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PERCURSOS DA LITERATURA INFANTOJUVENIL

1 – Figurações do desejo e da infância em Eugénio de Andrade


José António Gomes
2 – Literatura para a infância e ilustração – Leituras em diálogo
Ana Margarida Ramos
3 – Encontros e reencontros – Estudos sobre literatura infantil e juvenil
Sara Reis da Silva
4 – Entre textos – Perspectivas sobre literatura infantil e juvenil
Sara Reis da Silva
5 – De capuz, chapelinho ou gorro – Recriações de O Capuchinho Vermelho na literatura
portuguesa para a infância
Sara Reis da Silva
6 – Sinergia onírica entre palco e papel – O Teatro de Marionetas do Porto
Ana Paula Garcia de Almeida
7 – Tendências contemporâneas da literatura portuguesa para a infância e juventude
Ana Margarida Ramos
8 – La guerra civil española en la narrativa infantil y juvenil (1936-2008)
Blanca-Ana Roig Rechou, Veljka Ruzicka Kenfel e Ana Margarida Ramos (coord.)
9 – Palavra de criança não está poluída: a obra infantil e juvenil de Sidónio Muralha
João Manuel Ribeiro
10 – Pensamento que respira e palavra que arde – A poesia infantojuvenil em Portugal
João Manuel Ribeiro
11 – Educação literária e literatura infantojuvenil
Blanca-Ana Roig Rechou
12 – Casas muito doces: reescritas infanto-juvenis de Hansel e Gretel
Sara Reis da Silva
13 – Viagem exploratória pela atual literatura infantil
Cláudia Mota
14 – Literatura Juvenil dos dois lados do Atlântico
Ana Margarida Ramos, Diana Navas
15 – A Música das Palavras
José António Gomes
16 – Capítulos da História da Literatura Portuguesa para a infância
Sara Reis da Silva
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS
ÀS PROPOSTAS DE LEITURA

Ana Margarida Ramos


(Organização)

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17

© Título
Aproximações ao livro-objeto:
das potencialidades criativas às propostas de leitura

© Autor
Ana Margarida Ramos
(Organização)

© Ilustração da capa
Catarina Ramos

© Design da coleção
Gabriela Sotto Mayor

© Paginação
J. José Olim

© Edição
Tropelias & Companhia
Porto

Distribuição
Trinta Por Uma Linha

Impressão
Printhaus
1ª Edição
Fevereiro de 2017
Depósito Legal
422466/17
ISBN
978-989-8582-54-6
Reservados todos os direitos.
Esta edição não pode ser reproduzida nem transmitida,
no todo ou em parte, sem prévia autorização da editora.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS
ÀS PROPOSTAS DE LEITURA

Ana Margarida Ramos


(Organização)

ÍNDICE

1. Livro-objeto: entre o brinquedo e o artefacto. Apresentação .......... 13


2. Livro-brinquedo: contributos para uma tipologia ........................... 25
3. Livros “perfurados”: singularidades e potencialidades .................. 43
4. Livros para embalar: sono e sonhos com texturas ........................... 57
5. Do livro-álbum ao livro-brinquedo: Tobias às fatias e outros livros
“fatiados” ........................................................................................... 71
6. Quem cochicha o rabo espicha, Quem embaralha se atrapalha,
Quem espia se arrepia: mais que livros de imagem, livros-objeto ..........
............................................................................................................ 85
7. Atrás do rasto da Balea: desdobrando universos ficcionais em língua
galega ............................................................................................... 101
8. O livro-objeto e a teoria do Ovo Kinder ........................................ 129
9. Fabrico e uso de livros artesanais na formação de educadores .......159
10. O livro como objeto - Bernardo Carvalho no papel de ilustrador-de-
signer ............................................................................................... 159
11. O leitor no espaço do livro infantil. Para uma poética da leitura a
partir da materialidade ...................................................................... 181
12. Respostas leitoras de crianças e de adolescentes ao livro-objeto.
Análise qualitativa e proposta de classificação ................................. 201
13. Autoras ....................................................................................... 223

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 9

ÍNDICE DE IMAGENS

Figura 1 - Dupla página de O meu pequeno mundo - Pai ............................... 31


Figura 2 - Dupla Página de Boa noite, Bolinha! ............................................. 32
Figura 3 - Vira e combina na quinta ............................................................... 33
Figura 4 - Dupla página de Pedrito Coelho - Quem está escondido? ............. 36
Figura 5 - The Hole Book .............................................................................. 45
Figura 6 - El pequeño agujero ........................................................................ 48
Figura 7 - Lyoké y el gran pastel koki ............................................................ 50
Figura 8 - Círculo Amarelo ............................................................................ 51
Figura 9 - Caras Divertidas ........................................................................... 52
Figura 10 - Duas imagens do filme Despicable Me ........................................ 62
Figura 11 - Livro Sleepy Kittens ............................................................. 63
Figura 12 - Capa do livro It’s time to sleep ..................................................... 64
Figura 13 - Dupla página do livro It’s time to sleep ........................................ 64
Figura 14 - Capa e exemplo do interior do livro Good Night Teddy ............... 65
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
10

Figura 15 - Tobias às fatias ............................................................................ 76


Figura 16 - Exemplo de combinação possível ............................................... 76
Figura 17 - Animalário Universal do Professor Revillod ............................... 77
Figura 18 - Exemplo de combinação possível ............................................... 78
Figura 19 - Todos fazemos tudo ..................................................................... 80
Figura 20 - Exemplos de combinações possíveis ........................................... 80
Figura 21 - Primeira capa ............................................................................... 88
Figura 22 - Primeira capa ............................................................................... 88
Figura 23 - Livro encadernado com portas francesas ..................................... 91
Figura 24 - Primeira capa ............................................................................... 92
Figura 25 - Primeira capa ............................................................................... 93
Figura 26 - Primeira capa ............................................................................... 93
Figura 27 ....................................................................................................... 95
Figura 28 ....................................................................................................... 95
Figura 29 ....................................................................................................... 96
Figura 30 ....................................................................................................... 96
Figura 31 ....................................................................................................... 97
Figura 32 ....................................................................................................... 97
Figura 33 ....................................................................................................... 97
Figura 34 ....................................................................................................... 97
Figura 35 ....................................................................................................... 98
Figura 36 ....................................................................................................... 98
Figura 37 ....................................................................................................... 98
Figura 38 ....................................................................................................... 98
Figura 39 - Livro desdobrável Balea ............................................................ 105
Figura 40 - Livro carrossel ........................................................................... 136
Figura 41 - Livro pop-up .............................................................................. 136
Figura 42 - Livro árvore ............................................................................... 153
Figura 43 - Livro boneca .............................................................................. 153
Figura 44 - Exemplares únicos ..................................................................... 153
Figura 45 - Livro que guarda segredo .......................................................... 153
Figura 46 - (re)encontro autor-obra ..............................................................154
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 11

Figura 47 – (Re)encontro e encantamento ................................................... 154


Figura 48 - As crianças na exposição ........................................................... 155
Figura 49 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006) ........................................ 165
Figura 50 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006) ........................................ 166
Figura 51 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008) ............................ 170
Figura 52 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008) ............................ 171
Figura 53 - Esboço de Bernardo Carvalho ................................................... 171
Figura 54 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009) ......................... 174
Figura 55 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009) ......................... 175
Figura 56 ...................................................................................................... 187
Figura 57 ...................................................................................................... 188
Figura 58 ...................................................................................................... 188
Figura 59 ...................................................................................................... 189
Figura 60 ...................................................................................................... 189
Figura 61 ...................................................................................................... 190
Figura 62 ...................................................................................................... 190
Figura 63 ...................................................................................................... 191
Figura 64 ...................................................................................................... 192
Figura 65 ...................................................................................................... 193
Figura 66 ...................................................................................................... 194
Figura 67 - Documento relativo à Exposição ............................................... 209
Figura 68 - Libro de las preguntas ............................................................... 211
Figura 69 - Excerto de um blogue de uma leitora ......................................... 213
Figura 70 - Página do livro de Shaun Tan .................................................... 214
Figura 71 - Exemplo de produção escrita de um aluno .............................. 217
Figura 72 - Donde viven los monstruos ....................................................... 218


APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 13

1. Livro-objeto: entre o brinquedo e o artefacto.


Apresentação.

Ana Margarida Ramos

1.1. Este volume agrupa um conjunto variado de reflexões e es-


tudos dedicados ao livro-objeto1, pensado quer enquanto artefacto, quer
enquanto objeto lúdico, destinado ao entretenimento artístico do lei-
tor (não exclusivamente criança, como veremos). Durante muito tem-
po arredado da investigação e dos estudos literários, em resultado de
condicionalismos vários, incluindo, em muitos casos, a ausência total
ou parcial de texto, mas também a variedade infindável de propostas
editoriais, o livro-objeto tem vindo a suscitar, mais recentemente, um
interesse crescente por parte dos estudiosos de várias áreas, desde a pe-
dagogia e da psicologia do desenvolvimento infantil2 às artes plásticas,
passando pela literatura e o design.
Com a sua génese ainda no século XVIII, quando os editores
começaram a experimentar formas de recriar a ilusão do movimento em
livros, os primeiros livros-objeto eram livros móveis, que solicitavam
a interação do leitor, convidando a virar abas, destapar partes ocultas,
puxar tiras ou rodar círculos. Entendidos enquanto artefactos, alvo de
uma criação específica por parte da técnica associada à engenharia do
papel, destacam-se, pelo sucesso contínuo ao longo dos tempos, mesmo
na era digital, os pop-up.
Habitualmente situada fora do domínio literário, associada ao li-
vro-brinquedo e ao livro-jogo, pela componente de manipulação e de
interação física que exige ao leitor, a edição de livros-objeto também
não está isenta de implicações comerciais, aproveitada por produtos de

1
Bruno Munari e Warja Lavater designavam desta forma muitas das suas criações, segun-
do Beckett (2012: 20).
2
Ver, neste âmbito, as reflexões reunidas em Kümmerling-Meibauer et al (2015).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
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merchandising associados a imagens tipificadas e globalizadas, nomea-


damente de marcas como a Disney, a Mattel ou outras. Os estudos glo-
bais sobre este tipo de publicações são escassos3, ao contrário do que,
apesar de tudo, se verifica com tipologias editoriais mais específicas
dentro do livro-objeto, como o pop-up, o lift-the-flap book, ou o mix-
and-match book (Spitz, 1996; Smith, 2001; Bellorín, 2010; Boyce,
2011, Ramos, 2016). Sandra Beckett (2012) inclui, no seu estudo sobre
os livros-álbum crossover, várias reflexões sobre tipologias relevantes
do livro-objeto, que associa ou sobrepõe ao livro de artista (2012: 19
e seguintes), destacando, como elemento essencial, o investimento co-
locado na sua dimensão material, enquanto objeto concreto, físico e
tridimensional. Entram nessa categoria obras de cariz experimental do
ponto de vista do design gráfico, como os trabalhos de Munari, Enzo
Mari, Lavater ou Komagata, por exemplo, mas também os livros-jogo,
os livros-álbum sem texto, os livros perfurados ou com recortes, os li-
vros escultura, os livros-acordeão, os livros desdobráveis, os livros com
objetos. A clarificação de fronteiras entre estas subcategorias não é evi-
dente na reflexão da autora, não só em resultado do hibridismo natural
destes formatos, mas também de uma excessiva compartimentação das
tipologias elencadas.
Nas classificações de Salisbury (2005) ou de Van der Linden
(2006), os livros-objeto surgem incluídos no universo do livro intera-
tivo ou tridimensional, no caso do primeiro autor, ou como categoria
autónoma, no caso da segunda. De qualquer modo, estamos em crer que
algumas das suas reflexões relativas aos jogos e quebra-cabeças podem
ser extensíveis aos livros em estudo, dada a componente lúdica que os
caracteriza, mas também a centralidade da imagem e a materialidade
física do objeto, determinante, do ponto de vista conceptual (Salisbury,
2005: 86-87), para a construção do livro. A sua associação ao objeto

3
Ver, ainda assim, Kümmerling-Meibauer, 2011 e 2015 e Kümmerling-Meibauer & Mei-
bauer, 2005.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 15

lúdico, em termos de texto e de ilustração, não inibe leituras mais pro-


fundas e uma exploração do objeto, no que toca à conceção e à estru-
turação, à mensagem e à manipulação. Enquanto objeto experimental,
claramente destinado a explorar as possibilidades e os limites do livro,
estas publicações contemplam a dimensão física, interativa, lúdica, ex-
perimental/laboratorial, tirando partido da materialidade do livro e da
sua construção. A reflexão de Sophie Van der Linden (2013) sobre o
livro-álbum inclui uma série de elementos que o situam na esfera do
livro-objeto, pela dimensão que os elementos da materialidade do livro
(formato, papel, encadernação, impressão...), incluindo o seu design, aí
ocupam. Aliás, as fronteiras entre estes dois tipos de objetos são cada
vez mais estreitas justamente em resultado do investimento criativo que
conhecem, como vários dos estudos aqui reunidos ilustram. A inves-
tigadora francesa continua a incluir alfabetos (p. 64-65) e livros-jogo
(p. 66-67) dentro do universo do livro-álbum nas suas reflexões mais
recentes, referindo-se a formatos “óvnis” e “inclassificáveis” (2013:
76) por causa da hibridez de formatos existentes. Kimberley Reynolds
(2010), por seu turno, destaca como uma das transformações estéticas
mais relevantes na literatura infantil modernista e pós-modernista o re-
levo que o objeto livro passa a ocupar no processo criativo, sobretudo
os livros-álbum, chamando a atenção para o seu fabrico, quer em ter-
mos metaficcionais, quer em termos dos peritextos, da composição ou
tipografia (p. 35-37).
Desta forma, elementos peritextuais (Nikolajeva & Scott, 2001:
256), como o formato e a encadernação, como veremos, são, no caso
dos livros-objeto, significativos em termos da sua construção e da sua
leitura. A questão da ludicidade como uma das marcas da criação con-
temporânea de picturebooks é sublinhada por Nikolajeva (2008: 59),
que destaca, entre outros aspetos, o relevo da sua expressão através de
elementos materiais, como o formato e o tamanho do livro, por exem-
plo. A investigadora não deixa, contudo, de chamar a atenção para o
universo do livro-objeto como revelador das potencialidades criativas
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
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da estética contemporânea exatamente pela exploração da dimensão


lúdica que decorre da sua existência material e interativa, alterando a
relação do leitor com o livro:

in postmodern aesthetics, the boundary between art and artifact beco-


mes vague. A vast output of products nowadays lies in the borderline
between books and toys, employing cuts-outs, flaps, and other purely
material elements that add to the playfull dynamics and demand a cer-
tain degree of interaction to engage the viewers and make them co-crea-
tors (idem, ibidem: 67).

De acordo com Romani (2011: 135), a expansão contemporâ-


nea do livro-objeto destinado a crianças, já antes trabalhado por esco-
las e correntes artísticas específicas, como os movimentos concretistas,
deve-se em grande medida às inovações tecnológicas introduzidas na
indústria gráfica, permitindo um nível de experimentação crescente.
A dimensão lúdica destas edições favorece a adesão dos leitores, pro-
movendo, em primeiro lugar, a surpresa e a curiosidade face a objetos
diferentes, mas depois a manipulação e a exploração das suas múlti-
plas possibilidades, muitas vezes com recurso à repetição, permitindo
releituras e (re)descobertas (Perrot, 1987). Este exercício de busca de
novidade é um dos elementos-chave dos livros-objeto, dadas as possibi-
lidades de criação geradas pelos aspetos materiais como as dimensões,
o tipo de encadernação, o formato, a inclusão de objetos, os materiais
usados, etc.. Desafiadores, originais, exigentes, sem abdicarem da di-
mensão lúdica mas enriquecendo-a com outros níveis de leitura, os li-
vros em análise exemplificam o cariz experimental da edição contem-
porânea para a infância.
Transformado em leitor ativo, incluindo fisicamente através da
manipulação do livro, única forma de aceder à mensagem, a criança
também acede ao seu mecanismo de construção. Além disso, o grau de
liberdade do processo de leitura é claramente amplificado, permitindo
(exigindo!) avanços e recuos nas páginas, tirando partido da esponta-
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 17

neidade do leitor e da sua iniciativa no contacto direto com a matéria


de que são feitos os livros, crucial do ponto de vista da sua construção
e estrutura.

1.2. Em março de 2016, um grupo de investigadoras de diferen-


tes universidades portuguesas e espanholas, a que se juntaram poste-
riormente contributos de colegas brasileiras, reuniu-se na Universidade
de Aveiro para ensaiar uma primeira aproximação ao conceito de li-
vro-objeto, procurando perceber e organizar a variedade de propostas
editoriais existentes. Ficou patente, nesse primeiro encontro, que aca-
bou por tomar a forma de uma reunião de investigação, seguida de um
seminário aberto ao público, não só o interesse que o tema desperta
junto de públicos diversos (investigadores, educadores, professores,
bibliotecários, animadores culturais, pais e mediadores de leitura em
geral), como a lacuna existente, em Portugal, em termos de produção
nacional neste âmbito e em termos de reflexão e teorização. Assim, este
volume pretende reunir e divulgar um conjunto de reflexões que não só
se propõem caracterizar várias facetas do livro-objeto, avançando na
sua classificação, organização e estudo sistemático, como dar conta das
potencialidades de que se reveste o livro-objeto ao nível da formação de
leitores e do desenvolvimento de competências de leitura, desde idades
muito precoces.
O volume inicia-se com um texto de Diana Martins, intitulado
“Livro-brinquedo: contributos para uma tipologia”, onde a autora,
atualmente a desenvolver uma tese de Doutoramento sobre este tema,
não só apresenta uma breve panorâmica histórica sobre este tipo de
proposta editorial, como analisa alguns exemplos de livros-brinquedo
que ilustram categorias diferentes, procurando sistematizar um univer-
so muito amplo e vasto.
Segue-se o texto de Sara Reis da Silva, “Livros ‘perfurados’:
singularidades e potencialidades”, dedicado a um tipo particular de
livros-objeto. Os livros perfurados são aqui apresentados e estudados,
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
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com recurso a uma variedade de exemplos muito significativa, tendo


em conta não só os sofisticados mecanismos gráficos que mobilizam,
mas as implicações, em termos de conteúdo e de sentido, de que se re-
vestem os aspetos relativos à materialidade dos volumes, nomeadamen-
te o impacto do elemento perfurado e as potencialidades que resultam
do seu uso.
Em “Livros para embalar: sono e sonhos com texturas”, de
Ana Margarida Ramos, é realizada a análise de três livros-objeto di-
ferentes relacionados com o tema do adormecimento do bebé ou da
criança pequena, designados genericamente como bedtime books. Ao
contrário do que é comum pensar, algumas destas propostas, ao recor-
rerem à autorreferencialidade, visível na opção pela sobreposição do
tema do livro e do seu uso principal, possibilitam uma leitura mais com-
plexa, em resultado da mise en abîme, com referências a livros e leituras
encaixados nos objetos, mas também de pais e filhos que repetem, no
nível ficcional, os mesmos rituais dos leitores e mediadores, no nível
empírico.
“Do livro-álbum ao livro-brinquedo: Tobias às fatias e outros
livros ‘fatiados’”, de Carina Rodrigues, é um texto dedicado aos “li-
vros às tiras”, os mix-and-match books, uma tipologia que prescinde da
leitura sequencial, multiplicando exponencialmente as potencialidades
combinatórias dos fragmentos. O leitor é, assim, transformado em co-
criador de sentidos e possibilidades de leitura através da manipulação
física e da recombinação dos elementos que constituem os livros. Pu-
blicações semelhantes recebem a atenção de Margareth Mattos, autora
de “Quem cochicha o rabo espicha, Quem embaralha se atrapalha,
Quem espia se arrepia: mais que livros de imagem, livros-objeto”,
um artigo centrado na análise da coleção “Ping-Póing” (1986), compos-
ta por três livros de autoria de Eva Furnari, cujo projeto gráfico-edito-
rial lúdico, criativo e interativo, apesar da fragilidade material, faz com
que possa ser hoje considerada como precursora do elaborado livro-ob-
jeto contemporâneo. Em termos de leitura e de interpretação, trata-se de
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 19

edições exigentes para o leitor, no sentido em que é entendido como um


co-construtor de sentidos, através da manipulação praticamente livre e
quase ilimitada das combinações que o livro lhe permite.
Do fervilhante contexto editorial galego chega uma proposta de
leitura de um livro-objeto desdobrável sem texto, Balea, cuja elaborada
conceção fomenta diversas possibilidades de leitura, pormenorizada-
mente analisadas por Isabel Mociño em “Atrás do rasto da Balea:
desdobrando universos ficcionais em língua galega”. A investigadora
situa esta publicação de destinatário amplo e heterogéneo no contexto
da evolução da produção literária galega atual, traçando uma panorâmi-
ca esclarecedora das suas dinâmicas mais recentes.
Já Cláudia Sousa Pereira recorre a uma original proposta de leitu-
ra de Jean Perrot, pedida de empréstimo a um produto muito conhecido
do público infantil, o chocolate Ovo Kinder, para, em “O livro-objeto
e a teoria do Ovo Kinder”, exemplificar a sua aplicação a dois livros-
-objeto diferentes, um livro-carrossel e um pop-up, cuja publicação é
separada por dois séculos. Tendo em vista a questão da formação de
leitores e da iniciação à educação literária, este texto é também uma re-
flexão sobre as potencialidades do livro-objeto na sedução dos leitores
pela leitura.
Do Brasil, pela mão de Eliane Debus e Rosilene da Silveira, che-
ga “Fabrico e uso de livros artesanais na formação de educadores”,
um texto que apresenta uma atividade realizada com regularidade, des-
de 2001, com estudantes da 5ª. fase do curso de Pedagogia da Universi-
dade Federal de Santa Catarina – UFSC (Brasil), no âmbito da discipli-
na de Literatura e Infância. A atividade consiste na elaboração de livros
artesanais, permitindo aos alunos (futuros educadores e professores)
descobrirem os elementos que integram o livro e as possibilidades de
leitura que este objeto revela junto das crianças. A questão da materia-
lidade do livro e o envolvimento pessoal dos alunos em todas as fases
da sua construção, até à exposição final e contacto com os destinatários,
criam uma relação afetiva com a leitura e com os livros que passam a
ser mais do que simples objetos.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
20

Sandie Mourão, no capítulo intitulado “O livro como objeto -


Bernardo Carvalho no papel de ilustrador-designer”, analisa o re-
levo da materialidade do livro e a intervenção do designer no produto
editorial final, a partir da análise de três obras do ilustrador português
Bernardo Carvalho. Para além da relação entre texto e imagem, a cria-
ção do objeto livro exige uma atenção a todos os elementos que o inte-
gram, buscando unidade e coesão. Nos casos em apreço, ao assumir as
funções de ilustrador e designer, para além de diretor artístico da chan-
cela Planeta Tangerina, os livros resultam de um processo de criação
longo, com múltiplas fases, até chegarem às mãos dos leitores.
Os dois últimos capítulos tratam o aspeto material do livro e a
sua importância no ato da leitura e na formação do leitor. A partir da
análise de respostas leitoras, analisa-se a questão do aspeto material
do livro na construção do discurso, um dos elementos que marcam o
desenvolvimento da edição do livro literário infantil no século XXI. No
primeiro desses dois textos, “O espaço do leitor no livro como objeto.
Para uma poética da leitura do livro-álbum a partir da sua mate-
rialidade”, Rosa Tabernero explora as potencialidades dos aspetos ma-
teriais do livro como objeto ao nível da leitura e da formação de leitores
literários. Centrando-se num conjunto de exemplos variado, oriundos
de diferentes contextos e línguas, a autora dá conta de como a evolução
do livro-álbum tem vindo a aproximá-lo cada vez mais do livro-objeto,
exigindo uma interação cada vez mais ativa e participativa do leitor,
mesmo em termos da sua manipulação, esbatendo as barreiras entre
a realidade e a ficção (ou tirando partido delas para efeitos da própria
criação literária, em construções de cariz metaficcional).
Virginia Calvo, por seu turno, em “Respostas leitoras de crian-
ças e de adolescentes ao livro-objeto. Análise qualitativa e proposta
de classificação”, apresenta resultados de vários projetos de investiga-
ção levados a cabo pelo seu grupo de pesquisa que estudaram as respos-
tas leitoras de diferentes públicos. O tratamento dos dados recolhidos,
através de vários instrumentos, sublinha a relevância da categoria “livro
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 21

como objeto” na aproximação dos leitores ao livro e no próprio proces-


so de construção de sentidos a partir da leitura, observação e exploração
dos objetos propostos.
O volume encerra com a apresentação sucinta de todas as autoras
envolvidas. Redigidos nas línguas maternas de cada uma das autoras,
os textos em línguas estrangeiras foram traduzidos pela coordenadora
do volume e adequados, no caso dos de autoria brasileira, à norma do
português europeu, com vista a dar mais unidade e coesão ao livro. Por
razões de economia de custos, as imagens que ilustram os textos estão
reproduzidas a tons de cinza e não na paleta de cores original, tendo
apenas uma função indicativa e não substituindo a observação dos vo-
lumes originais.
Trata-se, como facilmente se compreende, de uma abordagem
preliminar a um universo vasto e em franca expansão, sem pretensões
de exaustividade. Pretende, igualmente, chamar a atenção dos leitores
para a complexidade criativa e artística de um conjunto de objetos que
revela inúmeras potencialidades do ponto de vista da atração dos lei-
tores em diferentes fases do seu processo de formação, seduzindo-os
pelas formas, pelas cores, pelos sons e pelas propostas de interação.
Assim, este volume que integra os estudos iniciais de investiga-
doras de três países sobre o livro-objeto conta com onze estudos que
abrangem a conceção/criação destes livros, a sua classificação tipoló-
gica, a análise de algumas tipologias específicas e a reflexão sobre as
suas potencialidades formativas e didáticas. Prevê-se que a reflexão
aqui apresentada possa ser aprofundada e alargada, a outros países e
a outras publicações, acompanhando este fenómeno editorial e as suas
repercussões ao nível da formação de leitores e da promoção da leitura.

Referências:

BECKETT, Sandra (2012). Crossover picturebooks: a genre for all


ages. London: Routledge.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
22

BELLORÍN, Brenda (2010). “’Efectos especiales’: el peso de los as-


pectos materiales del libro-livro-álbum en adaptaciones actuales de ‘Los três
cerditos’”. in COLOMER, Teresa, KÜMMERLING-MEIBAUER Bettina,
SILVA-DÍAZ, María Cecilia (ed.). Cruce de Miradas: nuevas aproximaciones
al libro-livro-álbum. Caracas: Banco del Libro, pp. 74-86.
BOYCE, Lisa Boggiss (2011). “Pop Into My Place: An Exploration of
the Narrative and Physical Space in Jan Pienkowski’s Haunted House”. Chil-
dren’s Literature in Education, 42, pp. 243-255.
KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina (2015). “From baby books to
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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 25

2. Livro-brinquedo:
contributos para uma tipologia4

Diana Martins

1. Introdução: contributos para a História, definição e carac-


terização do livro-objeto

A investigação recente tem mostrado que a aprendizagem da lei-


tura e a motivação para ler começam antes da entrada na escola, por via
de experiências e vivências sociais frequentes no dia a dia, estando ain-
da provado que a criança desenvolve mais facilmente as capacidades de
leitura e de escrita se as situações de aprendizagem tiverem um sentido
e uma finalidade real (Pessanha, 2001).
Entre as estratégias de promoção da leitura e de construção de
competências de pré-literacia apontadas, recomenda-se o contacto assí-
duo, próximo e regular com os livros desde tenra idade, possibilitando
à criança o manuseio livre, intuitivo e lúdico, associado a momentos de
prazer e afetividade. Na verdade, os pais são, regra geral, os principais
agentes na hora de fomentar e consolidar o hábito e gosto pela leitura
dos seus filhos. Porém, o sucesso, nestes primeiros anos, depende gran-
demente da sua preparação e motivação, que deve ter em consideração
os interesses da criança, determinados pela fase de desenvolvimento
em que se insere, sem esquecer a vertente lúdica, devendo este contacto
precoce ser conotado com o jogo e a diversão e, portanto, próximo da
aceção de leitor “as a player” (Appleyard, 1991; Goldman, 2010; Ra-
mos e Silva, 2014).

