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CONFISSÕES DE UM SERIAL KILLER:


"Um ensaio entre estetização e violência através da fotografia"

Centro Universitário Feevale


Pós-Graduação
Especialização em Poéticas Visuais:
Gravura, fotografia e imagem digital
Trabalho de Conclusão de Curso

Professor orientador: Ms.Richard John

Novo Hamburgo, novembro de 2007.


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DEDICATÓRIA

Dedico a realização deste trabalho às

pessoas que sem elas não seria possível

à concretização do mesmo: César Höher,

Daniel Constante, Charles Bagatini, Frank

Souza, Mauro Dockhorn, Priscila

Westphal e minha musa e modelo, Raquel

Buriol.
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AGRADECIMENTOS

Tudo começou com pequenas idas e

vindas à casa de amigos, barzinhos e

bate papo entre colegas de curso sempre

no intuito de dividir meus anseios sobre a

temática deste trabalho e que acabou

tornando-se uma experiência prazerosa

vivida entre amigos e colegas de

profissão. Agradeço ao professor Richard

John pela orientação e paciência.

Muito obrigado.
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Sumário

Introdução ....................................................Erro! Indicador não definido.

1 Corpos de Plástico ....................................Erro! Indicador não definido.

1.1 Precedentes Inconscientes.................Erro! Indicador não definido.

2 A violência como metáfora ........................Erro! Indicador não definido.

2.1 A Incineração......................................Erro! Indicador não definido.

2.2 O Afogamento ....................................Erro! Indicador não definido.

2.3 As Tentativas Falhas ..........................Erro! Indicador não definido.

2.3 O Soterramento ..................................Erro! Indicador não definido.

3 Objeto de Desejo e Obsessão ..................Erro! Indicador não definido.

Considerações Finais...................................Erro! Indicador não definido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............Erro! Indicador não definido.


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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Imagens do universo de brinquedos Barbie que retrata uma vida perfeita,

confortável e feliz. ..................................................................................................... 15

Figura 2 – Imagem com as bonecas escolhidas para participar das simulações de

tortura........................................................................................................................17

Figura 3 – Hans Bellmer, La Poupée, 1936 .............................................................. 18

Figura 4 – Imagem do fotograma revelado na disciplina de fotografia. .................... 19

Figura 5 – Trabalho da disciplina de Fotografia com colagem dos fotogramas no

interior da caixa pintada de preto. ............................................................................. 20

Figura 6 – Hans Bellmer, La Poupée, 1935-36 ......................................................... 22

Figura 7 – Fotografia do soterramento da boneca .................................................... 22

Figura 8 – Cenas do filme “ O Abominável Dr. Phibes” de 1971 e sua inspiração nas

históricas dez pragas de Deus contra um faraó egípcio............................................ 25

Figura 9 – Aplicação das formigas na boneca.......................................................... 26

Figura10 – Aplicação da fotografia com as formigas na caixa contendo balas e

remédios.................................................................................................................... 26

Figura 11 – Imagem do boneca sendo queimada após ser jogada num fosso. ........ 29

Figura 12 – Fotografia com o resultado do processo de queima da boneca. ............ 30


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Figura 13 – Fotografia da boneca acomodada no aquário com água e tinta

vermelha.................................................................................................................... 31

Figura 14 – Fotográfica da boneca afogada no aquário............................................ 32

Figura 15 – Fotografia da experimentação da boneca com pregos. ......................... 33

Figura 16 – Fotografia da experimentação da boneca como andróide. .................... 34

Figura 17 – Fotográfica do enforcamento das bonecas. ........................................... 35

Figura 18 – Imagem da boneca ensacada após ser resgatada do soterramento...... 36

Figura 19 – Imagem da boneca amordaçada, amarrada e ensacada. ...................... 36

Figura 20 – Fotografia da modelo sendo ensacada. ................................................. 37

Figura 21 – Fotografia da boneca enterrada e com a mão exposta. ......................... 38

Figura 22 – Imagem do corpo disforme jogado na vegetação revelando um caráter

ambíguo. ................................................................................................................... 39

Figura 23 – Cindy Sherman, Untitled, 1994. Photo couleur. 126,4 x 186,7 cm. ........ 41

Figura 24 – Imagem de meu trabalho mostrando a junção da modelo real com a

boneca. ..................................................................................................................... 42

Figura 25 – Fotografia de meu trabalho mesclando o elemento humano e o artificiaL .

.................................................................................................................................. 43

Figura 26 – Cindy Sherman Untitled 2004 ................................................................ 44

Figura 27 – Imagem das minhas simulações retratando uma possível vítima. ......... 46

Figura 28 – Imagem da seqüência do mesmo ensaio fotográfico anterior. ............... 46

Figura 29 – Fotografia da boneca simulando uma pose humana..............................48

Figura 30 – Cena do filme “Psicose” de Hitchcock.................................................... 49

Figura 31 – Imagem de meu trabalho com aspectos semelhantes à cena do filme

“Psicose”. .................................................................................................................. 50
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Figura 32 – Imagem registrando a seqüência de cenas de minhas simulações. ...... 51

Figura 33 – Imagem retirada do livro “Serial Killers Made in Brazil” com os restos do

corpo mutilado da vítima. .......................................................................................... 52

Figura 34 – Imagem retirada do livro “Serial Killers Made in Brazil”.......................... 52

Figura 35 – Imagem retirada do livro “Serial Killers Made in Brazil”.......................... 53

Figura 36 – Imagem do meu trabalho fazendo um comparativo com as imagens a

cima citadas. ............................................................................................................. 54

Figura 37 – Cenas do filme “Encaixotando Helena”, de 1993. ..................................55

Figura 38 – “Glassman" – 1995 ................................................................................56


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RESUMO

Neste trabalho de fotografias manipuladas em meio digital retrato a


vulnerabilidade do corpo humano através da violência simulada em minhas imagens.
As imagens produzidas são ambíguas, misturando corpo sintético com corpo
humano. As cenas tornam-se dramáticas e até absurdas, resultados enfatizados
pelo controle da iluminação, enquadramento e foco fotográfico.
O uso do recurso digital neste trabalho é como uma mera ferramenta que
auxilia no meu processo de criação não se tornando protagonista do mesmo. A idéia
é a mola mestra de toda uma campanha publicitária como também de uma obra de
arte.
O caminho que escolhi como linguagem de criação para desenvolver o tema
desta pesquisa foi o estilo grotesco como forma intencional para abordar assuntos
atuais.
Estando inseridos na cultura da era da imagem, da incerteza, do espetáculo
e do narcisismo, destaco a problemática entre beleza e violência, busco uma
reflexão sobre esta relação e tudo o que a envolve: a superexposição, a estetização,
o culto e a banalização do corpo.
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ABSTRACT

