v ezes torna-se quase insuportáv el.

“Pergunto se falta muito para acabar de copiar, ele diz que sim.
P: ‘Será que vai dar para terminar?’
S: ‘Acho que não.’
P: ‘Por quê?’
S: ‘Porque vai bater o sinal.’
Ana pergunta à sala: ‘Posso apagar?’ A classe diz em coro:
‘Não.’ Severino tapa os ouvidos, com força. Pergunto a ele: ‘O
que foi?’ E ele responde: ‘Eles gritam.’”

(RA-19)
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 120

4.3. Diferentes apropriações de um mesmo objeto: o caderno

Heller (2000) aponta que a assimilação que se faz do social e da


manipulação das coisas contém sempre algo que diz respeito ao gênero
humano, mas que se manifesta em cada indiv íduo de modo único e
irrepetív el.
Eduardo e Sev erino são dois alunos que têm muito em comum:
idade, nív el sócio-econômico, escola, série, sala de aula e professora.
Ambos passam pela situação de aprender a ler e a escrev er, de iniciar o
trabalho com o caderno escolar, e de se adequar ao conjunto de regras
que faz parte da instituição de ensino. No entanto, mostram modos
bastante diferentes no que se refere à inserção no meio escolar e aos
procedimentos e usos de seus materiais escolares. As funções e os
significados atribuídos, por esses dois alunos, aos seus cadernos é bastante
div erso. Acredita-se que essas diferentes apropriações de um mesmo objeto
escolar possam ser interessantes para que se analisem as possibilidades de
utilização desse material.
Eduardo pode ser considerado um bom aluno. Iniciou sua
escolarização com sucesso: muitas aprendizagens, reconhecimento público
e admiração manifestada pela professora. Sua inserção no cotidiano
escolar, em suas regras e em seus usos ocorreu rapidamente, garantindo
que ele pudesse ganhar alguma liberdade para se mov imentar, arriscar e
ousar nesse contexto.
É possív el afirmar que garantida a sua inserção na cotidianidade
escolar, Eduardo pôde em alguns momentos fazer mov imentos no sentido
da não-cotidianidade23, como, por exemplo, quando passou a criar formas
nov as para o seu estar em sala de aula, algo exemplificado pela sua
iniciativ a de ler um liv ro para toda a sala de aula. A inov ação também foi
algo que marcou seu uso do caderno. Eduardo atribuiu ao caderno não
somente as funções de suporte para a aprendizagem e para a realização
de tarefas escolares, mas fez desse material algo personalizado. Um espaço
no qual ele poderia manifestar o seu afeto por pessoas queridas, fazer

23
Os t ermos cot idianidade e não-cot idianidade são ut ilizados por Heller (2000).
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 121

desenhos de personagens admirados, ou fazer anotações que pudessem


ajudá-lo a lembrar de amigos dos quais possiv elmente teria de se separar.
O caderno de Eduardo ganhou significações interessantes também
em relação aos conteúdos escolares. Diferentemente da maioria de seus
colegas de classe que considerav a o caderno um objeto, cuja serv entia
residia na possibilidade de utilização de suas folhas em branco, Eduardo
atribuiu importância ao seu trabalho registrado nas páginas dos cadernos.
Aquilo que ao longo do ano foi registrado nos cadernos foi v isto como algo
que poderia serv ir para que ele se recordasse do que foi escrito e
aprendido.
Não se pretende afirmar que Eduardo fez um uso não-cotidiano de
seu caderno, mas apenas apontar que houv e, em alguns momentos, ações
que rev elav am tendências de escape e de descontinuidade em relação à
cotidianidade. Cabe ressaltar que div ersas situações rev elam exatamente o
oposto à tendência de não-cotidianidade, ou seja, mostram a completa
imersão, de Eduardo, na dimensão cotidiana. Pode-se destacar como
exemplo o momento em que, tomado pelo pragmatismo e pela
heterogeneidade da v ida cotidiana, Eduardo recorta e cola palav ras,
enquanto a classe ensaia uma música. Tal atitude foi impulsionada pelo
temor de ser punido com um bilhete.
Sev erino tev e uma experiência inicial de escolarização bastante
diferente da de seu colega: as aprendizagens não atingiram o esperado
pela professora e nem por seus pais, sua auto-imagem como aprendiz ficou
marcada por adjetiv os pouco elogiosos, como preguiçoso e safado, e pela
idéia de que ele era um aluno que não cumpria as ativ idades, pois
“enrolav a”.
Sua passagem pela primeira série caracterizou-se pela busca de
aprender quais eram as regras, quais eram os usos e costumes v igentes no
contexto escolar. O caderno, material fundamental nessa etapa de
escolarização, apresentou-se como um objeto cujo uso exigia saberes por
ele ainda não dominados. Assim sendo, o caderno rev elou-se mais
propriamente um entrav e, que um recurso auxiliar à aprendizagem. A
persistência e empenho de Sev erino em inserir-se nessas conv enções,
necessárias ao uso escolar do caderno, bem como seu predominante
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 122

insucesso nessa empreitada, ficaram ev identes pelas cenas anteriormente


descritas.
Essa tentativ a de inserção, e de agir conforme aquilo que
considerav a ser o correto e adequado, absorv eu Sev erino de tal forma, que
em alguns momentos tomav a todas as suas atenções e ações,
impossibilitando-o de v oltar-se para os demais conteúdos ensinados na sala
de aula. Dessa forma, apesar de estar na escola, Sev erino pouco usufruiu
dos aprendizados prev istos para a primeira série. No ano seguinte, esse
aluno passou a cursar a série subseqüente. As dificuldades enfrentadas por
ele em seu primeiro ano de escolarização multiplicaram-se no segundo ano,
conforme informações fornecidas por Ana, que continuou a ser sua
professora. Ainda mais freqüente passou a ser o fato de Sev erino se
defrontar com conteúdos que pressupunham conhecimentos que ele não
hav ia adquirido anteriormente.
O fenômeno da manutenção na escola de indiv íduos que pouco
irão usufruir os benefícios sociais e pessoais usualmente associados à
escolarização tem sido abordado por importantes pesquisadores. Bourdieu
(1997), ao realizar estudo sobre o sistema de ensino francês, explicita a
existência de mecanismos que, sob o argumento de democratização do
ensino, mantém, reforçam e legitimam as desigualdades sociais. Dessa
forma, um número cada v ez maior de crianças, adolescentes e adultos
passa a freqüentar as instituições de ensino, atingindo nív eis mais altos de
escolarização, sem, contudo, usufruir os benefícios e a ascensão social
usualmente associados à obtenção de diplomas e certificados escolares.
Esse processo mantém no interior da escola aqueles que são e
permanecerão excluídos socialmente. Patto (2000) analisa como esses
processos se dão no terceiro mundo. Voltando o foco de atenção para as
políticas de ampliação do acesso e do tempo de permanência na escola,
conclui que os excluídos que permanecem no interior da escola, em países
como o Brasil, estão predominantemente no ensino fundamental.
Os mecanismos que mantém incluídos na escola, ainda que de
modo excludente, aqueles que não estão preparados para as exigências
escolares, tais como, domínio das regras v igentes na instituição de ensino e
dos rituais pedagógicos, podem ser exemplificados pelo caso de Sev erino.
A C RIANÇA E SEU C ADERNO: DUAS H ISTÓRIAS DESSA RELAÇÃO 123