4
Este texto resulta do trabalho de investigação em torno do livro-objeto que está a ser
realizado no âmbito do curso de Doutoramento em Estudos da Criança na especialidade de Li-
teratura para a Infância, no Instituto de Estudos da Criança, na Universidade do Minho, sob a
orientação da professora Sara Reis da Silva.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
26

Antes de se saber ler palavras ou descodificar o complexo siste-


ma de signos verbais que é a língua escrita, o livro começa por ser en-
tendido como um brinquedo (já que o prazer de ouvir e de jogar precede
o de ler), cuja apreensão goza de uma maior liberdade e se inscreve,
essencialmente, no domínio do jogo, que suscita prazer. Assim sendo,
o livro-brinquedo, enquanto objeto capaz de convidar à livre manipu-
lação, propondo uma estimulante desformalização do ato de ler assente
em temáticas do interesse dos pré-leitores e em modos/géneros textuais
diversos, contribui para a adoção de atitudes e de disposições em rela-
ção à linguagem escrita que se constituem como precursoras da literacia
(Cervera, 2004; Goldman, 2010).
De entre a vasta oferta de livros para crianças, os livros-brin-
quedo – referimo-nos, por exemplo, aos livros pull-the-tab e aos livros
pop-up, aos livros-concertina, aos livros às tiras ou mix-and-match, aos
livros-fantoche, entre outros – são consensualmente indicados entre as
sugestões de leitura como potencialmente capazes de incitar exercícios
sensoriais ricos e diversos (oferecendo sons, texturas, etc.). Estes obje-
tos desafiam, de facto, os mais pequenos em termos de leitura e de ma-
nipulação e, por via da presença de uma composição visual dominante
ou, por vezes, exclusiva, torna-se também possível a aproximação de
leitores que ainda não dominam o código linguístico (Ramos e Silva,
2014). Ainda que partilhando certas afinidades que questionam a fixidez
narrativa no que respeita à própria sucessão actancial, convém ressalvar
que, enquanto o livro-jogo se encontra sujeito a regras, no livro-brin-
quedo, sobressai, sobretudo, o caráter livre5 inerente também ao próprio
potencial contacto físico. Com efeito, o brinquedo, por si só, pressupõe
uma relação íntima com a criança e carateriza-se por uma indetermina-
ção, sinónimo também de liberdade e espontaneidade, quanto ao seu
uso (Kishimoto, 2000). Estes livros são “uma produção do mercado

5
Informação veiculada por Sara Reis da Silva sobre o livro-jogo e recolhida aquando
dos encontros “The child and the book”, na Universidade de Aveiro, decorridos entre 26 e 28 de
março de 2015.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 27

de literatura infantil, que compreende livros destinados a brincadeiras,


conhecidos como (...) livros-vivos” (Parreiras, 2006: 24-25).
Essa tendência tem vindo a ganhar expressão nas últimas déca-
das, embora a sua História seja já antiga e tenha tido início no sécu-
lo XIII. Assim, no que respeita à História do livro-objeto, ainda que
a primeira aplicação de um elemento móvel num livro não seja muito
precisa, esta parece remontar ao século XIII, e a Matthew Paris, um
monge beneditino, em concreto à sua obra Chronica Majora, que inclui
um volvelle ou disco/roda giratória. Estas rodas parecem ter sido os
primeiros dispositivos móveis a aparecer nos livros.
Ramón Llull é autor de outra obra que tira partido de um enge-
nho com as mesmas características. Na sua obra, Ars Magna (1275),
inclui discos giratórios de papel que, uma vez rodados, podiam gerar
um variado número de combinações de ideias e que tinham por inten-
cionalidade a conversão ao Cristianismo. Em Cosmographie (1524), o
professor de matemática e astronomia Pierre Apian dá a conhecer um
livro relativo à astronomia onde faz uso, também, destes mesmos ele-
mentos móveis. Estes círculos giratórios eram o dispositivo mecânico
ideal para códigos secretos, de que é exemplo a obra Polygraphia, de
Johannes Trithemius, publicada postumamente em 1518 (Hurst & Ch-
ristian, 2011).
A estes primeiros livros seguiram-se os livros com abas ou os
flap books. Durante o século XVI, são comuns os livros que tiram par-
tido de pedaços de papel colados a ilustrações do corpo humano, que,
uma vez levantados, revelam partes internas deste. Exemplo deste tipo
de configuração é a obra Tabulae Anatomicae Sex (1539), de Andreas
Vesalius.
Durante o século XVIII, um novo dispositivo mecânico ganha po-
pularidade. Trata-se dos livros turn-up, metamorphoses books, também
conhecidos por Harlequinades. Robert Sayer terá sido responsável pela
sua primeira versão impressa, por volta de 1765. Estes livros de baixo
custo tornaram-se conhecidos por Harlequinades, porque a personagem
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
28

teatral Harlequin era a figura central em muitos deles e, não raras vezes,
esse termo surge no próprio título desses volumes. Ainda que admitin-
do variações, essas publicações têm normalmente uma ou duas folhas
ilustradas, com a primeira folha dobrada perpendicularmente em quatro
secções. Uma segunda folha é, então, cortada ao meio e dobrada nas
margens superior e inferior por forma a que cada aba possa ser levan-
tada separadamente. Tirando partido de uma série de dobragens que o
aproximam de um panfleto, quando se levanta ou se baixa parte de uma
ilustração, surge uma nova imagem que faz a narrativa avançar, permi-
tindo introduzir o leitor na história de modo fraccionado (idem).
Acrescente-se, ainda, que, depois de 1800, a editora londrina S.
& J. Fuller publica, pela primeira vez, livros com bonecas de papel,
que disponibilizam algumas figuras recortadas sem rosto em diferentes
trajes, denominados paper doll books.
A partir do século XIX, é possível observar-se a aplicação de
elementos móveis a livros concebidos para entreter e deliciar os mais
novos. A editora Dean & Son, fundada em Londres antes de 1800, passa
a ser reconhecida como a criadora de livros com aplicações móveis des-
tinados ao público infantil, publicando cerca de 70 livros nos quais se
socorre de mecanismos móveis diversos, surgindo, assim, o termo toy
book. Entre os primeiros títulos desta tipologia, encontra-se Dean’s Mo-
veable Red Riding Hood (c. 1857), objeto no qual cada plano da ilustra-
ção está preso ao seguinte por uma fita que, uma vez puxada, faz surgir
um novo cenário em perspetiva. Nos finais do século XVIII e inícios do
século XIX, surgem os livros túnel, tunnel-books, ou peep-show books,
que, invocando uma sensação de profundidade e movimento dentro da
dimensão espacial de uma imagem, num período exórdio ao cinema,
gozam de grande popularidade. Estes livros podiam abrir-se em linha
reta assemelhando-se a um túnel, como A Brief Account of the Thames
Tunnel (1851) (idem).
Ernest Nister foi outro editor especializado em livros-vivos. No
seu Little Pets (1896), as figuras recortadas elevam-se automaticamente
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 29

ao virar da página adjacente, criando um cenário montado sobre uma


ilustração, mas, num outro plano, unido por linhas e tiras de papel. Este
editor foi ainda responsável pela produção de livros com discos gira-
tórios capazes de simular um efeito de decomposição de uma imagem,
recorrendo a uma aba na parte inferior da página, que, ora puxada, faz
deslizar uma primeira imagem dividida em fatias sobre os segmentos
de uma segunda ilustração, criando, desta forma, uma imagem dife-
rente. Para recuperar a imagem anterior, basta rodar a aba no sentido
contrário ao dos ponteiros do relógio. Todavia, os livros mais originais
do século XIX são fruto do trabalho de Lothar Meggendorfer (1847-
1925), autor de alguns dos mecanismos mais complexos. International
Circus (1887) e Comic Actors (1891) são os livros mais representativos
da sua obra, capazes de surpreender pela complexidade e inovação que
evidenciam, bem como pelo cunho humorístico. Meggendorfer não se
contentava com apenas um efeito por página pelo que, em várias das
suas obras, é possível mover cinco partes de uma ilustração simultanea-
mente e em diferentes direções.
Como consequência da I Guerra Mundial, a produção destes ar-
tefactos escasseia. Em 1929, dá-se início a uma nova série de livros
interativos. O britânico Louis Giraud produz, então, os livros pop-up.
Nestes seus volumes, em pelo menos cinco páginas, era possível, viran-
do a página, fazer erguer automaticamente uma ilustração em página
dupla, que podia ser vista de todos os lados (idem). O contacto com as
ruturas artísticas das décadas de 20 e 30, como o Cubismo, por exem-
plo, irá refletir-se em novas formas de representação do real, sendo de
mencionar edições arrojadas como Heads, Bodies & Legs (1946), de
Denis Wirth-Miller, um livro composto por três conjuntos de páginas
separadas (tiras de papel, mix and match book) que permitem criar com-
binações inusitadas (Powers, 2008).
Na década de 1930, a Casa Editrice Hoepli, de Milão, publica o
seu primeiro theatre book. La bela Addormetata Nel Bosco foi conce-
bido neste formato carrossel. Muitos carousel books continuaram a ser
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
30

publicados na década de 1960.


Diante da excelência de obras do século XIX desta natureza, os
editores começaram a publicar reproduções e adaptações. São vários os
livros pop-up publicados a partir da década de 1960. E é, na verdade, na
década de 1980 que se observará um aumento exponencial do número
de livros pop-up (idem).
Decorrente dos desenvolvimentos tecnológicos recentes em ter-
mos editoriais e gráficos e do contributo de um conjunto de novas vozes
de visível qualidade artística, que têm vindo a renovar o universo da
edição literária preferencialmente dedicada aos mais novos, bem como
pelo nascimento de várias editoras exclusiva e/ou preferencialmente
dedicadas à publicação de obras destinadas a crianças, o livro infantil
aufere, atualmente, de uma “dimensão de brinquedo e de obra de arte de
grande elaboração estilística, potenciando diversas e novas utilizações
a que educadores e mediadores de leitura – pais, professores, animado-
res, bibliotecários – terão de dar cada vez mais atenção” (Ramos, 2007:
257).

2. Análise de um corpus textual exemplificativo

Seguidamente, procuraremos explicitar algumas singularidades


do livro-brinquedo, um veículo potencialmente atrativo no campo da
exploração pictórica/gráfica, pela capacidade de experimentação e de
inovação que acarreta. Para tal, recorreremos a um corpus representa-
tivo, selecionado ou fixado a partir de critérios como a data/época de
edição (todos publicados em Portugal entre 2000 e 2016) e a própria
originalidade verbo-icónica e gráfica.
Iniciamos com a análise de um livro muito recente (2016) que
poderá ser incluído na categoria dos “livros perfurados”. Trata-se de
O meu pequeno mundo – Pai (2016), de Jonathan Litton (fig. 1). Este
volume, evidenciando características do livro-álbum poético, assenta
num monólogo protagonizado por diferentes filhos que se dirigem aos
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 31

seus pais, recompensando-os constantemente pelas atividades realiza-


das. Trata-se de uma inversão de papéis, capaz de deliciar e divertir o
leitor, que aqui vê, por exemplo, um pequeno pinguim congratular o
seu pai por este o ter ensinado a patinar. O livro apresenta um formato
quadrangular (19x19 cm), cantos redondos, e está impresso em papel
cartonado. No que respeita à componente gráfica, o livro encontra-se
perfurado, pelo que, ao longo do volume, vemos um recorte em forma
de estrela que vai diminuindo o seu tamanho a cada página e assumindo
diferentes significados ao longo do discurso verbal e imagético, poden-
do ser um troféu que o filho dá ao pai chita por este ter ganho uma corri-
da, ou “uma estrela do mar profundo” que o pai hipopótamo recebe por
ter ensinado o filho a mergulhar, entre outras correspondências. Ape-
sar de, maioritariamente, a estrutura se basear em episódios sucessivos
com uma certa autonomia, no final, o livro recorre às personagens com
que iniciou o discurso para concluir que, independentemente de todos
os seus presentes, o seu pequeno leão é a sua estrela favorita. No que
respeita à componente pictórica, o volume serve-se de imagens muito
coloridas, de figuras estilizadas e de grandes dimensões.

Figura 1 - Dupla página de O meu pequeno mundo - Pai


ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
32

Na vertente dos tipos de livros de tapa e destapa, lift-the-flap,


destacamos a obra Boa noite, Bolinha! (2009) (fig. 2), de Eric Hill, par-
te-integrante de uma extensa e bem divulgada coleção. Ao longo desta
concisa narrativa assente no discurso direto, o protagonista, Bolinha,
vai-se despedindo de várias personagens e objetos que lhe são queridos,
sendo os acontecimentos apresentados de acordo com a sua sequên-
cia cronológica, que culminam com o adormecimento da personagem
principal. Por via de pedaços de papel colados que se podem levantar,
a ilustração adquire uma terceira dimensão e dá aso a um jogo de des-
cobertas. No que respeita à componente pictórica, é de referir a opção
pelo fundo branco que contrasta com as figuras coloridas de contornos
delimitados por uma linha preta.

Figura 2 - Dupla Página de Boa noite, Bolinha!

No âmbito dos livros às tiras ou mix-and-match, assinalamos


a edição do livro Vira e combina na quinta (2015) (fig. 3), de Axel
Scheffler. Neste volume, o leitor pode optar por procurar pedaços de
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 33

uma imagem completa ou por misturar diferentes formas e padrões for-


mando animais “estrambólicos”, como, por exemplo, um “vorco” (me-
tade vaca e metade porco), entre outras. Cada animal formado faz-se
acompanhar por uma breve descrição sob a forma de discurso poético.
Recorde-se o gosto da criança pela deturpação da lógica empírica, da
incoerência/ausência de sentido, do absurdo como formas de transgres-
são da realidade (Ramos, 2007) e a capacidade que a linguagem poética
faculta de “transgressão da boa e sensata moral familiar” (Jean, 1989:
131).

Figura 3 - Vira e combina na quinta

O Sapo Saltitão (2014), de Ronne Randall, faz-se acompanhar


por uma aba que, uma vez pressionada e solta, se assemelha ao mo-
vimento dos saltos do sapo. É um livro de pequenas dimensões facil-
mente manipulável por leitores mais novos. Trata-se de uma narrativa
breve e simples, de estrutura acumulativa, com recurso à rima, na qual
o protagonista exibe as suas habilidades, terminando por encontrar uma
companheira que partilha os mesmos dotes. Trata-se de um livro-álbum
profusamente ilustrado, no qual a figura central é o elemento de maior
destaque na ilustração. A escolha do formato revela como intenciona-
lidade um elevado impacto na apreciação (visual, estética e sensorial),
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
34

adequando-se à mensagem, participando do universo semântico e da to-


talidade estética do livro-álbum. Distingue-se, de facto, como um obje-
to tridimensional que preza pela diferença como forma de valorização,
através da seleção de um formato distinto do de várias obras publicadas
no país.
Olá Adeus (2015), de Delphine Chedru, publicado pela editora
Kalandraka é um livro-álbum do género portefólio/catálogo que explo-
ra a temática dos opostos e que pode ser integrado na categoria do livro
de ilusão ótica. O livro tem como particularidade o recurso a um filtro
azul e a um vermelho, o que permite, por exemplo, que usando o filtro
azul vejamos na ilustração elementos alusivos ao verão, mas, se optar-
mos pelo filtro vermelho para ver a mesma imagem, estes elementos
inicialmente observados ficam ocultos e torna-se visível um cenário de
inverno. Dada a dimensão dos filtros pressupõe-se uma leitura lenta,
cuidada e meticulosa de cada ilustração, semelhante à observação pro-
porcionada por uma lupa. Trata-se de um instrumento interessante ao
nível da literacia visual, e de um interessante jogo visual, que confronta
o leitor com diferentes pontos de vista, picado (de cima para baixo),
contrapicado (de baixo para cima), com planos mais próximos e mais
afastados de um mesmo objeto (veja-se, por exemplo, a ilustração cor-
respondente aos opostos “pequeno” e “grande”, onde ora vemos um
rinoceronte, ora, num plano mais próximo, vemos o mosquito sobre
esse mesmo animal).
Por último, uma referência a um livro-álbum sem texto que pode-
rá ser classificado como livro desdobrável. Trata-se de Será... um gato?
(2015), de Guido Van Genechten, da editora Gatafunho, um volume
de formato retangular que se (des)dobra sobre si mesmo criando, deste
modo, diferentes imagens. À medida que abrimos o livro, vemos que
da orelha de um gato surge um bico de um pato e, deste último, vemos
aparecer a asa de um papagaio, e assim sucessivamente, interrogando o
leitor sobre o que virá a seguir. Estrutura-se, pois, originalmente, tendo
por intencionalidade tirar partido da relação sequencial. O movimento de
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 35

ir para a página seguinte estabelece uma relação causal entre as imagens.


Os diferentes elementos ilustrados surgem isolados sobre um fundo azul,
de cores fortes e contornos bem definidos, características que tornam
mais fácil a sua perceção.
Seguidamente, e porque, no corpus ao qual dedicaremos agora
especial atenção, é possível observar a mobilização de estratégias grá-
ficas muito diversificadas, analisaremos brevemente alguns exempla-
res de livros-objeto publicados pela Civilização Editora e concebidos a
partir da obra clássica de Beatrix Potter, A História de Pedrito Coelho,
narrativa pioneira em forma(to) de livro-álbum narrativo, publicada,
pela primeira vez, a expensas próprias, em 1901. No livro-álbum Pe-
drito Coelho - Uma História para Brincar (2010), o leitor é convidado
a brincar, auxiliando o Pedrito a fugir do Sr. Gregório, a partir diversas
estratégias mecânicas. Deste modo, há momentos em que, por via de
abas que sobem e descem, se simula o movimento de colher amoras.
Noutros, pelo recurso a abas coladas que se podem levantar, descobre-
-se o Sr. Gregório escondido no meio do quintal. Neste volume, texto
e imagem complementam-se na descoberta de sentidos. Há, ainda, o
recurso a uma aba lateral que revela um momento intermédio da nar-
rativa, funcionando como mecanismo de previsão textual, e, assim, au-
xilia na interpretação da história ao nível da formulação de hipóteses.
Por via de discos giratórios, simula-se o saltitar de Pedrito pelo quintal,
enquanto escapa do Sr. Gregório. Na última página, vemos o protago-
nista a descansar depois desta aventura, num cenário pop-up que confe-
re profundidade à ilustração.
É de referir, igualmente, a obra Pedrito Coelho - Quem está es-
condido? (fig. 4), livro-álbum onde se tira partido de discos giratórios
que transformam a imagem numa outra. Mais concretamente, trata-se de
duas ilustrações circulares sobrepostas que partilham o mesmo centro.
Ambas têm recortes em forma de fatia. Uma vez movida a fita, cruzam-
-se as duas imagens até que, continuando a mover-se, a ilustração de
fundo, anteriormente oculta, toma o lugar da ilustração superior. Com
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
36

interpelações diretas ao leitor, esperando-se que este descubra as dife-


rentes personagens que surgem após o puxar da fita, deparamo-nos com
diferentes cenários/contextos como a horta, o lago, entre outros.

Figura 4 - Dupla página de Pedrito Coelho - Quem está escondido?

3. Considerações finais

Como procurámos demonstrar, as obras acima revisitadas impli-


cam uma interpretação articulada e complementar entre dois códigos,
o das palavras e o das imagens. A ligação estreita entre ambos acarreta
níveis de interpretação distintos, num processo de avanços e recuos su-
cessivos. Estimulam e reformulam conjeturas explicativas, motivando
uma pluralidade de leituras e significados para a qual contribuem todos
os elementos que os integram. Reclama-se uma leitura conjunta e dia-
logada entre todos os seus constituintes, tornando possível uma fruição
total do objeto, cuja variedade de explorações e experimentações pre-
tendem surpreender e, simultaneamente, desafiar o leitor. A coabitação
entre códigos narrativos distintos, aliada a um conjunto de particulari-
dades paratextuais, requer leitores ativos e hábeis na prática contínua de
reflexão e de questionamento, avançando possibilidades e confirmando
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 37

posteriormente as interpretações propostas, bem como na leitura dos


interstícios e no entrelaçamento da informação que lhes chega de forma
descontínua e simultânea (Silva-Diáz, 2005). Convém lembrar que “em
larga medida é incontestável que a leitura faz a obra, no sentido em que
pode fazê-la vingar, ou assassiná-la, precisamente porque é o leitor, e
não o autor, nem o texto, quem a realiza, quem lhe dá a vida, quem a
aceita como texto literário” (Leite, s/d: s/p).
As principais singularidades destes volumes repousam, essen-
cialmente, no envolvimento físico/sensorial no relato que reclamam,
cuja tridimensionalidade dá aso a relações inusitadas entre o leitor e o
objeto gráfico, propondo uma estimulante desformalização do ato de
ler, por via da interpelação direta dos sentidos, bem como pelo convite
ao contacto dinâmico e envolvente. Não esqueçamos que o indivíduo se
molda nos primeiros anos de vida através de manipulações e operações
lógicas com o intuito de procurar perceber as coisas e os fenómenos que
o cercam (Munari, 1997).
O livro-brinquedo é, desta feita, um campo rico em explorações
gráficas, encerrando novas possibilidades de leitura, advindas da sua
manipulação física ou sensorial, relativas à exploração de uma quarta
dimensão, o movimento. Efetivamente, o formato particular, muitas ve-
zes invulgar, e os processos de produção gráfica são os elementos que
lhe conferem um caráter particularmente lúdico. A este respeito, é de
referir que

muitos designers acreditam que um livro se define mais pelo seu pro-
pósito do que pela sua forma e que um dos papéis de um designer de
livros é juntar a sua própria perspectiva crítica do conteúdo – modelar,
editar ou cuidar do material do autor, reforçar a experiência de leitura.
Talvez seja assim, porque confrontados com a ameaça de redundância,
numa cultura cada vez mais rendida ao digital, os designers de livros
estejam a reinventar e a reposicionar-se num esforço de validar a sua
prática (Twemlow, 2007: 104).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
38

Assentes numa lógica de fragmentação e descontinuidade, singu-


laridades que se prendem com a estética pós-moderna, estes artefactos
partilham com os seus leitores a responsabilidade de construção de uma
mensagem. Tal virtude relativa ao leitor na condição de coautor no pro-
cesso de construção de sentido(s) remete-nos, em última instância, para
a aceção de obra aberta que, capaz de interpretações e reformulações
diversas, coloca o leitor diante de “um conjunto de relações inesgotá-
veis, ao qual acrescenta o seu próprio contributo” (Alves, s/d: s/p). A
sua abertura intencional pretende provocar a reação/interpretação do
leitor/intérprete, levando-o a apreender a obra

de acordo com a sua própria personalidade, interesses, experiências vi-


venciais quotidianas e horizontes de expectativa, pelo que todo o pro-
cesso de interpretação se encontra condicionado pela própria cultura em
que o indivíduo se insere (idem).

Sempre com uma boa dose de diversão, propõem-se novos olha-


res sob a perspetiva do livro, mais além da relação tradicional do lei-
tor com o objeto, pela exploração de jogos sinestésicos decorrentes da
exploração de sentidos ao serviço da imaginação, capaz do fomento
de uma competência de leitura plural. Por via dos livros-brinquedo, o
livro pode ser entendido, desde idades precoces, como fonte de prazer,
estímulo à curiosidade/descoberta e instrumento indutor de conheci-
mento veiculado informalmente e de forma fruitiva. Dada a profusão de
pormenores úteis na apreensão semântica e diante de uma apresentação
fracionada, particularidades visíveis em alguns dos volumes analisados,
faz-se prever uma atenção demorada, empreendida ao ritmo pessoal de
cada leitor.
Todas estas estratégias, capazes de motivarem e captarem a aten-
ção do leitor, conectam-se com o texto (de quantidade reduzida ou,
mesmo, ausente), aprofundando-o e desenvolvendo-o, preenchendo as
suas omissões e conferindo-lhe, em última instância, as virtudes de en-
treter e instruir.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 39

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Editorial Gustavo Gili.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 43

3. Livros “perfurados”:
singularidades e potencialidades

Sara Reis da Silva

1. Introdução: apontamentos para a definição/caracterização


do livro perfurado

Parece ser consensual a dificuldade em diferenciar, classificar e


designar, com propriedade e rigor, um conjunto de objetos artísticos
ou artefactos que, tendo na criança o seu destinatário extratextual pre-
ferencial, se demarcam, por exemplo, pelo formato invulgar ou pelo
design inovador, materializado no recurso a estratégias como as ‘tiras
ou fatias’, as abas, o pop-up ou o pull-the-tab, as dobragens (como nos
livros-concertina), os recortes ou orifícios, entre outras. “Livros-vivos”,
na aceção de Parreiras (2006), ou book-games, na de Beckett (2012),
por exemplo, estes novos volumes mobilizam sofisticados mecanismos
gráficos, convidando, não raras vezes, ao envolvimento físico do leitor,
que, nesse contacto ostensivamente lúdico, vê a sua capacidade de ob-
servação/decifração e a sua curiosidade intencionalmente estimuladas.
Com efeito, a desconstrução criativa das características formais dos li-
vros convencionais tem resultado na proposta de estruturas gráficas e,
naturalmente, ficcionais alternativas, brincando-se até, por vezes, com
o próprio conceito de livro. As fronteiras entre o livro-álbum narrativo,
o livro animado ou o livro-objeto, por exemplo, adotando a distinção
estipulada por Van der Linden (2006), revelam-se manifestamente frá-
geis e as inovações materiais que estes objetos estéticos evidenciam
estipulam naturalmente uma “revisão” da conceção ou do modelo tradi-
cional de livro. O notório polimorfismo, que tem caracterizado o livro
contemporâneo para a infância, surpreendendo, a cada instante (como
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
44

se não concedesse tempo para uma reflexão, uma arrumação teórica


ou categorização) aqueles que se dedicam aos estudos em torno desta
produção, encontra-se na origem, na nossa perspetiva, dos constran-
gimentos aludidos e dessa espécie de impressionismo crítico que, em
certos casos, se observa.
Os livros perfurados, tipologia sobre a qual refletiremos neste
estudo, que, na verdade, se insere numa outra mais lata, a de livro re-
cortado ou cut-out book, atestam o que vimos de equacionar. Não tendo
sido alvo, até ao momento e tanto quanto sabemos, de uma análise apro-
fundada por parte dos investigadores (Salisbury, 2005; Van der Linden,
2006) que mais se têm dedicado ao estudo das novas formas artísticas
vocacionadas para os leitores mais novos, os livros perfurados e as suas
singularidades merecem um olhar atento.
Importa, antes de mais, explicitar que, com a designação livros
perfurados, um dos tipos que compõem a categoria do livros recortados,
pretendemos referir-nos aos volumes que, resultantes do recurso gráfico
a cortantes, ostentam um ou diversos buracos, furos, orifícios, brechas
ou aberturas no seu papel/nas suas páginas, espaços ‘vazios’ ou ‘ocos’
que permitem espreitar, fazer aparecer ou descobrir. Nestes objetos, for-
temente marcados pela intencionalidade lúdica, o formato, a dimensão
e a própria disposição na página do elemento perfurado tornam-se de-
terminantes para a construção de um sentido global, em muitos casos,
de contornos narrativos.
Assim, naquele que podemos encarar como o vasto âmbito do
livro classificado como livro-objeto e, até, das suas subclassificações
livro-brinquedo e livro-jogo, por exemplo, o livro perfurado ocupa um
relevante lugar, substantivando-se diversamente, como, de seguida,
procuraremos explicitar.
Recorde-se que a técnica do recorte e/ou da perfuração de livros
possui já uma longa História no domínio da edição de livros vocaciona-
dos para os leitores mais novos. Vejamos apenas alguns exemplos para-
digmáticos, sobejamente conhecidos, apenas do século XX, de épocas
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 45

e latitudes distintas, como é o caso do


célebre (e pioneiro) The Hole Book
(1908), da autoria do norte-americano
Peter Newell (1862-1924) (fig. 5).
Trata-se de uma narrativa em
verso que possui um orifício represen-
tativo de uma bala, disparada inadver-
tidamente por um rapaz, Tom Potts,
que perpassa os andares de um edifí-
cio desde o seu sótão, passando pelos
seus vinte andares, até ao seu rés do
chão. Nesta obra, a perfuração repe-
tida, absolutamente simétrica e loca-
lizada sempre no mesmo local da pá- Figura 5 - The Hole Book
gina, representa a passagem da bala por
todos os espaços físicos que servem de cenário à ação, distinguindo-se,
portanto, como um elemento intrínseco à própria narrativa.
A esta obra modelar juntamos também uma outra, diferente em
muitos aspetos, mas que se destaca igualmente pela sua reconhecida
inovação ao nível do recorte. Trata-se da obra The Book about Moomin,
Mymble and little My (1952), da autoria da finlandesa Tove Jansson
(1914-2001). Neste caso, o recurso aos orifícios, recortes ou brechas
observa-se desde a capa e a contracapa do livro – nestes dois para-
textos, em dimensões distintas, incluem-se dois orifícios circulares – e
integram a totalidade da publicação, tanto antecipando ao leitor partes
ou pequenos segmentos das páginas que se seguem, como fixando ou
reclamando um olhar mais atento relativamente a pormenores de passa-
gens textuais já lidas.
A natureza experimental deste tipo de livros que apelidamos gene-
ricamente de livros recortados e perfurados pode, ainda, ser atestada no
trabalho marcante do designer italiano Bruno Munari (1907-1998), de-
signadamente em obras como Nella notte buia (1952) (Na Noite Escura),
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
46

obra editada em Portugal em 2011, com a chancela da Bruaá editora.