In this paper of manipulated photographs in digital environment, it is pictured


the vulnerability of the human body through the violence simulated in my images.
The produced images are ambiguous, mixing synthetic and real human
bodies. The scenes become dramatic and even absurd, results emphasized by the
illumination control, framing and photographic focus.
The use of digital resources in this paper should be seen as a mere tool that
assists in my creation process not as its protagonist. The idea is the central axle of
not only complete advertising campaign but also of a work of art.
The path chosen as creation language to develop the subject of this research
paper was the grotesque style as intentional form to approach current issues.
Being inserted in the culture of the image age, the uncertainty, the spectacle
and the narcissism, the problematic between beauty and violence is highlighted,
searching for a reflection on this relation and everything that involves it: the over
exposition, the overvalued esthetic, the cult and the vulgarization of the body.
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INTRODUÇÃO

Minha formação como designer gráfico sempre obedeceu a certos moldes

formais que impossibilitam qualquer liberdade em abordar alguns temas onde posso

explicitar minhas angústias e sentimentos maiores. Deve-se seguir uma metodologia

específica de projetos para produzir uma demanda de trabalhos gráficos,

solucionando a necessidade do cliente. Iniciar uma pesquisa em artes visuais foi,

então uma oportunidade de extravasar meus limites ou encontrá-los. Tocar em

questões antes impensadas e aprofundar o auto-conhecimento. Criar um produto

diferente dialogando com um novo tipo de cliente, o espectador.

A utilização do recurso digital no meu trabalho tanto no desenho industrial

como nas artes visuais é de uma mera ferramenta que auxilia no meu processo de

criação não se tornando protagonista do mesmo. A idéia é ainda a mola mestra de

toda uma campanha publicitária como também de uma obra de arte.

O Artista cria para produzir novas sensações, pressupõe-se que o mesmo

use suas experiências pessoais para prever a reação do espectador ao observar sua

obra, confere em um ato espontâneo tornando-o quase que mecânico se realmente


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está seguindo o caminho pretendido. Afinal este caminho é claro para ele pois foi

justamente ele quem desenhou o mapa a ser seguido. Ao elaborar sua obra, o

artista pretende tocar o espectador, mas para que isso se concretize é preciso que

este esteja aberto, seja suficientemente informado e tenha sensibilidade para isto.

Tanto o artista quanto o criador publicitário trabalham com o objetivo de sensibilizar,

trocar e criar o prazer ao espectador.

O caminho que escolhi como linguagem de criação para desenvolver o tema

de meu trabalho foi o estilo grotesco, que sempre esteve presente tanto na história

como em diversos setores da humanidade, como explica Thiane Nunes em seu livro

“configurações do Grotesco”. Seu fascínio faz-se notar pela curiosidade do homem

pelo desconhecido e por sua vontade de desvendar mistérios, por encantar-se pelo

diferente ou o que lhe chama a atenção. É como uma categoria cultural inserida em

qualquer sociedade ou época, presente tanto na arte, na literatura ou também na

publicidade assumindo até mesmo um papel crítico, de deboche e, às vezes, de

humor atingindo a sensibilidade do espectador. Exemplo disso são os trabalhos do

pintor e artista gráfico espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828),

uma obra sombria e cheia de crítica, inquietação e denuncia contra os problemas de

seu país. Minhas imagens apresentam características da obra de Cindy Sherman

principalmente por seu aspecto ambíguo e pela utilização da linguagem grotesca

como forma intencional para abordar assuntos atuais. O emprego deste estilo tão

singular é uma forma de criar uma espécie de assinatura no trabalho.

Crio cenários utilizando bonecas que simulam o corpo humano em situações

reais. São imagens de um corpo ambíguo que questiona a banalização, suas


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fragilidades e o desejo de dominação deste corpo. Provoco questionamentos a partir

das relações que se estabelecem entre a boneca e o corpo real.

Neste trabalho de fotografias manipuladas em meio digital retrato a

vulnerabilidade do corpo humano sendo também uma maneira de “imortalizar” 1 este

corpo como registro por meio destas imagens. Abordo como objeto de estudo, o

corpo, essa massa de carne, nervos, ossos e pele, que por meio da sua imagem

manipulada digitalmente, torna-se ambíguo. Crio um corpo artificial, pelo imaginário

artístico que por meio das manipulações destas imagens, simulam incursões sobre o

corpo humano real. São processos de criação que produzem a imagem de um corpo

sintético por meio do controle sobre as técnicas fotográficas de iluminação, foco e

dramatização.

Os resultados destes ensaios fotográficos revelam um corpo dito de outra

maneira, representante de vertentes obscuras, mundos não controlados,

concordâncias perturbadoras e artificiais que podem revelar “nossos estados de

alma”, as “dores ou tensões do mesmo”, nossos segredos, nossa vida, sinais

reveladores na busca por uma melhor compreensão de nós mesmos. Estando

inseridos na cultura da era da imagem, da incerteza, do espetáculo e do narcisismo,

destaco a problemática das relações entre beleza e violência, busco uma reflexão

sobre esta relação e tudo o que a envolve: a super-exposição, a estetização, o culto

e a banalização do corpo. A ação da mídia e como constroem e repetem

eternamente imagens de violência e que, deste modo, capturam o indivíduo e

_____________
1
Da mesma forma que o corpo se perde com a ação do tempo a fotografia, como um suporte frágil,
também se degenera.
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definem o seu comportamento. Que a extrema exposição de um determinado

conjunto de imagens nos faz perceber que normalidade é algo muito relativo em se

tratando da gravidade dos atos oriundos da dualidade humana.

Inicio a pesquisa relatando minhas primeiras experiências nas aulas de

fotografia com a criação de fotogramas a partir de bonecas. Logo em seguida vou

dividindo em capítulos, todos ilustrados com imagens, as várias simulações por que

são submetidas essas bonecas. No capítulo: “A violência como metáfora”, descrevo

cada procedimento em que a boneca é submetida, tanto aqueles que tiveram êxito

quanto aqueles que não atingiram minhas expectativas. Introduzo imagens de cenas

de filmes e de artistas fazendo comparativos com o tema e linguagem de meu

trabalho. Os subtítulos revelam a própria experiência para cada série fotográfica,

como por exemplo, em “O afogamento”, descrevo os passos do procedimento,

analiso os resultados e comparo com fatos reais. O desenrolar destes ensaios

serviram como base para uma nova fase da pesquisa envolvendo o corpo humano

real simulando o corpo sintético e o descontrole humano pela dominação do corpo.

Por último, comparo o resultado das imagens obtidas durante a pesquisa à realidade

do mais incompreendido dos homicidas, o serial killer.


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1 CORPOS DE PLÁSTICO

No início, meu trabalho teve como principal elemento de estudo a boneca da

marca Barbie, um objeto que simula um corpo de mulher perfeito. .

A boneca tipo Barbie representa a fantasia de um corpo que não se acaba

com o tempo, a não ser pela interferência de outro. Um corpo que sem entranhas,

não fede, não apodrece, não lança seus fluidos corporais, nem tosse ou espirra.