Esse aluno, apesar de pouco ter usufruído os conteúdos prev istos para a
primeira série, foi conduzido à progressão seqüencial do ensino,
defrontando-se com as dificuldades decorrentes disso. Dessa forma, apesar
de manter-se na escola, Sev erino permaneceu em condição progressiv a de
exclusão em relação aos saberes que ali circulav am e eram exigidos.
A forma como esse prenúncio de fracasso escolar começou a tomar
forma pôde ser acompanhada nesta pesquisa. Sev erino recebeu, ao longo
da primeira série, mediações pedagógicas inferiores, em quantidade e
qualidade, às necessidades por ele apresentadas. Algo que tomou maior
dimensão somado às características pessoais do aluno, que era reserv ado e
tímido. Essa conjunção de fatores proporcionou que Sev erino passasse
grande parte do tempo fazendo hipóteses e conjecturando sobre quais
seriam os procedimentos corretos. Não conseguindo compreender a lógica
das ativ idades que lhe eram propostas, ficav a submetido a exigências que
pouco contribuíam para a aprendizagem dos conteúdos prev istos para a
primeira série.
Eduardo e Sev erino mostraram diferentes possibilidades e caminhos
para a utilização dos cadernos. O primeiro mostrou possibilidades de que o
caderno fosse um recurso auxiliar de ensino, que possibilitasse a expressão
indiv idual do aluno, adquirindo significados importantes e positiv os que
compactuassem com a proposta da escola, que é ensinar. Enquanto o
segundo mostrou uma forma alienante, e limitante das possibilidades e das
aprendizagens.
CAPÍTULO 5

REFLEXÕES A RESPEITO DOS CADERNOS ESCOLARES

5.1. Os bastidores dos cadernos escolares

“Em reposta à pesquisa proposta

pela professora nos cadernos dos

alunos: ‘Mãe, conte a história da

minha vida’. A mãe de Luí s escreveu

no caderno de seu filho: ‘S e eu fosse

O caderno é um material que, ao longo da trajetória escolar, torna-


se registro de aprendizados, retrocessos, tentativ as, erros e acertos. Gv irtz
(2000) aponta, a importância dos cadernos para a realização de pesquisas
sobre os conteúdos ensinados em tempos passados, pois nesses casos são
limitadas as possibilidades de se ter acesso àquilo que efetiv amente
ocorreu.
A presente pesquisa também identificou a importância que os
cadernos assumem no contexto escolar ao serem utilizadas por pais,
professores e coordenadores pedagógicos para conhecer aquilo que se
passa no dia -a-dia da sala de aula. Também os pesquisadores na área de
educação utilizam, para algumas pesquisas, os cadernos escolares como
fontes de informação. Psicólogos que atendem crianças com queix as
escolares freqüentemente se deparam com os cadernos de seus clientes, e
os utilizam como recurso para conhecer o que se passa no contexto
escolar.
Cadernos são instrumentos didáticos que tornam possív el a
observação do resultado do trabalho do aluno ao longo de um dia de

7 16
Ut ilizamos o conceit o de discurso compet ente conforme definido por Marilena Chauí em
seu liv ro Cultura e Democracia.
OS C ADERNOS ESCOLARES 125

trabalho escolar, ou até mesmo ao longo de toda a sua escolarização. Seus


registros são provas materiais de ativ idades cumpridas ou não cumpridas;
podem rev elar aprendizados, incorreções, momentos de incompreensão a
respeito do conteúdo escolar. Suas aparências podem rev elar, por meio de
pequenos rasgos ou amassados, momentos de descuido, marcados para
sempre no caderno.
É certo que o caderno possibilita o regist ro, o acompanhamento
histórico, o conhecimento sobre o aprendiz, sobre o professor e sobre as
relações que se dão no contexto escolar. Mas foi possív el também, ao
longo do presente estudo, identificar aspectos que fogem à capacidade
de registro do caderno; são os bastidores dos cadernos, as informações que
estão por trás do preenchimento e do uso que é feito do caderno e que
não ficam marcadas.
Essas informações que não constam nos cadernos não são detalhes
de menor importância ou informações acessórias que apenas serv iriam
para complementar aquilo que o caderno prova materialmente. São
informações que podem ser decisiv as para que, efetiv amente, se obtenha
conhecimento a partir das páginas desses materiais de registro.
Div ersas situações descritas nesta pesquisa podem ilustrar aspectos
do trabalho escolar, desenv olv ido por alunos e professora, que não foram
eternizados nas páginas dos cadernos. O empenho de Sev erino para
cumprir as ativ id ades propostas com precisão e exatidão foi registrado sob
a forma de trabalhos incompletos e executados de modo incorreto. Sua
dedicação, seu esforço, seu sofrimento e as múltipla s estratégias tentadas
foram importantes componentes na realização das tarefas escolares que,
de modo algum, podem ser abstraídos do trabalho por ele produzido.
As estratégias utilizadas por Mateus para fazer cópias aparecem em
seus cadernos como desordem, desleixo e desinteresse. A lógica utilizada
por ele, a tristeza por não conseguir cumprir a tarefa, bem como a
vergonha do resultado final, que culminou na decisão de apagar tudo,
também não foram passív eis de ser registradas nas páginas dos cadernos.
Por outro lado, cópia s realizadas sem grandes interesses, feitas de
modo mecânico, sem implicar em conhecimento sobre o conteúdo
OS C ADERNOS ESCOLARES 126

copiado rev elam-se, nos cadernos, sob a forma de cópias feitas com
correção e perfeição estética.
Em relação ao trabalho docente, também não ficam registrados
aspectos relativ os às media ções, à qualidade da relação professor-aluno,
tampouco ativ idades desenvolv id as sem o uso do caderno como suporte.
É possív el supor que, muitas v ezes, aspectos relativ os aos bastidores
do preenchimento dos cadernos podem ser determinantes para a
interpretação e a utilização das informações contidas nesses materiais
escolares. Tais informações podem confirmar, desmentir ou relativ izar aquilo
que é observ ado nos registros das páginas dos cadernos.
Diante disso, o caderno rev ela-se um instrumento de controle que,
mais do que efetiv amente prestar-se ao conhecimento total das ações e
aprendizagens ocorridas em sala de aula, rev ela-as apenas parcialmente.
Não se pretende, com essas afirmações, desconsiderar a utilidade e
o v alor do caderno enquanto material de avaliação da aprendizagem, de
registro do trabalho pedagógico e fonte de informações para pesquisas.
Ressaltamos que, ev identemente, o caderno contém grande quantidade
de informações, cuja análise e interpretação pode lev ar a importantes
conclusões; porém, chamamos a atenção para relevância de que esses
registros não sejam tomados como produtos que rev elam com exatidão os
processos que lhe deram origem. Considera-se que há, muito além daquilo
que as folhas dos cadernos eternizam, uma complexidade e multiplicidade
de fatores que precisam ser considerados quando se pretende conhecer o
cotidiano escolar.
Os cadernos contêm informações que podem ser capazes de
lev antar questões, tais como: Por que Sev erino copia apenas a data? Ou,
ainda, por que não há nenhuma ativ id ade registrada nos cadernos dos
alunos em determinado dia ? Perguntas como essas, levantadas a partir de
cuidadosa observação dos registros dos cadernos podem conduzir a uma
compreensão mais ampla do contexto escolar. A primeira questão pode
ajudar a compreender que Sev erino criou, ao longo do ano, hipóteses
equiv ocadas a respeito de como deveria proceder; enquanto a segunda
questão possibilita perceber que há dias em que são desenv olv id as
OS C ADERNOS ESCOLARES 127