Neste volume, Munari tira partido de meios editoriais como o tipo de
papel e os recortes que se transformam em verdadeiros “‘comunicantes’
de alguma coisa” (Munari, 2014: 221). Deste modo, ao noturno das
suas páginas negras na primeira parte da narrativa, ilustradas a azul e
pontuadas por um espaço perfurado, no seu topo, um pequeno círculo,
que revela “uma pequena luz”, junta-se um conjunto de outras páginas
transparentes – “um capítulo semitransparente” (idem, ibidem: 228) –,
já clareadas e, ainda, por fim, de outras “de papel de embrulho, cinzen-
to-bege” (idem, ibidem: 229), livremente recortadas, a representarem
uma gruta e a despertarem a curiosidade do leitor.
Uma outra obra merecedora de menção é The Very Hungry Cat-
terpillar (A Lagartinha Muito Comilona) (1969), de Eric Carle, um
livro-álbum narrativo de larga difusão/receção graficamente singular
pelo recurso quer ao corte diferenciado e gradativo (crescente) das pá-
ginas referentes à sequência narrativa correspondente aos dias de sema-
na, resultante, assim, em dimensões diversas em seis páginas sucessi-
vas, quer aos muitos buracos patentes no centro dos vários frutos que a
protagonista vai comendo. Note-se que, neste caso, os orifícios recriam
física ou materialmente a ação da pequena heroína.
Já na década de 70 do século XX, veio a lume There is an old
lady who swallowed a fly (1972), de Pam Adams (1919-2010), um livro
também amplamente divulgado e igualmente marcado pela estratégia
gráfica da perfuração. Uma conhecida rima tradicional, de tipo cumu-
lativo e caracterizada pelo nonsense, é recriada visualmente em tons
fortes, aliando-se a esta composição um orifício que, ao revelar um de-
talhe da ilustração da página seguinte, parece incitar o leitor a avançar
na leitura.
Uma referência, também, à artista checa Kevta Packovska (1928),
reconhecida pela sua estética experimental, e, por exemplo, a Le peti
roi des fleurs (1991) (O Reizinho das Flores), volume apenas editado
no Brasil, que se distingue, desde a capa, pela inclusão de uma janela
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 47

quadrangular. Conto em forma(to) de livro-álbum, esta obra evidencia


um grafismo muito especial, não só nas formas e nas cores (aliás, singu-
larizantes da criação estética da sua autora), mas também pelo recurso
a uma ‘janela’ que convida à descoberta, cria expectativas de leitura no
potencial recetor e estimula a imaginação.
Merecedoras de destaque são, ainda, as obras criadas pelo japo-
nês Katsumi Komagata (1953-), artista e também designer muito ins-
pirado por Bruno Munari, como acentua Beckett (2012), e muito parti-
cularmente aos títulos Histoire d’une larme (2000), volume que, desde
a capa, ostenta um recorte, em formato de lágrima, que perpassa toda a
narrativa verbo-icónica, e Bruits du vent (2004), um texto marcadamen-
te poético, de elogio da natureza, sustentado por sofisticados recortes de
páginas cromaticamente muito diversas.
Outros dois autores contemporâneos têm mobilizado semelhante
estratégia nas suas narrativas. Referimo-nos a Emily Gravett em, por
exemplo, Little Mouse’s Big Book of Fears (2007) (O Grande Livro dos
Medos do Pequeno Rato) e ao premiado Again! (2011) (Outra Vez!).
Se, no primeiro, o recurso ao recorte é visível logo na capa, no caso do
segundo, é na contracapa que ele se revela mais significativo. Em am-
bos os casos, os espaços perfurados, suscitando a surpresa e, por vezes,
o riso, emergem como mecanismos alicerçantes da narrativa, corpo-
rizando ações dos protagonistas. Tal como nestas obras da premiada
ilustradora inglesa, também o irlandês Oliver Jeffers, em volumes como
The Incredible Book Eating Boy (2006) (O Incrível Rapaz que Comia
Livros), substantiva o gesto singularizador do protagonista da narrativa
e inclui um recorte num canto da contracapa, recriando uma dentada.
Uma referência, ainda, a uma obra de autoria portuguesa. Com
textos de José Eduardo Agualusa e ilustrações de Henrique Cayatte,
destaque-se a coletânea de contos Estranhões & Bizarrocos (estórias
para adormecer anjos) (2000), Grande Prémio Gulbenkian de literatura
para crianças e jovens – modalidade livro ilustrado (2002). Trata-se de
um volume graficamente muito estimulante, na medida em que a inclu-
são de recortes de formatos variados – círculo, quadrado, estrela, entre
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
48

outros – permite focalizar pormenores das ilustrações, multiplicando as


perspetivas e os pontos de vista a que o leitor tem acesso.

2. Análise do corpus textual

Revisitados alguns títulos imprescindíveis no domínio do livro


recortado e/ou perfurado, procederemos, de seguida, à análise de um
corpus textual relativamente restrito composto por obras contemporâ-
neas – todas editadas no século XXI – que possuem em comum o facto
de integrarem orifícios com formato circular (ou muito próximo deste),
cuja dimensão não se altera ou, pelo contrário, se modifica, resultan-
do numa diminuição de tamanho. Esta seleção define-se, pois, empi-
ricamente, pela composição gráfica, pontuada por um orifício circular,
como mencionámos, que interfere significativamente na própria arqui-
tetura textual ou na narrativa, apresentada sempre a partir de uma cons-
trução em forma(to) de livro-álbum narrativo. Destacamos, pois, quatro
livros cartonados e resistentes, dois deles de cantos arredondados, a
convidarem ao manuseio livre por parte do leitor infantil, obras não
publicadas em língua portuguesa, que possibilitam a exemplificação
do percurso criativo a que temos
vindo a aludir. A este conjunto de
quatro, acrescentaremos, ainda,
a referência a um outro volume
em formato reduzido que, pelas
razões que, a seu tempo, regista-
remos, se diferencia ligeiramente
dos anteriores.
Em El pequeño aguje-
ro (2009) (fig. 6), de Isabel Pin
(1975-), a perfuração ocorre des-
de a própria capa do volume, de-
crescendo progressivamente em
dimensão. Figura 6 - El pequeño agujero
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 49

Neste volume, à medida que se voltam as páginas da obra, um


conjunto de círculos concêntricos sobrepõem-se e vão dando a conhe-
cer, a partir do aproveitamento da sua forma geométrica, um elemento
relevante sempre diferente e fundamental em cada sequência narrativa
ou momento da diegese. A curiosidade e a surpresa, intencionalmente
estimulada/inaugurada desde a primeira página, pela omissão do que é,
de facto, esse “pequeño agujero” e também, ao longo de todo o relato,
pela prevalência de frases simples na forma negativa, são, em larga me-
dida, resultado quer da ilustração em grande formato das páginas pares,
quer dos orifícios focais dominantes em todas elas. Assim, a própria
materialidade do livro contribui para a construção do sentido da nar-
rativa, na medida em que cada voltar de página estipula uma alteração
espacial, bem como um avanço no relato/na ação. A busca da solução
para esta espécie de enigma apenas desvendado no final é fortemen-
te estimulada pela revelação paulatina de pormenores que cada página
perfurada oferece.
Em Et Avant (2012), do artista francês CharlÉlie Couture (1956),
com ilustrações de Serge Bloch (1956-), o discurso visual, no registo a
que este ilustrador nos tem habituado – minimalista e metafórico, como
em Moi, J’attends (2005) (Eu Espero), por exemplo –, integra um bu-
raco circular que perpassa todo o volume, situando-se sempre no centro
de cada página. Este orifício, absolutamente estruturante para a cons-
trução textual, de contornos poéticos e metafísicos, vai representando
elementos distintos do real e da vida – por exemplo, ponto de interro-
gação, sol, balão, boca, ventre materno, entre outros – e proporciona
uma espécie de viagem no tempo e de regresso às origens, num especial
percurso reflexivo ou estímulo ao autoconhecimento.
The Hole (2013), de Øyvind Torseter (1972-), um dos mais re-
conhecidos ilustradores noruegueses, é um singular exemplo recente
de livro perfurado. Nesta obra, de essência simultânea e levemente fi-
losófica e cómica, o orifício encontra-se incorporado na narrativa vi-
sual, composta num registo visual minimalista e monocromático que
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
50

torna evidente esse elemento gráfico. Trata-se de um texto que recria


o desconforto de um protagonista ao encontrar, um dia, um buraco que
o persegue no seu apartamento. Também neste caso, a perfuração de-
sempenha um relevante papel na própria construção narrativa, na me-
dida em que o orifício, colocado sempre simetricamente, participa do
cenário e (quase) pode ser lido como um elemento que interage com o
próprio protagonista.
Já em Lyoké y el gran pastel koki (2014) (fig. 7), de Nathalie Die-
terlé, autora-ilustradora que assina uma dezena de volumes centrados
na personagem que o título introduz6, o orifício, neste caso, ausente da
capa, também de configuração
circular, embora não totalmente
regular ou, por outras palavras,
distinguindo-se como um círculo
expressivo ou livre, representa o
motivo desencadeador da ação do
protagonista, um bolo, e perpassa
todo o volume, permanecendo em
tons laranja e diminuindo de di-
mensão.
Esta redução de tamanho Figura 7 - Lyoké y el gran pastel koki
decorre da própria evolução da nar-
rativa e, em particular, da atuação das figuras que se vão cruzando com
o protagonista. A narrativa abre com o discurso do pequeno herói que,
estupefacto/aflito, vê o seu bolo fugir-lhe das mãos por ação do vento.
A partir daí, cruzando-se com um grupo de oponentes – um “maldi-
to león”, uns “Pájaros malos”, um “horrible camaleón” e “hormigas”
–, Lyoké vai sentindo a perda progressiva de parte do seu “pastel”. A
gradação decrescente que o discurso verbal estipula – observe-se o uso
dos adjetivos “gigante”, “enorme”, “grande” e, por fim, “pequeno” –

6
Na versão original, publicada pela Hachette, com o nome Zékéyé.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 51

substantiva-se na própria redução gráfica do tamanho do orifício que


representa o objeto de interesse e/ou de desejo do protagonista. As ilus-
trações, em traços sóbrios e simples, representam apenas o essencial
– ou seja, recriam somente as personagens –, e combinam, assim, com
simplicidade com o discurso verbal, um conjunto de frases em discurso
direto, exclamativas e de tipo imperativo, pronunciadas pelo herói.
A estas obras juntamos, ainda, um volume cartonado, de formato
reduzido, parte-integrante de uma coleção de quatro títulos vocacio-
nados para pré-leitores, cuja construção assenta no binómio temático
forma geométrica-cor. Da autoria da premiada artista inglesa Jane Ca-
brera, estas obras ficcionalizam o Quadrado Azul, a Estrela Verde, o
Triângulo Vermelho e o Círculo Amarelo (títulos, aliás, dos volumes),
tendo como denominador comum uma personagem animal, um peque-
no rato visualmente apresentado desde a capa da publicação. Optámos
por revisitar, no contexto desta abordagem, o último título mencionado
– Círculo Amarelo (2003) (fig. 8) –, uma vez que também, neste caso, se
trata de uma construção gráfica fortemente determinada pela inclusão
de um círculo recortado, que perpassa todo o volume e que permanece
inalterado na sua dimensão.
Numa sucessão verbo-dis-
cursiva que se aproxima do mode-
lo habitual do livro-álbum catálo-
go (Ramos, 2011), embora não se
possa ignorar a presença do dis-
curso direto e de algumas suges-
tões actanciais que, de certa for-
ma, imprimem ao texto uma subtil
narratividade, o círculo amarelo,
já introduzido na capa da publi-
cação, vai-se desvendado e assu-
mindo sucessivamente a forma de
Figura 8 - Círculo Amarelo
um “belo balão amarelo”, de um
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
52

“grande nariz do urso”, de uma “bola saltitona”, de um “sol delicioso


e quente”, de uma flor que cheira bem e, por fim, de “belas bolas de
sabão”. O visualismo inerente à expressão titular estende-se à totali-
dade da composição, tanto no domínio ilustrativo – note-se o recurso a
uma apelativa diversidade cromática (nenhum, à exceção do amarelo,
dos tons de fundo de cada uma das páginas se repete) –, como no que
diz respeito ao discurso verbal, que, mesmo manifestamente contido,
se distingue pela adjetivação frequente e expressiva (“belo”, “grande”,
“saltitona”, “delicioso e quente”, “belas”), pelas expressões de contor-
nos sinestésicos (“Sol delicioso e quente”), pelas sugestões sensoriais,
por exemplo, olfativa (“Que bem cheira a minha flor”), e pelos enuncia-
dos aliterativos (“belo balão” ou “belas bolas”).
Assim, o círculo recortado desta obra, recurso gráfico e/ou visual,
integra o discurso ficcional ou participa do próprio texto verbal, asso-
ciando-se ao enunciado linguístico e estabelecendo uma ‘modalidade’
de leitura que obrigatoriamente tem de atender, conjugar e interpretar
todos os elementos que compõem a publicação.
Merecem, ainda, referência um conjunto de livros que, osten-
tando orifícios ou buracos circulares, poderão integrar uma outra sub-
categoria dos livros perfurados: os
livros-máscara, uma designação que
arriscamos propor neste contexto de
reflexão. Tomemos como exemplo
os pequenos volumes da coleção
“Caras Divertidas” (2013) (fig. 9),
da autoria de Jannie Ho, ou, ainda,
o recentemente publicado Na Flores-
ta das Máscaras (2015), de Laurent
Moreau.
Nestas obras, os espaços va-
zios circulares destinam-se a ser lite-
ralmente preenchidos ou completados Figura 9 - Caras Divertidas
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 53

pelos olhos do leitor que, assim, ganha novos rostos, oferecidos pela
publicação. Em certa medida, poder-se-á acrescentar a este conjunto a
obra Le livre avec un trou (2011), de Hervé Tullet, por exemplo, visto
que também aqui o recetor é convidado a integrar fisicamente o volume
e a ocupar o espaço vazio que este possui.

3. Considerações finais

A análise levada a efeito, centrada numa seleção restrita de vo-


lumes exemplificativos do livro perfurado, parte integrante de uma ca-
tegoria mais lata, a do livro recortado, como referimos, é reveladora da
diversidade que caracteriza este objeto.
Distinguindo-se como uma construção híbrida e, por vezes, com-
plexa, o livro perfurado reclama um conjunto de especiais habilidades
lectoliterárias e oferece uma experiência multimodal de contacto com
um objeto que também, e além de tudo, por via do próprio grafismo ou
da arquitetura do suporte, estipula inevitavelmente uma alteração das
condições habituais de legibilidade. Com efeito, resultando, em larga
medida, de um engenhoso design, discurso visual e discurso verbal,
indissociáveis, articulam-se, ainda, sinergicamente com espaços perfu-
rados, produzindo uma pluralidade de efeitos: estéticos, lúdicos, narra-
tivos, entre outros. Janelas multiformes (circulares, retangulares, qua-
drangulares, etc.) e/ou de dimensões distintas que convidam a espreitar
e que incitam a voltar a página, buracos que completam a representa-
ção visual e textual, orifícios concêntricos que orientam o olhar para
detalhes de uma particular configuração espaciotemporal, brechas que
possibilitam saber mais sobre as personagens ou sobre a própria ação,
enfim, espaços ‘vazios’ ou ‘ocos’ com funcionalidades múltiplas dotam
os volumes perfurados de um cariz desafiador e estimulam a curiosida-
de do leitor.
Entre a amplificação de sentidos e a focalização ou zoom in, por
exemplo, a estratégia gráfica em questão, materialização da tendência
experimental que tem caracterizado alguns volumes cuidadosamente
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
54

editados nos últimos anos, é fundamental na celebração desse jogo de


procura e de descoberta que os livros perfurados proporcionam, en-
quanto objetos que ambicionam a interação espontânea por parte do
leitor a quem se oferece um contacto vivo e possíveis releituras, só ou
acompanhado, mas sempre ao seu ritmo e à medida do seu desejo.
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Outros livros perfurados citados7:


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shire: Child’s Play.
AGUALUSA, José Eduardo (2000). Estranhões & Bizarrocos (Estó-
rias para adormecer anjos). Lisboa: Dom Quixote (ilustrações de Henrique
Cayatte).
CARLE, Eric (2007). A Lagartinha Muito Comilona. Matosinhos:
Kalandraka.
GRAVETT, Emily (2010). O Grande Livro dos Medos do Pequeno
Rato. Lisboa: Livros Horizonte.
GRAVETT, Emily (2012). Outra Vez!. Lisboa: Livros Horizonte.
HO, Jannie (2012). Caras Divertidas. Vamo-nos mascarar!. Lisboa:
Presença.
JANSSON, Tove (2008). The Book about Moomin, Mymble and little
My. S./l.: Schildts.
JEFFERS, Oliver (2008). O Incrível Rapaz que Comia Livros. Lisboa:
Orfeu Mini.
KOMAGATA, Katsumi (2000). Histoire d’une larme. Paris: Les Trois
Ourses.

7
Nesta secção, mencionam-se as edições usadas por nós neste trabalho e a que pudemos
ter acesso, sendo algumas traduções.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 55

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MUNARI, Bruno (2011). Na Noite Escura. Figueira da Foz: Bruáa.
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Estudos:
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MUNARI, Bruno (2014). Das Coisas Nascem Coisas. Lisboa: Edições
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PARREIRAS, Ninfa (2006). A psicanálise do brinquedo na literatura
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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 57

4. Livros para embalar: sono e sonhos com texturas

Ana Margarida Ramos

1. Livros-Brinquedo. Formas e usos.


Pretende-se, neste estudo, proceder à análise de algumas publica-
ções para crianças pequenas associadas ao contexto do sono, do proces-
so de adormecimento e da ida para a cama. Designados genericamente
como bedtime books, estes livros, que podem ter diversos formatos e
apresentar uma significativa variedade de materiais na sua composição,
estão entre os mais procurados por parte dos pais e familiares das crian-
ças, desde praticamente o nascimento.
Podem incluir-se, igualmente, nesta categoria alguns livros-ál-
bum clássicos, como Goodnight Moon (1947), texto de Margaret Wise
Brown e ilustrações de Clement Hurd, ou ainda, de forma um pouco
diferente, Onde Vivem os Monstros (Kalandraka, 20098), de Maurice
Sendak, Um pesadelo no meu armário (Kalandraka, 2004), de Mercer
Mayer, ilustrando a atenção que a questão do adormecimento tem co-
nhecido por parte de muitos autores de relevo, bem como as respostas
criativas de que tem sido alvo. São, assim, incontáveis, as propostas
editoriais, em diferentes formatos (livro-álbum, conto ilustrado, poesia/
rimas infantis, livro de imagens...) que tematizam e recriam o momento
da ida para a cama da criança, revistando emoções e comportamentos
como a recusa e o medo, nos mais variados registos textuais e visuais.
A qualidade desta diversidade de publicações é, evidentemente, muito
desigual, mas o facto de as publicações, com maior ou menor novidade,
continuarem a surgir revela que o interesse pelo tema está longe de estar
esgotado.

8
Edição original de 1963.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
58

Aliás, sublinhe-se, em nota marginal a este texto que, ainda re-


centemente, o tema voltou a ser alvo de atenções e muitos comentários,
depois da publicação do livro The Rabbit Who Wants to Fall Asleep: A
New Way of Getting Children to Sleep (2015), da autoria do psicólogo
sueco Carl-Johan Forssén Ehrlin, primeiro em edição de autor e, depois,
fruto do sucesso comercial que conheceu, com chancela da prestigiada
Penguin Random House. O debate e a polémica sobre a capacidade de
o livro adormecer em minutos as crianças a quem era lido versus a falta
de qualidade artística, literária e plástica, do respetivo texto e ilustra-
ções, avivaram discussões intensas, tendo originado a publicação de
muitos textos que podem ser encontrados quase todos online.
A investigação e a reflexão sobre os livros e os rituais de ador-
mecimento, incluindo a sua evolução ao longo do tempo e a variação
cultural que os caracteriza, têm confirmado o interesse pelo tema, mais
explorado nas áreas da psicologia, da educação ou da sociologia, do que
propriamente na da literatura ou dos estudos literários. Uma primeira
razão pode ter a ver com os destinatários destes bedtime books, mas
também com a sua insuficiente componente verbal ou qualidade literá-
ria, atendendo ao desígnio utilitário e instrumental que caracteriza parte
significativa das propostas.
Merecem ainda assim referência, pela utilidade das reflexões
para a elaboração deste estudo, os contributos de Mary Galbraith
(1998) e de Griffth & Torr (2003) sobre as características, destinatários,
objetivos e funcionalidades das publicações, sublinhando também as
suas tendências em termos de propostas editoriais nos últimos anos. Na
sua abordagem sobre as tendências contemporâneas dos livros infantis,
Bettina Kümmerling-Meibauer (2015) refere-se aos livros-brinquedo,
sublinhando a sua evolução nos últimos anos, com a introdução de vá-
rios elementos não tradicionalmente associados ao processo de leitura e
que contribuem para um hibridismo destas edições, situadas num limbo
entre o brinquedo e o livro:
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 59

In order to appeal to toddlers, plenty of so-called baby books are disgui-


sed as playthings, for example, with the possibility of lifting flaps in the
pages, pushing on knobs, and pulling paper strips, or are a combination
of picturebook, soft toy, and puzzle, encouraging the small child to use
the picturebook as a tool (Kümmerling-Meibauer, 2015: 252).

Maria Nikolajeva (2008), ao estudar a ludicidade dos livros-ál-


bum, refere-se a uma certa ambiguidade genológica, a propósito destas
publicações, na medida em que “the boundary between art and artifact
becomes vague” (Nikolajeva, 2008: 67). E acrescenta que “a vast ou-
tput of products nowadays lies in the bordline between books and toys,
employing cut-outs, flaps, and other purely material elements that add
the playful dynamics and demand a certain degree of interaction to en-
gage the viewers and make them co-creators” (idem).
Atendendo aos destinatários principais, bebés e crianças na pri-
meira infância, centramos a nossa atenção em propostas destinadas pre-
ferencialmente a este grupo, recaindo a escolha sobre livros-brinquedo
ou propostas editoriais similares. Também aqui, como é evidente, a bi-
bliografia é escassa, sobretudo, e mais uma vez, a partir da perspetiva
dos estudos literários9, face à ‘simplicidade’ (e/ou não literariedade)
que caracteriza estes livros. Os livros-objeto (nas suas múltiplas formas
e apresentações materiais) não têm conhecido, por parte da crítica, uma
atenção aprofundada, pese embora alguns trabalhos relevantes, como
os de Bettina Kümmerling-Meibauer (2011), associando estas publica-
ções, sobretudo os early-concept books10, à literacia emergente.
A indefinição em termos conceptuais é visível na hesitação
da classificação destes produtos editoriais, sendo algumas propostas
quase intraduzíveis: baby books, early-concept books, image books,

9
Nas áreas da educação pré-escolar, da saúde e da psicologia infantil têm surgido algumas
publicações relevantes, ainda que nem sempre rigorosas na abordagem das tipologias editoriais e
géneros literários. Uma exceção interessante, ainda que esquemática, é a classificação proposta por
Zeece (1996), mas haverá muitas outras, inclusivamente mais atuais. Na perspetiva do design do
livro-objeto infantil, ver também Romani (2011).
10
Sobre estes livros, ver também, Kümmerling-Meibauer & Meibauer (2005).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
60

toy books, board books, soft books, etc. Veja-se que incluem elementos
muito diferenciados que vão desde o material utilizado no fabrico dos
livros, aos destinatários preferenciais, incluindo os usos das publica-
ções e o seu conteúdo. As traduções para língua portuguesa também
apresentam problemas semelhantes: livro-brinquedo, livro-objeto, livro
de imagens, livro cartonado, livro para bebés, livro de pano, livro de
banho... A sua inclusão em catálogos de brinquedos, para além da forma
‘composta’, integrando jogos, sons, objetos, reforça o caráter híbrido
destas publicações cuja materialidade é decisiva em termos de distin-
ção em relação aos livros infantis de formato mais tradicional, exigindo
um tipo de ‘leitura’ que excede claramente o único sentido da visão,
propondo uma experiência sensorial (e emocional também, como tenta-
remos demonstrar) alargada.
Em comum, para além do formato reduzido, das cores atrati-
vas, dos materiais adequados e resistentes à manipulação por bebés e
crianças pequenas, cartonados, plastificados, mas também de tecido,
às vezes combinando diferentes propostas, estas publicações caracteri-
zam-se pela proximidade aos brinquedos, pela funcionalidade relevante
ao nível do desenvolvimento da linguagem e do vocabulário, além da
interatividade que proporcionam. Trata-se, igualmente, de publicações
que promovem um contacto precoce com o livro-objeto e com as regras
do seu uso, tanto em termos de manipulação e uso, como de postura e
atenção, favorecendo a construção de representações concretas, além
de positivas e estimulantes, sobre o livro e a leitura. A questão do sen-
tido da manipulação das páginas e da observação/leitura também surge
associada aos comportamentos emergentes de leitura que exigem ensi-
no/aprendizagem, dado que estes não são inatos e carecem de modelos
e de prática.

2. Corpus. Propostas de análise


2.1. O primeiro livro aqui analisado, Sleepy Kittens (Despicable
Me) (2010), de Cinco Paul e Ken Daurio, com ilustrações de Eric Guil-
lon, é o resultado de um processo curioso que resulta da transposição
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 61

para um objeto editorial de um referente ficcional, um livro que, no


filme de animação Despicable Me (2010) (fig. 10), de Pierre Coffin e
Chris Renaud, é lido pelo protagonista às três meninas que ele adota. A
cena é breve e merece ser observada com atenção porque, além do ob-
jeto-livro que introduz e cuja leitura é realizada integralmente, inclui
uma série de alusões de cariz metaliterário que merecem reflexão. O
contexto da sessão de leitura é igualmente digno de nota, uma vez que
as crianças já conhecem o livro e dominam o seu conteúdo e a forma
de o ler, mas insistem na necessidade de repetição da leitura, encarada
como um ritual de afeto que as predispõe ao sono. Os comentários do
protagonista, referindo-se ao livro como “lixo”, questionando “Isto é
literatura?”, avaliando-o com a frase “uma criança de dois anos podia
ter escrito isto...”, são ilustrativos dos preconceitos generalizados em
relação a estes livros-objeto que, apesar de tudo, parecem, também
no contexto ficcional da narrativa fílmica, ter um efeito relevante na
tranquilização das crianças e na aproximação afetiva entre elas e o
adulto, que termina a leitura emocionando-se com a mensagem que
o livro transmite. Na versão original, o livro é definido como sendo
uma bedtime story, designação que remete, simultaneamente, para o
momento e contexto da sua leitura, mas também para o tema da mes-
ma. Este recurso à mise en abîme é, aliás, recorrente, neste tipo de
propostas, que, não raras vezes, incluem livros e momentos de leitura,
favorecendo a identificação dos leitores com o universo recriado e que
apresenta sugestões metaficcionais.
O livro lido pela personagem no filme inclui uma narrativa ver-
sificada, protagonizada por uma família de gatinhos, a mãe e os três
filhos, ilustrado, com dedoches e objetos que exigem manipulação e
interatividade. Para além de ler o texto, é esperado – e exigido – ao
mediador de leitura que realize as atividades referidas no texto, esco-
vando o pelo dos gatinhos, por exemplo, ou fazendo-os beber o leite
do prato.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
62

Figura 10 - Duas imagens do filme Despicable Me

A cena resulta particularmente interessante, aludindo a uma série


de aspetos ligados a questões relevantes, como a afetividade e a rotina
associadas à leitura que se transforma em momento de encontro e de
prazer, independentemente da qualidade literária ou estética dos livros
ou até da forma como são lidos.
O livro publicado (fig. 11) no seguimento do sucesso do filme,
apesar de se manter fiel ao texto original e ao estilo das ilustrações, não
permite o mesmo nível da interação. Não inclui a escova nem permi-
te a sua manipulação, nem aposta no mesmo tipo de encadernação de
espiral. É caso para dizer que, neste caso, o filme ganha ao livro, não
obstante a preocupação em manter os dedoches que representam os ga-
tinhos que não querem dormir, mas cuja conceção plana não permite o
mesmo nível de interação apresentado no filme. Mantém-se o formato
reduzido, agora quadrangular, e a opção pela edição cartonada de can-
tos arredondados, muito adequada, do ponto de vista da materialidade,
aos destinatários preferenciais.
Em qualquer dos casos, a brevidade do texto, o recurso às rimas
e aos paralelismos sonoros, o vocabulário acessível e a simplicidade da
ação, linear e encadeada, facilitam a adesão dos leitores mais pequenos.
As personagens apresentam comportamentos humanizados e tipifica-
dos no seio do contexto familiar e a narrativa, linear e sequencial, desen-
rola-se com base no diálogo entre mãe e filhos. Esta estrutura dialogada
tem impacto na construção do volume, que recorre à apresentação em
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 63

páginas simples, diferenciando as persona-


gens, num esquema de alternância de falas
que se aproxima visual e estruturalmente
(rima, metro, estrofe) do texto poético.
2.2. O segundo livro selecionado é
It’s time to sleep (2013) (fig. 12), uma pu-
blicação sem identificação de autoria da St.
Martin Press. Trata-se de um livro de ima-
gens, cartonado, de pequeno formato, de
cortes arredondados e que inclui um recorte
em formato de círculo, que serve de pega ao
livro, facilitando a sua manipulação. Muito
colorido, impresso em papel brilhante que
permite tirar partido dos contrastes entre
uma paletas de cores fortes, vivas e quentes, Figura 11 -
Livro Sleepy Kittens
o livro é construído por quatro duplas páginas
tituladas onde, para além da fotografia de um bebé diferente, surgem vá-
rios objetos legendados, relacionados com o tema central. Uma leitura
sequencial das quatro imagens permite descobrir uma evolução, uma
vez que o livro inicia com a sugestão da atividade de brincar – “Let’s
play!” – identificando vários brinquedos reconhecíveis, passando, em se-
guida, para o banho – “Bathtime”. Segue-se a preparação da ida para a
cama, “Ready for bed”, e a antecipação do adormecimento, uma espécie
de despedida noturna, em “Sleep tigh” (fig. 13). Em primeiro plano, nas
imagens, surge sempre a figura do bebé, em diferentes posições. Des-
taque-se o cuidado na seleção de crianças de diferentes grupos étnicos,
numa busca de representação da diversidade humana, permitindo uma
identificação mais ampla em termos de leitores. Os objetos apresentados,
também com recurso à fotografia, são coloridos e reconhecíveis. Sempre
que possível, apresentam padrões variados e destacam-se sobre os fundos
planos coloridos.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
64

Figura 12 - Capa do livro It’s time to sleep

Figura 13 - Dupla página do livro It’s time to sleep

Pensado como livro de imagens, destinado sobretudo à explora-


ção vocabular, ao reconhecimento e à identificação de objetos e contex-
tos, o livro inclui, na contracapa, um pequeno guia para os pais, onde a
questão do desenvolvimento da linguagem oral é central.
A dimensão narrativa do livro tem de ser inferida, é certo, mas
o título e a centralidade que as atividades relacionadas com o adorme-
cimento da criança e a sua preparação ocupam não deixam margens
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 65

para dúvidas quanto a esse propósito. Aliás, em alguma medida, o livro


estrutura-se com base numa oposição clara entre a atividade da brinca-
deira com que se inicia, e a tranquilidade do adormecimento com que
encerra.
2.3. A última publicação analisada é Good Night Teddy (2015)
(fig. 14), texto de Danna V. Swartz e ilustrações de Marie-Hélène Gré-
goire, um livro de pano que permite a manipulação da personagem prin-
cipal, o ursinho Teddy, pelas páginas da obra. Estas, para além do tecido
impresso com os espaços e as personagens da narrativa, têm aberturas
e elementos semi-soltos que podem ser usados para fixar o ursinho e
interagir com ele. Assim, é possível sentar o protagonista à mesa para
jantar, colocá-lo dentro da banheira (não sem antes o despir e pendurar
o pijama), ao colo do pai para ouvir uma história ou dentro da cama,
por exemplo. A manipulação da personagem pode ser realizada pela
criança, tendo como base as indicações fornecidas pelo texto, muito
simples e condensado, marcado pela anáfora, descritivo das ações da
personagem. A recriação das rotinas que antecedem a hora de deitar,
lidas em voz alta pelos mediadores adultos e complementadas com as
ações da criança que manipula a personagem ao longo das páginas do
livro, permite o reconhecimento de práticas domésticas semelhantes,
promovendo a identificação do leitor com o universo ficcional e pacifi-
cando-o com o sono e o adormecimento.