Imutável, não envelhece, não emagrece nem engorda, onde unhas e cabelos não

crescem ou caem em que à pele rígida da matéria plástica é o principal órgão como

envoltório do seu interior oco. Um corpo que não pulsa, que não dorme, que não

germina e nem se emociona. A idealização da imagem do ser humano perfeito.

Essa perfeição estende-se também na escolha de seus relacionamentos

íntimos e sociais, seu mundo é cor-de-rosa, vive num mundo feito de sonhos e

fantasia, onde tudo é possível, ela pode ser o que quiser, é o que garante o slogan

da empresa Mattel sobre a boneca Barbie, "be anything". É a queridinha de todos.

Sua existência tornou-se um verdadeiro clássico na imposição das leis do "corpo

bom" em nossa sociedade, mas denota um modelo corporal humanamente


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impossível. É reproduzida em massa e foi à primeira boneca cujo corpo ousou imitar

as formas de uma mulher adulta.

Fig. 1 – Imagens do universo de brinquedos Barbie que retrata uma vida perfeita, confortável e feliz.

Uma pesquisa feita em 1997 pelo psicólogo Albert Magro, pesquisador da

Faculdade Estadual de Fairmont, Virgínia do Oeste, conseguiu esclarecer os

padrões de beleza na sociedade através do sucesso da boneca Barbie.

Foi constatado que as pessoas detestam coxas curtas, pernas curvadas,


dentes caninos grandes (sobretudo os pontiagudos), gengivas
proeminentes, mãos longas, dedos curvados, polegares e pescoço curtos e
maxilares excessivamente projetados. Entre as características mais
apreciadas estão: pernas longas, pescoço comprido, lábios rosados e
carnudos, olhos grandes, ombros eretos, dentes regulares, dedos
afunilados, pele lisa e sem pêlos, ventre plano, arco da sola do pé
acentuado, isto é, as mesmas características da Barbie. O estudo foi
publicado na revista Perceptual and Motor Skills. Faltava, porém, explicar
por que esses aspectos são tão atraentes. [...] Quando se olha para uma
Barbie, nota-se que, não por acaso, a boneca é um condensado de traços
evolutivos (corpo e rosto), sem nenhum traço primitivo. Seria este o segredo
de sua popularidade? [...] Apesar dos problemas que esta boneca pode
suscitar por causa dos tipos de papéis femininos que encarna, ela ilustra o
modo pelo qual se desenvolveu a percepção da beleza humana: Barbie tem
todos os elementos físicos que julgamos “bonitos”
(http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/beleza_de_boneca_2.html).
16

A imagem de “perfeição” da Barbie me desperta inquietação e revolta pois

não somos seres perfeitos, nossa identidade é formada também por nossas

imperfeições. Assim a “perfeição” deste objeto de plástico torna-se completamente

incoerente para representar o ser humano diante de toda sua diversidade. Como um

brinquedo assim poderia ser um objeto tão idolatrado e representante dos ideais de

beleza humana. Sua imagem é a propaganda de uma ideologia falsa.

Em minha prática procuro humanizar a boneca através de sua destruição,

fazendo com que seu corpo de plástico seja elevado ao caráter humano, por meio

de simulações. Por tudo isso, pretendo desmascarar esse andróide bizarro, subjugá-

la e condená-la à pena de sofrer pelos males da carne humana ao mesmo tempo em

que me aproprio de sua aparência como modelo sacrificando-a para meu trabalho.

Assim, posso torná-la mais real através dos sofrimentos e angústias humanas.

Portanto o objeto central de minha obra é este ideal feminino, que segue o

padrão estético definido todas com o mesmo tamanho de busto e quadril, pernas e

braços curvilíneos e longos cabelos. São nada mais do que 29 cm de plástico

oco que equivaleriam a uma altura humana de 2m13cm e as seguintes

medidas de busto, cintura e quadris: 96-45-83cm.


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Fig. 2 – Imagem com as bonecas escolhidas para participar das simulações de tortura.

1.1 Precedentes Inconscientes

A escuridão do ambiente de revelação exerceu um sentimento fantasioso

sobre meus pensamentos. Era sinistro ouvir apenas as vozes vindas daquelas

silhuetas indefinidas. A meia luz as sombras adquiriam formas tão estranhas quanto

o resultado de minhas ampliações. Fui seduzido pelo clima obscuro do lugar.

Formaram-se desejos de destruição originados de meu inconsciente, assim como a

obscuridade das obras de Hans Bellmer (1902 – 1975) que revelam tudo aquilo que

está escondido nas trevas de nossa psique, liberando terríveis desejos para fora da

escuridão afim de que pudéssemos assimilar a plena realidade das nossas paixões

e os conteúdos do mal nelas.


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Fig. 3 – Hans Bellmer, La Poupée, 1936.

Meu trabalho tem seu início pontuado pelo ingresso neste cenário intrigante

e pelas semelhanças com obras de artistas surrealistas, como no caso de Hans

Bellmer. Nas aulas de fotografia dediquei-me principalmente à prática do fotograma

introduzindo elementos que, juntamente com o preto e branco e aquela escuridão,

despertassem a sensação de morbidez daquele espaço: uma sensação de estar

dentro do nada, no limbo, num lugar sem limites, no caos total.

Lembrei-me de um exercício que fiz em um curso de cenografia quando

utilizei algumas bonecas numa maquete com uma temática semelhante. Busquei

estas bonecas e separei partes de seu corpo plástico colocando-as sob o ampliador.

Tirei fotos das bonecas Barbies que tinha, levei-as para o meio digital e imprimi as
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imagens em preto e branco no poliéster. Este material translúcido possibilitava a

passagem da luz e a realização do processo de ampliação fotográfica e obtive

resultados inesperados e satisfatórios. Surgiram imagens com teor de

estranhamento e que não remetia à área humorística ou infantil, pelo contrário,

faziam referência ao bizarro. Os fotogramas eram escanerizados e manipulados em

meio digital. Fiz algumas interferências gráficas nas imagens com textos ou

simplesmente palavras de efeito, foi uma maneira de dialogar com o design gráfico e

a publicidade, área de minha formação acadêmica.

Fig.4 – Imagem do fotograma revelado na disciplina de fotografia.

Fui evoluindo em minha pesquisa, fiz algumas experiências com as partes

do corpo da boneca, descaracterizei-a e mexi muito em seu corpo, agora deformado

o que me levou a pensar melhor sobre a sensação que aquelas imagens causavam
20

em mim, o que as partes do corpo esquartejado daquela boneca proporcionavam.

Agora, a boneca já não tinha a mesma beleza, uma nova estética estava se

formando.