ativ id ades pedagógicas que priv ilegiam a comunicação oral em v ez da


escrita.
Os cadernos podem ser importantes recursos para a avaliação
pedagógica, para pesquisa e para o acompanhamento do trabalho do
professor, especialmente, se suas in formações forem relativ izadas e
complementadas com outras formas de conhecimento.
As ressalvas à utilização do caderno para a realização de inferências
a respeito de alunos, professores e escola, rev elam-se mais importantes
quando esse processo refere-se a cadernos de alunos iniciantes na
utilização desses materiais e na aprendizagem do código escrito. Nesses
casos a própria realização do registro no caderno constitui, além dos
conteúdos ministrados, algo a ser aprendido. Assim sendo, mais importante
torna-se a utilização de informações extras, para que o conteúdo do
caderno possa ser um instrumento que possibilite conhecer aquilo que,
efetivamente, ocorre no cotidiano escolar.

5.2. O caderno e sua autoria

A discussão sobre a autoria dos cadernos tem sido recorrente nos


autores que se dedicaram a estudar esse material escolar. Essa é uma
questão importante e complexa, cuja discussão rev ela -se fundamental para
a compreensão dos conteúdos registrados nos cadernos.
Faria (1988) referiu-se a essa questão indicando não encontrar, na
primeira série, canais para que o aluno pudesse expressar-se nesse material
didático. Gvirtz aponta que o caderno é uma produção discursiva
complexa, pois apresenta aparentes dissonâncias em sua autoria, “ainda
que a imensa maioria das ativ id ades escolares seja feita por mãos infantis, o
estilo de redação é claramente correspondente ao de um adulto.” (1999, p.
12, tradução nossa).

Identificamos nos cadernos uma série de conteúdos div ersos: exercícios, textos

teórico, desenhos, bilhetes e frases do dia. A diversidade presente nos registros

faz com que não se possa discutir a autoria do caderno como um todo, mas
OS C ADERNOS ESCOLARES 128

implica em que se faça uma reflex ão específica para cada tipo de conteúdo

registrado.

Na sala de aula estudada, os cadernos escolares prestavam-se a: cópia de

conteúdos; ex ercitação de saberes; controle , especialmente dos alunos e da

professora; comunicação entre escola e família; e informação aos alunos sobre

quais eram os procedimentos e qualidades bem-vistas no meio escolar.

Considerando que sejam essas as utilidades para as quais foi eleito


esse recurso didático, é compreensív el que pouco caib a aos alunos criar.
Os saberes registrados por meio de cópias estarão mais satisfatoriamente
realizados quanto mais se assemelharam àquilo que foi proposto como
modelo. Em relação à exercitação de saberes, também as possibilidades
de criação e de inovações são bastante limitadas, tanto pelo formato das
ativ id ades, que geralmente pressupõem uma única resposta correta,
quanto pelas limitações que os alunos da primeira série encontram para
comunicar-se por meio do código escrito.
Dessa forma, bastante restrito rev elou-se ser o espaço destinado à
liv re expressão dos alunos; algo limitado às páginas iniciais dos cadernos ou
às raras solicitações de produção de texto. Verifica-se que aos alunos
couberam as autorias de pequenos trechos ou produções artísticas.
Ainda que as possibilidades de manifestação da autoria dos alunos
sejam restritas, conforme apontou Gv irtz (1999) a quase totalidade dos
conteúdos dos cadernos é passada a esses materiais por mãos in fantis.
Considera-se que, mesmo no ato mecânico de reproduzir informações,
reside uma pequena possibilidade de apropriação, rev elada pelas
pequenas modificações e pelas estratégias utilizadas. Esses procedimentos,
frutos de esforços intelectuais, rev elam tentativ as indiv id uais de
interpretação e de reorganização das informações. Conforme apontou
Edwards “os sujeitos têm um modo singular de apropriar-se do
conhecimento que tem a ver com seus conhecimentos prév ios e com suas
histórias”. (1997, p. 125).
Em relação aos conteúdos propostos e escritos pela professora, a
questão da autoria também não se rev ela tão simples. Para que pensemos
OS C ADERNOS ESCOLARES 129

sobre a amplitude de autoria que cabe a ela nos cadernos, selecionamos


os bilhetes e as frases do dia. Essas comunicações, conforme apontamos
foram, primordialmente, escritas pela professora e seus conteúdos rev elam
expectativ as e concepções em relação aos modos de proceder tanto do
aluno, quanto da família. Ainda que esses conteúdos tenham sido escritos
pela professora, seria possív el atribuir, de modo simplista, a autoria destes à
professora?
Por exemplo, ao rev ela r em seus escritos a crença de que os alunos
que não cumprem suas tarefas têm pais desinteressados pelo desempenho
escolar de seus filhos, Ana não se utiliza de concepções particulares a
respeito dos pais de seus alunos. A professora manifesta, por meio de ações
e palav ras, concepções amplamente div ulgadas pela literatura e pelos
discursos competentes 16. Conforme aponta Patto (1996), a literatura
especializada veicula concepções preconceituosas em relação às famílias
pobres, clientela da instituição pesquisada e de tantas outras escolas
públicas, atribuindo aos pobres toda a sorte de defeitos, alguns desses
responsáv eis pelo mau desempenho escolar de seus filhos. Assim, ao
chamar os pais de seus alunos para que assumam responsabilidades em
relação à escolarização de seus filhos, a professora rev ela a concepção
vigente no meio escolar de que uma das importantes razões para que os
alunos não obtenham sucesso na escola reside no fato de suas famílias não
se interessarem por acompanhar a escolarização, e por não v alorizarem o
ensino.
No registro de uma das conferências ministradas por Foucault (1992),
temos o seguinte comentário de Goldmann, que pode ser útil para a
compreensão dessa idéia:

“‘Quem fala?’ À luz das ciências humanas contemporâneas, a


idéia do indiv íduo como autor últim o de um tex to, e

nomeadamente de um texto importante e significativo torna-se

cada vez menos sustentável. Desde há alguns anos, toda uma série

de análises concretas mostraram, com efeit o, que sem negar nem

o sujeito, nem o homem somos obrigados a substit uir o sujeito

individual por um sujeit o cole tiv o ou trans-individual”. (p. 73-74)