Figura 14 - Capa e exemplo do interior do livro Good Night Teddy


ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
66

O texto é, por isso, simples, quer em termos do vocabulário usa-


do, quer das estruturas sintáticas, preferindo recorrer a repetições a pa-
ralelismos que facilitam a compreensão e a memorização e repetição
posterior, conduzindo a uma certa autonomia no processo de leitura e de
manipulação do livro. A narrativa é simples, linear e contada de forma
sequencial, ocorrendo num tempo e num espaço reduzidos e condensa-
dos. As ilustrações, não obstante o predomínio das cores frias, recorrem
a formas básicas e reconhecíveis e aos contrastes cromáticos. A presen-
ça de elementos11 que permitem a manipulação da criança, como o pato
na banheira, o ursinho na cama ou a escova de dentes, atuam também
como surpresas que quebram a linearidade dos procedimentos associa-
dos à leitura.

3. Considerações finais
Na globalidade, e apesar das diferenças existentes em termos de
materiais e tipologias editoriais, verifica-se, como elementos transver-
sais às publicações a presença de texto muito simples, com recurso a
vocabulário do quotidiano. Quando existe uma narrativa, esta é contada
com recurso a estruturas paralelísticas, que tiram partido de elemen-
tos sonoros, como o ritmo, as rimas e as repetições. Também no caso
das formas narrativas ou com alguma pretensão de narratividade, como
acontece com o livro de imagens, verifica-se a opção por um número
muito reduzido de personagens que desenvolvem uma ação sequencial,
caracterizada pela linearidade temporal e que tem lugar num espaço li-
mitado, sempre fechado e circunscrito à casa. Mesmo quando os criado-
res recorrem a personagens animais, estas apresentam comportamentos
humanizados, muito próximos dos infantis.
As imagens exploram a expressividade e o poder atrativo das
cores e das formas, recorrendo sobretudo às cores primárias ou a cores

11
Existe ainda uma muda de roupa para o ursinho que pode ser vestida e despida.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 67

quentes e vibrantes, tirando partido dos contrastes. O recurso a formas


planas e a contornos bem definidos cria alguma estaticidade nas ima-
gens, preferencialmente bidimensionais, marcadas pela ausência de
perspetiva, pela simplicidade e por uma técnica de desenho que recorre
à estilização dos objetos. No caso da fotografia, é evidente a sugestão
realista dos objetos e personagens retratados, favorecendo a sua iden-
tificação por parte dos leitores. Os formatos e os materiais promovem
a manipulação e a interatividade, tirando partido do manuseio fácil, da
leveza ou das texturas macias e agradáveis ao toque.
Atendendo ao tema, ao contexto de leitura a que se destinam,
e aos leitores preferenciais, estamos perante publicações que preveem
uma leitura repetida, realizada como rotina, uma e outra vez, confir-
mando as expectativas da criança que rapidamente desenvolve com-
petências autónomas para sua realização. Além disso, o processo de
leitura surge indissociável do jogo, seja do ponto de vista linguístico
e visual, seja através da associação de outros sentidos, gestos e ações
ritualizadas. São ainda livros que contribuem para o desenvolvimento
da literacia visual, competência que resulta de um processo de apren-
dizagem e integra elementos culturais que têm de ser explicitados. No-
te-se que a sua evolução tem relação com o desenvolvimento de outras
literacias e competências (linguísticas, narrativas, simbólicas, culturais,
literárias e estéticas), cujo progresso ocorre de forma simultânea.
Atendendo ao impacto pessoal, familiar, social e até cultural dos
rituais do sono e adormecimento dos bebés e das crianças pequenas,
parece-nos relevante sublinhar de que estas propostas editoriais, apesar
de aparentemente se destinarem às crianças e à sua fruição, respondem
principalmente a outros desafios e usos, os dos pais, que pretendem
encontrar respostas para os problemas de sono dos filhos. O sucesso do
livro The Rabbit Who Wants to Fall Asleep: A New Way of Getting Chil-
dren to Sleep (2015), com entrada direta no top das principais livrarias
online, é disso o melhor exemplo. Nessa medida, estamos perante livros
de destinatário amplo e abrangente, verdadeiros crossover da edição.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
68

O recurso a uma certa autorreferencialidade, visível na opção


pela sobreposição do tema do livro e do seu uso principal, sugere a pre-
sença de elementos que permitem uma leitura complexa, em resultado
da mise en abîme, com referências a livros e leituras encaixados nos
objetos, mas também de pais e filhos que repetem, no nível ficcional,
os mesmos rituais dos leitores e mediadores, no nível empírico. A pro-
moção da identificação dos leitores com o universo ficcional recriado,
reconhecido e próximo, parece ser o objetivo deste tipo de estratégias,
para além da naturalização de ações que funcionam como modelo, quer
do ponto de vista educativo, quer social.
A dimensão instrumental e utilitária da leitura que é realizada
a partir destes livros parece apagar ou secundarizar a eventual função
estética ou de entretenimento que podem ter. E, no entanto, bebés e as
crianças a quem estes livros são propostos facilmente os adotam como
leituras desejadas, alvo de exploração repetida. A identificação com os
cenários, objetos e personagens recriados, a dimensão de jogo e de afe-
to associada ao momento da leitura, os efeitos sonoros e rítmicos dos
textos, as ilustrações coloridas e atrativas, a interatividade do processo
de leitura, a possibilidade de manipulação autónoma das publicações,
entre outros aspetos, favorecem a sua aceitação por parte dos leitores
mais pequenos que, não raras vezes, adotam estes livros como “objetos
transicionais”, criando com eles laços afetivos e emocionais fortes, em
consequência do investimento imaginário que realizam.

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 69

Estudos:
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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 71

5. Do livro-álbum ao livro-brinquedo:
Tobias às fatias e outros livros “fatiados”

Carina Rodrigues

1. Prolegómenos

Na viragem do século XXI, o livro-álbum, enquanto objeto de


transmutação gráfica, viu multiplicar as suas formas, alcançando legi-
timação tanto no âmbito académico como privado. Híbrido por defini-
ção, este tipo de publicação não cessa, pois, de as (re)inventar, quer no
renovado diálogo entre os seus textos verbal e visual, quer no jogo com
os géneros dos quais se apropria, quer, ainda, no empréstimo de todas
as outras artes às quais presta homenagem.
A efervescência criativa que o caracteriza, responsável por uma
necessária reconfiguração das relações entre o leitor e o objeto-livro,
foi, assim, dando lugar a reflexões inscritas em diferentes âmbitos (li-
terário, didático, sociológico, etc.), cruzando outras interrogações em
torno das formas, da sua estética e da sua receção por parte de leitores
modelos ou empíricos, e nas mais diversas práticas, privadas ou escola-
res, individuais ou coletivas.
Analisar o lugar que o livro-álbum ocupa, as funções e os jogos
que propõe ao leitor, oferece-se, pois, como um incontestável territó-
rio de reflexão. Desde logo, pressupõe caracterizar perfis de leitor(es),
especificar as suas formas de envolvimento ou mesmo refletir sobre as
modalidades de aprendizagem e formação que supõe implementar.
Porém, refletir sobre as especificidades do livro-álbum através
da noção de jogo implica também considerá-lo na sua materialidade,
enquanto objeto, brinquedo ou espaço de descoberta e manipulação.
Associados à “objetalidade” do livro-álbum estão, portanto, o lugar
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
72

do corpo, os seus estados e as novas gestualidades que suscitam a não


rara predileção por formatos agigantados ou excêntricos, e mesmo as
próprias revivescências do livro-álbum animado, os célebres − e mais
comummente designados de − pop-up. Um conjunto de obras que ques-
tiona os limites do livro-álbum, os do livro de artista e até do livro-jo-
go. Mas tal reflexão sobre o livro enquanto objeto, bem como sobre os
desafios ligados à corporeidade do leitor, coloca igualmente em causa
a perceção desse mesmo leitor e a própria experiência de leitura. Isto
porque os novos formatos surgidos no campo da literatura de potencial
receção infantil − e pensemos, ainda, a título de exemplo, nos livros
digitais − lograram metamorfosear as mais usuais representações do
ato de ler, concorrendo para uma redefinição do próprio conceito de
leitura. Daí nos perguntarmos também: o que vem sendo ou no que se
torna o ato de ler? Como defini-lo, quando se trata de explorar o livro,
de tocá-lo, senti-lo, ouvi-lo? Quando se trata de desdobrá-lo, fazê-lo gi-
rar, furá-lo ou abaná-lo? Em suma, onde se situam as mais tradicionais
definições em torno da compreensão leitora e que mutações, ao nível da
receção, originarão esses atuais formatos editoriais?
Independentemente de tudo, e mesmo na impossibilidade de aqui
aprofundarmos a questão, importa frisar que a análise destes livros terá
sempre por perto a experiência de um leitor real, confrontado com for-
mas, formatos e espaços inusuais, e que, quiçá, na solidão do seu ato,
se revele capaz de reinventar − de outras quantas formas − a leitura
(Connan-Pintado, Gaiotti & Poulou, 2008).
Servindo também de mote para a breve reflexão que aqui nos
propomos trazer, é objetivo deste estudo refletir sobre o lugar que vem
ocupando o livro-álbum (animado) junto dos leitores mais novos, cen-
trando-nos, mais concretamente, no caso dos livros-álbuns “fatiados” −
i.e., das edições cujas páginas/ilustrações surgem cortadas em lâminas
amovíveis − e nas suas potencialidades criativas.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 73

2. Do livro ao jogo/brinquedo: o livro-álbum como objeto


multiforme

Inspirado na expressão anglo-saxónica picturebook, o termo “li-


vro-álbum” tem ganhado eco no seio da academia e suscitado contro-
vérsias em torno da clarificação/fixação do conceito e da sua definição/
conceptualização: enquanto uns se atrevem a classificar o livro-álbum
como “género” (Nières-Chevrel, 2009), outros apontam para a necessi-
dade de lê-lo como “um suporte de expressão” (Van der Linden, 2013)
ou um “tipo/formato de edição” (Ramos, 2011), em resultado do seu
caráter híbrido e multimodal. Indiscutível, contudo, parece ser a ideia
de que é na tríade texto-imagem-suporte que se constrói o relato e na
necessária articulação destas três dimensões que se estrutura a mensa-
gem e a narratividade.
Além disso, enquanto livro ou modalidade mista que é, o livro-
-álbum consegue tomar formas tão variadas que, para além do parale-
lismo entre o trabalho do artista e o do autor/ilustrador, tende a trazer
também para a discussão as suas ténues fronteiras entre o livro e o brin-
quedo, a leitura e a manipulação, a narração e o jogo (Staebler, 2014).
Seja com imagens “saltantes”, tiras ou janelas, com páginas dobradas
ou (re)cortadas, o livro-álbum consiste sempre, pois, num jogo: no jogo
das imagens, do texto e do suporte, e também, por conseguinte, no do
próprio autor (e leitor) com esses mesmos elementos. Isto porque falar
do livro-álbum também é falar de uma obra aberta: uma obra que impe-
le o leitor a jogar − a ler, interpretar e manipular. Nele, e para lá da(s)
sua(s) forma(s), também as estruturas do relato se reinventam e des-
viam a posição do leitor, reclamando uma leitura ativa, frequentemente
lúdica e isenta de pré-juízos, capaz de abalar as convenções de leitura e
romper com o linear.
Porém, se estes livros se aproximam do brinquedo porque são
concebidos para serem manipulados, eles não constituem o único su-
porte do jogo, carregando em si aquilo que o francês Roger Caillois
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
74

(2007) teorizou como sendo o “espírito lúdico”. Um ângulo de com-


preensão e uma espécie de regra instituída pelo autor, da qual faz parte
e sob a qual se desenrola a própria narração, que, por sua vez, também
impõe limites à própria utilização lúdica do brinquedo.
Considerando o livro na sua totalidade, importa perceber, assim,
em que moldes é que estas opções gráficas e/ou formais constituem
parte integrante da criação do autor e podem servir de instrumentos
de narração. Sem descurar outras publicações igualmente arquitetadas
no espaço do livro, mas acompanhadas, por exemplo, de acessórios,
brinquedos ou CD-ROM, etc., a exigirem análises diferenciadas e pas-
síveis de outras discussões, por limitações temporais, faremos incidir
o nosso olhar sobre as edições apoiadas no tradicional pêle-mêle ou
méli-mélo, também designadas mix-and-match books, com páginas cor-
tadas ou “fatiadas”. Um tipo (design) de livro que não é recente, mas
cujas potencialidades e múltiplas leituras que possibilita não foram ain-
da suficientemente estudadas/teorizadas, merecendo, por isso, a nossa
atenção.
Com efeito, à exceção de alguns trabalhos mais genéricos sobre
o livro e/ou o livro-álbum animado e as suas manifestações recentes,
dentre os quais, por exemplo, assumem especial relevância para este es-
tudo os de Connan-Pintado, Gaiotti & Poulou (2008), Foulquier (2012),
Morlot (2014), Scott (2014), Staebler (2014) ou Kümmerling-Meibauer
(2015), raras são as reflexões − de âmbito académico − especificamente
centradas nestas edições. Digno de nota será um recente ensaio de Ana
Margarida Ramos (2016), que examina com mais detalhe um corpus
exclusivo. A própria designação destes livros revela carecer de firme-
za e ser alvo de hesitação/imprecisão, surgindo algumas (poucas) pro-
postas diferentes, tais como, por exemplo, no universo anglo-saxónico,
pictorial consequences ou combinatorial books, quando não simples-
mente agregados aos mais conhecidos e já acima referidos mix-and-
-match books. Lacunas essas, principalmente no campo dos Estudos
Literários, também em razão da predominância do visual sobre o verbal
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 75

que caracteriza estes volumes, que terão possivelmente que ver com
uma dimensão mais lúdica e instrumental que lhes surge associada. A
verdade é que, à medida que foi evoluindo e se evidenciaram as suas
potencialidades no desenvolvimento de competências emergentes de
literacia/leitura, o livro-álbum, enquanto objeto artístico ou plástico-
-literário, também viu alteradas as suas convenções formais e serviu de
terreno para novos formatos editoriais, ampliando os seus âmbitos de
análise e interpretação.

3. Livros-álbuns “fatiados”: sentidos e potencialidades

Com origens prováveis ainda no século XIX, nomeadamente nas


edições da casa norte-americana McLoughlin Bros. (Moura, 200912),
os livros “fatiados”, com páginas cortadas em tiras ou lâminas amoví-
veis, possuem já larga tradição, nomeadamente nos Estados-Unidos e
em alguns países da Europa, e não apenas no universo infantil13, onde
se situará o seu locus privilegiado14. Em Portugal, porém, foram ainda
poucos os autores a arriscar-se neste tipo de publicação, que extrapola
o conceito tradicional do livro e se aproxima do objeto artístico − senão
mesmo do brinquedo.
De formato habitualmente reduzido e encadernado com espiral
(com implicações, como veremos, no próprio processo de leitura), estes
volumes caracterizam-se ainda pela abundância de ilustrações face à
ausência ou condensação textual (por meio de palavras soltas, orações
breves ou discursos mínimos, numa configuração muitas vezes próxima
da do livro de imagens), afastando-se de habituais dinâmicas narrativas.

12
In <http://lerbd.blogspot.pt/2009/11/animalario-universal-do-professor.html>.
13
Vide, entre outros exemplos para adultos, o célebre e fascinante Cent mille milliards de
poèmes (1961), do francês Raymond Queneau.
14
Ainda no século XIX, recordem-se os criadores alemães Lothar Meggendorfer, com
Mon oncle tonton (1890) e Ernest Nister, com Ride a cock horse (1896). No âmbito da edição
mais recente, destaquem-se os nomes de Kveta Pacovska, com Midnight play (1993), ou Norman
Messenger, com os títulos Making faces e Famous faces (1995) ou, ainda, Imagine (2005).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
76

Caracterizados por uma forte componente


lúdica e interativa, desempenham relevan-
tes funcionalidades no desenvolvimento
da imaginação/interpretação e da lingua-
gem.
Assinado por Manuela Bacelar
(Coimbra, 1943-), reconhecida artista plás-
tica portuguesa e um dos vultos precurso-
res na criação de livros-álbum no contexto
luso, Tobias às fatias (1990) (fig. 15) não
é só o quinto volume da coleção “Tobias”,
originalmente publicada na década de 90
pela Porto Editora e mais recentemente re- Figura 15 - Tobias às fatias
lançada pelas Edições Afrontamento (2015),
mas também, possivelmente, o primeiro de autoria nacional construído
sob a técnica em apreço.
Através de páginas cortadas horizontalmente em três partes, este
livro estimula as mais férteis potencialidades da imaginação e da cria-
tividade infantil, convidando a criança à sua exploração, ora compondo
a partir de um conjunto de ilustrações co-
loridas uma multiplicidade de personagens
(várias delas já conhecidas de outros volu-
mes, promovendo a sua identificação) que a
divertem pelo absurdo e pela estranheza das
combinações sugeridas, ora colorindo livre-
mente as que vai imaginando e dispondo
nas páginas opostas. Neste caso, a liberda-
de criativa que é concedida à criança-leitora
neste ato de pintar permite-lhe recriar para-
lelismos e outras figuras originais, multipli-
cando combinações (fig. 16) e ampliando o
Figura 16 - Exemplo de
leque de possibilidades interpretativas pré-
combinação possível
-configuradas.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 77

Porventura mais
próxima do livro interati-
vo do que do livro-álbum,
esta edição, de capa mole e
isenta de mancha vocabu-
lar, sobretudo incluída com
o desígnio de diversificar a
série (também em termos
formais), não patenteia à
primeira vista uma lógica
causal pré-determinada, Figura 17 - Animalário Universal
do Professor Revillod
distanciando-se da estrutu-
ra-modelo (a narrativa) que
suporta o resto da coleção. Não obstante, oferece-se como um diverti-
do catálogo e caderno de atividades, capaz de devolver à leitura − das
imagens − a sua carga de humor e surpresa, e de corroborar o poder
comunicativo do livro pela sua forma, cor e desenho, mesmo perante a
ausência de texto.
Originalmente publicado em 200315, o Animalário Universal do
Professor Revillod (fig. 17), com texto de Miguel Murugarren e ilustra-
ções de Javier Sáez Castán − autor do célebre Soñario, o diccionario de
sueños del Dr. Maravillas (2008), obra engenhosa e inusitada, construí-
da segundo o mesmo formato −, chega aos escaparates portugueses em
2009, com a chancela da Orfeu Mini.
Alvo de inúmeros e importantes galardões, este “fabuloso alma-
naque da fauna mundial”, como se (auto)descreve no subtítulo, reúne
um admirável conjunto de 16 estampas de animais, cortadas vertical-
mente em três partes, possibilitando uma infinidade de combinações,
concretamente de “4096 feras diferentes com a descrição dos seus
modos de vida”. Do “ELE-FAN-TE” ao “VA-LI-RONTE” (espécie de

15
Pelo Fondo de Cultura Económica, México.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
78

vaca com corpo de tálitro e rabo de rinoceronte...), este belíssimo e


exótico catálogo, ilustrado a preto e branco, num registo a lembrar a
água-forte ou as gravuras do século XIX, e facilmente remissível para
qualquer bestiário medieval ou moderno, rompe os limites entre o real
e o imaginário, entre o sólito e o insólito, representando − ou conduzin-
do o leitor a colocá-las −, no mesmo plano, espécies reais/existentes e
míticas/fantásticas (fig. 18)

Figura 18 - Exemplo de combinação possível

Na verdade, as espécies reais (e.g., o elefante, a porca, o tatu, a


gralha, o camelo ou o celacanto) são as que compõem as estampas que
enformam o livro-álbum; e só com a participação do leitor − convidado
a ver/ler com os olhos e com as mãos −, só quando ele folheia o livro,
vira progressiva e desencontradamente as lâminas e baralha as partes de
cada animal é que surgem as segundas espécies, mirabolantes criaturas
de aparências, nomes e descrições fantásticos. É, pois, no gesto da lei-
tura ou do próprio leitor, a quem é exigido um papel ativo, que reside
o valor desta publicação e a responsabilidade da criação destas criatu-
ras compósitas e monstruosas, bem como “do seu desarranjo nominal
que leva à própria recriação da linguagem e suas categorias” (Moura,
2009). Note-se que a par da segmentação dos corpos de cada espécie
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 79

surge simetricamente a divisão silábica dos seus nomes, permitindo ao


leitor, de forma lúdica e humorística − e, até, nonsensical −, não só
recriar como também renomear uma infinidade de seres (e.g., “RINO-
-WI-RCO”, “TI-GURU”, “CAR-TOCAN-TU”). Aliás, a componente
verbal do livro não se cinge às unidades mínimas que estruturam a re-
ferida nomenclatura, mas inclui também as descrições biológicas res-
peitantes a cada parte dos animais, potenciando outras tantas paródicas
combinações: «Paquiderme formidável/de hábitos omnívoros/da Nova
Zelândia», «Cornúpeto esquivo/de forte carapaça/do Império Celeste»,
«Pernilongo singular/comedor de erva/do deserto de Gobi».
Mesmo diante do paradoxo, estes bichos, como se saídos de li-
vros antigos, logram uma certa verosimilhança graças à dimensão plu-
ricodal responsável pela interação texto-imagem e à intertextualidade/
intericonicidade que caracterizam habitualmente o livro-álbum. Ainda
que pressuponha a colaboração do mediador, dada a complexidade de
certas propostas textuais e visuais, implicitamente dirigidas a um leitor
adulto e/ou experiente, esta edição “transgeracional” ou inscrita num
segmento crossover − i.e., “addresses a diverse, cross-generational au-
dience that can include readers of all ages” (Beckett, 2009: 3) − facil-
mente se acerca dos mais pequenos. Com efeito, para além do formato
original e atrativo, dos jogos composicionais que sugere e do movimen-
to/gestualidade que impele, a brevidade textual e o próprio vocabulá-
rio (embora nem sempre acessível), bem como o absurdo e o ludismo
associados aos jogos linguísticos e fonéticos que propõe, são aspetos
que contribuem, de igual modo, para a adesão dos leitores mais novos.
Experiências análogas, inclusive com afinidades formais e temá-
ticas, podem ainda encontrar-se, por exemplo, nas sucessivas metamor-
foses de Estrambólicos (2011), dos portugueses André Letria e José
Jorge Letria, editado pela Pato Lógico. Da mesma dupla de autores,
com idênticos formato e organização, dispondo lado a lado, em páginas
verticalmente tripartidas, figuras e as suas respetivas designações/des-
crições, De Caras (2011) possibilita o mesmo número de combinações
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
80

(«dezasseis ao cubo»), mas neste caso de 4096 nomes invulgares com


expressivos rostos masculinos.
Escolhendo prescindir da palavra escrita (à exceção do títu-
lo, desde logo sugestivo da proposta temática), Todos fazemos tudo
(2011)16 (fig. 19), livro-álbum profusamente ilustrado de Madalena Ma-
toso, versa sobre o tema da igualdade entre géneros (e não só) e convida
à (re)criação (fig. 20) de uma infinidade de personagens ocupadas em
diferentes atividades.

Figura 19 - Todos fazemos tudo Figura 20 - Exemplos de combinações


possíveis

Numa composição bipartida, a parte superior das páginas des-


venda as identidades − femininas ou masculinas, de diferentes idades e
origens −, enquanto a parte inferior oferece uma diversidade de ações,
entre tarefas domésticas e atividades profissionais e de lazer. Propondo,
a cada virar de página, uma combinação original e, em alguns casos,
surpreendente (e.g., um pai a estender a roupa ou a costurar; uma mãe
com jeito para a pesca ou para o bricolage; uma avó agarrada a uma
guitarra elétrica ou a uma prancha de surf), o poder desta publicação,

16
Originalmente publicado em Genebra, pelas Éditions Notari, com o título Et pourquoi
pas toi?
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 81

resultado de um concurso suíço criado para a promoção da igualdade


entre homens e mulheres, não só reside na sua força gráfica e cromática,
como na originalidade do seu propósito. Visando, pois, sensibilizar os
mais novos para a desconstrução de preconceitos e estereótipos, mos-
tra-lhes, por entre formas e cores, como é possível “todos faze[r]mos
tudo”.
Do leitor, principal atuante − e coautor − deste (livro-)jogo, es-
pera-se que descubra e se deixe surpreender por todas as combinações
possíveis, mas também que invente e teça relações entre elas. É também
neste ponto que a encadernação/espiral encontra a sua utilidade, facili-
tando a manipulação e o virar das páginas, numa leitura estimulante e
muitas vezes frenética (Staebler, 2014) − experiência de leitura única,
do “desassossego” (Connan-Pintado, Gaiotti & Poulou, 2008).
Aliadas ao formato, as imagens expressivas e multicoloridas
ostentam um conjunto variado de ações e cenários próximos do ima-
ginário infantil, colocando em evidência as possibilidades narrativas
que este sistema consegue oferecer. À diferença de alguns exemplos
anteriores, este título poderá mais facilmente sugerir uma história se-
quenciada pelo ritmo ou movimento das páginas que se sucedem; uma
narração ligada a um enredo visual, alimentada pelo jogo/mecanismo
de sobreposição e descoberta, e por uma “lógica combinatória” que
oferece tantos caminhos de leitura/interpretação como de resultados
possíveis. À medida que cria um relato, o leitor, atento aos detalhes,
presta-se, pois, à interpretação, inventando relações entre os diferentes
elementos que lhe são dados a ver/ler.

4. Em síntese
A personalidade camaleónica do livro-álbum e a sua capacidade
de permear-se aos mais distintos formatos − e aos mais variados jogos
interpretativos − têm favorecido a sua escolha para arrojadas experi-
mentações criativas, cuja manipulação e interatividade o afastam do
formato tradicional do livro, situando-o num limbo entre o livro-objeto
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
82

e o objeto-brinquedo. Exemplo disso são as publicações que selecioná-


mos para análise e que, à parte das suas características físicas/materiais,
mantêm em comum uma dimensão lúdica associada a um original − e
não-linear − processo de leitura.
Na verdade, com texto ou sem ele, o livro-álbum “fatiado” ofe-
rece-se como um jogo de descoberta constante que, pela possibilidade
que lhe confere de criar a(s) sua(s) narrativa(s), converte o leitor-joga-
dor numa espécie de leitor-autor. E é também porque o incita a levar
tempo a olhar, manipular e criar sentido(s) que este tipo de publicação,
enquanto livro-objeto que convida à exploração de um percurso simul-
taneamente físico e poético e obra aberta às interpretações do leitor, se
completa no ato de leitura. Não esqueçamos ainda que, tendo no seu
destinatário preferencial a criança, estes volumes preveem explorações
repetidas que estimulam a autonomia gradual na manipulação, não só
do livro, como das formas que neles surgem desenhadas.
Marcadas pelo humor e pelo nonsense (manifesto no próprio for-
mato e na experiência de leitura que promove), as figuras ou persona-
gens ali retratadas, sejam elas de caráter animal ou não, ganham, com
o virar de página e o desconcerto visual, aparências e comportamentos
insólitos, mas regra geral próximos do imaginário infantil, promovendo
o riso e facilitando a identificação dos mais novos. Além disso, a leitura
como jogo, visível tanto em termos materiais e manipulativos, como
aos níveis linguístico (principalmente, na presença de uma componente
escrita) e visual, contribui ainda para o desenvolvimento de diferentes
competências de literacia, mas que implicarão também, necessariamen-
te, a colaboração do mediador-adulto.