O preto e branco dos fotogramas, neste trabalho, é carregado de

simbologias e conotações, é a passagem da vida para a morte, e desta para o

obscuro e incerto. A perda, a imprevisibilidade da vida como algo que não podemos

controlar mesmo com todos os avanços tecnológicos, das interferências cirúrgicas,

das descobertas no campo da medicina que dizem garantir a manutenção do corpo

e nem tanto da saúde. Esta série de fotogramas denominei “Barbie Barbárie”,

fazendo alusão à selvageria do homem contra o corpo.

Fig. 5 – Trabalho da disciplina de Fotografia com colagem dos fotogramas no interior da caixa pintada
de preto.
21

O comportamento em série e o materialismo impregnado na sociedade é

representado em meu trabalho pelas bonecas reproduzidas de um mesmo molde e

embalado. Sinto necessidade de mostrar no que estamos nos tornando

gradativamente sem perceber: verdadeiros andróides sem recheio, seres sem

identidade. O vazio e a solidão humana foram os temas para o trabalho final de

conclusão da matéria de fotografia, apliquei colagens de fotogramas nas paredes de

uma caixa de madeira pintada de preto e fechada com uma tampa de vidro. Era a

simulação de uma embalagem de brinquedos com seus códigos de barras e

logomarca, porém mais parecia uma pequena urna funerária envolvendo o produto

tão almejado por todos: o corpo.

“La Poupée”, a boneca criada por Hans Bellmer serve de referência para

meu trabalho, sua criação apresenta um objeto de pretensões eróticas, uma criatura

artificial com múltiplas possibilidades anatômicas, uma mistura de menina como

dorso de uma mulher adulta. É uma escultura que evoca denuncia ao culto ao corpo

perfeito na Alemanha nazista. La Poupée e suas fotografias foram reconhecidas

como uma nova maneira de abrir o espírito da sociedade e seus fantasmas

inconscientes e de obrigar o espectador a interrogar-se sobre os sentimentos

produzidos pela obra de arte e sobre as relações com seu próprio. Nessa imagem,

que parece o encontro de um cadáver em um terreno baldio, tenho a sensação da

possibilidade de uma cena de violência real bem como as situações que fotografo.
22

Fig. 6 – Hans Bellmer, La Poupée, 1935-36.

Fig. 7 – Fotografia do soterramento da boneca.


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A boneca utilizada em meu trabalho também faz referência à criança, seus

primeiros contatos coma sexualidade, a fragilidade e imaginação. Quando criança, a

menina quer ser sempre uma mulher adulta.

A inocência e a delicadeza da boneca da menina aqui é instrumento

revelador de pesquisa, e para dar andamento ao trabalho representei atos de

violência sobre o universo infantil representado pela boneca.

O espancamento e a tortura e outras formas obscenas de degradação

geralmente incluem a mulher ou a criança. A criança instintivamente utiliza a boneca

como personagem que reflete sua realidade.

Com ainda pouca idade a criança não verbaliza com facilidade seus

sentimentos. Assim, terapeutas americanos desenvolveram testes indiretos,

principalmente com uso de objetos lúdicos, brinquedos incluindo bonecos com

órgãos e características sexuais bem definidos, como forma de tentar chegar o mais

próximo possível da verdade.

Na “Ludoterapia”, que é a psicoterapia realizada através do lúdico, por meio


de brincadeiras, a criança com suspeita de violência sexual, pode às vezes
jogar tudo em cima do boneco masculino que representa o pai, destrói este
boneco. Num outro caso, uma menina escondia sua boneca dentro do
armário e, assumindo a identidade desta boneca, ela a escondia com medo
que o adulto pudesse molestá-la (Entrevista com Dra. Sandra Panta
Wagner, Psicoterapeuta floral).

Utilizei plástico bolha de cor laranja, como material para envolver o corpo da

boneca, balas de goma coloridas misturam-se a pílulas e remédios. Este é o saldo

da segunda caixa de madeira agora pintada de branco e envolvida com uma tampa

de plástico. Ao fundo da caixa, uma fotografia é colada, nela a imagem de formigas


24

dando a impressão de estarem agredindo a boneca e interferindo em seu visual

devido o movimento desesperador dos insetos sobre a superfície do corpo coberto

por açúcar. A ação de devorar é repulsiva, a dor na carne pelo veneno do inseto

revela a vulnerabilidade humana. O desprezo é total, aqui também faço referência à

solidão e o vazio. O silêncio é sua única companhia. Registro de situações de

pânico congeladas.

Foi um momento de punição em uma cena que me fez lembrar as 10 Pragas

Bíblicas sobre o Egito utilizadas também no filme da série “Dr. Phibes”, interpretado por

Vincent Price (1911 – 1993), um dos maiores monstros sagrados do cinema de horror.

Javé disse a Moisés: Estenda a mão sobre o Egito, para que venham
gafanhotos sobre o país, e devorem toda a vegetação da terra e tudo o que
salvou da chuva pedras (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 82).

Nesta Série dirigida em 1971 por Robert Fuest, Dr. Phibes é um psicopata

gênio louco e incompreendido que quer ser vingar dos médicos que o julgaram culpado

pela morte da esposa. Com o rosto desfigurado, transformou-se numa criatura hedionda

que utilizava uma máscara e arquitetava planos mirabolantes a partir do Velho

Testamento. De visual colorido e estética brega, tocava melodias fúnebres num órgão

estilo “ O Fantasma da Ópera” e possuía uma orquestra de bonecos de cera dos quais

derretia a face após o sucesso de mais assassinatos. Tratava-se de uma comédia de

humor negro.
25

Fig. 8 – Cenas do filme “ O Abominável Dr. Phibes” de 1971 e sua inspiração nas históricas dez
pragas de Deus contra um faraó egípcio.

As maquiavélicas vinganças da personagem do filme somaram-se ao meu

repertório de imagens utilizadas na construção das cenas de meu trabalho,

principalmente no caso das formigas dominando a boneca. Nestas imagens

represento o momento de pavor em que um ser vivo apodera-se de outro o

devorando vivo, para isso fui capturando as formigas que aos poucos iam

preenchendo os espaços do corpo da boneca.


26

Fig. 9 – Aplicação das formigas na boneca

Fig.10 – Aplicação da fotografia com as formigas na caixa contendo balas e remédios.


27

2 A VIOLÊNCIA COMO METÁFORA

[...] ao matar sua primeira vítima estrangulada, sentiu-se como se tivesse


"se apaixonado" pela primeira vez.“ Alexander Pichushkin, 33 anos, serial
killer russo (www.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u335093.shtml).

Incorporei ao trabalho outros modelos de bonecas que imitavam o modelo

Barbie, era interessante também esse detalhe do falso, da imitação da boneca por

outra semelhante. Faria o mesmo a todas que tentassem serem iguais a ela. O fato

de escolher bonecos de sexo feminino aborda o ideal de fragilidade e vaidade mais

evidentes na mulher ficando também mais clara a preocupação com a estética do

corpo e de sua destruição na morte.