OS C ADERNOS ESCOLARES 130

Compreende-se, então, que os cadernos escolares e seus conteúdos,


muito mais do que serem expressões de sujeitos particulares, dizem respeito
a idéias que circulam e que se estruturam em um determinado contexto.
Não se pretende, com isso, afirmar a impossibilidade de que surjam idéias
discrepantes, mas também estas se tornam possív eis a partir de discursos
anteriormente instaurados, seja como acréscimos, oposições, ou ressalv as
(Foucault, 1992).
Também as ativ idades propostas por Ana para a aprendizagem do
código escrito podem ser úteis para que se pense na questão da autoria
dos cadernos. Nesse caso, identifica-se com muita freqüência a utilização
de ativ idades que promov em a “escrita espontânea”, ou seja, que a partir
de uma figura, ou de uma palavra ditada pela professora, os alunos
escrev am tal como acreditem ser a forma mais adequada. Esse tipo de
ativ id ade nos remete às concepções de alfabetização com base nas
propostas construtiv istas, que se diferenciam, por exemplo, das ativ idades
que seriam propostas no caso da adoção de uma metodologia mais
tradicional de alfabetização, baseada no ensino de famílias silábicas e na
correspondência entre sons e letras.
Ou seja, as ativ idades propostas para a aprendizagem, que acabam
por fazer parte do conteúdo dos cadernos nos remetem à forma como é
compreendida a educação em um determinado contexto. Gvirtz (2000)
também mostrou em seu trabalho, que abrangeu cadernos das décadas
de 30 a 80, o modo como as concepções pedagógicas rev elam-se e estão
presentes nos conteúdos dos cadernos.
Concluindo, os cadernos rev elam-se como instrumentos didáticos
que têm autorias múltiplas. Os alunos e, especialmente, os professores
participam como autores dos conteúdos que compõem esse material
didático. Revelam isso ao escolher aquilo que será incluído, e ao propor
modos de apresentação para cada conteúdo. Por exemplo, o aluno
exerce a autoria ao escolher os desenhos que vai fazer nas páginas iniciais
ou ao decidir, mesmo quebrando as regras, formas diferentes para realizar a
cópia. O professor também exerce sua autoria ao propor as ativ idades aos
alunos, ao escolher o tema sobre o qual os alunos escrev erão uma história
OS C ADERNOS ESCOLARES 131

ou ao escrev er um bilhete para os pais de uma criança. No entanto, não é


possív el atribuir-lhes a autoria solitária. Alunos criam sob influência e
limitação das regras, nem sempre compreendidas, que lhes são impostas
para o uso dos cadernos; assim como, os professores propõem os conteúdos
dos cadernos sob influência das propostas pedagógicas e das concepções
vigentes sobre a aprendizagem, os alunos e suas famílias.
CAPÍTULO 6

CONSIDERAÇÕES E PROPOSIÇÕES FINAIS

“S ó há saber quando a reflexão


aceit a o risco da indet erminação
que a faz nascer, quando aceit a o
risco de não cont ar com garant ias
prévias e ext eriores à própria
experiência e à própria reflexão que
a t rabalha.”
Marilena Chauí

O estudo apresentado buscou descrev er as funções e os significados


atribuídos aos cadernos em uma sala de aula de primeira série do ensino
fundamental de uma escola pública. As informações obtidas indicaram que
os cadernos não são materiais escolares que encerram em si, em suas
propriedades físicas e simbólicas, as possibilidades para a ocorrência de
uma experiência positiv a ou negativ a em relação à escolarização e
aprendizagem de conteúdos escolares.

Nas folhas em branco, desse importante instrumento didático, há a


possibilidade do seguimento e da criação de caminhos que podem ser
mais ou menos interessantes para a aprendizagem, para a comunicação
entre professor e alunos, e para o estabelecimento da relação entre escola
e pais.

Identificou-se que o uso dos cadernos não é algo intuitiv o, mas que
exige aprendizagens. Para que as crianças utilizem os cadernos, faz-se
necessário o domínio de saberes específicos à utilização desse material, tais
como: seguir a seqüência das folhas e das linhas; ou reproduzir conteúdos
apresentados na lousa. Apesar de muitos serem os aprendizados
necessários para que seja feito o preenchimento dos cadernos, v erificou-se
serem poucas as práticas pedagógicas planejadas para a iniciação dos
alunos nesse conjunto de habilidades. As mediações pedagógicas dão-se,
predominantemente, à medida que os alunos se desv iam do esperado.
C ONSIDERAÇÕES E P ROPOSIÇÕES FINAIS 133

O domínio da leitura e da escrita aparece como um elemento que


auxilia na utilização bem sucedida do caderno. Por outro lado, durante o
processo de alfabetização, as dificuldades relativ as ao aprendizado do
código escrito podem somar-se às aprendizagens relativ as ao uso do
caderno, implicando num aumento da complexidade de exigências e
demandas enfrentadas pelos alunos nessa etapa da escolarização.

Apuraram-se quais eram as funções atribuídas aos cadernos


escolares, destacando-se:

• a forte presença e utilização desse instrumento didático como


suporte para a realização de ativ idades didáticas, baseadas na
cópia e exercitação de saberes;

• o uso dos cadernos escolares para registrar informações relativ as


a ativ idades e relações desenv olv idas no contexto escolar;

• o freqüente uso feito das informações contidas nos cadernos para


o controle das ações dos alunos, professores e pais;

• o uso e a eficiência do caderno como meio de comunicação


entre escola e família; bem como a predominância da
comunicação de aspectos negativ os por meio desse v eículo;

• a utilização dos cadernos, pela professora, para informar aos


alunos procedimentos e qualidades bem-v istas e esperadas no
contexto escolar;

Quanto aos significados atribuídos aos cadernos pelos alunos de


primeira série, destacam-se:

• a forte associação desse material escolar à ativ idade de cópia;

• a exterioridade que marca a relação dos alunos com os saberes


relativ os à execução de ativ idades nos cadernos; os alunos,
muitas v ezes, não chegam a se apropriar efetiv amente desses
saberes e seguem-nos de modo mecânico, sem que haja
apreensão das razões, nem sempre existentes, de cada regra.

• o caráter negativ o atribuído às comunicações escritas feitas pela


professora, comumente chamadas de bilhetes;
C ONSIDERAÇÕES E P ROPOSIÇÕES FINAIS 134

• a atribuição de utilidade ao caderno enquanto instrumento que


possibilite a exercitação e o preenchimento de suas folhas em
branco;

• a efemeridade dos conteúdos registrados nos cadernos, cuja


posterior utilização é raramente v islumbrada pelos alunos;

• a importância dada aos aspectos estéticos, nem sempre rev elada


pela aparência dos caderno.

Além desses aspectos, a opção teórico-metodológica adotada


possibilitou que fossem considerados dois grandes eixos que compõem a
materialização dos cadernos escolares: os bastidores e a autoria. Tais
instâncias são menos explícitas que as demais, não podendo ser abstraídas
diretamente desses materiais escolares. Contudo, são fundamentais para
que se construa, a partir dos cadernos, conhecimentos sobre os
participantes do processo de ensino-aprendizagem, e sobre as relações que
permeiam esse processo.

As informações presentes nos cadernos podem prestar-se tanto ao


conhecimento, quanto à formulação de hipóteses errôneas sobre aqueles
que participam de sua materialização enquanto registros. Há uma série de
fatores, componentes do cotidiano escolar, e implicados na tarefa de
preencher um caderno, que a capacidade de registro do caderno não
abrange. Dentre eles, podem ser ressaltados: as intenções, as emoções, as
estratégias, os esforços empenhados, e parte das relações v iv idas em sala
de aula. Considerar esses fatores, ao se fazer deduções a partir dos
conteúdos dos cadernos, pode modificar radicalmente as impressões que
esses materiais podem causar se compreendidos descolados do contexto
em que foram produzidos.