Referências bibliográficas
Obras analisadas
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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 83

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 85

6. Quem cochicha o rabo espicha,


Quem embaralha se atrapalha,
Quem espia se arrepia:
mais que livros de imagem, livros-objeto

Margareth Silva de Mattos

1. Introdução
A produção editorial voltada para o público formado por crianças
e jovens no Brasil ganhou novo fôlego a partir da década de 1970 com
a geração de escritores identificada como “os filhos de Lobato”. Essa
nova geração promoveu uma rutura com a conceção utilitária vigente
na literatura infantil e juvenil, elevando-a à categoria de produção ar-
tístico-literária pela adoção de um novo modelo discursivo: o discurso
estético. Este discurso desenvolveu-se não apenas na parte verbal, mas
também na parte visual dos livros, fazendo emergir um crescente pro-
tagonismo das ilustrações na produção editorial destinada à infância.
Como consequência, o trabalho do ilustrador passou a ser considerado
tão significativo e importante quanto o trabalho do escritor na confor-
mação das obras, equiparando-se, progressivamente, o estatuto de au-
toria de ambos.
Na década posterior, um dos fenómenos editoriais que corrobora-
ram a expansão do prestígio dos ilustradores foi o aumento expressivo
das publicações de livros de imagem17, nos quais as histórias contadas
apenas pelas ilustrações ensejavam novas perspetivas de leitura. Essa
expansão levou, inclusive, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Ju-
venil (FNLIJ18) a incluir, no seu Prémio FNLIJ 1982 – Produção 1981,

17
No Brasil, o que se denomina livro de imagem encontra correspondência em Portugal
com o que se denomina livro-álbum exclusivamente visual.
18
A FNLIJ, secção brasileira do IBBY, é uma instituição que desenvolve o seu trabalho
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
86

a categoria Imagem, somando-se às já existentes categorias Criança e


Jovem, instituídas nos Prémios dos anos de 1976 e 1979, respetivamen-
te. O primeiro ano do Prémio na categoria Imagem teve dois autores
contemplados: Eva Furnari, com a Coleção Peixe-Vivo, formada pelos
livros Esconde-esconde, Todo dia, De vez em quando e Cabra-cega; e
Juarez Machado, com Ida e volta. A dupla premiação significou o reco-
nhecimento do vigor e da excelência das narrativas visuais publicadas
então.
Somente nas décadas seguintes, com os avanços tecnológicos
que possibilitaram melhor aparelhamento e maior sofisticação da in-
dústria gráfica brasileira, a produção editorial passou a apresentar qua-
lidade gráfico-editorial compatível com a que já se verificava em mui-
tos países europeus e da América do Norte. Disso decorreu o crescente
reconhecimento do trabalho desenvolvido pelos designers de livro, o
que levou a FNLIJ a instituir, no Prémio de 1994, a categoria Projeto
Editorial, a fim de premiar publicações brasileiras de excelência gráfi-
co-editorial.
Os livros integrantes da Coleção Ping-Póing (1986), da edito-
ra FTD, da autoria da já então premiada Eva Furnari, que constituem
o corpus de análise deste trabalho – Quem cochicha o rabo espicha,
Quem embaralha se atrapalha, Quem espia se arrepia –, foram con-
templados pela FNLIJ com o selo de Altamente Recomendável na ca-
tegoria Imagem no ano de 1987. Contudo, entendemos que esses livros
transcendem a etiquetagem imposta pela categoria que as identifica,
uma vez que seu projeto gráfico-editorial original e criativo – numa
época em que a materialidade dos recursos gráficos era bastante limita-
da – permite identificá-los, hoje, como verdadeiros precursores daquilo
a que chamamos livro-objeto, ideia que pretendemos demonstrar neste
estudo.

na área da promoção da leitura e da literatura, e que confere anualmente o Prémio FNLIJ aos me-
lhores livros em diferentes categorias. A FNLIJ também indica, anualmente, uma relação de livros
para a composição do Acervo Básico e outra, mais restrita, de livros Altamente Recomendáveis.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 87

Assim, propomo-nos a analisar a trilogia mencionada à luz desse


novo conceito, buscando investigar como o seu caráter lúdico, inovador
e interativo pode contribuir significativamente para aproximar a criança
do livro e da leitura.

2. Apontamentos sobre o livro-objeto

O livro-objeto de potencial destinação infantil caracteriza-se pelo


hibridismo e por se situar entre o livro e o brinquedo, o que enseja a sua
manipulação pela criança ou pelo mediador que com ela compartilha o
seu manuseio, a sua apreciação e fruição.
Paiva destaca a originalidade e a experimentação como carac-
terísticas importantes para a melhor compreensão do conceito de que
tratamos:

O livro-objeto esconjura a filiação clichê. Pretende a participação e não


o exílio do leitor. Experimenta conteúdos, formas, efeitos, materialida-
des, funções, nova disposição espaçotemporal (sic), sonoridades, des-
locamentos, levezas, fronteiras, limites, estranhamentos. Abre espaço
para a poética da imagem, e tudo nela que enuncia, significa – seja
verbal, seja não verbal. (2010: 95).

Outro autor que vem se debruçando sobre a atualidade desse


conceito é D’Angelo (2013), mostrando que a inovação proposta pelo
livro-objeto assenta na quebra de paradigmas das normativas do livro e
da narração, inaugurando “novas possibilidades de articulação do ma-
terial, novas informações, rejuvenescimento das capacidades linguísti-
cas” (2013: 36), capazes de proporcionar ao leitor a ampliação das suas
experiências sensoriais e a expansão do seu imaginário.
O livro-objeto, pelas suas características físicas, costuma reagir
ao movimento linear e sequencial do virar de páginas, propondo modos
de ler, apreciar e brincar incomuns, nos quais o movimento diretivo de
sucessão de páginas do começo para o fim pode ser inócuo.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
88

A rutura com o convencionalismo de certos elementos peritex-


tuais é uma das características do livro-objeto que “muitas vezes propõe
o rever, o recomeçar, o pinçar, o fim antes do fim e o começo por outra
parte” (Paiva, 2010: 120), guardando estimulações crescentes. Tome-se
como exemplo dessa rutura o livro O menino, o cachorro (2006) (fig.
21 e 22), de Simone Bibian, com ilustrações de Mariana Massarani,
editado pela Manati, caracterizado pelo experimentalismo lúdico e pela
necessidade de manipulação e de um manuseio inusual na sua leitura.
Nessa obra, duas diferentes perspetivas de uma mesma história têm um
só desfecho situado não na última página, mas no meio do livro. A du-
pla perspetiva corresponde a duas diferentes partes da história – a parte
em que um menino ganha um cachorro, intitulada O menino, e a parte
em que um cachorro ganha um menino, intitulada O cachorro –, com
paralelismos na sua estrutura e composição. Cada parte da história é
contada em dezassete páginas simples, sendo as páginas do desfecho
– as duas páginas centrais duplas – comuns a ambas, quando, então,
menino e cachorro se encontram e passam a ter-se um ao outro.

Figura 21 - Primeira capa Figura 22 - Primeira capa

A duplicidade da primeira capa (o livro não contém contracapa),


da página com os dados técnicos da obra, bem como da página de rosto,
dão a ilusão de que se trata de dois livros em um, intensificando-se,
através desses elementos peritextuais, o jogo ficcional. Tecnicamente,
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 89

trata-se de narrativas paralelas, contadas a partir de dois diferentes, mas


complementares, pontos de vista, num único livro com um só ISBN. A
conformação original e inusitada dos peritextos e do próprio texto ver-
bo-visual aliada à circularidade da sua estrutura narrativa fazem desse
livro – produto artístico e reproduzível que requer uma manipulação
que o explore – um livro-objeto. Como afirma Romani, o “jogo no livro
provoca a manipulação diferenciada, explora a criatividade e a percep-
ção do leitor. Os instrumentos lúdicos são as ferramentas de projeto que
diferenciam o livro tradicional do livro-objeto” (2011: 10).
Diferentemente do livro-objeto de Bibian e Massarani, há livros-
-objeto – e certamente a maior parte deles – que exploram experimentos
sinestésicos envolvendo exploração dos diferentes sentidos (visão, au-
dição, tato, olfato). Esses livros podem apresentar, como indica Paiva,

capas táteis, simulações de efeitos artesanais em impressões, ilustra-


ções fantásticas, dobraduras versáteis, cheiros aplicados, relevos des-
concertantes, 3D, brilhos especiais, fechos naturais (cascas, ossos, pe-
dras, metal), imantações, reservas ou recuos para aplicações de objetos,
lindas costuras (2010: 123).

Não é esse o tipo de livro-objeto sobre o qual se debruça a nossa


análise, mas sim aqueles livros que, a despeito da sua materialidade
aparentemente simples e despojada de recursos gráfico-editoriais so-
fisticados, mesmo assim propõem ao leitor uma apropriação lúdica que
se perfaz por meio da sua manipulação e da exploração não linear das
possibilidades de combinação e associação das partes verbal e/ou visual
neles contidas, sem, contudo, apelar para o fetiche do tecnológico.

3. Sobre a autora da Coleção Ping-Póing

Eva Furnari nasceu em Roma, Itália, mas chegou à cidade de


São Paulo, no Brasil, aos dois anos de idade, onde vive até hoje. For-
mada em Arquitetura pela Universidade de São Paulo, segundo a pró-
pria autora, um curso “fervilhante de arte e de reflexão sobre o mundo
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
90

visual” (Furnari, 2012: 50), lecionou artes no Museu Lasar Segall e,


na década de 1980, começou a publicar os seus próprios livros. Hoje,
Furnari19 já conta com pouco mais de sessenta livros publicados, mui-
tos deles premiados. Alguns dos seus títulos já foram publicados no
México, Equador, Guatemala, Bolívia e Itália (Serra, 2013), e o seu
livro Felpo Filva foi publicado na Inglaterra com o título Fuzz Mc-
Flops. A produção literária de Furnari estende-se a outras linguagens:
já teve alguns livros adaptados para o teatro, e uma das suas persona-
gens, Godofredo, é protagonista de uma série de animação 3D feita
para a TV Cultura, a ser exibida em 2016. O reconhecimento do valor
artístico-literário das suas obras vem não só da crítica especializada,
mas também do seu público leitor, e a sua produção, marcada pelo hu-
mor, pela inventividade e criatividade, destaca-se no cenário da litera-
tura brasileira de potencial destinação infantil. Desde 2010 Eva Fur-
nari é autora exclusiva da Editora Moderna, e alguns dos seus livros
publicados no passado por outras casas editoriais até o momento não
foram reeditados. É o caso dos livros constitutivos do nosso corpus,
bastante arrojados para o tempo da sua edição, em que as publicações
pouco ousavam em termos de gráfico-editoriais, antecipando formas
hoje cada vez mais recorrentes.

4. Convite ao jogo, ao riso e à imaginação em três tempos

A relativa precariedade de alguns materiais que compõem os li-


vros da Coleção Ping-Póing – a capa mole de baixa gramagem, que
torna os livros vulneráveis a um manuseio mais intenso; a baixa grama-
gem do papel do miolo, que ocasiona transparência20; a fragilidade da

19
Furnari também já ilustrou livros de outros autores, incluindo clássicos como Erico
Verissimo, que teve toda a sua obra destinada à infância reeditada no início dos anos 2000 pela
Companhia das Letrinhas.
20
A transparência decorrente da baixa gramagem das páginas só não interfere negativa-
mente na leitura porque as imagens são impressas somente na face ímpar da folha.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 91

encadernação brochura fixada com grampos21, que pode comprometer a


integridade material da publicação – contrasta com a originalidade e a
criatividade do seu projeto gráfico-editorial e as suas propostas ficcio-
nais lúdico-interativas. É justamente esse aspeto de relativa precarie-
dade que os distinguem dos livros-objeto contemporâneos, dotados de
grande qualidade em termos de sua materialidade, podendo mesmo ser
comparados a livros de arte.
Num período de parcos recursos gráficos, a inventividade da au-
tora foi responsável por um projeto editorial arrojado na sua conce-
ção, já que os três livros da coleção rompem com o modelo tradicional
de revestimento das páginas do miolo, trazendo a novidade das portas
francesas (Cadôr, 2012). As portas francesas são comuns em livros en-
cadernados, ou seja, com capa dura (fig. 23), mas não em brochuras.

Figura 23 - Livro encadernado com portas francesas22

Nos livros da Coleção Ping-Póing, a despeito das capas brocha-


das, as portas francesas funcionam a contento, já que possibilitam, com

21
Grampos ou agrafos. A encadernação canoa ou grampo é “a forma mais simples e, con-
sequentemente, a mais rápida e barata para a confecção de brochuras. Os cadernos são encaixados
uns dentro dos outros, sendo unidos por grampos na dobra” (Romani, 2011: 63).
22
Disponível em https://br.pinterest.com/pin/55802482857948760/. Acesso em 6 de maio
de 2016.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
92

eficácia, o estabelecimento do jogo de imagens. As capas, com três do-


bras, têm quatro vezes a largura das páginas. Numa das extremidades, há
um caderno grampeado que se abre para a esquerda; na outra, um cader-
no grampeado que se abre para a direita. Como se trata de livros cujos
textos são visuais, ao abrir-se as suas páginas, as imagens – impressas
apenas na face ímpar das folhas – ficam frente a frente ou lado a lado,
sempre em relação de complementaridade umas com as outras.
Os livros têm formato paisagem, dimensões 28cm x 14cm, e pos-
suem, no seu miolo, oito páginas simples do lado esquerdo e oito do
lado direito, com imagens impressas somente nas suas faces ímpares,
totalizando dezasseis páginas simples que, no entanto, dão a ilusão de
serem páginas duplas. Todas as páginas do miolo, assim como as pri-
meiras capas, apresentam ou um elemento completo e autónomo (uma
personagem, um objeto), ou um elemento incompleto (parte de uma
personagem, de um objeto). Além das suas funções utilitária e infor-
mativa – revestimento e identificação dos livros por meio de outros
elementos peritextuais como o título da obra, o nome de autor e o selo
da editora –, as primeiras capas (fig. 24, 25 e 26) também assumem a
função lúdica, dando início ao jogo de emparelhamento/combinação
das imagens proposto pela Coleção23.

Figura 24 - Primeira capa

23
Aqui reproduzidas em tons de cinza, e não em suas cores originais.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 93

Figura 25 - Primeira capa

Figura 26 - Primeira capa

Nestas obras, as portas francesas proporcionam, pelo menos,


duas possibilidades de leitura: a abertura das páginas de um lado com-
binada concomitantemente com a abertura das páginas do outro lado,
na mesma ordem sequencial; a abertura das páginas de um lado combi-
nada aleatoriamente com a abertura das páginas do outro lado, fora da
ordem sequencial.
A conceção original e engenhosa do projeto gráfico-editorial da
Coleção baseia-se num dos princípios da análise combinatória simples,
em que objetos de um conjunto (elementos) são dispostos em grupos
(agrupamentos) nos quais todos os elementos são distintos e podem
ser combinados entre si, formando, no caso, uma cena. Nesse sentido,
se há oito páginas com elementos de um lado e oito com elementos do
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
94

outro, ao todo é possível a formação de 64 agrupamentos – as cenas. E


se a primeira capa for incluída nesse jogo visual de diferentes arranjos e
permutas, o número de agrupamentos (cenas) aumenta para 81.
O jogo enquanto atividade humana encerra determinado sentido,
reveste-se de significado e de uma função social, e caracteriza-se, se-
gundo Huizinga (1993), por ser uma atividade voluntária marcada pela
liberdade; por implicar a evasão da vida “real”, constituindo uma ativi-
dade temporária com orientação própria; por ser um fenómeno cultural,
em decorrência de poder ser conservado pela memória, ser transmitido
e repetido a qualquer tempo; por criar ordem e ser ordem, introduzindo,
na imperfeição da vida e do mundo, uma perfeição temporária e cir-
cunscrita à sua duração, daí a sua tendência para o belo estético e o seu
fascínio sobre os jogadores. O projeto envolvente da Coleção encerra
um jogo imagético que convida o leitor à participação ativa, exploran-
do as numerosas possibilidades de combinações oferecidas, podendo,
inclusive, repeti-las. Sendo agente, o leitor é livre durante o tempo em
que está envolvido na manipulação dos livros-objeto, atualizando-os e,
com isso, tornando-se também criador.
Os jogos imagéticos desses livros-objeto têm em comum o cómi-
co e o nonsense, mas também guardam algumas especificidades entre
si. O cómico está presente nos títulos dos livros, nos traços e expressões
jocosos das personagens e no absurdo das situações por elas vividas. O
nonsense é explorado nas muitas e possíveis combinações de elementos
ora ordinários, ora extraordinários, que, ao se associarem, geralmente
dão origem a cenas inesperadas, insólitas.
“Quem cochicha o rabo espicha”24 é parte de uma parlenda25 –
também um jogo de linguagem – que, em virtude do seu caráter de

24
Uma das versões da parlenda é a seguinte: Quem cochicha | O rabo espicha | Como pão
| Com lagartixa | Quem reclama | O rabo inflama | Quem escuta | O rabo encurta.
25
Género da tradição oral popular cujos versos são recitados para entreter, acalmar, di-
vertir as crianças ou, ainda, para escolher quem vai iniciar o jogo ou quem deve tomar parte da
brincadeira.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 95

advertência moral, pode ser tomada como um provérbio26, apropriado


da tradição oral popular por Furnari, sugerindo algo que não está em
conformidade com o que seria eticamente ou moralmente esperado (no
caso, fazer fofoca). Os demais títulos seguem a mesma construção sin-
tática e o mesmo jogo de sonoridades proposto pelo título de natureza
proverbial, no entanto, sempre numa perspetiva parodística, dada pela
relação com os textos imagéticos marcados pela comicidade.
Em Quem cochicha o rabo espicha (fig. 27 a 30), as 81 combi-
nações possíveis apresentam somente uma personagem em cada uma
delas. São todas constituídas por personagens bichos azuis de quatro
patas, com expressões um tanto ou quanto antropomorfizadas, que pro-
vocam o riso. Nas imagens da esquerda, cabeças e patas dianteiras; nas
da direita, rabos e patas traseiras. Quando combinadas essas partes, as
personagens completam-se. Seres insólitos surgem ora emburrados, ora
abilolados, ora curiosos, ora ternos, ora desconfiados, com seus rabos
ora presos, ora perfurados, ora enrolados, ora improvisados, ora in-
ventados. O cómico das cenas reside, principalmente, nas expressões
e atitudes próprias do humano emprestadas a essas personagens, pois,
como afirma Bergson, “não há comicidade fora do que é propriamente
humano.” (1980: 12).
Este livro da Coleção investe menos na narratividade das ima-
gens e mais na sua função descritiva, identificando e qualificando as
estranhas e curiosas personagens.

Figura 27 Figura 28

26
Frase curta, geralmente de origem popular, com ritmo e rima, rica em imagens, que
sintetiza um conceito a respeito da realidade ou de uma regra social ou moral.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
96

Figura 29 Figura 30

Em Quem embaralha se atrapalha (fig. 31 a 34), as cenas são


compostas por personagens e objetos que interagem entre si. Os obje-
tos ou partes do corpo das personagens podem sofrer transformações
inusitadas, revelando situações do quotidiano que se transformam em
situações insólitas, nas quais o nonsense é a regra; afinal, “o fantástico
só existe em relação a uma realidade que se poderia qualificar de ‘não
fantástica’” (Held, 1980: 25).
Assim, a mulher que é cortejada (fig. 31), pode ter sua mão trans-
mutada em um gancho por meio do qual arrasta pelos ares uma menina
(fig. 32). Essa mesma menina pode ser arrastada pelos ares pelo rabo
rijo e em forma de gancho de um elefante (fig. 33). Um guarda-chuva
voador tem seu cabo transformado em parte de um instrumento musical
que, ao tocar, é aplaudido por três figuras jocosas (fig. 34).
Neste livro da Coleção, mais no que no anterior, as imagens es-
táticas acentuam a expressão de movimento por meio das poses e dos
trejeitos das personagens. Isso pode ser constatado também no livro
Quem espia se arrepia, em que à função descritiva se associa, de modo
mais efetivo, a função narrativa das imagens.
A narratividade nesses dois livros da coleção é mais flagrante e
incisiva, proporcionando maior estímulo à extrapolação das imagens
visuais e, consequentemente, ao exercício da imaginação criadora.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 97

Figura 31 Figura 32

Figura 33 Figura 34

Quem espia se arrepia (fig. 35 a 38) apresenta apenas um ele-


mento em cada página, fazendo com que, em cada uma das 81 cenas
possíveis, haja sempre o contraponto entre duas personagens. Nesse
livro, especialmente, há um investimento em personagens conhecidas
como portadoras de um conjunto de características psicológicas e mo-
rais identificadas de imediato pelo público não só pelos seus aspetos
físicos, mas também pelas suas condutas, como o cavaleiro medieval,
o dragão, o policial, o assaltante, o lambe-lambe, o palhaço, a bruxa,
a fada, entre outros. O que, no entanto, as afasta do estereótipo são os
seus traços caricaturais, bem como as situações estranhas resultantes
das combinações esdrúxulas onde se inserem.
Diferentemente dos dois outros livros da Coleção, em Quem es-
pia se arrepia, a não circunscrição dos elementos em molduras nas pá-
ginas simples – à exceção das imagens da capa –, amplificam a ilusão
da página dupla, tornando as personagens ainda mais próximas umas
das outras no seu confronto ou na relação que estabelecem entre si.
O que também diferencia este livro dos demais é a total ausên-
cia de cenário. As personagens são ilustradas sobre um fundo branco,
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
98

absolutamente neutro, que as destaca. Esse destaque também é dado


pela sua centralidade na página, que é, quase toda ela, tomada pela
ilustração do elemento singular.

Figura 35 Figura 36

Figura 37 Figura 38

5. Considerações finais

Os livros-objeto da Coleção Ping-Póing, que convidam o leitor,


em especial o leitor infantil, a empreender uma aventura inventiva e
criativa, constituem poderosos veículos da imaginação. Mesmo estando
na origem dessa tipologia no universo editorial brasileiro, as publica-
ções potencializam ao máximo a provocação do lúdico, tanto pelas suas
personagens caricaturais e jocosas inseridas em situações fantásticas,
quanto pela opção pelas portas francesas para o seu revestimento, sem
a qual não seria possível o tipo de jogo interativo-ficcional proposto.
Ao manipular livremente os livros, o leitor tem a sua prerrogativa
de produção de sentidos intensificada e o seu poder de ação ampliado
sensivelmente, alçando-se ao lugar de cocriador. E isso é possível de
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 99

forma ainda mais plena quando o livro-objeto associa à sua tecnologia


um competente universo ficcional que ativa o imaginário. É o caso dos
livros-objeto analisados.

Referências bibliográficas:
Obras analisadas:
FURNARI, Eva (1986a). Quem cochicha o rabo espicha. São Paulo: FTD.
______ (1986b). Quem embaralha se atrapalha. São Paulo: FTD.
______ (1986c). Quem espia se arrepia. São Paulo: FTD.

Outras obras:
BERGSON, Henri (1980). O riso: ensaio sobre a significação do cômi-
co. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar.
BIBIAN, Simone (2006). O menino, o cachorro / O cachorro, o meni-
no. Ilustrações de Mariana Massarani. Rio de Janeiro: Manati.
CADÔR, Amir Brito (2012). “O signo infantil em livros de artista”.
Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, 2(3),
pp. 59-72.
D’ANGELO, Biagio (2013). “Entre materialidade e imaginário: atuali-
dade do livro-objeto”. IPOTESI, 17(2), pp. 33-44.
FURNARI, Eva (2012). “Entrevista”. in MORAES, Odilon; HAN-
NING, Rona; PARAGUASSU, Maurício. Traço e prosa: entrevistas com ilus-
tradores de livros infantojuvenis. São Paulo: Cosac Naify, pp. 48-67.
HELD, Jacqueline (1980). O imaginário no poder: as crianças e a lite-
ratura fantástica. Tradução de Carlos Rizzi. São Paulo: Summus.
HUIZINGA, Johan (1993). Homo ludens. 4. ed. Tradução de João Pau-
lo Monteiro. São Paulo: Perspectiva.
PAIVA, Ana Paula Mathias de (2010). A aventura do livro experimen-
tal. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica/Edusp.
ROMANI, Elizabeth (2011). Design do livro-objeto infantil. Disserta-
ção de Mestrado em Design e Arquitetura – FAUUSP (Faculdade de Arquite-
tura e Urbanismo da Universidade de São Paulo).
SERRA, Elizabeth (org.) (2013). A arte de ilustrar livros para crianças
e jovens no Brasil. Rio de Janeiro: FNLIJ, pp. 64-65.
http://bibliotecaevafurnari.com.br/biografia. Acesso em 24 de abril de
2016.
http://www.evafurnari.com.br/pt/. Acesso em 24 de abril de 2016.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 101

7. Atrás do rasto da Balea:


desdobrando universos ficcionais em língua galega

Isabel Mociño González

1. Introdução
O objetivo deste capítulo é analisar um livro-álbum desdobrável
de grandes dimensões, publicado pela Kalandraka Editora, na Galiza,
em 2015, intitulado Balea27, da autoria de Federico Fernández e Ger-
mán González. Para compreender melhor o contexto no qual surge esta
proposta editorial, realiza-se um breve enquadramento das principais
etapas da Literatura Infantil e Juvenil galega, com especial atenção às
propostas de livros desdobráveis, e analisam-se as características dos
antecedentes da obra objeto de análise. Seguidamente, aborda-se, com
pormenor, a obra selecionada, observando as suas características para-
textuais e as suas potencialidades de leitura, fechando com umas con-
clusões e com a bibliografia usada.

2. O livro-álbum ilustrado na Literatura Infantil e Juvenil


galega
A Literatura Infantil e Juvenil galega evoluiu, ao longo dos sé-
culos XIX e XX, condicionada pelas circunstâncias sociais, históricas,
políticas e culturais resultantes da sua dependência de um sistema cen-
tral, o castelhano. Esta circunstância fez com que o seu desenvolvimen-
to fosse tardio, ainda que se tenha constituído como sistema, consoli-
dando-se e apostando na inovação, num espaço muito curto de tempo,
situando-se, na atualidade, em pé de igualdade com outros sistemas de
maior tradição.

27
Fernández, Federico e Germán González (2015). Balea. Pontevedra: Kalandraka Edito-
ra, [12 pp.] (ISBN: 978-84-8464-977-9).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
102

Como se pode confirmar pelos numerosos trabalhos de Blanca-


-Ana Roig Rechou (1995, 2001, 2002, 2008, 2015), são de destacar, na
evolução deste sistema literário, três etapas28 fundamentais ao longo dos
séculos XX e XXI e que correspondem a três grandes tendências: 1. dé-
cadas de sessenta e setenta do século XX, durante as quais começaram
a atuar uma série de agentes sociais e culturais que proporcionaram a
visibilidade das culturas periféricas no Estado espanhol face à ideologia
estatal fortemente instalada durante a ditadura franquista; 2. décadas de
oitenta e noventa, durante as quais se foi formando o sistema literário
infantil e juvenil galego, apoiado em políticas orientadas para a recu-
peração e proteção de elementos identitários, mas ainda muito depen-
dente das solicitações provenientes, sobretudo, da instituição escolar; e
3. primeiros anos do século XXI, que se caracterizam pela inovação e,
em boa medida, pela normalização de uma literatura própria capaz de
manter o mercado editorial em língua galega.
Pelos motivos apresentados, é facilmente compreensível que seja
no último período que se assista a uma maior proliferação dos livros-
-objeto em língua galega, coincidindo com a consolidação do universo
editorial, com as novas possibilidades de um mercado mais global e
com os avanços técnicos que diminuíram custos de edição, bem como
a atenção às necessidades evolutivas da infância desde as primeiras eta-
pas, além das solicitações e das necessidades impostas pela institui-
ção escolar. Mas, sobretudo, todo este fenómeno não se pode desligar
da eclosão do livro-álbum ilustrado em língua galega, especialmente
através da ação de editoras como a Kalandraka, que, desde os primei-
ros anos do século XXI, procurou novos formatos e possibilidades de
expansão, marcados pela “inovação ao nível do formato, o peso cres-
cente da ilustração e o seu contributo para a construção de narrativas

28
Anteriormente não pode ser ignorada a produção incipiente que foi lançada no último
terço do século XIX, durante o Rexurdimento, assim como o trabalho de grupos como as Irman-
dades da Fala nas primeiras décadas do século XX e até mesmo o dos exilados durante a ditadura
franquista, que aparecem estudados com pormenor na Historia da Literatura Infantil e Xuvenil
galega, coordenada por Blanca-Ana Roig Rechou (Xerais, 2015).
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 103

[... que] asseguram a constituição de um catálogo de assinalável quali-


dade” (Ramos, 2011: 23). Esta atividade marcou o panorama editorial
galego29 de tal forma, como evidenciaram os estudos de Blanca-Ana
Roig Rechou (2002; 2011), que permite a constituição de uma unidade
geracional em seu torno, designada “Da ilustración á narración e o pro-
xecto Kalandraka”, salientando o trabalho que esta editora independen-
te vem desenvolvendo, desde 1998, em torno dos livros para a primeira
infância, os livros-objeto, os contos ilustrados, a adaptação de contos
da transmissão oral ou a tradução de álbuns infantis, uma atividade que
se fortaleceu com a aparição de outras chancelas como a OQO Editora
(2005) e Faktoría K de Libros (2005).
O esforço exploratório e experimental, por vezes através de au-
tênticas arquiteturas em papel, tem sido materializado em livros inte-
rativos, como os pop-up30, com lapelas31, com texturas32, recortados33,

29
E mesmo ibérico, pela forte implementação de algumas editoras nos territórios das
diferentes línguas do Estado espanhol, para além de Portugal
30
Neste formato publicou-se precocemente uma versão reduzida do conto clássico Cara-
puchiña vermella (Hemma, 1990) e mais recentemente Por favor, comparte! (A Nosa Terra, 2008),
A araña máis intelixente (Baía Edicións, 2008) ou A princesa perfecta (Baía Edicións, 2009).
31
Atrás das quais se inclui informação relativa a conceitos ou partes do corpo, como em
Ola bebé! e Son un bebé!, ou ampliam informação que incide no fomento e na aquisição de hábi-
tos, como em A vestirse! (2009) ou ainda recorrem a estratégias próprias da transmissão oral para
propiciar o jogo de identificação dos membros da família, como em Cucú, onde estou? (2008),
todos eles publicados por A Nosa Terra na coleção “Os libros de Tatá” e ilustrados por Ana Mar-
tín Larrañaga. É também o caso da série Os Bolechas, publicada por A Nosa Terra em 2007 que
inclui As crías, A roupa, As tendas e O tempo, de Pepe Carreiro, a partir de um conceito original
de Emma Books Ltd.
32
É o caso de A granxa e O xardín, ilustrados por Ana Martín Larrañaga e publicados em
2008 na coleção “Os libros de Tatá”, de A Nosa Terra, nos quais os orifícios, abas e tecidos estão
ao serviço da experimentação visual e tátil; mas também de “Toca toca”, de Engaiolarte Edicións,
que em 2015 publicou Cachorros, Cores, Selva e Sons, quatro livros de contrastes, texturas e volu-
mes ilustrados por Fhiona Galloway e desenhados por Claire Munday, dirigidos a crianças a partir
de um ano e destinados ao desenvolvimento da estimulação tátil e visual, baseados na técnica de
“gofrado” (relevo no papel).
33
Como a dos volumes O coche, O barco, O avión e A locomotora, publicados por Su-
saeta em 2002.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
104

com sons34, perfurados35, de tecido36 etc., nos quais os conteúdos estão


predominantemente ao serviço da exploração do universo individual da
criança e do contexto natural e social que a rodeia. Neste sentido, é de
destacar o aumento considerável, na última década, das denominadas
“lecturas vinculares” (Calvo Buil, 2010), nomeadamente as proporcio-
nadas pelos livros sobre rotinas e hábitos infantis precoces, a partir dos
quais se inicia o caminho em direção à leitura do mundo, através da
sensibilidade, da estética, da clareza da palavra e do jogo, da intuição
e do ritual, da imaginação e da provocação, numa aprendizagem que
ocorre através dos cinco sentidos. Nestas obras, estabelece-se um vín-
culo precoce com a leitura, através de um processo durante o qual é fun-
damental a proximidade motivadora do adulto que permitirá à criança
descobrir-se a si e ao mundo que a rodeia através da exploração reite-
rada dos livros. Neste sentido, como sublinha Pedro C. Cerrillo (2001:
93), os livros-jogo, livros-objeto, álbuns, pictogramas... são livros que
contribuem para “fazer leitores” e que respondem às características que
Teresa Duran (1981) define como inevitáveis nos livros para esta etapa
da infância:
Libros manipulables; dominancia de la imagen sobre el texto, debida-
mente claro y armoniosamente distribuido tipográficamente, sintácti-
camente correcto y adaptado a la capacidad de comprensión oral; con
ilustraciones que no caigan en el realismo abusivo ni en el manierismo
desbordado; trazos negros que resigan una imagen coloreada con tintas
planas, mejor que con colores en directo; no sobreabundancia del color;

34
Como a coleção “Sons e tacto” com títulos como Animais de granxa e Animais de com-
pañía, de Baía Edicións, publicados em 2011, que apresentam texturas com tecidos que imitam
a sensação tátil da pele dos animais protagonistas e emitem o som que os caracteriza, com uma
grande dose de realismo.
35
Como os da coleção “Dediños”, da editora Tambre, que, em 2004, publicou oito títulos
nos quais se selecionam e adaptam rimas e canções infantis para contar, sortear, jogar..., tomadas
da tradição oral
36
Materiais que, até ao momento, têm sido pouco explorados, mas contam com alguns
títulos para os mais pequenos, como Boas noites! (Kalandraka, 2004), os livros laváveis dos Bo-
lechas Xogamos co corpo (A Nosa Terra, 2008) e Xogamos na piscina (A Nosa Terra, 2008), com
texto e ilustrações de Pepe Carreiro, e ideia de Emma Treehouse Ltd.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 105

formas bien resueltas y de percepción correcta -¡caricaturas abstener-


se!-; perfil óptico óptimo, en vez de contrapicados y angulaciones exce-
sivas (Duran, 1981: 25).