Baudelaire personifica a beleza no corpo da mulher, a fragilidade e beleza

retratadas na figura da boneca refere-se ao corpo como objeto de obsessão e

desejo, as conotações que relacionam o universo feminino ao erótico e sexual

transformam-na em objeto de consumo e perversidade que são situações que

introduzo em minhas imagens. Abaixo uma citação onde o autor explicita a ligação

da mulher como representante da beleza.


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[...] A mulher é um reflexo de todas as graças da natureza condensadas


num único ser; é o objeto de admiração e da curiosidade mais viva que o
quadro da vida pode oferecer ao contemplador. É uma espécie de ídolo,
talvez estúpido, mas maravilhoso, encantador, que mantém os destinos e as
vontades presas ao seu olhar
http://www.kplus.com.br/materia.asp?co=302&rv=Literatura

Os Resultados das simulações com a boneca criaram imagens que retratam

as limitações do corpo. Simulei ataques e processos de tortura na boneca, onde fiz

incursões que vão do fogo ao lixo. Reduzi sua integridade física, desrespeitei limites

destruindo-a totalmente. Estes ensaios fotográficos são registros da depredação

contra o corpo. Com a simulação da violência busco o prazer da destruição

promovendo todo um ritual bizarro deixando aquele corpo de boneca mais humano.

O ato de proferir a violência sobre a boneca fica ainda mais chocante por se

tratar da representação da mulher, de um ser humano diferente seria se

chutássemos uma pedra, um pedaço de madeira, por exemplo, não se trata

simplesmente de um aglomerado de plástico, mas sim da representação do corpo

real. As formas delicadas artificiais remetem a sentimentos reais do espectador.

2.1 A Incineração

Esta etapa consistiu em escolher um lugar adequado, isolado e com boas

condições para que o fogo se propagasse e queimar a boneca. Ao queimá-la senti a

perda daquele padrão de beleza massificado, um evento que envolvia sentimentos e

ações reais. A constituição física da boneca, a matéria plástica e seus adornos,


29

queimados geraram um efeito inflamável dando uma sensação dramática causada

pela luz, sombras e cor do fogo. O fogo, para mim, representa o fim, a perda, uma

tentativa de se desfazer totalmente de algo, restando apenas suas cinzas e restos.

Gradativamente as peças do corpo foram sendo pulverizadas transformando-se em

uma realidade inusitada. Separei as partes queimadas com novas formas e cores.

Fig. 11 – Imagem do boneca sendo queimada após ser jogada num fosso.
30

Fig. 12 – Fotografia com o resultado do processo de queima da boneca.

Comecei a sentir um prazer com o ato destruição e me despertou a

curiosidade por personalidades homicidas. Comparo a imagem resultada de minha

experiência com o relato da cena produzida pelo assassino Dennis Nielsen, para

ocultar vitimas.

O corpo permaneceu ali por sete meses e meio, até ser queimado numa
fogueira juntamente com borracha, para disfarçar o cheiro de carne assada.
Jogou as cinzas no chão, espalhando-as e o jovem nunca foi identificado
(Dennis Nielsen, Serial Killer inglês, disponível em:
www.serialkiller.com.br/cur_nielsen.html).
31

2.2 O Afogamento

A próxima experiência envolvia um aquário cheio de água e tinta vermelha

simulando o sangue. Com um corte feito no corpo da boneca ela fica mergulhada em

sangue. A cor vermelha da fotografia foi saturada por meio digital dando maior

impacto a cena. A vítima foi afogada, seu corpo, virado e revirado sob a água turva

da banheira. A cor da água com sangue gerou nova forma à imagem, os cabelos

longos flutuavam sobre a água num movimento suave, era a imagem semelhante ao

desprendimento da alma e do corpo seu corpo físico, uma matéria rarefeita, uma

feição pastosa, um “anjo-demônio”.

Fig. 13 – Fotografia da boneca acomodada no aquário com água e tinta vermelha.


32

Fig.14 – Fotográfica da boneca afogada no aquário.

As imagens resultantes desta experiência também adquiriram muitos

aspectos semelhantes com outro relato das violências do assassino Dennis Nielsen.

Uma certa delicadeza de um corpo submerso contrastando com o domínio sádico do

predador.

Gentilmente, ajeitou o corpo do amigo na banheira, abriu a água e lavou o


cabelo do jovem. O corpo estava frouxo e mole. Foi uma luta tirá-lo da
banheira e enxugá-lo [...] (Dennis Nielsen, Serial Killer ingles disponível em:
www.serialkiller.com.br/cur_dennis_nielsen.html).

2.3 As Tentativas Falhas

Investi depois, na perfuração de pregos sobre o corpo da boneca, o que não

foi uma experiência satisfatória por não criar a impressão de realidade devido à
33

escala do tamanho dos pregos utilizados no processo. Cada um dos instrumentos de

tortura empregados: alicates, chaves de fenda, martelo e pregos não tinham a

veracidade do ato sobre o corpo humano. A perfuração da matéria plástica não é

rápida como no corpo real e esta dificuldade atrapalhava a intencionalidade do ato

em si.

Fig. 15 – Fotografia da experimentação da boneca com pregos.

Outra situação que me deparei foi quando montei uma pequena instalação

sobre uma base inox simulando um andróide como no filme “Metrópolis”, filme mudo

dirigido por Fritz Lang em 1926 com cenários e efeitos especiais fantásticos onde

Maria, uma andróide feminina, representava a mecanização do mundo e seriação do

operariado. O aspecto lúdico e de cunho infantil de minha produção era maior e,


34

portanto, não alcançou seu objetivo inicial. Novamente o problema da escala dos

materiais utilizados foi fatal para o sucesso desta série fotográfica.

Fig. 16 – Fotografia da experimentação da boneca como andróide.

O enforcamento das bonecas também não foi satisfatório, a ação de

enforcamento no corpo da boneca não causava impacto algum, era apenas a mera

separação da cabeça de seu corpo e, em se tratando de um brinquedo, isso é um

evento mais comum de acontecer acidentalmente entre as crianças quando

brincando com as bonecas. Bem como o ensaio fotográfico das bonecas

introduzidas no congelador, as quais eram facilmente identificadas como simples

brinquedos.
35

Fig. 17 – Fotográfica do enforcamento das bonecas.

Obtive maior satisfação com a simulação do empacotamento da boneca em

sacos plásticos. Era mais realista o resultado desta instalação que provoca a

dualidade e o questionamento sobre a verdade do fato ocorrido com a formação da

silhueta do corpo humano. A cor preta da matéria plástica impossibilitava a

visibilidade do seu interior, e isso já era motivo de perturbação. O ato de embrulhar,

envolver o corpo daquela maneira era mais que a representação de um objeto de

consumo e sim uma matéria descartável, o lixo. Em meio translúcido, o desespero

em sufocar a boneca é maior. Os meios-tons adquiridos nessas fotos revelam o

resto de um corpo recolhido e que não se quer expor. Para simular a morte,

prendemos o ar contido nos pulmões, ficamos imóveis, fixamos essa imagem na

câmera digital e levamos ao Photoshop.