Apesar do freqüente e importante uso que se faz do caderno no


contexto escolar, identifica-se que a formação dos professores deixa de
considerar e discutir o uso desse instrumento didático. Também não se trata
das possibilidades de av aliação e conhecimento dos alunos que podem ser
obtidas por meio desse material de registro. Assim sendo, os professores v ão
C ONSIDERAÇÕES E P ROPOSIÇÕES FINAIS 135

construindo e aprendendo, em seu trabalho diário, formas de utilização


para os cadernos.

Os psicólogos clínicos que trabalham com queixas escolares, bem


como aqueles que trabalham com instituições de ensino, também recebem
cadernos escolares e, muitas v ezes, os utilizam para compor conhecimentos
a respeito dos seus clientes. Estes profissionais têm em sua formação, ainda
menos que os professores, recursos para conhecer aprendizes e contextos
de ensino a partir dos conteúdos dos cadernos.

A questão da autoria dos cadernos é múltipla e complexa. Este


trabalho, muito aquém de abordá-la em sua totalidade, pôde apenas
apontar aspectos para a sua discussão. Alunos e professores participam do
processo de compor os cadernos. Aos alunos são oferecidas restritas
possibilidades para a expressão pessoal. Ainda assim, esta se rev ela de
modo fortuito em alguns conteúdos, tais como nos modos peculiares de
cumprir as ativ idades diárias, e nos desenhos. Ao professor, os cadernos
reserv am boas possibilidades de autoria. São esses profissionais os
responsáv eis por selecionar e propor conteúdos, por estabelecer regras e
conv enções a serem seguidas, e até mesmo por, com suas próprias mãos,
escrev erem parte daquilo que compõe os registros dos cadernos. No
entanto, essas opções não são uma rotina do trabalho pedagógico
determinada meramente por preferências pessoais. Há uma série de fatores
mais amplos que compõe esse uso, tais como concepções sobre a
aprendizagem, exigências institucionais, propostas pedagógicas, idéias
formuladas sobre a clientela atendida e, possiv elmente, um conjunto mais
amplo de fatores que não se pôde por meio deste trabalho av eriguar.

As histórias de Eduardo e Sev erino ilustraram a div ersidade de


sentimentos e de v iv ências que as crianças podem ter em relação ao
caderno. Enquanto o primeiro mostrou as possibilidades de que o caderno
seja um recurso que auxilia na tarefa de aprender, passando a ser um
objeto querido, estimado e depositário de afetos; o segundo alertou para a
possibilidade de que o caderno seja um objeto que traz dificuldades ao
processo de ensino-aprendizagem, tornando-se promotor de sofrimentos.
C ONSIDERAÇÕES E P ROPOSIÇÕES FINAIS 136

As relações com os cadernos não representam a totalidade das


relações v iv idas no cotidiano escolar. Mas, especialmente na etapa inicial
de escolarização, estes são instrumentos didáticos que medeiam
decisiv amente muitas das experiências v iv idas na escola. Isso faz com que
se pense na importância de utilizar estratégias que possibilitem ao caderno
adquirir significados positiv os enquanto mediador de experiências e registro
de conteúdos. As repreensões, as comunicações de aspectos negativ os, e
o apontamento de erros apareceram muito fortemente v inculados à
utilização desse material. Alerta-se para que o caderno também seja
utilizado, de modo efetiv o, como mediador de relações positiv as, e para o
registro e sinalização de av anços e acertos.

A identificação da eficiência do caderno como instrumento de


comunicação entre pais e professora também chama a atenção para as
possibilidades de uso deste instrumento para os estreitamento das relações
entre a escola e família. Algo que também poderia ser fav orecido se os
cadernos fossem utilizados não somente para a comunicação de fatos
negativ os, mas também para comunicar aspectos positiv os.

Diante da constatação de que a utilização dos cadernos implica em


uma série de aprendizagens, que nada têm de natural ou intuitiv o, propõe-
se que a utilização escolar do caderno, em especial em seus primeiros
momentos, seja planejada e conduzida de modo a possibilitar as
mediações necessárias a essa iniciação. Sugere-se que os momentos iniciais
de uso do caderno recebam especial atenção, facilitando que dificuldades
possam ser identificadas e sanadas, sem que prejudiquem o
desenv olv imento das ativ idades didáticas propriamente ditas. A
explicitação das regras eleitas para o uso dos cadernos, também pode
propiciar que os alunos compreendam e se apropriem dos procedimentos
que dev em adotar.

Os cadernos têm em suas propriedades, e ganham ao longo de seu


uso, a qualidade de registro histórico de saberes e aprendizagens.
Considera-se interessante que essa qualidade seja utilizada e aprov eitada.
Para tanto, são necessárias práticas pedagógicas que prev ejam e
estimulem que, nessa etapa da escolarização, haja a retomada daquilo
C ONSIDERAÇÕES E P ROPOSIÇÕES FINAIS 137

que foi feito. Procedimentos como esse podem proporcionar que o aluno
tome consciência de quais foram as aprendizagens e progressos atingidos,
fav orecendo o processo de ensino-aprendizagem.

A estratégia de retomar conteúdos dos cadernos pode ser


interessante, também, no sentido de fav orecer que os alunos v ejam
utilidades nos seus cadernos após o seu total preenchimento. Ou seja, que
ao trabalho realizado no cotidiano de ensino sejam adicionados
significados que v ão além do treino de saberes, e do cumprimento de
obrigações escolares.

Além disso, considerando-se especialmente a primeira série, que tem


o objetiv o de ensinar a leitura e a escrita, v erifica-se que o caderno pode
constituir-se como recurso adicional para o exercício da leitura.

Finalizando, o uso dos cadernos cria a possibilidade de que se tenha


um importante recurso auxiliar na prática pedagógica. Reside nas formas
escolhidas para isso, e nas sutilezas do dia-a-dia escolar, o fav orecimento
de que o caderno se torne, efetiv amente, um aliado na tarefa de ensinar e
aprender.
ANEXOS
139

ANEXO A
RELAÇÃO DAS OBSERVAÇÕES EM SALA DE AULA

Data Duração
RA-1 10/02/2000 1h30
RA-2 14/02/2000 1h20
RA-3 15/02/2000 1h35
RA-4 18/02/2000 1h40
RA-5 22/02/2000 1h30
RA-6 29/02/2000 1h30
RA-7 14/03/2000 1h45
RA-8 21/03/2000 1h40
RA-9 28/03/2000 2h20
RA-10 11/04/2000 1h50
RA-11 02/05/2000 2h40
RA-12 09/05/2000 1h50
RA-13 16/05/2000 2h
RA-14 23/05/2000 2h
RA-15 30/05/2000 1h40
RA-16 06/06/2000 1h30
RA-17 20/06/2000 3h
RA-18 03/07/2000 3h
RA-19 10/08/2000 3h
RA-20 04/09/2000 1h10
RA-21 20/09/2000 1h
RA-22 25/09/2000 1h
RA-23 17/10/2000 1h
RA-24 24/10/2000 2h30
RA-25 09/11/2000 1h30
RA-26 14/11/2000 1h
RA-27 29/11/2000 3h
RA-28 06/12/2000 3h
RA-29 13/12/2000 3h30
140

ANEXO B
RELATO AMPLIADO

Segue relato ampliado que inclui observ ação das ativ idades
desenv olv idas em sala de aula, conv ersa com alunos, algumas reflexões
suscitadas pelo conteúdo das observ ações (destacadas em negrito).