De entre todas as propostas, vamos centrar a nossa atenção nos


livros desdobráveis37, em especial no livro-álbum sem palavras Balea
(fig. 39), de Federico Fernández (Vigo, 1972) e Germán González (Vigo,
1976), publicado em dezembro de 2015 pela Kalandraka Editora. Porém,
também nos deteremos nos antecedentes mais remotos deste formato na
Literatura Infantil e Juvenil galega, que descobrimos nos contos ilus-
trados da coleção “Desplegavelas”, editada em 1967 pela Galaxia/La
Galera. Estas obras, separadas por quase meio século, configuram dois
polos do que foi a evolução da literatura para os mais novos na Galiza:
o início do seu processo de constituição como sistema e a inovação e
normalização de uma produção própria.

Figura 39 - Livro desdobrável Balea

37
Estes volumes conheceram uma longa trajetória e tiveram grande interesse para o públi-
co infantil e adulto, como evidencia a exposição organizada pela Biblioteca Nacional de Espanha
sob o título “Antes del pop-up: libros antiguos en la BNE”, uma mostra comissariada por Gema
Hernández Carralón e Mercedes Pasalodos, composta por meia centena de exemplares dos últimos
sete séculos que permaneceu aberta ao público entre 11 de junho e 11 de setembro de 2016 na
Biblioteca Nacional de Espanha, em Madrid.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
106

3. Entre desdobráveis: os antecedentes da Balea


Este formato foi adotado como designação de uma das primeiras
coleções infantis em língua galega que se publicaram em 1967, com
chancela da editorial Galaxia e La Galera38, “Desplegavelas”, como
já referimos, que incluiu três títulos39: Polo mar van as sardiñas, de
Xohana Torres, com ilustrações de Ismael Balanya; Todos os nenos do
mundo seremos amigos, de Maria Eulàlia Valeri Ferret, ilustrado por
Asun Balzola; e Uma nova terra, de Francisco Candel, ilustrado por
Cesc (Frances Vilas Rufas). Trata-se de livros encadernados, de peque-
no formato, com um tipo de letra manuscrita e muitas ilustrações, nos
quais se recolhem contos escolares para os primeiros leitores, apoiados
por singelas atividades dirigidas à compreensão leitora, que respondem
à orientação didática que era necessária no momento da edição (Roig,
2015: 79). Com esta iniciativa, a editorial Galaxia colocava em marcha
o que Even-Zohar (1998: 481-489) denominou “planificación da cultu-
ra”, ao lutar contra obstáculos como a debilidade da indústria editorial
galega, a censura, a falta de recursos económicos e a carência de apoio
de uma sociedade dominada pelo medo.
Em relação a estas obras, a crítica tem destacado a sua novidade
temática (Domínguez, 2008a; 2008b; 2009: 43; 2011), ao fornecer as
primeiras amostras de multiculturalismo, em Todos os nenos do mundo
seremos amigos, e de realismo crítico, em Polo mar van as sardiñas
e Uma nova terra. Para este trabalho, contudo, interessa o seu forma-
to: uma tira de papel dobrada em 5 duplas páginas e protegida dentro

38
Juntamente com “A Galea de Ouro” e dirigidas ambas pela pedagoga catalã Marta Mata
i Garriga. Esta coleção apresenta capa dura, formato grande, muitas ilustrações de todas as cores,
pouco texto (cerca de vinte páginas), vocabulário, uns exercícios de compreensão textual e uma
cantiga musicada no final de cada obra. Apesar de serem anunciados onze títulos, só se traduziram
para galego dois que, não obstante estarem prontos em 1966, não foram postos à venda até 1967,
por causa das dificuldades com que se debatia uma editora de cariz galeguista durante a ditadura
(Domínguez, 2009: 41).
39
Embora estivessem anunciados dezassete títulos. Tratou-se, provavelmente, de um fra-
casso porque a seleção foi realizada pela editora de Barcelona tendo em conta os seus interesses e
o seu ritmo de publicação e não os livros que seriam mais bem aceites pelos consumidores galegos
(Domínguez, 2009: 43).
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 107

de uma capa e contracapa, que permite desenvolver a leitura de modo


convencional nas primeiras páginas, com a imagem convivendo com o
texto, mas que, coincidindo com o clímax do relato, obriga a desdobrar
as folhas e a observar a proposta ilustrativa, de modo global, na parte
final da obra.
Dos três títulos publicados, destacamos Uma nova terra, por
apresentar certas semelhanças ao nível da conceção global com a obra
objeto deste trabalho, Balea. O seu autor, Francisco Candel, recria a mi-
gração de uma família desde a aldeia até um casebre nas proximidades
da cidade, a vida na escola, o tempo de lazer, momentos marcados pelo
sonho de chegar a ter algum dia um apartamento num edifício do centro
urbano. Nas ilustrações de Cesc (Frances Vilas Rufas) recriam-se cenas
da narrativa de modo consecutivo e sequencial até ao momento em que
se produz um salto temporal, uma elipse, que se reflete no movimento
obrigatório do virar de página, dando lugar a três páginas desdobráveis
sem texto, que proporcionam uma leitura narrativa das imagens, mos-
trando com detalhe a perspetiva interior de três andares de um edifício,
os quartos e as atividades e atitudes que estão a desenvolver os seus
ocupantes. Deste modo, recriam-se situações do quotidiano, mas num
novo contexto social, metáfora da melhoria do estatuto da família, além
da passagem do tempo e a integração do narrador-protagonista na cul-
tura e na sociedade de acolhimento.
Para qualquer leitor avisado, estas imagens lembram a disposi-
ção das histórias aos quadradinhos, publicações muito populares nos
anos cinquenta e sessenta, em especial as historietas de humor publi-
cadas pela Editorial Bruguera, como 13, Rue del Percebe, de Ibáñez,
apoiadas em fórmulas narrativas originais, que contribuíram para a
criação de uma nova linguagem, para a popularização de uma tipologia
de personagens extraídas diretamente da realidade e que satirizaram
instituições, modos de vida e situações de uma sociedade concreta (Fer-
nández Soto, 2003). Neste sentido, tal e como sugerem Rui Ramos e
Ana Margarida Ramos (2014: 8), na evolução do livro-álbum ilustrado,
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
108

não se podem esquecer fatores tão relevantes e determinantes como


o destaque da componente lúdica e de entretenimento do livro, mas
também, sobretudo, a influência de manifestações artísticas e culturais
como a banda-desenhada e o cartoon, o cinema e outras formas de ex-
pressão, como a publicidade e a imprensa escrita.
É certo que, entre esta proposta pioneira de 1967 e a que de se-
guida analisaremos, datada de 2015, existem muitas diferenças, tanto
do ponto de vista do conteúdo como do formato, especialmente por se
tratar, no primeiro caso, de um livro ilustrado, com texto abundante,
face a um livro-álbum sem palavras, no caso do segundo, de grandes
dimensões e de uma elevada qualidade visual. A esta constatação, é ne-
cessário adicionar que, nos quase cinquenta anos que as separam40, os
criadores deixaram de pertencer a outros sistemas literários, chegando
através da tradução, para serem, agora, ilustradores galegos, com uma
trajetória reconhecida através de prémios relevantes, como veremos a
seguir.

4. Uma Balea de infinitas leituras


Balea é um livro-álbum sem palavras em sentido estrito. Tam-
bém é um mural, um livro acordeão ou um póster desdobrável, pela sua
dimensão, e pode mesmo ser considerado como uma obra pictórica de

40
Durante este período, vieram a lume outras coleções de desdobráveis como “Árbore
espazos”, publicada entre 2003 e 2005, por Editores Asociados/Galaxia, e que inclui os títulos
O Circo, A praia, O zoolóxico, O campamento, O parque de atraccións e A neve, seis propostas
de doze páginas que se desdobram, pensadas para pré-leitores. Semelhantes a quebra-cabeças, é
necessário segmentar a sequência de imagens para descobrir a resposta às perguntas que aparecem
na contracapa. Também a coleção “Pimpín por aquí non vin”, publicada pela própria Galaxia em
2008 e 2009, inclui seis livros acordeão, ilustrados por Jacobo Fernández Serrano (Vigo, 1971),
que recriam cenas e motivos de festas anuais galegas, como o Natal, o “Samaín”, o Entrudo, o
Magusto, os Maios e o São João, que, de um lado, representam unicamente cenas próprias de cada
festividade e, no outro, além das ilustrações, também incluem algumas perguntas de compreensão
e palavras relacionadas com a temática de cada obra. Deste modo, os primeiros leitores, além co-
nhecerem os ambientes e os rituais destas festividades, também aprendem as primeiras palavras.
Entre as últimas publicações, importa referir as obras Na granxa e Contando, de Engaiolarte Edi-
cións (2014), ilustradas por Maxine Davenport e Cindy Roberts, que estão pensadas para o desen-
volvimento visual dos bebés, com a associação de imagens a conceitos em torno dos números e as-
petos do mundo mais próximo das crianças pequenas, como os animais domésticos, por exemplo.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 109

dupla face. Construído unicamente com imagens, apresenta um conteú-


do gráfico e/ou pictórico, sem apoio textual que contribua, condicione
ou guie a sua leitura. Os seus criadores são os ilustradores Federico
Fernández41, autor da ideia original e das ilustrações, e Germán Gonzá-
lez42, responsável pela cor. A obra foi finalista do Prémio Internacional
Compostela de Livro-álbum Ilustrado em 2014, tendo recebido uma
menção especial do júri.
Esta obra é um exemplo de narração através de imagens sequen-
ciais fixas e impressas, unidas na estrutura de livro (Bosch, 2012: 75),
permitindo um duplo sentido da leitura, tal como assinala Sandra Bec-
kett (2012: 66) para os livros acordeão, quando afirma que “Although
these books can be read as doublespreads, either from left to right or
back to front, they can also stand, allowing all the pages to be viewed
simultaneously. The fluid format of accordion books often necessitates
the creation of slipcases”.
A escolha de uma ou de outra opção determinará o itinerário e,
consequentemente, a informação obtida: entrar nas entranhas da baleia
mecânica ou observar o cetáceo desde o exterior, navegando pelo fundo
marinho. Além disso, pode optar-se por desdobrar o livro na sua totali-
dade ou fazer uma leitura fragmentada das suas cinco duplas páginas,
em jeito de livro, pois estamos perante uma proposta que, desde o ponto
de vista paratextual, responde às características próprias do livro-álbum
ilustrado, tal como assinala Ana Margarida Ramos (2010: 30; 2011: 18-
19), quando enumera

41
Licenciado em Belas Artes pela Universidade de Vigo, é docente na Escola Municipal
de Artes e Ofícios de Vigo. Ganhou o Prémio Nacional de Ilustração em 2001, em Espanha, com o
livro-álbum Onde perdeu Lúa a risa? É um dos promotores do espaço cénico El Halcón Milenario
(http://halconmilenario18.blogspot.com.es/) e ilustrou outras obras como Chibos chibóns (Kalan-
draka, 2003) ou Don Agapito o apesarado (Kalandraka, 2008).
42
Licenciado em Belas Artes pela Universidade de Vigo, leciona artes plásticas e desenho
em escolas de Vigo e Ponteareas. Promotor de iniciativas culturais, é dos fundadores do espaço
cénico El Halcón Milenario.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
110

a capa dura, o formato grande (ou diferente), variado de acordo com


o conteúdo e com os objectivos da edição, a publicação num papel de
qualidade superior, visível na gramagem elevada, o reduzido número de
páginas, a presença abundante e profusa de ilustrações, a impressão em
policromia, permitindo uma amplitude quase infinita no que aos jogos
de cores diz respeito, a presença de um texto de reduzida extensão [...]
e a qualidade e o cuidado no design gráfico da publicação, alvo de um
investimento particular (Ramos, 2011: 18-19).

Aliás, neste caso, chama a atenção o formato, uma vez que a con-
ceção material do livro recorre ao formato do acordeão e às dimensões
de 14 cm de largura por 33,5 cm de altura, mas, uma vez desdobrado, as
dimensões aumentam significativamente, passando a ser de um metro e
quarenta centímetros de largura, convertendo-se num grande mural de
dupla face que se pode pendurar pelos dois orifícios que apresenta na
parte superior da capa e contracapa.
Neste projeto resulta evidente o cuidado editorial, tanto pela ele-
vada qualidade material, como pela capa e contracapa coladas à mão,
assim como a decisão de respeitar, de modo inequívoco, a conceção
de um livro-álbum sem palavras43, tendo sido encontrada uma solução
muito inteligente para resolver as dificuldades encontradas. Assim, o
título, os créditos editoriais, a dedicatória, o nome dos criadores e uma
nota de apresentação nas quatro línguas do Estado espanhol, textos
obrigatórios num objeto editorial (Bosch, 2012: 76), aparecem numa
bolsa de cartão que recobre a capa. Trata-se de um invólucro amovível
que inclui os únicos textos do volume e que é necessário remover para
aceder, de forma completa, à informação presente na capa e na contra-
capa, que fazem parte do corpo visual da obra, ficando apenas o nome

43
Tal como confessou o próprio Federico Fernández, numa conversa que teve lugar no
mês de maio de 2016, os criadores e a equipa editorial realizaram diferentes reuniões e mantive-
ram um diálogo constante para chegar a um consenso de modo a que, em primeiro lugar, fosse
respeitada a natureza de um livro-álbum sem palavras, tendo surgido a ideia de criar para a obra
uma “camisa” para alojar os textos inevitáveis em qualquer livro, tendo sido esta uma ideia da
designer da editora.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 111

da editora o código de barras e o ISBN, elementos imprescindíveis para


identificar o objeto livro. É uma ideia brilhante, que promove uma lei-
tura sem palavras, uma leitura narrativa “pura” das imagens e, nesta
medida, sem que ela seja condicionada, guiada ou forçada a refazer-se
pela presença de um texto que provoque uma releitura da obra, nem
elementos que marquem itinerários, percursos, que só o leitor decidirá
em função dos seus interesses, tal como sublinha Beckett (2012: 40):
“A cotton thread literally carries the thread of the narrative in a number
of these innovative books, but the thread never imposes a story, leaving
readers free to construct their own narrative. The beginning and ending
can occur anywhere in these versatile books”.
Entre os elementos peritextuais incluídos na bolsa ou “camisa”
amovível, é, sem dúvida, o título que mais condiciona as expectativas
do leitor e estabelece com ele um pacto de leitura, desempenhando,
além do mais, funções como a de identificar a obra e a de designar o seu
conteúdo. Neste caso concreto, estamos perante o que Genette (1987)
define como título temático, o mais comum nas obras infantis (Lluch,
1998: 86), pois descreve o conteúdo e antecipa o elemento central do
livro-álbum, a baleia, ainda que esta relação se apresente ambígua e
aberta à interpretação do leitor, porque, tal como sugere também Genet-
te (1987: 75), um bom título dirá o suficiente para promover a curiosi-
dade mas não demasiado para não a satisfazer por completo. A escolha
de um título tão sugestivo funciona como um elemento de estímulo e
interesse em qualquer língua, ao ser facilmente identificável sem que
seja necessária a sua tradução, mas mantendo a essência da obra intacta.
Se atentarmos na sua disposição, as cinco letras que formam o
título mostram indícios relevantes sobre o conteúdo da obra, pois o seu
sentido vertical e sobre um fundo marítimo conduz-nos ao contexto no
qual a obra se situa, estabelecendo um dos eixos ideotemáticos estru-
turantes desta proposta: natureza viva/natureza artificial, representada
pelos peixes que nadam em direção à entrada da obra, indicando o cami-
nho a seguir, face às letras de natureza mecânica que parecem de ferro
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
112

ou de materiais específicos dos instrumentos de navegação. Com esta


dicotomia introduz-se a convivência do natural e do artificial, alertando
sobre as características do artefacto mecânico protagonista, onde surge
um terceiro elemento ao pé do título: dois seres humanos vestidos de
amarelo pintam a última das letras do título.
Outro dos elementos que aparece nesta sobrecapa exterior é o
nome dos autores, que inicia um jogo de pseudonímia, ao renunciar à
identificação completa de ambos os criadores e ao apelar a um elemento
próprio da sociedade industrializada, como é o recurso a marcas co-
merciais, neste caso criada a partir do primeiro apelido de cada um dos
autores, “Fernández & González”. Trata-se de um jogo que se mantém
na nota de apresentação incluída na face interior da bolsa ou sobrecapa
e no qual se pode ler, nas quatro línguas do Estado espanhol, o seguinte
texto:

A balea azul é o animal máis grande do mundo.


Tan grande que no seu interior poderían caber varios edificios.
Tendo como modelo o gran cetáceo, os recoñecidos enxeñeiros FER-
NÁNDEZ & GONZÁLEZ deseñaron un novo sistema residencial e de
transporte marítimo, de superficie e somerxible, mecánico e de moi bai-
xo consumo enerxético,
que está a punto de revolucionar a navegación.
Este grande artefacto que agora presentamos chámase: BALEA.
E como primicia, aquí poderán observar o que está ocorrendo no seu
interior.

Balea: a mellor forma de viaxar polo fondo do mar!

Trata-se de uma apresentação caracterizada pelo tom persuasivo,


que cria curiosidade e convida a conhecer o engenho mecânico, a sua
versatilidade e inovação de caráter industrial, ao apresentar uma tripla
funcionalidade: residência, transporte e ecológica. Porém, se analisarmos
com mais detalhe o sentido semântico de um termo como “artefacto”,
podemos deduzir que não se refere só à natureza mecânica do aparelho,
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 113

mas está igualmente definindo a própria natureza da obra, concebida


como um artefacto no sentido defendido pelo professor Anxo Tarrío
(1994: 352), entendido enquanto “sistema estético no que cada uma
das partes está interrelacionada intimamente con todo o conxunto e, á
vez, por un efecto de retroalimentación ou feed back, explica as fases
cronoloxicamente producidas con anterioridade”, pois aqui, como num
crisol, podem observar-se, em grande parte, as trajetórias de ambos os
criadores, as suas influências e referências44.
Desta forma, estamos perante um texto que transcende o aparente
sentido “publicitário”, próprio dos meios audiovisuais, e se converte,
para o leitor experiente, numa definição da obra que tem nas mãos, en-
quanto, para o leitor menos avisado, esta apresentação ganha pleno sen-
tido com a imagem da miniatura, em branco e negro, do artefacto visto
à distância, que parece um Nautilus ou um Moby-Dick navegando pelas
profundezas. Com este recurso dá-se a conhecer a figura à qual se faz
referência, e que observa o leitor com uma expressão alegre e afável,
que busca a cumplicidade, presente também na dedicatória sintética e
direta que está imediatamente por baixo da ilustração, “Para Max”. Este
peritexto reflete familiaridade com o destinatário, neste caso o filho de
quatro anos de Federico Fernández, que não tem por hábito dedicar as
suas obras, o que evidencia o significado especial deste projeto para o
criador, em torno do qual levou vários anos, trabalhando a ideia e pro-
cedendo ao seu desenvolvimento posterior, um processo durante o qual
o seu filho interveio, enquanto espectador de exceção, o primeiro leitor,
além do mais crítico em relação ao resultado45.
Completam o conteúdo textual da obra, como em todos os livros,
as informações relativas aos créditos, na parte inferior, onde surgem

44
De facto, Federico Fernández conta, na sua trajetória, com exposições cujos elementos
centrais eram robots. Assim, também a experimentação pictórica é uma das suas vertentes de
atuação e, nesta obra, quis levar a parte pictórica às ilustrações, vinculando ambas as facetas. No
caso de Germán González, fez, há três anos, uma exposição de aguarelas nas quais o detalhe e as
pequenas dimensões eram alguns dos traços caracterizadores.
45
Tal como explicou na conversa já mencionada anteriormente.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
114

os nomes completos dos autores, da editora e o seu endereço postal, o


ISBN, os registos e a data de publicação.
Neste sentido, o leitor potencial desta obra oscila entre a crian-
ça com conhecimento das convenções de um livro, da narrativa e do
mundo, como assinala Nodelman (1988), que, quando se envolve ati-
vamente no processo de decifração, é capaz de encontrar sentido nos
signos, e também o adulto que o acompanha na leitura visual, pois, para
ambas as leituras, existem “pistas” e elementos visuais que implicam
diferentes níveis de leitura. Não se pode esquecer que as imagens são
resultado de um contexto social, histórico e ideológico, e as respostas
do leitor/espectador a qualquer obra literária ou artística vêm precedi-
das das experiências prévias e das expectativas de práticas de leitura, de
modo que “las imágenes atractivas y las palabras cautivadoras revisan
y extienden estas experiencias y conocimientos por medio de las ideas
y sensaciones nuevas suscitadas por la exploración del lenguaje visual,
los vínculos intertextuales y culturales y las emociones que los acom-
pañan” (Arizpe, 2013: s/p).
Depois da remoção da bolsa que envolve o livro, o que aparece é
a parte exterior da cabeça do cetáceo perante a qual o leitor pode seguir
o movimento convencional de leitura de qualquer livro e virar a página
para a esquerda, o que coloca a descoberto a parte interior da cabeça do
cetáceo, mas, se optar pela direção inversa, irá descobrir a parte externa
da baleia, os animais marinhos que a acompanham e outros detalhes do
meio envolvente. A falta de texto obriga o leitor a ter de identificar os
signos particulares das imagens, a decifrar as conexões entre os objetos
que aparecem, a reconstruir as sequências dos diferentes significados e
a confirmar ou refutar as hipóteses de leitura que se vão gerando conti-
nuamente, à medida que se desdobra a obra e se percorrem as múltiplas
partes que conformam o interior do animal ou o ambiente no qual se
move.
A descodificação dos signos visuais não resulta numa tarefa fácil
nos álbuns sem palavras, como sugere Emma Bosch (2008), uma vez
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 115

que estas obras proporcionam múltiplas narrações que é preciso des-


vendar. Neste sentido, estamos perante um formato mais exigente do
que o convencional, sendo a participação do leitor muito mais ativa,
uma vez que o único sistema semiótico presente é o das imagens, o que
gera um ritmo de leitura diferente, mais pausado e concentrado, que,
sem dúvida, obrigará a muitas releituras, avançando hipóteses, realizan-
do previsões, procedendo a revisões, à identificação de personagens, à
inferência de estados emocionais etc., um trabalho mais autónomo que
exige maior autoconfiança e autonomia do leitor, ou um papel de me-
diação mais ativo, sendo necessário assumir as ambiguidades, enfrentar
os enigmas e aceitar que não se pode compreender tudo (Nières-Che-
vrel, 2010: 143).

4.1. Dentro da Balea


Quando se observa, em toda a sua dimensão interna, a baleia,
temos a sensação de que estamos perante um quadro pormenorizado, no
qual aparecem muitíssimas personagens que protagonizam um elevado
número de microrrelatos simultâneos. Normalmente, tal como assinala
Emma Bosch (2010: 8), os autores deste tipo de livros procuram que
“el lector identifique entre las páginas abigarradas a uno o varios per-
sonajes protagonistas. En cada doble página, el lector pasea libremente
la mirada por las imágenes repletas de signos”, o que levou a deno-
minar este tipo de obras, na língua alemã, como “Wimmelbuchs”, ou
seja, livro formigueiro ou “libro pulular”, no sentido em que é possível
passear livremente pelas imagens. Em Balea, não se fixa o objetivo de
identificar ou localizar uma personagem, tendo os criadores levado até
ao limite a liberdade de o leitor selecionar e determinar os seus pontos
de interesse.
Além disso, para além de nos aproximarmos do livro de forma
convencional, procedendo à sua leitura da esquerda para a direita,
acedemos ao interior de um transporte submarino repleto de habitan-
tes, todos vestidos com um macacão amarelo, distribuídos por vários
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
116

espaços, semelhantes a camarotes, enquadrados pelas divisões dos es-


paços, como vinhetas, que suportam a estrutura interna da colónia que
habita o cetáceo mecânico. Estes espaços são caracterizados pelas ati-
vidades aí realizadas e cuja disposição sugere que o tempo e o espaço
estão divididos, mas, na realidade, a visão de conjunto cria a perceção
de simultaneidade do que ocorre dentro deste mecanismo, perante a
qual o leitor tem liberdade para seguir uma ordem semelhante à da lei-
tura convencional (da esquerda para a direita, do plano superior para o
inferior), ou, de modo global, escolher um pormenor, um lugar ou uma
cena que quer observar com detalhe, e saltar entre eles, criando o seu
próprio itinerário de leitura. Nas imagens não existem pistas nem ele-
mentos que se destaquem para identificar os fios da narração, uma vez
que se deseja que o leitor explore e observe com total liberdade o plano
global, no qual, através de um movimento de aproximação, a atenção
se pode centrar num lugar à escolha, que chame a atenção por algum
motivo particular.
Seguindo uma opção mais convencional, é possível aceder a cada
uma das cinco secções em que está dividido o cetáceo, já que estas zo-
nas surgem delimitadas pelas dimensões das duplas páginas, mantendo
entre si alguma unidade de sentido, ainda que, no fundo, continuem,
cada uma delas, a ser parte de um todo. Na primeira secção, correspon-
dente à cabeça, apresenta-se a parte do mecanismo onde se localizam as
salas de controlo e os aparelhos de propulsão a corda46, uma sala para
atividades artísticas e de ambientação musical e o acesso ao exterior,
sob a forma de uma boca com dentes afiados, podendo observar-se, ain-
da, quatro pequenos submergíveis, usados na exploração do ambiente
exterior. Na segunda secção, é possível observar, na parte superior, os
dormitórios, as casas de banho, as salas de descanso e de ócio, a cozinha

46
Que, sem dúvida, remetem os leitores mais pequenos para todos os aparelhos mecâ-
nicos que aparecem nas séries de desenhos animados dos canais infantis, como El pequeño reino
de Ben y Holly, série criada por Mark Baker, em 2009, de grande êxito na atualidade entre este
público.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 117

e um laboratório de investigação. Na terceira, surgem, na parte superior,


os habitáculos para descanso, na parte central, predominam as salas
dedicadas ao exercício físico e à limpeza, enquanto, na parte inferior,
é visível uma sala ampla dedica à experimentação, com mecanismos
artificiais e máquinas robóticas cujas cabeças são feitas à imagem e
semelhança dos tripulantes desta nave, o que sugere a natureza artificial
desta. Na quarta secção, observa-se, na parte superior, o armazém de
cereais e a padaria, surgindo, imediatamente a baixo, a horta, com di-
ferentes culturas, a sala de criação de porcos e de aves e um armazém,
tudo em níveis consecutivos. Ao lado, surgem diferentes salas de con-
trolo, uma sala de música, onde um grupo47 atua enquanto o público as-
siste ao concerto, além de um infantário com um número considerável
de crianças, meninas e meninos brincando. Na parte inferior, para além
de uma porta de acesso ao exterior, também é possível observar as con-
dutas, semelhantes a esgotos, onde trabalham funcionários na compa-
nhia de ratos, enquanto, no exterior, se observam, tanto em cima como
em baixo do aparelho, peixes de diferentes espécies que acompanham
a Baleia. Finalmente, a quinta secção é formada pela cauda, acima da
qual aparece um novo mecanismo de corda, com a respetiva sala de
propulsão imediatamente abaixo, conectada a uma hélice. No exterior
são visíveis outros exemplares de peixes nadando em diferentes dire-
ções, assim como um submergível com um tripulante que os observa.
A Balea apresenta-se, assim, como um microcosmos, um conti-
nuum que, apesar da existência de compartimentos, se trata, na verdade,
de vasos comunicantes através dos quais as personagens passam de um
lugar para outro com total liberdade, observando-se exemplos onde está a
ocorrer uma transição de uma sala para outra. No total, a comunidade re-
presentada ultrapassa os cento e trinta membros, unidos pelos macacões

47
Cujo nome é Pink Panzer, referência biográfica comum a ambos criadores, que integra-
ram um grupo musical com este nome, no qual também participou, como baterista, a esposa de
Federico Fernández. Nas apresentações que fizeram desta obra, usaram um vídeo de animação cuja
banda-sonora incluía alguns temas musicais desta banda.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
118

amarelos que os cobrem da cabeça aos pés, o que pode ser interpretado
como sinal de igualitarismo, sem a presença de hierarquias, nem de
elementos categorizadores. Trata-se, pois, de uma sociedade utópica e
feliz, tal como refletem as suas atitudes e expressões, nas quais são per-
feitamente visíveis o sossego, a tranquilidade e a afabilidade. As agua-
relas coloridas, da autoria de Germán González, usadas na representa-
ção de personagens e espaços, dão profundidade às figuras e criam um
estilo clássico em termos da imagem global da obra, onde a imaginação
é o elemento fundamental para recriar o que sucede nas múltiplas salas
do cetáceo mecânico. Predomina o recurso a cores quentes (amarelo,
laranja, castanho), que criam espaços acolhedores, cheios de vida e
harmonia, sugestões semânticas que se estendem à sociedade recriada,
contrastando com as tonalidades frias dos materiais da estrutura mecâ-
nica, que, neste caso, funciona como uma estrutura óssea que organiza
as diferentes secções, dentro da qual se destacam também as condutas
que, à semelhança de órgãos, percorrem diferentes secções e ocupam
espaços internos da estrutura. Desenvolve-se, assim, um rico jogo di-
cotómico, que assenta em eixos temáticos como dentro/fora, artificial/
natural, mecânico/humano.
Nesta amálgama de habitáculos é de assinalar a configuração ra-
cional da distribuição dos espaços, a correlação interna das zonas, a
atenção ao mínimo detalhe, assim como o recurso ao humor, à paródia,
à ironia ou aos elementos escatológicos, que pontuam as situações in-
ternas e externas do cetáceo e que promovem o riso cúmplice do obser-
vador. Nesta comunidade utópica, na qual homens e mulheres exercem
papéis semelhantes, plasma-se a vida diária de uma comunidade onde
há tempo para o trabalho, o lazer, o descanso, a criação artística... Sur-
gem também os diferentes estádios da vida humana, gerações diferentes
que vão desde a infância até à velhice, as relações sociais, o convívio,
a prática de diferentes expressões artísticas (pintura, música, cinema),
o cuidado com o corpo, a experimentação... Esta sensibilidade e equi-
líbrio interno estendem-se também à relação com o meio ambiente, ao
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 119

ser recriada uma sociedade sustentável, capaz de ser autónoma debaixo


do mar, do qual aproveitam os recursos necessários ao seu abastecimen-
to, complementando a produção própria.
Os autores têm explicado que pensaram em incluir pistas para
encontrar personagens, mas, no final, optaram por não o fazer, dando
mais liberdade a cada leitor, de modo a que a componente visual pro-
movesse o diálogo cúmplice que origina uma forma potenciada de nar-
rar (Ramos, 2011: 20), propiciando a interpretação diferenciada de cada
leitor em função do seu intertexto leitor. Deste modo, a um leitor atento
não passarão despercebidas as referências à obra de Júlio Verne ou de
Leonardo da Vinci, precursores na recriação de artefactos mecânicos,
as vinhetas de Ibáñez, as multidões de Martin Handford, em Onde está
Wally?, ou as cenas do quotidiano do pintor alemão Ali Mitgutsch (Mu-
nique, 1935)48, caracterizadas pela atenção ao detalhe nas suas obras,
ainda que diferentes das suas, unidas pelo ponto de vista aéreo, enquan-
to, em Balea, o leitor se situa em frente ao objeto observado.