36

Fig. 18 – Imagem da boneca ensacada após ser resgatada do soterramento.

Fig. 19 – Imagem da boneca amordaçada, amarrada e ensacada.


37

Fig. 20 – Fotografia da modelo sendo ensacada.

2.4 O Soterramento

Apesar do pequeno espaço utilizado para o cenário trágico, enterrar o corpo

da boneca ganhou um aspecto de cena de grandes proporções devido o impacto

com as imagens que garantiram que maior veracidade no resultado de simulação.

Retratava uma maneira esconder aquele corpo, guardar a vítima sob a terra, como

um tesouro só meu. Cavar com apenas um dedo tinha a mesma grandiosidade de

abrir um buraco no chão com uma pá. Em meio à vegetação, o corpo da boneca ia

sendo envolvido pela terra escura do vaso de plantas. Aquele belo cabelo agora
38

coberto pela terra já não tinha a mesma dona, ele agora era meu. A ação de soterar

carrega um significado de guardar para si o corpo sem vida, desta forma o indivíduo

criminoso pode vigiá-lo. Como no caso do assassino Andrew Bratkowski Thias,

sargento da aeronáutica, que matou a esposa.

[...] relatou ao delegado que, após seis dias, ele teve receio de que alguém
pudesse descobrir o corpo enterrado e, por isso, decidiu desenterrar e levar
o corpo para o quintal da casa dos pais [...] (disponível em:
www.noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI2035625-EI5030,00.html).

Fig. 21 – Fotografia da boneca enterrada e com a mão exposta.


39

Fig. 22 – Imagem do corpo disforme jogado na vegetação revelando um caráter ambíguo.


40

3 OBJETO DE DESEJO E OBSESSÃO

O contato com o corpo sugere e evoca incontroláveis sensações, leva ao

auto-conhecimento do indivíduo definindo seus limites. A obscuridade da obsessão

causada com o desejo é retratada nesta passagem do livro “História da Beleza”:

Grande, bela, de “carne soberba”, ela provoca como nunca “o desconhecido


do desejo”, essa “loucura” se apoderando de alguns de seus visitantes à
vista de sua intimidade de carne apertada sob seus “vestidos simples, tão
leves, tão finos”. Uma força misteriosa se desprende dela, uma força
estranha, essa “outra coisa” que Zola não pode nomear e que transfigura a
beleza: “um odor de vida, uma onipotência de mulher que excita o público”
(VIGARELLO, 2006, p. 122).

Nesta nova etapa do trabalho, convido alguém para brincar, chamo uma

amiga que servirá como modelo. A vítima é o objeto do maníaco. Já não posso fazer

tudo isso sozinho porque a pesquisa agora ganha proporções maiores. Nesta série

não precisei me preocupar com a escala já que não fotografei o corpo da boneca,

mas a modelo com intenção de imitar a boneca. Antes simulava o ser humano,

agora faço o contrário. Conto com o auxílio da técnica fotográfica, da luz e sombra e

iluminação e do enquadramento. Buscava que os detalhes nas fotografias

formassem imagens ambíguas e cheias de possibilidades. Nestes novos ensaios

queria transportar-me para uma outra fase mais próxima do real, como algo que

poderia realmente ter acontecido. O gesto do corte, a iluminação utilizada de forma


41

intencional serviria para aumentar o ruído entre as cenas gerando o estranhamento

entre ficção e realidade. Considerei o que era focado e aquilo que era ocultado pela

câmera possibilitando assim, as múltiplas interpretações do espectador. Organizei o

cenário de forma que a desempenho da modelo imitasse a boneca. Controlo e

ordeno seus gestos de maneira que não me sinta integrado aquelas cenas. Minha

vontade faz parte daquelas cenas, mas não me exponho a qualquer forma de perigo.

Minha interferência nestas performances é controlada e segura, diferente do

resultado das imagens capturadas que dependem da interpretação do espectador.

A encenação é outra referência obra de Cindy Sherman importante para a

criação de minhas imagens, caracterizada pela utilização de bonecas e partes do

corpo sugerindo uma aparência assustadora e deformada. Em meu trabalho, não

ocupo o papel de personagem sem invadir as cenas que crio, não participo delas.

Meu interesse é de instigar o espectador a imaginar a sucessão ou origem dos fatos

registrados, despertar o apetite narrativo do público que espera ainda um desenrolar

desta história.

Fig. 23 – Cindy Sherman, Untitled, 1994. Photo couleur. 126,4 x 186,7 cm.
42

Fig. 24 – Imagem de meu trabalho mostrando a junção da modelo real com a boneca.
43

Fig. 25 – Fotografia de meu trabalho mesclando o elemento humano e o artificial.

Por meio destas imagens, crio um mundo inventado que simula situações

reais, são encenações que pretendem confundir o espectador quanto à veracidade

dos fatos. Na pose se revela uma encenação que é da ordem da simulação. Cindy

Sherman, usando chapéus, maquilagem e diferentes tipos de penteados desde um

palhaço até uma garotinha, encarna diferentes personagens em sua obra,

problematizando a noção de auto-retrato:

“Tento sempre distanciar-me o mais que posso nas fotografias. Embora,

quem sabe, seja precisamente fazendo isso que eu crio um auto-retrato, fazendo

essas coisas totalmente loucas com esses personagens” (FABRIS, p. 59).


44

Fig. 26 – Cindy Sherman Untitled 2004

Na obra da artista aparecem encenações que partem da visão da mulher

segundo seu papel cultural e social problematizando a identidade feminina com

representações que fazem confundir o eu com o tipo. O estereotipo feminino criado

por Sherman configura-se como tipos provenientes do olhar masculino.

[...] os homens atuam e as mulheres aparecem. Os homens olham as


mulheres. As mulheres vêem-se sendo olhadas. Isso determina não só a
maioria das relações entre homens e mulheres, mas ainda a relação das
mulheres entre elas. O fiscal que existe dentro da mulher é masculino: a
fiscalizada, feminino. Desse modo, ele vira um objeto – e mais
particularmente um objeto da visão: um panorama (FABRIS, p. 62).

No trabalho o corpo é intitulado objeto de desejo e dominação segundo

comportamentos influenciados pela mídia e pela indústria da moda sendo que, em

sua maioria, são instituições dominada pelo homem. O ideal de sedução e de

embelezar-se nada mais do que uma imposição do próprio homem e assim, a

mulher é levada a atender seus desejos de beleza.


45

“O corpo é uma argila moldada à vontade pela cultura física e os cuidados

de beleza” (VIGARELLO, 2006 p.165).