Relato Ampliado – n º 15

30/05/00

“Quando chego à escola são cerca de 7h40. Os alunos acabaram de


tomar o café da manhã, e iniciam suas atividades. Luís está na porta da sala, me
viu chegando, logo me cumprimentou: ‘'Oi, Anabela’. Quando entro na sala,outros
me cumprimentam do mesmo modo. Estão copiando da lousa a data e a frase do
dia. Ana não está na sala, os alunos estão sossegados, entretidos em sua atividade.
Pela primeira vez sento-me bem à frente da sala, na fileira próx ima à porta. Lugar
em geral ocupado por João (que faltou) ou Toni. Desse ângulo pude ter mais
acesso àquilo que os alunos faziam.

Na lousa a data, com um erro: 29 em vez de 30 de maio. A frase do dia é


‘EU SOU CAPAZ DE SER M ELHOR DO QUE JÁ SOU’.

Algo interessante ocorrido nessa observação foi o acompanhamento do


trabalho de Severino. Um trabalho ex austivo de cópia. Severino fez e apagou
inúmeras vezes, chegando a apagar letras copiadas corretamente da lousa. O
processo foi bastante custoso, algumas letras eram apagadas inúmeras vezes e
havia uma especial dificuldade para fazer a letra S, que acabava por se parecer
com um Z invertido. O caderno era virado para os lados, ora para um lado ora para
outro, chegando, em alguns momentos a ser quase invertido. Esses movimentos me
passaram a idéia de que as letras eram ex austivamente desenhadas por Severino e
de que tais movimentos serviriam para que ele pudesse melhor ‘desenhar’ as letras.
Em nenhum momento ele se levantou para mostrar a Ana, nem lhe pediu
orientações. Isso me lembra que realmente nunca o vi buscar esse aux ílio, apenas
lembro-me de uma vez em que Ana acompanhou seu trabalho mais de perto
(carta às mães). Hoje Ana também não se aprox imou nenhuma vez de Severino,
acredito que nem sequer tomou conhecimento do andamento de seu trabalho.
Apenas ao final da minha observação recomendou a Renato que acompanhasse
141

o trabalho de Severino. Parece-me que alguns alunos foram designados para


assessorar outros. Em relação a Renato e Severino pude observar que não houve
assessoramento algum.

Passo a observar o trabalho de Severino mais de perto. Ele inicia o trabalho


de cópia em uma folha do caderno que está em branco. Copia inicialmente o
2000 no canto superior direito da folha (acompanhar alguns desenhos no caderno
de anotações).

Ana chega depois de alguns minutos que estou sentada. M e diz oi, quando
entra na sala, e dá prosseguimento ao seu trabalho. Pergunta aos alunos se
conseguiram ler a frase. Luís diz que leu.

Eduardo anuncia a minha presença: ‘Professora, a Anabela’

Ana responde: ‘Eu vi a Anabela’.

Severino prossegue escrevendo da direita para a esquerda. O caderno


bastante inclinado, quase invertido. Já havia feito várias letras, apaga. Vira o
caderno pra lá e pra cá enquanto copia da lousa.

Ana aprox ima-se de mim com um papel na mão e diz: ‘Eu não esqueci
hoje’, e me entrega a prometida mensagem. Leio. A mensagem é bastante
carinhosa e fala sobre as pessoas que passam pela vida de outras, comparando-as
a folhas de árvores. Ana escreveu: ‘Obrigada por ser mais uma folha a enriquecer a
minha árvore. 1.956.3498.702 beijos’

Severino apaga novamente, me aprox imo, e verifico que o que resta escrito
no caderno é: M AO 2000. Quando me aprox imo ele fica muito sério enquanto eu
tento uma oportunidade para conversar com ele. Continua virando muito o
caderno. Faz, apaga. Parece um trabalho ex austivo. Lucas copia, levanta-se.
Renato já terminou, seu caderno está embaix o da carteira.

Para os alunos que já terminaram Ana sugere que pintem a data no


calendário. Alguma aluna pergunta que dia é hoje e vários dão sugestões de dias,
30, 31, 13; não me lembro se alguém chega a dizer 29, mas essa variedade de
datas sugerida pelos alunos me faz pensar em qual é o significado para os alunos
da data copiada no caderno, afinal eles acabaram de copiar e não sabem bem
em que dia estamos. Sugere que os alunos vejam qual é o primeiro dia sem pintar
que aparece no calendário da parede da sala e assim conseguem verificar que
estão no dia 30. Ana se dirige à lousa e percebe que fez a data errada. Logo
apaga e coloca o dia certo e pede: ‘Corrige todo mundo,... É só apagar o
numerozinho.’ Severino ainda não chegou ao número, prossegue copiando. Ora
142

apaga aqui, ora apaga ali, ainda está na primeira linha e não apaga somente
coisas que acabou de fazer, mas também algumas do começo.

Rebeca se aprox ima de Ana para mostrar-lhe o seu caderno, Ana diz: ‘Isso
aqui tá parecendo A em vez de O... Senão fica SAU em vez de SOU.’

Severino fica em pé ao lado da carteira e continua copiando. Acredito que


desse modo ele consiga ver melhor aquilo que está escrito na lousa. Caderno
sobre a carteira. Apaga uma letrinha e continua. Ana, pretendendo falar com a
classe, pede que todos sentem. Diversos alunos estão em pé. Severino senta-se.
M ex e em seu envelope da APM , que está embaix o da carteira. Severino presta
atenção na fala de Ana sobre a festa junina. Continua copiando. Parece estar
terminando a primeira linha. Vejo um H. Apaga tudo do H ao 2000. 8h10

Recomeça agora a copiar da esquerda para a direita. Está de pé e vai


fazendo. Ana fala sobre as coisas que os alunos devem trazer para a festa junina:
prendas e alimentos. Cada aluno trará aquilo que puder, e a cada coisa trazida
será atribuída uma pontuação previamente definida, e que Ana comunicou agora
aos alunos. A classe que obtiver a melhor pontuação terá direito a um passeio
grátis. Parece-me que ainda não está definido para onde será o passeio, mas
quando o prêmio é comunicado diversos alunos dão sugestões: bosque, zoológico,
Parque da M ônica.

Severino tem um lápis em cada mão. Ana vai dizendo quantos pontos vale
cada coisa. Fala das bebidas, pinga para o quentão, vinho para o vinho quente.
Alunos fazem um som e uma cara de repugnância. Ana esclarece que não é para
as crianças, apenas para os adultos beberem ‘só um pouquinho’. Severino continua
copiando sentado, não se manifesta em nenhum momento, ao contrário da
maioria dos alunos que faz comentários, diz o que vai trazer, comenta sobre o
passeio. Ele vira o caderno, parece estar desenhando. Levanta o caderno e
observa mais de perto, apaga uma letra, sopra, termina a palavra HORTOLÂNDIA.

A conversa com a sala continua, os alunos querem saber o que acontecerá


se houver empate. Ana diz: ‘Se todo mundo fizer o mesmo ponto, todo mundo vai’.