4.2. O exterior
A correspondência com o desenho interior manifesta-se nos ele-
mentos que comunicam com o exterior, que, neste caso, se podem ob-
servar em pormenor, como as divisões verticais do aparelho, os peris-
cópios, as hélices, os mecanismos manuais de propulsão e as portas de
acesso, aos quais se junta a âncora que sai pela abertura correspondente
ao olho. Ao longo das cinco secções que configuram esta perspetiva,
observa-se a atividade no mar de homens e mulheres que, ataviados
com botijas de oxigénio, desenvolvem tarefas de manutenção e limpeza
das diferentes partes do cetáceo. Com eles interage um elevado número
de exemplares de espécies marinhas, mais numerosos na parte central,
que navegam no sentido da baleia, imitando a relação simbiótica que
mantêm entre si algumas espécies. Sobressai também, neste espaço, o

48
Pode ver-se uma amostra da sua produção em: http://www.spiegel.de/einestages/ali-mi-
tgutsch-erfinder-der-wimmelbuecher-wird-80-a-1047680.html (consultado a 23 de maio de 2016).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
120

humor, visível na postura assustada de um homem que se move numa


peculiar bicicleta, que persegue um lagostim com um pau, ou a mu-
lher nadando em cima de um grande peixe vermelho, o caranguejo que
desafia, com suas pinças, o mecanismo artificial do aparelho na parte
superior, as lulas que tocam e dançam com uma guitarra, o peixe com
óculos...
A esta colorida colónia de peixes e cetáceos junta-se também,
num diálogo intertextual com toda a literatura dos romances clássicos
de aventura, o encontro de um dos mergulhadores com uma sereia e
a descoberta, por parte de outro, de um cofre meio escondido no leito
marinho, para o qual se dirige com uma chave. Relações metafóricas,
simbólicas e poéticas com a literatura universal, como o autor Federico
Fernández confessou, transferem para a obra toda a sua bagagem cul-
tural, que quer passar a Max, o seu filho, a quem é dedicada esta obra,
como já referimos antes.

4.3. Leituras plurais


Balea é uma obra dirigida a todas as faixas etárias, que proporcio-
na uma experiência leitora anterior à própria aprendizagem da leitura e
da escrita, dado que a leitura visual ajuda a formar o imaginário pessoal
da criança pré-leitora, cujo progresso na linguagem e a sua interrelação
com o pensamento dependem dos estímulos recebidos desde a primeira
infância, transmitidos fundamentalmente através da tradição oral e dos
textos da cultura (literatura, música, jogo), que fomentam a comunica-
ção adulto/criança, imprimindo-lhe uma carga afetiva que fortalece os
vínculos, enriquece e ressignifica os padrões da criança e se constitui
como uma poderosa ferramenta de prevenção emocional (Reyes, 2008).
Desta forma, está provado que a literatura enriquece as possibilidades
de comunicação verbal e não verbal no seio da família, dotando todos
os seus membros de ferramentas comunicativas para transitar entre uma
linguagem meramente utilitária e instrumental para outra mais inter-
pretativa, expressiva e simbólica, que resulta determinante no desen-
volvimento da capacidade criadora do sujeito e que garante a transição
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 121

entre a leitura literal e a leitura como processo dinâmico de construção


de sentido.
Autores49 e editora revelam, assim, o seu respeito pela capacida-
de de todos e cada um dos leitores que se aproximem da obra, ao não
interferir na essência da proposta visual e ao garantir, desta forma, o
prazer de ler um livro-álbum sem palavras num estilo puro, preenchen-
do os seus espaços em branco. Contribuem para uma leitura e inter-
pretação individuais, segundo os conhecimentos e a competência dos
destinatários desta proposta visual, e promovem um público-alvo que
descubra em Balea itinerários de leitura infinitos, desafios para pensar,
para circular do esperado ao inesperado, do literal para o metafórico
(Arizpe, 2013). Não podemos esquecer que, na atualidade, um livro-
-álbum bebe e convive com muitas outras artes visuais, desde o cinema
à banda-desenhada, dos videojogos à publicidade ou à televisão, con-
vertendo-se numa “arte multimodal en el que se integran la dimensión
espacial de la composición y la dimensión temporal del ritmo narrati-
vo” (Silva-Díaz, 2006: 26), fruto, em parte, da indiscutível presença
da imagem na cultura contemporânea. Por isso, um livro-álbum é uma
ferramenta fundamental, no sentido em que proporciona uma combina-
ção sinérgica de interação de códigos, o que conduz, em algumas abor-
dagens, a definir este tipo de publicação como iconotexto, imago-texto
ou artexto (Agra e Roig, 2007). Porém, nos casos em que o livro-álbum
não inclui texto, como em Balea, a obra abre-se também a leitores de
tenra idade, ao oferecer um contacto precoce com a estrutura narrativa e
com a dimensão artística do livro, tanto do ponto de vista literário como
plástico (Ramos, 2011: 20).
As fronteiras entre os diferentes discursos artísticos diluem-se
cada vez mais, por isso é necessário aproveitar esta conexão entre as

49
Tal como explicou Federico Fernández na conversa referida, foram muitas as reuniões
dos criadores e dos responsáveis da editora (diretor, designer, etc.) para decidir questões que afe-
tavam o design gráfico, como a bolsa removível, na qual se incluíram vários textos e informações
sobre os créditos autorais e editoriais e a apresentação, a decisão de não realizar guardas, de que
capa e contracapa fossem coladas à mão, etc.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
122

diferentes linguagens como um excelente canal de motivação e de inter-


disciplinaridade. De facto, estamos totalmente de acordo com Ballester
e Ibarra (2009: 33) quando afirmam que, na educação literária dos mais
novos, “junto a los textos literarios defendemos el empleo de todo el
extenso espectro de textos denominados paraliterarios o también toda
esa otra literatura, como la literatura de masas, el cómic o el graffiti”,
por considerar que a competência literária dos leitores do século XXI
se alimenta de diferentes linguagens, nem todas elas com origem no
âmbito académico (Lluch, 2003). Além disso, no livro-álbum, todos os
elementos do livro estão ao serviço da história: a ilustração, o formato,
o fundo da página, a composição dos elementos, a tipografia... de modo
que, no livro-álbum, tudo conta, e esta afirmação é válida para as duas
aceções do verbo “contar” (Silva-Díaz e Corchete, 2002: 20).
Balea é uma metáfora da mecanização, entendida como progres-
so democrático e de igualdade, tal como se reflete nas suas imagens,
sendo também um livro que se distingue de outros projetos onde a ilus-
tração surge associada a um texto, uma vez que, nesta obra, é a ilus-
tração que recria um mundo de máquinas e artefactos. Trata-se, sem
dúvida, de uma obra suscetível de ser partilhada entre crianças e adultos
e, como afirma David McKee (Carranza, 2008), tanto crianças como
adultos perdem se não compartilharem a sua leitura.
Fernández e González revelam, tal como assinalou Leo Lionni
(1988: 66; 2003: 17), que todo o processo artístico é o resultado de
uma sequência infinita de opções, de um percurso constante, do exer-
cício de um julgamento crítico que se converte em profunda reflexão
e, finalmente, da descoberta da nossa própria identidade. Nesse caso, o
que existe de mais galego do que responder a uma pergunta com outra
pergunta? É isso que fazem Federico Fernández e Germán González,
quando, perante as dúvidas que possam surgir ao leitor sobre o sentido
de muitos aspetos da sua obra, parecem optar por sugerir: o que quer
que signifiquem?
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 123

5. Algumas conclusões

Múltiplos acessos, leituras plurais, itinerários pessoais, leitura


singular entre várias possíveis, o ponto de vista particular baseado na
troca privada entre leitor e criador são apenas algumas das caracterís-
ticas deste artefacto, Balea, que se inscreve plenamente na efervescên-
cia criativa que tem caracterizado o livro-álbum ilustrado nas últimas
décadas, “situando-o numa posição de intersecção (crossover ou dual
addressee) entre a literatura infantil e a literatura adulta” (Ramos, 2011:
27). Sem dúvida, como defende Sandra Beckett (2012: 17), esta obra
responde, como muitos álbuns ilustrados, a uma perspetiva global e
transcultural, o que conduz a que “In many countries around the world,
innovative works by picturebook artists challenge and dispel the wides-
pread assumption that picturebooks are only for children”.
Aproximar-se desta cidade flutuante sem palavras implica refle-
tir sobre como a infância enfrenta a leitura visual, tanto a solo, como
em companhia de um adulto, que nem sempre saberá responder às per-
guntas que as personagens e os espaços suscitam ao atento espectador,
sendo, por isso, fundamental compreender a flexibilidade da imagem e
a interrelação entre os elementos que a integram, a sequência, o modo
de recriar o espaço e o tempo...
Com Balea, os professores e os mediadores, em geral, podem
construir pontes entre o “leitor tradicional” e o “leitor novo” (Cerril-
lo, 2007), aquele que tem como referência os meios audiovisuais e é
submetido, demasiadas vezes, a uma leitura instrumental durante o seu
processo educativo, pois os textos disponibilizados na escola servem
para exemplificar noções linguísticas em detrimento do valor literário
dos textos, o que conduz a que fujam da leitura assim que esta deixa de
ser obrigatória e exclusivamente destinada a alcançar objetivos acadé-
micos.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
124

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 129

8. O livro-objeto e a teoria do Ovo Kinder

Cláudia Sousa Pereira

1. Introdução

Trabalhar na área da Literatura o livro-objeto é, por si só, um ato


epistemologicamente questionável, intelectualmente desafiante, institu-
cionalmente atrevido, sobretudo, mas não apenas, quando nos dirigi-
mos, em plena consciência, a leitores de formação previsivelmente na
área das Ciências da Educação. A afirmação pode parecer exagerada, ou
com ares de falsa modéstia ou, se o leitor for benevolente, ser apenas
delicada para com os leitores mais conhecedores, do que a autora destas
breves reflexões, de design gráfico e técnicas de desenho e ilustração,
iniciação musical ou desenvolvimento psicossocial da criança. Talvez
por isso, algum esclarecimento inicial se imponha.
Questionável porque se há elemento menos realçado, visível e
até sedutor, num livro-objeto, este é o do texto. Antes mesmo de ad-
mitirmos poder discuti-lo na sua eventual literariedade ou no seu lugar
dentro do sistema literário. Estudado no campo literário circunscrito à
literatura infantojuvenil, o livro-objeto que contenha algumas palavras
ou frases, mais ainda do que os livros que catalogamos como álbuns,
mas talvez não tanto como o videojogo ou o próprio filme para a infân-
cia, exige-nos metodologias e procedimentos que nos afastarão de uma
leitura literária mais escolar que “escava” normalmente o texto para
nele descobrir toda a matéria não-dita nas palavras escolhidas para o
fazer.
Desafiante no sentido em que, mesmo no universo que nos é
tão familiar desta literatura com destinatário previsivelmente certo de
crianças, o papel do adulto, e do mundo dos adultos, em todo o processo
de criação, edição, publicação, divulgação e receção do livro-objeto,
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
130

é aquele em que, estranhamente e veremos porquê, mais requer a sua


presença e, talvez até, atenção e cuidado a vários níveis.
Atrevido quando trabalhamos um brinquedo em Estudos Literá-
rios, quando analisamos o design editorial ao lermos literariamente um
livro-objeto, quando propomos atividades em contextos educativos for-
mais, para além dos não-formais e informais, e o fazemos na formação
profissional de educadores.
É precisamente com base nos três verbos que pressupõem uma
ação de investigação e proposta de trabalho com livros-objeto – ques-
tionar, desafiar e atrever-se – que desenvolveremos este contributo para
o seu estudo. Não sem antes, fazendo jus ao compromisso que o título
assume, desenvolver brevemente a “teoria do Ovo Kinder”, numa me-
recida homenagem a um dos que foi nosso mestre nesta área de estudo,
investigação e docência, o Professor Jean Perrot. Uma teoria que desen-
volve com humor, tido como mais comum pela estereotipada origem
britânica do que pela nacionalidade francesa do mestre, que lhe é carac-
terístico, a par da seriedade do seu trabalho, em Jeux et enjeux du livre
d’enfance et de jeunesse (1999).

2. A Teoria do Ovo Kinder

Publicado num ano de fronteira, o mítico 1999, que a cultura te-


levisiva de massas da década de 80 colocava em plena expansão pelo
Universo e relacionamento entre espécies extraterrestres no Espaço, nas
vésperas da entrada de um novo século e de um novo milénio, a obra
Jeux et enjeux du livre d’enfance et de jeunesse, publicada pelas Édi-
tions du Cercle de la Librairie, coincide com um momento importante
na história deste campo literário. Em Portugal, e talvez noutros países
que não a França, os estudos sobre os livros e a literatura infantojuvenil
ganham uma importância ignorada no meio dos estudos sobre Educação
e sobre a Infância. Nem sempre reconhecida nos Estudos Literários, tor-
nou-se então incontornável nos Estudos Comparatistas, onde Jean Per-
rot entrou pela “porta grande” da Associação Internacional de Literatura
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 131

Comparada para orientar e sugerir caminhos nos estudos da que, entre


nós, tratamos por LIJ, sigla que passarei a usar ao longo destas reflexões.
A obra, publicada numa coleção dedicada a volumes sobre biblio-
tecas, é classificada como pertencente a três grandes áreas-chave, que
mantenho no francês original dada a especificidade que as designações
assumem nas diferentes línguas em que se usam para os mesmos objetos
que são os livros infantojuvenis: “littérature pour la jeunesse: France:
histoire et critique”, “littérature pour la jeunesse: édition: France”;
“livres illustrés pour enfants: France: histoire et critique”. Quanto à
classificação Dewey, arrumam-se em 810: Livres pour la jeunesse: His-
toire, théorie, critique e 070.31: Journalisme: Presse. Édition. Histoire
du Livre. O público a que o bibliotecário ou livreiro poderá aconselhar
a leitura, no original o public concerné, é nada mais nada menos do que
o public motivé. Todas estas indicações, para catalogação, preparam os
atentos leitores para a extensa obra que se inicia.
Para além da história, da crítica e da teoria que vai fazendo e de-
senvolvendo, fá-lo não só através da análise intensiva dos livros de que
fala mas de exercícios práticos – que propôs, realizou, recolheu e aqui
transcreve e analisa – com crianças e jovens, vendo-os brincar e conver-
sar. Isto permitiu-lhe fazer deste livro um quase “tratado”, não apenas
no sentido de estudo aprofundado, mas de convénio mesmo entre livro,
criança e mediador, já que não só propõe acordos de leituras ou discus-
sões possíveis para este ou aquele livro, como combina entre as partes
regras para a escrita de um texto, ou o desenrolar de uma conversa, que
se jogue em torno do universo que a literatura para a infância explora.
Talvez por lançar mão de exemplos franceses acabados de publi-
car então, e os exemplos das propostas de leitura serem muito concretos
sobre estas obras, a tradução desta obra de Jean Perrot não encontrou
grande sucesso, nem mesmo no público português mais motivado. Mui-
to embora já existissem no mercado português, à data do seu lançamen-
to, publicações congéneres, nacionais e traduzidas, e continuemos a ter
“descendentes” dessas obras a que ali se recorre quer como exemplo,
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
132

quer como motivo de reflexão e proposta de trabalho com crianças,


dificilmente conseguiremos acompanhar na totalidade o que é dito so-
bre as obras mencionadas, tendo o redobrado trabalho de procurar nos
títulos disponíveis nas estantes de livros para os mais novos exemplos
aos quais se apliquem os princípios criticados e teorizados.
Há, no entanto, logo na primeira parte da obra, uma curiosa refe-
rência ao Ovo Kinder que nos é muito familiar e que recuperei para esta
reflexão, até com honras de título. Ora, a obra de Jean Perrot, que trata
de “jogos e desafios do livro para a infância e juventude” (que é como
poderíamos traduzir o título), logo no índice inicial, propõe-se fazer,
quase em forma de tutorial ou diretório, um percurso pelos capítulos
que segue uma lógica e regras que se aproximam do domínio do lúdico.
Aliás, o capítulo final intitula-se precisamente «Conclusão do ludista»,
o que nos esclarece sobre as intenções do seu autor quanto ao tom da
sua reflexão que é sempre séria e de base teórica muito sólida.
A referência ao produto de chocolate conhecido em vários países
surge na sequência de um exercício com adolescentes que referem a im-
portância dos alimentos nas funções maternais, e precede uma análise
do papel da mãe num álbum para os mais pequeninos. É na página 58,
das quase 400 que compõem o trabalho, que surge o seguinte parágrafo:
le pouvoir suprême exercé de nos jours par l’offre aux enfants d’un “oeuf Kin-
der”, oeuf “surprise” (le terme apparaît sur l’enveloppe de papier aluminium)
en chocolat. La consommation de celui-ci, comme le marquait un texte trop
long que nous ne pouvons pas reproduire50, est une autocélébration orale de

50
Na página web da empresa Ferrero podemos ler um texto sobre a história deste produto
que diz assim: “Desde 1974, KINDER® SURPRESA® delicia as crianças com doçura, fazendo
com que elas brinquem de uma maneira surpreendente. Um ovo, um simples ovo de chocolate que
se transformou numa idéia revolucionária, o prêmio ideal que cada criança deseja, justamente pelo
seu interior sempre surpreendente. Desde os dias em que nasceu a idéia, desenvolveram-se mais
de 8.000 surpresas e venderam-se no mundo inteiro mais de 30 bilhões de unidades. Cada ano
criam-se mais de cem jogos e gadgets novos, com uma procura contínua de materiais novos e de
mecanismos engenhosos: um estímulo contínuo não somente para a fantasia e a criatividade, mas
também para o desenvolvimento de importantes capacidades tais como a lógica e a coordenação.
As surpresas Kinder projectam-se sem perder de vista a segurança e com uma rigorosa observân-
cia das normas vigentes e dos critérios de segurança adicionais voluntariamente adoptados pelo
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 133

l’enfance, des enfants (Kinder, “enfants” en allemand) et voit sa jubilation com-


plétée par l’apparition du petit jouet qu’il contient. Le jouet, couronnement de
la surprise, introduit le deuxième terme du couple parental, car, nous allons le
voir, il est lié à la figure paternelle, assumée de façon emblématique par le Père
Noël.

Trata-se de uma proposta interpretativa antropológica, de que


nos podemos desde logo aperceber só através destas frases, que orienta
o trabalho de campo de Jean Perrot. E não deixa de fazer o seu sentido
quando entramos no campo do jogo, e do desafio que nos é proposto de
olharmos para a leitura literária, em particular para a iniciação à leitura
literária, mas também para a criação literária neste campo específico da
edição. Apresenta-se esta iniciação à leitura como um conjunto de eta-
pas e percursos a completar, seguindo regras que nos permitam obter o
máximo que, potencialmente, um objeto-livro pode oferecer. E note-se
que a ordem dos fatores da apresentação do dito Ovo Kinder – chocola-
te, surpresa e brinquedo – é também ela aqui significativa. E aplico-a, já
agora, não apenas ao conceito que os estudos aqui compilados dedicam
exclusivamente ao livro-objeto, mas a qualquer bom livro que requer
um tão bom interlocutor para que se cumpra a sua cabal missão. Pen-
samos na especificidade da comunicação literária que nos oferece um
conjunto muito mais complexo, obrigando-nos a montar várias peças
– como os brinquedos que estão dentro do Ovo Kinder – para darmos
sentido(s) ao que pretendemos comunicar.
Para Perrot,
tout pédagogue et tout bon livre doivent être ces maîtres de la “surprise”
ou de l’ “illusion”: ils font s’émerveiller les yeux et déterminent d’au-
tant plus sûrement l’éblouissement qui cré le bon lecteur. En ce sens
encore, ces “maîtres” créent un écart par rapport à la norme de l’enseig-
nement habituel, ou plus simplement, par rapport aux bonnes histoires
qui en proposent l’ equivalente. (Perrot,1999: 58)

Grupo Ferrero. Em cada KINDER® SURPRESA® há um mundo de jogo, de momentos felizes


que os pais amam compartilhar com os seus filhos, descobrindo a alegria nos seus olhos, partilhan-
do o seu doce sorriso.”
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
134

Jean Perrot entende e defende que colocar “a leitura literária


numa perspetiva baseada no destaque do que é considerado marginal
na instituição [escola], isto é o jogo, o humor, o gozo” é encarar “a
infância sob a problemática do provisório e do efémero, do que é con-
traditório e do disperso, como ímpeto e génese de uma cultura em for-
mação” (Perrot, 1999: 58). Na ânsia de inventarmos um leitor infantil
ideal, global, informado sobre tudo o que se passa à sua volta e apto a
decifrar todas as ficções que lhe são oferecidas, esta conceção permite
“ao artista o espelho ideal para uma escrita em diálogo, que implique a
recusa de uma totalidade em proveito da interrogação e da investigação
criadoras” (Perrot, 1999: 397)51. Entrar no jogo infantil, ingressando no
mundo instável de quem muda um bocadinho todos os dias ou até mais
do que uma vez por dia, qual Alice no País das Maravilhas, é assim
uma quase-receita para os autores contemporâneos e de olhos postos
em algumas das obras-primas do género no passado. Concluindo, Per-
rot realça também, nesta obra, o jogo e a metáfora lúdica como formas
férteis para conceber a leitura, uma vez que correspondem à visão quase
utópica que assegura, no atual contexto dos produtos de lazer ofereci-
dos às crianças, a importância dos livros e da leitura na construção da
personalidade e da linguagem.
Mas retornemos ao livro-objeto, que é o que nos traz a esta obra,
em particular os dois tipos que deste formato utilizarei aqui como
exemplo, o pop-up mais comum e o livro em formato carrossel, ambos
apresentados normalmente pelas editoras contemporâneas como livros-
-brinquedo, para além de serem vários os sítios online que ensinam a
fazê-los. Ensinam o aspeto material, bem entendido, o que por si só já
revela a curiosidade que estes formatos provocam nos bibliófilos, numa
longa história que vai das tábuas ao e-book passando pelo pergaminho.
Aliás, concluem diversos historiadores do livro que se pode fa-
zer recuar as origens do pop-up até cerca de 1300, antes da invenção

51
Tradução nossa.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 135

de Gutenberg portanto, com livros feitos para explicar a astronomia


em três dimensões. Um instrumento didático, muito mais do que um
brinquedo, que, ainda assim, mediava, com uma outra “linguagem”, um
saber científico e uma vontade de saber por quem tinha acesso a livros
e, portanto, ao conhecimento e à educação. Mas só 600 anos depois,
em Inglaterra, temos testemunho de livros com ilustrações móveis, as-
sim se designaram, que constituíam best-sellers por surgirem no Daily
Express Children’s Annual52. Foi, no entanto, um ilustrador americano,
Harold B. Lenz, quem batizou o formato como pop-up quando publi-
cou, talvez o primeiro e mais conhecido de entre outros clássicos que
também recriou, Pinocchio, editado em New York, em 1932, pela Blue
Ribbon Books.
O livro em formato carrossel é uma variação do pop-up, já que
também os recortes do papel saem das páginas através do movimento
em efeito 3D. Mas, desta feita, proporcionando no sentido do cami-
nho para o final da história um final encenado num livro que, uma vez
terminado, tem o formato próximo de um carrossel e não de um livro
fechado. Curioso é o facto de este formato incentivar ao movimento do
próprio leitor no final da história, convidando-o a levantar-se e rodar em
torno do livro acabado de ler até ao fim. Ou a fazer girar o livro, como
um carrossel.
Apesar da vasta oferta editorial que tem vindo a surgir no merca-
do livreiro, e de nestas reflexões se tecerem considerações mais gerais,

52
Nos finais do século XIX, a partir da Grã-Bretanha, mas chegando ao restante mundo
anglófono, as histórias das crianças publicavam-se em periódicos de adultos, semanal ou mensal-
mente. Para capitalizar o seu mercado, as editoras começaram a reunir as melhores em anuários
cheios de histórias, ilustrações e jogos. Os livros eram lançados pelo Natal, e comercializados
como o presente perfeito, já que era ao mesmo tempo divertido e educativo para as crianças. Estes
anuários antigos são geralmente livros de capa dura, brilhante e atraente, com pelo menos 200 pá-
ginas e ilustrações a cores e a preto e branco. Já no século XX os editores passaram a incluir novas
histórias inéditas, a fim de impulsionarem as vendas. Autores reconhecidos, como Enid Blyton por
exemplo, estavam entre os que neles figuravam. Cada anuário tinha um mercado específico, ora
dirigido a meninas, a meninos ou a ambos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o racionamento do
papel afetou a qualidade e quantidade de livros publicados, tendo cessado a produção para muitos.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
136

seguindo algumas propostas de tipologias apresentadas neste volume,


vou ainda assim lançar mão de dois exemplares destes livros-objeto
(fig. 40 e 41). Se o mais antigo, La Casita de Azúcar (anos 50 do sé-
culo passado), se constrói em torno do conto tradicional de Hansel e
Gretel, onde os doces também estão tão presentes, o mais recente, Pop-
ville (2009), de Anouck Boisrobert e Louis Rigaud, empurra o texto de
Joy Sorman, uma autora francesa premiada, para um lugar muitíssimo
subalternizado. Quer um quer outro podem classificar-se, como vimos
acima, enquanto pop-up, já que transformam o folhear num gesto que
deslumbra pelo aparecimento em 3D da ilustração que salta das pági-
nas. Abrir o livro não precede o gesto de folhear mas transforma-o num
novo abrir, como uma caixinha de surpresas.