O que minhas imagens sugerem depende do imaginário do espectador

ressaltando a imprevisibilidade do resultado final. Elas criam um fio condutor para

uma narrativa fotográfica que utiliza essa estética para contar uma história. O

resultado das imagens neste tipo de trabalho é mais satisfatório quando não

abusamos do exagero quando não são aplicados sangue e vísceras explicitamente,

funcionando muito melhor em situações sugeridas, intensificando a curiosidade do

espectador. Como defende Thiane Nunes: [...] “a arte e a comunicação do grotesco

também podem transparecer um teor crítico, se revelando e revelando um mundo

que a sociedade por vezes tenta esconder”.


46

Fig. 27 – Imagem das minhas simulações retratando uma possível vítima.

Fig. 28 – Imagem da seqüência do mesmo ensaio fotográfico anterior.


47

Preparei minha vítima para que eu pudesse controlar seu corpo como

dominava a boneca. Acomodei gentilmente seus membros, braços, cabeça e pernas

num cenário cujo enquadramento da câmera não revelasse os verdadeiros detalhes

dos objetos em cena. Tudo é plástico, transformei este corpo em matéria moldável

até estar pronto para ser profanado. Monto as cenas que me convém imaginando

uma performance de prazer bizarro incluindo incursões de agressão física sobre um

corpo cuja identidade é pouco relevante.

Nem tudo deve ser explicitado, a verdade dos fatos é relativa, deixo evidente

aquilo que é relevante ao resultado final, aparece apenas o que quero. Preocupo-me

com a composição das cenas e suas cores. As poses são controladas, bem como a

luz do spot fotográfico que proporciona sombras disformes criando novas linhas e

silhuetas na modelo. A leitura e compreensão destas cenas dependem dos detalhes

técnicos das imagens e com isso pretendo confundir o espectador.

Sherman explorou os recursos técnicos, os contrastes luminosos propiciados

pela fotografia como também utilizou muita maquiagem para se transformar em

inúmeros personagens. As interferências destes elementos resultam na dualidade de

significados e na formação de um clima grotesco e tais recursos simbólicos

permeiam a desconstrução do indivíduo.

Quero estimular a sensação de dor no observador por se tratarem de cenas

que remetem ao sacrifício, a violência e a submissão humanas. A sugestão de algo

que poderia ter ocorrido é o resultado principal que almejo com meu trabalho. A

ausência de sentimento de humanidade, ausência de vida. O que restou de um


48

ataque maníaco. A raiva é uma emoção natural do ser humano, podemos ser

monstros de nossas vítimas, odiar é simples.

Estas fotografias me fizeram descobrir o que às torna mais ou menos

humanas. A cor adquirida com a luz amarela do spot de luz fotográfica sobre a pele

e as posições encenadas evidenciam ainda mais o aspecto inerte e artificial

almejado, então as recorro ao meio digital como recurso finalizador do processo.

Fig. 29 – Fotografia da boneca simulando uma pose humana.

Minhas fotografias sugerem um novo tipo de narrativa, uma linguagem

cinematográfica, de videoclipe que imita cenas jornalísticas. Comparo as imagens do


49

meu trabalho com as do filme Psicose, por exemplo, em que Norman Bates

(Anthony Perkins) inspirado no Serial Killer Ed Gein, mata mulheres, e se tratam de

cenas são semelhantes às imagens que criei. O filme “Silêncio dos Inocentes”

também foi inspirando num assassino real, Bufallo Bill.

Fig. 30 – Cena do filme “Psicose” de Hitchcock.


50

Fig. 31 – Imagem de meu trabalho com aspectos semelhantes à cena do filme “Psicose”.
51

Fig. 32 – Imagem registrando a seqüência de cenas de minhas simulações.

Meus ensaios fotográficos nada mais são do que a criação de uma realidade

falsa simulando uma realidade de horror. A boneca substitui o corpo humano bem

como a modelo imita a boneca em poses ambíguas favorecidas pelo enquadramento

das fotografias que sugerem muito mais do que realmente está se mostrando.
52

Fig. 33 – Imagem retirada do livro “Serial Killers Made in Brazil” com os restos do corpo mutilado da
vítima.

Fig. 34 – Imagem retirada do livro “Serial Killers Made in Brazil”.


53

Fig. 35 – Imagem retirada do livro “Serial Killers Made in Brazil”.

Estas imagens são de fotos jornalísticas reais que se assemelha à ficção

devido o seu teor brutal. Fotografias sobre grandes homicídios costumam chocar

pelo impacto de suas imagens, torna-se cruel pensar que o homem possa ter sido

protagonista de tamanho ato de violência. Deparar-se com restos de um corpo nos

faz compará-lo a um manequim, por exemplo, a ausência de vida o torna um objeto

oco e frio como uma boneca. Segue abaixo o relato do espectador das referidas

imagens:

[...] Ao abrir a porta do terraço, Joaquim encontrou uma mala, uma sacola e
vários sacos plásticos. Abriu para ver o que era e, a princípio, pensou que
se tratasse de peças e um manequim. A ilusão durou pouco. Atônito,
percebeu que estava mexendo com partes de um corpo de verdade e
brutalmente retalhado (Serial Killers, p. 118).
54

O processo de incineração da boneca vem relacionar o corpo artificial e o

humano assim como a brutalidade dos atos de violência assemelhando o corpo

deformado a um objeto.

Fig. 36 – Imagem do meu trabalho fazendo um comparativo com as imagens a cima citadas.

Outro exemplo de descontrole e obsessão utilizado como referência no

trabalho são as cenas do filme ‘Encaixotando Helena’, de 1993. A perversidade

revelada na obsessão pela tentativa de controle e domínio de alguém, o sentimento

de rejeição e impotência, a raiva que inerente à vontade humana que é exacerbada

no assassino, faz enlouquecer e almejar a posse daquele corpo, e com o amor não

correspondido pela musa temos a mutilação, a amputação dos seus membros para

evitar a fuga, o resto do corpo como jóia valiosa.


55

Fig. 37 – Cenas do filme “Encaixotando Helena”, de 1993.

O contato com leituras de relatos e imagens reais envolvendo assassinatos

e fotografias com cadáveres me causaram um relativo peso quanto ao

desenvolvimento desta pesquisa e me fez refletir sobre os rumos e limites da

mesma. Entendi que não é meu objeto de estudo trabalhar com o corpo morto real,

mas apenas com sua simulação. Diferente de alguns trabalhos do artista fotográfico

Joel Peter Witkin que mistura corpos defeituosos, pedaços de cadáveres em suas

imagens. Aprecio seu trabalho ousado e crítico com a busca pela beleza através da

estética do grotesco.
56

Fig. 38 – “Glassman" – 1995

O que se passa na mente humana é algo virtualmente impossível de

controlar. Idéias, problemas, simples pensamentos se confundem com sentimentos

de ódio, felicidade e raiva. As atrocidades humanas passam pela cabeça sem afetar

a verdadeira conduta, atitude das pessoas. São simples desejos obscuros, fetiches,

sonhos e pesadelos reveladores da vontade fantasiosa do inconsciente. Nosso

pensamento pode ser descontrolado, mas não se torna público, mas a partir do

momento que expomos de alguma maneira nossos delírios, colocamos em risco

nossa vida, nossa identidade. Esta atitude de mostrar-se a partir de seus ideais tem

relação com a exposição perante a massa e com a hipocrisia do mundo.