Horácio está com o caderno aberto, mas não copia, presta atenção em
Ana. Ninguém, ex ceto Severino, está copiando.

Eduardo e Lucas estão com as mãos levantadas. Ana encontra um caderno


em cima de sua mesa, descobrem que é de Ingrid, mas por alguma razão tem o
nome de Tainara.

Luís pergunta se o passeio vai ser de carro. Ana diz que vai ser de ônibus.
143

..............

Ana passa a ler com os alunos a data. Primeiro os alunos vão nomeando as
letras, e depois Ana passa a perguntar como ficam algumas letras juntas: ‘ ‘E o L e o
A? LA. Quando junta o N o que dá?’ Severino continua ainda apagando a primeira
linha. Parece muito ex igente e/ou crítico com seu próprio trabalho.

Quase todos ajudam Ana a ler, todos olham. Severino não, apaga de novo
algo e continua copiando. Olha de perto, vira o caderno prá lá e prá cá. Olha
para a lousa. Olha para o caderno, apaga.

Ana continua, do mesmo modo lendo a frase. É perceptível a diferença de


desenvoltura dos alunos. Enquanto na data eles ‘lêem’ praticamente todas as
sílabas, na frase têm alguma dificuldade até mesmo para ler EU. A tarefa de leitura
acaba ficando mais por conta dos alunos que lêem melhor (especialmente Luís). Os
alunos nomeiam as letras, lêem algumas sílabas, e Ana ajuda a ler as palavras. Em
M ELHOR, Ana pergunta: ‘O que é isto?’ referindo-se ao HOR. Alguns alunos dizem
‘or’ outros respondem Hortolândia, reconhecendo o início da palavra.

Severino apaga algo na primeira linha.

Ana continua conversando com a classe: ‘Quem ex plica esta frase? ’

O primeiro a se manifestar é Eduardo que diz: ‘Posso cuidar mais do caderno


do que eu cuido.’

Luís diz: ‘Deve cuidar dos materiais.’Patrícia: ‘Deve cuidar do material,fazer


a lição e não fazer barulho na escola.’

Eduardo: ‘Pode cuidar mais das nossas coisas do que já cuida.’

8h30. Severino passa para a próx ima linha e escreve o T. M e aproximo para
ver qual foi o resultado da primeira linha: HOTROLNDIA M AI DE 2000.

Pergunto a ele: Posso ver? Ele me deix a ver. Pergunto: ‘Por que você
apagou o que tinha feito?’ Severino responde baix inho, quase sem me olhar,sério:
‘Por que não deu certo.’ Pergunto: ‘Agora deu certo?’ Faz que sim com a cabeça.

Severino olha para fora. As crianças do pré estão saindo da sala. Sorri (algo
muito raro).

A segunda linha prossegue bem mais rápido o resultado é: TE FEAR. Por quê
será que Severino não apaga tanto, será por que o número de letras a copiar era
menor, será que já estava cansado?
144

Um aluno começa distribuir uma folhinha com um tex to e duas figuras para
pintar.

Severino passa para a frase e copia corretamente a primeira palavra: EU.

Olha para trás, vê que Toni pinta, e volta para seu caderno. Fica um tempão
‘desenhando’ o S, que ao final fica parecendo um Z invertido, faz o O e o U rápido.
Olha para sua própria folhinha.

A minha sensação, acompanhando o trabalho de Severino, é de que ainda


falta uma quantidade imensa de trabalho para que ele possa terminar e pintar a
folhinha. Esse episódio ilustra bem aquilo de que Ana se queix ava: a demora em
copiar apresentada por alguns alunos. M ostra também o quanto isso acaba sendo
penoso, talvez fosse interessante observar mais de perto o desempenho de Severino
em lições feitas em folhinhas. É possível supor até que o copiar no caderno
prejudica Severino que acaba não participando de outras atividades didáticas
propostas por Ana.

Severino volta ao caderno que vira pra cá, vira pra lá, copiando. Renato
pinta a folhinha. Horácio também pinta, mas mantém o caderno aberto. M e
aprox imo para ver como foi que ele fez a cópia de hoje:

HORTLÂNDA 29 DE M AE

(algo que parece, talvez, um 9 de ponta-cabeça)

TEDRGAFGQA

EU SOU CAA

Pergunto a ele: ‘Terminou de copiar?’ E ele faz que sim com a cabeça.

Vai mostrar seu desenho, que está pintando, a Ana que elogia: ‘Cada vez
melhor, né?’ Quando ele volta eu pergunto se ele achou que ficou bom. Ele diz que
sim. Aponto para o caderno e pergunto: ‘E esse ficou legal?’ Faz que sim com a
cabeça. Pergunto qual ficou mais legal, e ele aponta o desenho. Renato se
aprox imou de nós mais ou menos a essa altura da conversa. Pergunto qual ele
achou que era o mais difícil. Renato diz que achou mais difícil pintar o desenho.
Quando pergunto a Horácio ele aponta o caderno, a cópia da data e da frase.
Renato diz que para Horácio aquele (do caderno) seria o mais difícil. Pergunto ‘Por
quê?’ E Renato diz algo cujo significado não compreendi muito bem: [‘Por que eu
vi ele corrigindo.’]

Quando volto ao meu lugar verifico como anda a cópia de Severino: EU


SOU CAPZ DE. O resultado é sensivelmente melhor e a velocidade maior. Renato vai
145

até Ana, que lhe diz que ele é responsável por Severino. Renato se aprox ima de
Severino e pergunta a ele onde está sua folhinha, passam a procurar a folhinha que
havia sumido. Renato se afasta e Severino continua procurando.

Ana vai ler o tex tinho com os alunos. Começa letra a letra. Severino
encontra sua folhinha. Não acompanha a leitura, continua copiando.

Horácio escuta.

Ana verifica a dificuldade de fazer os alunos acompanharem em suas


próprias folhinhas, e decide passar o tex to na lousa. ‘Vou passar a musiquinha na
lousa.’

Renato pergunta: ‘Professora, pode copiar?’

Ela responde: ‘não.’

Renato insiste, alegando: ‘eu copio rápido’ Ana mantém sua decisão.

Pergunto a Renato: ‘Você queria copiar?’ Ele diz: ‘Queria.’ ‘Por quê?’ E ele
diz: ‘Eu gosto de copiar.’ M e intriga saber se para ele era mais interessante o ato de
copiar, ou ter o registro feito por ele no caderno, então pergunto: ‘O que você
gosta mais de copiar ou de ver pronto depois?’ Ele diz: ‘De copiar.’ Um pouco
depois acrescenta: ‘Eu copio rápido.’ E pergunto: ‘E fica bonito?’ Ele fez que sim
com a cabeça, e diz: ‘De letra de mão fica mais bonito.’ (Renato está fazendo letra
de mão). Eu pergunto: ‘E se for a outra letra?’ ‘Também fica.’ Copiar pode ser um
desejo ou algo ex tremamente trabalhoso, penoso. Pergunto ainda: ‘Como fica
mais bonito: se copiar ou colar no caderno?’ Ele responde: ‘Se copiar... Se copiar
aprende mais.’

Ana passa na lousa o tex to, e Luís lê para a classe apontando na lousa.

Severino continua copiando: DE ERS M H a linha de seu caderno acaba.