“A sutileza da vergonha. Os homens não se envergonham de pensar coisas

sujas, mas ao imaginar que lhes são atribuídos esses pensamentos sujos”

(NIETZSCHE, 2005, p.63).


57

Como na citação acima corro este risco pois acredito na relação do trabalho

com os sentimentos e angústias íntimas do artista, seu idealizador. Penso que a

pesquisa é instrumento revelador e que nos auxilia na busca de respostas para

temas que são pertinentes na vida do artista e de tudo que o cerca. É uma maneira

de dialogar com seu público e também convidá-lo a dividir o sentimento que surge

com minhas imagens. O resultado desta relação, espectador e obra, é sempre

incerto e é sem dúvida o que mais aprecio.


58

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho me fez ingressar em assuntos que não estavam pré-

determinados, fui surpreendido com os novos rumos que a pesquisa tomou

embrenhando-me em patamares impensados, fazendo-me refletir sobre questões

que envolvem não só meu íntimo como dos que me cercam. No começo da

pesquisa, a boneca aparecia como detentora do domínio da perfeição e de repente

me surpreendo com a sua dominação. Anteriormente era pensado que a beleza

controlava, mas agora a controlo por meio dos atos de crueldade, como no caso do

serial killer impondo o medo e a violência às suas vítimas. O trabalho ultrapassou

seus limites descontrolando minhas expectativas.

Iniciei muito timidamente esta pesquisa e com certa ingenuidade em um

projeto que me fez conhecer minhas atitudes e opiniões diante de novas situações

propiciadas pelo universo artístico. Abriu questionamentos sobre o belo, o prazer da

dominação, a falta de compaixão, o julgamento sobre quem pretensiosamente pode

destruir, a fragilidade humana.


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Comecei meu processo a partir da beleza estigmatizada, o que parecia uma

simples revolta contra a beleza de repente acabou me assustando por transformar-

se em violência. A idéia de perfeição já é um ato de violência quando comparamos

às características e sentimentos de seres tão complexos e múltiplos como o ser

humano. Lemos casos de jovens e até crianças morrendo de anorexia e bulimia,

querendo desesperadamente ser iguais a modelos como Gisele Bündchen e Kate

Moss. Conhecemos diversas pessoas que procuram as mesas de cirúrgicas

satisfeitas por terem seus corpos cortados, retalhados, costurados, injetados e

sugados, para não enfrentarem a realidade imutável do tempo vivido, do

amadurecimento e envelhecimento. Vemos jovens nas academias exercitando-se

até seus corpos sucumbirem e deformarem, tomando complexos alimentares e

drogas para parecerem deuses sem vulnerabilidades. Assim a violência psicológica

e ideológica que nos atinge se concretiza passando de um estágio onde nos

entulhamos de sacolas de compras ou de dívidas culminando na violência física não

importando a dor e o risco da morte. Nesta corrida para alcançarmos à perfeição

estética, provocamos mutilações contra nós mesmos e a pior delas é a perda de

nossa identidade diante da beleza massificada. Pergunto-me sobre a origem dessa

violência. Será que ela provém da mídia que impõe seus padrões de anúncios de

revistas, outdoors e outros? Poderia ser da sociedade que numa ânsia em

hierarquizar, torna-se cada vez mais simplista e intransigente na compreensão das

diferenças. Seríamos nós mesmos? Afinal, somos parte dessa sociedade. Nossas

idéias, conceitos e desejos estão representados nela. Enquanto a mídia, ela nos

seduz pois nos apresenta exatamente o que queremos ver e ouvir. No texto “Narciso

no país das maravilhas” de Contardo Calligari, o autor coloca que o homem moderno

busca o amor e a admiração dos outros, e quando essa busca é frustrada, este trata
60

de encontrar escapes que o psicanalista D. W. Winnicott chamou de “objetos

transicionais”, objetos de consumo.

Precisamos estar inseridos no contexto social participando do desejo comum

e deste modo, ser integrado e amado pelo grande grupo. Tornamos-nos mais felizes

se possuidores de algo exuberante, de destaque e que cative o sentimento de amor

e paixão dos demais. A propaganda que a mídia apresenta todos os dias apresenta

uma espécie de curativo para nossas angústias e a aquisição de bens parece

compensar fracassos e perdas e certamente garantir a felicidade.

Em época de uma exacerbada violência, quando já não nos impressionamos

com famílias morando ao relento, não nos horrorizamos com o número de mortos

nas estradas, como podemos estar conscientes da crueldade do culto à beleza?

Esta tortura que se apresenta de uma forma tão doce e sedutora é uma violência

disfarçada e sutil imposta pelos meios de comunicação, pela sociedade e, enfim, por

nós mesmos.

Este projeto foi uma oportunidade de expor minhas revoltas, insatisfações e

fragilidades diante desta violência. Como um psicopata revidei com violência física

tudo àquilo que me oprime, queimei, afoguei e sufoquei, nada mais, do que minhas

próprias angústias e conceitos.


61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
62

CABERLON, Fernanda K. Corpos confrontados - Monografia de Artes Visuais


Conclusão do Curso de Artes Visuais - Habilitação em Artes Plásticas. Centro
Universitário Feevale Novo Hamburgo, 2003.

CASOY, Ilana. Serial Killers Made in Brasil, - historias reais, depoimentos


verdadeiros, 2º edição, ed ARX, 2006

DUBOIS, P. O Ato Fotográfico.Campinas:Papirus, 1998. 2ª Ed.

FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2004.

KLINGSÖHR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. Koln: Taschen, 2004. 96 p.

MACHADO, A. Máquina e Imaginário - O Desafio das Poéticas Tecnológicas. São


Paulo: EDUSP, 1993.

NIETZSCHE, Friedrich.2005, ed.Schwarcs Ltda.

NUNES, Thiane. Configurações do Grotesco - da Arte à Publicidade, editora nova


prova, Porto Alegre, 2002.

SAGRADA, Bíblia.

VIGARELLO, Georges. Historia da Beleza - O corpo e a arte de se embelezar do


renascimento aos dias de hoje, , ed ediouro, 2006

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray, ed L&PM, 2001

Home pages:

Blog que apresenta comentários sobre filmes de horror. Disponível em

http://juvenatrix.blogspot.com/2005/11/o-abominvel-dr-phibes-1971-e-vingana.html

Acesso em: 12 set. 2007.


63

Site de busca de sobre Literatura. Disponível em

http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=302&rv=Literatura Acesso em 22 ago.

2007.
64

Anexos:
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