Severino prossegue escrevendo, dentro do espaço da espiral. Apaga parte daquilo
que havia copiado no começo (que estava correto!).

Tainara traz dois papéis para Ana, que diz para a classe: ‘Acharam duas
lições.’

Severino apagou parte que estava correta e prossegue copiando. Não


consigo ver claramente o que ele está fazendo, mas parece-me que faz errado.
Apaga toda essa linha.

Ana fala com a classe: ‘Nós vamos colar esta lição no caderno... Embaix o
da data.’
146

Severino faz novamente EU, e começa a pintar a lição. M e aprox imo da


carteira de Severino, há um outro aluno utilizando sua carteira como apoio para
colar a lição em seu próprio caderno. Peço para ver a música desse aluno, já
colada. Pergunto a Severino o que ele está fazendo, e ele diz: ‘Pintando.’ Pinta a
baleia de verde forte e o restante da folha de azul bastante forte. Pergunto se ele
terminou de copiar, e ele diz: ‘Depois eu termino.’ Pergunto se falta muito,e ele faz
que sim com a cabeça e indica na lousa: ‘Aquela última linha.’ 9h10.

Ana fica à frente da sala e diz que quer que os alunos cantem a música
cuja letra acabaram de colar no caderno. Ela canta a primeira vez e os alunos
ouvem. A partir da segunda vez pede que eles a acompanhem. Cantam várias
vezes, Ana reclama da participação dos alunos que considera pequena. Nem
todos cantam, porém isso é razoavelmente compreensível, afinal a letra é
desconhecida, e não é tão curta. Como eles ainda não lêem podem apenas
contar com a memória para acompanhar o canto. Ana lembra que o ritmo da
música é o mesmo de ‘pirulito que bate-bate, pirulito que já bateu’. Algumas
crianças passam a cantar essa música. Espero que acabem de cantar para me
despedir de Ana e ir embora. Agradeço pela mensagem, e digo que gostei
bastante.

Uma questão interessante surgiu após essa observação, a partir da


comparação entre Severino e Renato, e suas relações com suas lições feitas nos
cadernos: a diferença de significados e funções da atividade elaborada no
caderno para alunos que fazem isso com facilidade, e para aqueles que têm
dificuldades para copiar e para se organizar. A conversa com alunos no formato
que aconteceu hoje entre mim, Horácio e Renato me parece bastante produtiva,
pois possibilita que cada um dos alunos fale de suas ex periências, mas também de
como é vista a ex periência do colega. Talvez esse formato seja interessante no
momento da entrevista, especialmente no caso de se fazer a opção por entrevistar
algum aluno mais tímido, menos falante.”
147

ANEXO C
FRASES DO DIA

22/05/00 “Devo respeitar meus colegas”


23/05/00 “Sou responsável com as minhas obrigações”
29/05/00 “Eu sou capaz de ser melhor do que já sou”
01/06/00 “Adoro ser educado”
02/06/00 “Amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito”
05/06/00 “Gosto muito de estudar”
06/06/00 “Não solte balão pode causar incêndio”
07/06/00 “A fala é de prata, o silêncio é de ouro”
08/06/00 “Sou uma criança inteligente e obediente”
09/06/00 “Gosto muito de meus amigos”
12/06/00 “Sou muito inteligente e educado”
13/06/00 “Venho à escola para estudar”
15/06/00 "Eu sou uma pessoa muito especial, pois igual a mim não há ninguém"
19/06/00 "Sou um bom aluno, venho à escola para estudar"
20/06/00 “Eu também aprendo brincando”
21/06/00 "Os ex ercícios físicos são os ex ercícios do corpo e a oração é o ex ercício
do espírito"
26/06/00 "Não há nada mais importante do que cultivar verdadeiros amigos"
27/06/00 “Sou abençoado por Deus”
28/06/00 “Eu sou um ótimo aluno”
29/06/00 "Sempre presto atenção na aula"
03/07/00 “Sou muito caprichoso e atencioso com meu caderno e minhas lições”
31/07/00 “Voltei das férias cheio de vontade de estudar!”
01/08/00 "Sou muito educado e simpático"
03/08/00 "Queremos um bom dia bem grande de amor, carinho, amizade e risadas"
04/08/00 "Não há de ser forte há de ser flex ível"
08/08/00 "Sou muito caprichoso com meu caderno"
09/08/00 "Ex ercício físico faz bem à saúde"
10/08/00 "Não devo correr pela escola, porque posso me machucar"
11/08/00 “Gosto muito dos meus amigos de classe”
14/08/00 “Quem com ferro fere com ferro será ferido”
15/08/00 “Santo de casa não faz milagre”
148

16/08/00 “Água mole e pedra dura tanto bate até que fura”
17/08/00 “Quem ama o feio belo lhe parece”
18/08/00 “Quem tudo quer tudo perde”
21/08/00 “Quem vê cara não vê coração”
22/08/00 “De médico, poeta e louco, todo mundo tem um pouco”
23/08/00 “Em terra de cego que tem um olho é rei”
24/08/00 “A cavalo dado não se olha os dentes”
29/08/00 “Quando a esmola é demais o santo desconfia”
31/08/00 “Devagar se vai ao longe”
01/09/00 “Nem só de pão vive o homem”
04/09/00 “Devo prestar mais atenção e conversar menos”
05/09/00 “Faço as minhas lições e só depois converso”
11/09/00 “Faço todas as minhas lições”
12/09/00 “Gosto muito de meus amigos”
13/09/00 “É bom fazer um novo amigo como você”
14/09/00 “Sou muito atencioso e caprichoso com minhas lições”
15/09/00 “Amigos são a verdadeira riqueza do mundo”
19/09/00 “Não tenho preguiça de fazer as minhas lições”
20/09/00 “Não faça aos outros o que você não quer que façam com você”
22/09/00 “Esportes fazem bem á saúde”
25/09/00 “Somos criaturas de Deus”
26/09/00 “Ame a natureza”
29/09/00 “Devemos conviver em paz”
02/10/00 “A vida é uma benção de Deus”
09/10/00 “A amizade é um dom de Deus”
10/10/00 “O seu estrelado me faz apaix onado” (sugestão de um aluno)
16/10/00 “Deus nos ama!”
17/10/00 “Sou feliz e Jesus me ama” (sugestão de um aluno)
18/10/00 “Respeito a professora e meus colegas”
27/10/00: “Somos uma benção de Deus”
30/10/00 “Para que sujar o chão, isto é poluição” (sugestão de um aluno)
06/11/00 “Sou um bom aluno e capricho em minhas lições”
07/11/00 “Não devo mentir”
10/11/00 “Cuido de meus materiais e minhas lições”
16/11/00 “Aprender é muito gostoso”
20/11/00 “Não há de ser forte, há de ser flex ível”
21/11/00 “Abaix o a poluição”
149

22/11/00 “Devemos cuidar de nossa própria vida, assim viveremos melhor”


23/11/00 “Que o espírito de Natal envolva nossos corações”
27/11/00 “Devo brincar e não brigar com meus colegas”
28/11/00 “Deus está em meu coração”
29/11/00 “É tão bom amar a natureza”
04/12/00 “Presto muita atenção aos meus deveres”
06/12/00 “A fé remove montanhas”
150

REFERÊNCIAS

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