Figura 40 - Livro carrossel Figura 41 - Livro pop-up

Escolhi-os, como não podia deixar de ser, por razões afetivas e


pessoais, porque é também assim que se escolhem os livros. Isto não
é um desabafo mas antes um conselho a qualquer leitor mediador de
livros e leitura, e que nunca é demais repetir. Mas escolhi-os também
porque representam duas épocas diferentes da História – da história
dos livros, da história dos leitores, da história dos estudos literários, da
história da educação e da história do mercado – mas na qual o livro é
um objeto ao alcance de (quase) todos e na qual o livro-objeto foi e con-
tinua a ser de “encher o olho e a alma”, e cito a dedicatória pessoal que
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 137

está manuscrita dentro de La Casita de Azúcar, do meu tio-avô Leonel


à minha mãe, no dia em que ela celebrava 11 anos, testemunho de um
mediador amador, e que dizia assim: “Melhor me agradecerás quando,
num futuro que eu sinceramente desejo longo e sempre feliz, queiras re-
lembrar os teus saudosos tempos de criança, folheando as páginas deste
livro e enchendo os olhos e a alma com a graça e mocidade eterna da
bonecada.” (4-5-1953). O tio Leonel não era um homem culto, mas era
uma pessoa muito, muito divertida, que adorava oferecer aos sobrinhos,
que lhe substituíam no lugar dos afetos os filhos que não teve, brinque-
dos atrevidotes que, infelizmente não chegaram até mim, felizmente
porque serviram muito, e até ao seu próprio fim, as funções para que
existiam53. E também ele se deixou deslumbrar por este livro-objeto.
Quanto a Popville, foi uma compra recente minha a pensar já não
nos meus filhos, como qualquer mãe, mas nos alunos que ajudo a formar
na Universidade de Évora, nas disciplinas de Literatura para a Infância
ou Promoção do Livro e da Leitura, ou até mesmo Estudos Literários
ou Estudos Interculturais. A escolha prendeu-se com um movimento em
Rede de Cidades que, em recentes funções políticas autárquicas, tive o
privilégio de conhecer muito bem e que se organiza numa Associação
Internacional das Cidades Educadoras. Esta associação, que tem os seus
princípios definidos numa Carta54 que se assume como uma declaração
de intenções, repõe na mão dos cidadãos, e das diferentes formas de
instituições e organismos em que estes se associam e atuam, as ques-
tões verdadeiramente políticas, na sua original definição mais próxima
agora do conceito de cidadania. Estes dois livros-objeto, com os quais
abrirei uma “caixa de diálogo” no meio deste texto corrido, vão servir
de exemplo aos três momentos em que desenvolverei o porquê de este

53
Um dos brinquedos que a minha mãe recorda era um ursinho deitado numa cama e
que, dada a corda, se levantava, espreguiçava e emitia um flatulento e divertido ruído que punha a
criançada a rir com a mão a tapar a boca.
54
http://www.edcities.org/ e http://www.edcities.org/wp-content/uploads/2013/10/Carta-
-Portugues.pdf
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
138

género propor ações e atitudes que, como na apresentação de um Ovo


Kinder, são – da perspetiva do objeto e do seu manipulador – “um ali-
mento, uma surpresa, um brinquedo”.
Sobre este produto da empresa multinacional Ferrero, consultá-
mos especialistas em marketing através de uma obra intitulada Marke-
ting Lateral, de Philip Kotler e Fernando Trias de Besque, nos diz:
Os ovos Kinder Surpresa foram anunciados na televisão e posicionados
como um produto saudável, rico em energia e hidratos de carbono. O ta-
manho do ovo fornece a porção aceitável de chocolate que uma criança
deve consumir. Quando abre o ovo, a criança brinca com o brinquedo
e não pede mais chocolate. Estes dois fatores asseguram aos pais (os
compradores) que os ovos Kinder Surpresa são a escolha certa entre as
muitas opções de guloseimas.
Do lado das crianças, o conceito tem uma tripla atração: adquirem um
chocolate, um brinquedo e a hipótese de colecionar naves espaciais,
animais, monstros, etc.
O Kinder Surpresa redefiniu o mercado de guloseimas e chocolates ao
criar uma nova subcategoria em que é a líder e ainda não apareceu um
concorrente importante. (…)
Para algumas pessoas talvez seja difícil perceber a diferença entre uma
variedade de chocolate e um Kinder Surpresa. Note que o Kinder Sur-
presa adiciona a necessidade de “brincar” à necessidade de “comer”.
O mercado foi alterado. Um chocolate, se não for alterado, não pode
satisfazer a necessidade de brincar. O Kinder Surpresa pode. (Kotler &
Bes, 2003: 68).

Um caso paradigmático do mundo da Economia e do Marketing,


o Ovo Kinder aparece como uma obra-prima que altera o horizonte de
expectativa dos consumidores e dos mercados. É também isso que es-
peramos de um livro nas mãos de uma criança: que por ser um alimento
que o faz crescer, o emocione e possa brincar com ele. Mas vamos
“baralhar as cartas e dá-las de novo”. Vamos jogar com as (re)ações de
um livro-objeto, com as questões do campo literário da LIJ, com o que
nos ensina o mercado, ou marketing, e perceber como os livros-objeto
são um nutritivo instrumento para promover a educação, em particular
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 139

e no que nos interessa a educação na área da leitura e literacia literárias,


mas quando, e bem, partilhado o seu uso da criança com o adulto. E é
aí que, apesar de todo o discurso publicitário também o enunciar como
princípio, ele se separa do Ovo Kinder que oferecemos normalmente
à criança para que, sozinha, faça o que tem a fazer com este produto
comercial. Vamos ver melhor porquê.

3. Questionar é como reagir com emoção à surpresa

Uma criança pega num objeto, num livro-objeto, talvez já à espe-


ra que ele seja mesmo um livro, talvez a iniciar um de muitos gestos de
tomar nas mãos o que se parece com o que um dia aprenderá a chamar
livro. Mas nele não encontra palavras que possa pedir ao adulto com
quem está que lhe leia. Ou elas são demasiado insignificantes perante o
que se pode ver e mexer, em relação ao que se pode ouvir. Ficará à espe-
ra que o adulto dê algum sentido àquela sucessão de “coisas” que saem
das páginas. Se for deixada primeiro sozinha com aquele livro-objeto, e
souber o que é um livro, procurará talvez encontrar uma lógica naquelas
“coisas” e começará a manipulá-lo à procura dessa lógica a que podere-
mos chamar, ousadamente, a história. Se o objeto for surpreendente tal-
vez esse tempo de manipulação solitária seja longo, se a criança souber
que “aquilo”, apesar de tudo, é um livro no qual procurará os sentidos
e as emoções, questionando-se, como faz o adulto em qualquer leitura
literária de um volumoso romance. Está iniciada a primeira etapa para
se reconhecer a leitura literária: ela prende, quer saber mais do que está
escrito ali naquelas palavras, ela quer saber de onde vem tudo aqui-
lo, quem as criou, para quem as criou, enfim, tudo o que poderíamos
perguntar quando estudamos obras e autores clássicos, ou quando nos
encontramos em sessões de apresentação com a mais recente revelação
no mundo da literatura.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
140

Quando me põem La Casita de Azúcar nas mãos e me dizem que


este é um livro que conta a história de João e Maria, lanço-me a alinhar,
ao nível dos meus olhos, o livro aberto em forma de carrossel e a procurar
naquele “teatrinho” a história que talvez já conheça. Como este livro-obje-
to que eu tenho à minha frente realiza uma encenação dos episódios mais
marcantes, eu distingo, nos diferentes planos que as figurinhas vão ocupan-
do, em perspetiva, a linha temporal da narrativa e, para mim ou para quem
me oiça, posso contar aquela história como um contador de histórias faz
com recurso à memória, às fórmulas, aos gestos que o ajudam a lembrar os
detalhes que não pode esquecer para que a “leitura” da história faça jus aos
séculos que a fizeram tornar-se um clássico.
Quando abro Popville como um livro que, ao contrário do anterior,
é um objeto que não esconde que é livro, não consigo encontrar uma his-
tória, embora perceba a noção do tempo, embora perceba que o espaço é
outra categoria fundamental para quem contar alguma “coisa”. Chegada
ao fim, eu tenho um texto, que posso ler, ou me podem ler, ou, melhor ain-
da, porque a boa companhia faz o caminho melhor, recontar como numa
conversa. E aí eu vou voltar ao princípio e perceber que sou eu que tenho
que lá pôr, naquelas páginas, as personagens. E vou fazer a minha leitura
daquele espaço e daquele tempo que aquele objeto-livro me dá para eu
imaginar, a partir daquelas duas incontornáveis categorias que moldam
a vida de qualquer um de nós, tempo e espaço, quem os poderia habitar.
Posso até fazer o percurso ao contrário, eu leitor moderno da grande cida-
de, tão grande como a que salta nas últimas páginas, e saber que esse “ao
contrário” já foi o percurso primordial e que invertê-lo é um regresso…
ou um retrocesso?
São estas as questões? Ou haverá outras? Aquela versão de João e
Maria corresponde ao que imaginei quando a ouvi ou já a tinha ouvido e
visto noutra sua versão? Que história encerra Popville? A surpresa perante
o objeto leva-me à releitura, agora numa leitura que acalmará a excitação
da surpresa, como quando o leitor adulto lê e relê um parágrafo, um episó-
dio, à procura.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 141

4. Desafiar é como brincar com a comida

Uma criança pega num livro-objeto e já sabe, porque lhe mos-


traram, que nesse livro a história não está presa só nas páginas, que os
seus dedos podem despertar o que está dentro dele, que o livro pede que
lhe toquem, e que as personagens ou os cenários saem dali, como ilus-
trações animadas ou sons ou sabores ou texturas, e vê-os à sua frente
a ganhar corpo. Ela percebe que, antes ou em vez da atenção ao texto
verbal, pode procurar num livro todo um mundo criado à semelhança
daquele onde vive, o que conhece ou que imagina que um dia, em qual-
quer lugar, possa vir a conhecer.
Se a criança já sabe o que é um livro, ao pegar num livro-objeto,
que não é nem bem um livro nem bem um brinquedo, começa a perce-
ber que também com os livros – mas sobretudo, podemos fazê-la saber
que, com a leitura – o leitor pode usar o que ali está e que é “o que o
Autor quis dizer” – e usá-lo para fazer uma brincadeira muito sua, in-
ventando a partir do que ali está, do que já conhece ou do que quer saber
sobre o que estranha.
Com o livro-objeto, o mediador predisposto e preparado para ini-
ciar a criança na leitura literária, sabe sempre que é pelo lado lúdico e
do prazer, ou partindo daquilo com que a criança sente alguma afinida-
de, que pode arriscar ir mais longe. Não faz mal brincar com a comida
(esta é pela avó!, esta é pela mana!, aqui vai uma colherada de pó de
dragão!, agora outra de escamas de tubarão!) se, no fim, acabarmos por
comê-la e beneficiar dos seus nutrientes. Não faz mal brincar com um
livro se, no fim, nos apaixonarmos pela leitura.

Quando posso, com La Casita de Azúcar, armar o livro e pousá-lo,


andando à volta dele ou sentar-me e rodá-lo para o ler. Quando posso “co-
lá-lo” à cara, apoiando no peito a esquina inferior da lombada, entrando
sozinha e quase em segredo em cada um dos pequeninos cenários que foram
feitos das cenas mais importantes da história que ouvimos ou nos vão con-
tando. Nesta manipulação lúdica, vamos afinal lendo e percebendo que há
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
142

diferentes maneiras de “pegar” num livro – e, mais tarde, num texto – e que
cada vez que lhe pegarmos será como ouvir outra vez aquela história, com
maior ou menor ênfase neste ou naquele pormenor. É só preciso estar-se
atenta e entrar no jogo de encenação que o livro nos pede.
Quando vou abrindo Popville, percebendo que no fim eu vou ter
aquele cenário de cidade erguida a partir das páginas e do meu gesto, eu-
-criança, ao meu ritmo, vou lembrar o gesto acompanhado pela voz que me
contou a história daquela cidade e posso, até, pegar nos meus carrinhos e
nos meus soldadinhos de chumbo, ou upgrades mais modernos, e fazê-los
entrar naquelas páginas.
Sozinha, a pegar no livro-objeto que o adulto antes lhe apresentou,
a criança está já a alimentar-se do que a leitura literária, nutritivamente,
nos dá também a nós adultos leitores: aprender a escolher do que se gosta,
depois de se conhecer tudo ou quase. Trazer para aquele ato, que é a leitura
individual, todas as ferramentas que facilitem o convívio com o suporte
onde se encontra, escondido, o que verdadeiramente constitui o nutriente
alimento do livro: o pensar. Para mais tarde, um dia quando crescer, que é
o que os alimentos também ajudam a fazer, poder saber como agir e reagir.

5. Atrever-se é como alimentar-se com uma guloseima

Uma criança pega num livro para brincar e começa a aprender.


Não só a aprender como “faz” o porco ou a vaca, como o gato é macio
e a relva pica, como se ata um sapato, mas como é preciso fazer algum
gesto para aprender tudo isso, a cada página que abre, gira, levanta, des-
dobra, numa tentativa de descobrir qual o gesto certo que traz a recom-
pensa do livro que avança, segundo um jogo de regras que descobriu.
Mas aprende também a olhar para os detalhes que vivem nas páginas
dos livros, e que a realidade também lá está, ainda que num faz de conta
(a que chamamos ficção). Na dose certa e a brincar, a criança alimenta-
-se do jogo, da brincadeira, ao entender as regras para lidar com objetos
a que chamamos livros.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 143

Não foi por acaso que escolhemos o livro-objeto La Casita de Azú-


car. Foi porque vem do Passado, como a história de “João e Maria”, e foi
porque se trata de uma herança que valoriza a matéria de que se alimenta, o
conto tradicional, transformando-o num objeto esteticamente valioso. Tra-
ta-se de uma herança que perdura independentemente do que as gerações
lhe façam para que a herança siga o seu caminho. Esse caminho é trifurca-
do: ou a herança perdura tal como está, mais ou menos cristalizada ainda
que com o Tempo a passar (e a história contada à lareira ou ao deitar são
isso mesmo); a herança é delapidada e desaparece, ficando-lhe um ou outro
vestígio que a memória consiga fazer perdurar na desfragmentação que a
dificulta; ou a herança avoluma-se e ganha, com o Tempo e com o que dele
e dela fazem as novas gerações, a Eternidade. Para que isto aconteça, há que
atrever-se a pegar nessa herança e, entendendo as dinâmicas sociais, fazê-la
crescer, nem que seja jogando com soluções aparentemente desajustadas
ao ato primordial da criação original, tantas vezes perdida. Não encarando
a mudança, quando coerente e enriquecedora, como desautorização mas,
precisamente, como valorização.
Com Popville arrisca-se a bidirecionalidade da leitura – do início
para o fim do livro ou vice-versa – partindo do conhecimento que o leitor
tem de como funciona um livro para contar a história de uma cidade, que
pode ser todas as cidades, mas também o sonho que se pode iniciar no fim
da história. Se o texto ocidental nos faz levar o sentido da esquerda para a
direita na leitura do texto e a abertura da página da direita para a esquerda,
então, na ausência do texto, de que só o lugar-livro onde costuma viver
ficou, o pequeno leitor atual pode atrever-se a contar a história de uma ci-
dade, que pode ser a sua ou a que tantos adultos que a rodeiam e maldizem
o caos citadino que os consome e, brincando, propor a solução inversa à
do Tempo. Vai ter é de explicar muita coisa… que é o que fazemos quando
lemos intensamente um bom livro de Literatura ou LIJ.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
144

6. Concluindo

Os livros-objeto não são só brinquedos. São também brinque-


dos… como todos os outros livros que podemos incluir na LIJ. A ini-
ciação literária está só num nível muito inicial, em que a proficiência
em leitura literária, chamemos-lhe assim, está toda no mediador adulto
que ensina a criança a brincar com aquele objeto que, por sinal, também
é um livro. Como um livro, como um livro de LIJ. Porque aprender a
ler literatura também é isso: aprender como se faz para usar o faz de
conta do mundo da literatura onde todos os equívocos, todas as fanta-
sias, todos os jogos são permitidos, libertando-nos para a dura tarefa de
crescermos sempre enquanto criaturas pensantes.

Referências bibliográficas:
Obras analisadas:
BOISROBERT, Anouck; RIGAUD, Louis (2010). Popville. Figueira da
Foz: Bruaá editora.
(s/d). La Casita de Azúcar o Pedrito y Maruja en 6 dioramas. Barcelo-
na: Editorial Roma.

Estudos:
KOTLER, Philip e BES, Fernando Trias de (2015). Marketing Lateral.
Coimbra: Edições Almedina.
PERROT, Jean (1999). Jeux et enjeux du livre d’enfance et de jeunesse.
Paris: Éditions du Cercle de la Librairie.


APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 145

9. Fabrico e uso de livros artesanais


na formação de educadores55

Eliane Debus
Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira

1. Introdução

Comungamos da ideia de que devemos proporcionar às crianças


o acesso ao livro o mais cedo possível e de que o manuseio deste ob-
jeto contribui para a inserção da criança nas práticas sociais de leitura,
isto é, de que a leitura desse objeto (o livro) é a primeira cerimónia de
apropriação da leitura (o texto), bem como cremos que essa relação
estabelecida entre a criança e o manuseio do livro provoca uma leitura
específica: a leitura pelos sentidos. Maria Helena Martins (1982) apon-
ta a existência de três níveis básicos de leitura: sensorial, emocional e
racional, lembrando que eles estão interligados. Interessa-nos aqui a
leitura sensorial por entendermos que é nas dobras desse tipo de leitura
que os pequenos se vão aproximar do livro, já que a “leitura sensorial
começa, pois, muito cedo e nos acompanha por toda a vida” (Martins,
1982: 40).
Exemplo significativo de leitura sensorial é a realizada pelo me-
nino do poema “Biblioteca Verde”, de Carlos Drummond de Andra-
de que, ao ter em mãos os 24 volumes da Biblioteca Internacional de
Obras Célebres, os recebe pela leitura olfativa, tátil, auditiva, visual e
até mesmo gustativa. Poema memória pleno de significados. Pelo trem
de ferro desliza a Coleção que “Chega cheirando a papel novo, mata de
pinheiros toda verde”; leitor do código gráfico, a personagem menino

55
Parte inicial deste texto foi publicado por Eliane Debus em Revista Presença Pedagó-
gica, v. 16, p. 46-50, 2010.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
146

alerta o leitor que outras leituras antecederam o debruçar-se sobre as


letras “Antes de ler, que bom passar a mão / No som da percalina, esse
cristal / De fluida transparência”; ecoa no discurso a protelação da lei-
tura das palavras, “Agora quero ver figuras” e, por fim, para completar
a leitura pelos sentidos, destaca-se a metáfora da devoração: “Como te
devoro, verde pastagem” (Drummond, 1973: 129-130). A materialidade
do livro provoca encantamentos no menino leitor.
Faz-se necessário refletir sobre a materialidade constitutiva do
livro e proceder uma investigação atenta, pois a criança ainda bebé não
o manuseará da mesma forma que outra maior, isto é, o aspeto físico
do livro recebe uma atenção redobrada, já que o suporte em formato de
papel é de grande fragilidade para as crianças que o colocam na boca,
manuseiam rapidamente, sem muito cuidado, até porque ainda não in-
corporaram os rituais que circundam o ato da leitura.
Assim, para as crianças pequenas, o livro-objeto, constituído
pelo seu aspeto físico, confecionado de material diverso (pano, cartona-
do, plástico) será de fundamental importância para as inserir nos rituais
de leitura: virar as páginas do livro, abri-lo e fechá-lo, enfim gestos
iniciantes que se constituem mais tarde em práticas permanentes.
O mercado editorial tem, nas últimas décadas, ampliado o acervo
destinado às crianças pequenas, nele incluem-se os livros de plástico
para banho, que se transformam em boias; livros de pano que viram
travesseiros, almofadas. Sem deixar de citar os livros pop-up, que são
aqueles que, quando abrimos as gravuras, saltam das páginas como do-
braduras vivas. Esse conjunto de livros-objeto tem a denominação de
livros-brinquedo e o seu crescimento e importância ficam visíveis a par-
tir de 1998, quando receberam da Fundação Nacional do Livro Infantil
(FNLIJ) uma categoria de premiação.
O caráter de brinquedo desses objetos é o que merece ser estu-
dado como o fez o estudioso francês Jean Perrot (2002) ao apresentar
os “livros-vivos” (poderíamos ler livros-brinquedo), tratando-os como
paraíso cultural para os pequenos leitores e realizando uma análise que
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 147

contribui para pensar a importância desse material para a formação lú-


dica da criança; as estruturas movediças, com abas que se levantam
trazem à cena personagens e objetos, molas, dobras, papéis cartonados
e resistentes, imagem em alto relevo são algumas das possibilidades e
artimanhas na confeção desses livros. Para ele, “as formas que esses li-
vros assumem realçam e estimulam o gosto pela leitura, por prenderem
o leitor ao prazer do mundo encantado das ‘surpresas literárias” (Perrot,
2002: 34-35).
O contacto com um objeto que, pelas suas características, está
mais próximo do brinquedo provocando uma “desdramatização do ato
de ler” através de estratégias que cativam o não-leitor do livro sem ou-
tros fins que não os do prazer. Segundo Perrot (2002),
A aparente gratuidade e a aparência de brinquedo desses objetos forne-
cem-lhes a qualidade de presente e de distração, tirando-o do contexto
das obrigações e dos trabalhos escolares e, aparentemente, oferecendo
um alívio para o cansativo jogo de integração cultural (2002: 34).

No Brasil, embora exista a circulação e comercialização destas


publicações, este tipo de livros ainda ocupa uma parcela pequena nos
acervos das editoras, como demonstra a análise realizada por Magda
Soares (2008) em 20 catálogos editoriais, constatando que o público
alvo das editoras situa-se a partir dos três anos, com ênfase nas crianças
entre quatro e seis anos, e somente dois catálogos trazem livros-brin-
quedo para crianças com menos de dois anos. A estudiosa conclui que
“ainda é pouco reconhecida a importância, para a formação da criança
leitora, da convivência com o objeto livro desde a primeira idade” (Soa-
res, 2008: 24-25).
Nos registos de projetos cadastrados no Plano Nacional do Livro
e da Leitura (PNLL), Rosing e Tussi (2009) encontraram uma única
referência destinada ao público de 0 a 3 anos, o projeto “Liberdade
pela escrita”, realizado pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, que
desenvolve “sessões semanais de leitura com detentas que convivem
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
148

com seus bebês no Presídio Madre Pelettir” (2009: 15), no Rio Grande
do Sul (Brasil). Estas pesquisadoras apresentam essa informação no li-
vro Programa Bebelendo: uma intervenção precoce de leitura, no qual
apresentam investigação com adultos do grupo familiar de crianças des-
sa faixa etária e cuidadores, e como esses são capazes de aproximar as
crianças da leitura.
Interessa-nos nestas páginas pensar, para além dos livros comer-
cializados pelo mercado editorial, e apresentar a possibilidade da cons-
trução de livros produzidos artesanalmente, sem desmerecer os livros
industriais, mas apontando novas possibilidades para além dessas.

2. Livros brincantes: o fabrico artesanal de livros pela(o)s es-


tudantes de Pedagogia/UFSC

O livro é mais que um livro, na ordem material. Não é apenas o forma-


to, como objeto. É uma realidade específica, que tem em nós ressonân-
cias próprias, levando-nos a tateá-lo para lhe sentir o papel, o tamanho,
a disposição gráfica, que por vezes ressalta da página. Por fim, a leitura,
que vem como ato conclusivo do cerimonial de posse. Ah, o horror com
que vejo, por vezes, um brutamontes qualquer a abrir arreganhadamen-
te um livro, com a capa a tocar na outra capa, e começar a lê-lo, como
se o livro não fosse uma realidade viva, que reclama também nosso
cuidado e nosso afago. (Montello, s/d: s/p)

Nesta secção apresentamos o exercício experimental de fabrico


de livros com estudantes da 5ª. fase do curso de Pedagogia da Universi-
dade Federal de Santa Catarina (UFSC)/Brasil, no âmbito da disciplina
de Literatura e Infância. Trata-se de um exercício que tem se efetivado,
de forma sistemática, desde o ano de 2001.
A proposta de confeção do livro artesanal tem como objetivos
levar a(o)s aluna(o)s, futura(o)s professora(e)s de crianças em institui-
ções de educação Infantil e Ensino Fundamental a compreender os ele-
mentos constitutivos da feitura do livro; e refletir sobre o livro enquanto
materialidade do impresso, objeto que abriga o escrito: o tipo de papel
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 149

(ou outro suporte), o tipo e tamanho da letra, o formato do livro. Entre


os seus objetivos também se incluem refletir sobre a relação estabele-
cida entre o leitor de diferentes idades com o objeto livro e a leitura,
desconstruir a ideia de leitura única e pensar a leitura atravessada pelos
sentidos (leitura tátil, olfativa, auditiva, visual, gustativa); escapar de
uma visão escolar e conteudística na qual a leitura literária está ao ser-
viço da transmissão de normas e comportamentos, com um fim utilita-
rista; e, finalmente, mas não menos importante, privilegiar a ludicidade
na composição do livro infantil.
Apoiados nas referências de Roger Chartier (1996) de que na
feitura de um livro existe distinção dos procedimentos de produção de
texto e os procedimentos de produção de livro, ampliamos as referên-
cias sobre esses procedimentos ao refletir sobre as possíveis estratégias
textuais adotadas, como escritores, que garantirão a boa leitura; bem
como o cuidado com os procedimentos tipográficos adotados na confe-
ção do livro.
Parte-se da ideia de que o livro infantil tem três dimensões: a ma-
terialidade do objeto, o texto literário e a ilustração, às vezes integrada,
outras não, como o texto e a ilustração, pois temos livros compostos
somente de imagem. Assim, para a confeção do livro, há a opção entre
três caminhos: criar uma narrativa própria; adaptar uma narrativa, poe-
sia ou canção da tradição oral e, por último, utilizar somente imagem.
A primeira opção é acolhida por um bom grupo de alunas e alunos,
mas muitas narrativas caem no lugar comum de procurar passar ensi-
namentos sobre alimentação, higiene, enfim regras de civilidade que
podem e devem ser encontradas em manuais, mas não deveriam ser o
eixo central do texto literário. Paródias, releituras a partir de estruturas
textuais conhecidas como parlendas, provérbios, cantigas de roda, entre
outras, são uma boa alternativa por surgirem carregadas de comicidade
e humor.
Respeitando os limites individuais de quem elabora o livro, abre-
-se a possibilidade de inserção de terceiros na feitura do livro. Percebe-se
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
150

que essa liberdade de buscar no outro o auxílio contribuiu para que a(o)s
aluna(o)s ousem na sua produção. Entram nesta tarefa o pai marceneiro,
a tia bordadeira, a avó costureira, a vizinha crocheteira, o namorado
desenhista, o marido/esposa designer, enfim, personagens que colabo-
raram na sua confeção e, por isso, se tornam coautores, sendo devida-
mente identificados na sua ficha catalográfica ou nos agradecimentos.
Buscamos levar em conta o exercício de manuseio, a leitura do
objeto (cheiro bom/ruim, as cores, a ilustração) e descentrar o olhar
somente sobre a leitura do código gráfico. Ao apropriar-se do contacto
físico com o livro, da sua materialidade e dos seus rituais estabelece-se
mais do que uma relação de efetiva leitura, existe uma leitura afetiva.
O manuseio pela criança do livro-objeto contribuirá por certo
para a sua relação afetiva e efetiva com o objeto livro. Passa-se da lei-
tura material do livro à leitura do texto. Acreditamos que a inserção da
criança no mundo lúdico da leitura literária através do livro artesanal
desfaz algumas ideias pré-concebidas, entre elas a de que a criança que
não descodifica o código escrito não é leitora (Debus, 2006).
Quando propomos a produção artesanal do livro não estamos
destituindo o valor e a validade do trabalho pedagógico com o livro
construído industrialmente com materiais alternativos (pano, plástico,
cartonado). O que sugerimos é a convivência e a permanência desses
objetos de forma harmoniosa no mesmo espaço institucional. Que seja
possível pensarmos esses artefactos como brinquedos que são e que
introduzem a criança no fascinante e ritualístico mundo da leitura.

3. O livro artesanal entra na roda e convida para cirandar:


relatos de uma exposição

“De hoje em diante


Serei o contador viajante!”

Laís Elena Vieira. O Menino mais pobre do mundo



APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 151

Desde 2012 temos realizados várias exposições dos livros fa-


bricados pela(o)s estudantes, como forma de socialização do trabalho
realizado na disciplina e também de manuseio experimental pelas crian-
ças. Optamos, neste texto, por trazer reflexões sobre a exposição “Li-
vros brincantes: uma tecitura artesanal”, realizada a 17 de abril de 2013,
no Hall do prédio D, do Centro de Ciências da Educação-CED/UFSC.
O trabalho foi coordenado pela professora Eliane Debus e organizado
pelo Grupo de pesquisa Literalise – grupo de pesquisa sobre literatura
infantil e práticas de mediação literária, Programa de Educação Tutorial
(PET/Pedagogia). Fizeram parte da exposição os livros artesanais pro-
duzidos pela(o)s estudantes entre os anos de 2012 e 2013, totalizando
45 livros.
Com o propósito de perceber as possibilidades de leitura literária
que podem emergir no espaço expositivo e, a partir das observações
realizadas, destacamos três pontos que consideramos relevantes. Em
primeiro lugar, o “fazer a exposição” como uma estratégia que favorece
o letramento56 literário dos organizadores, dos expositores e de seus
visitantes. Em segundo, o envolvimento afetivo revelado pelas auto-
ra(e)s/expositora(e)s como um aspeto que potencializou não apenas a
experiência da(o)s graduanda(o)s enquanto leitora(e)s, mas sobretudo
como um modo de projetar e/ou reinventar os papéis de mediadora(e)s
da leitura literária no espaço escolar e fora dele; e, por último, a partir
da observação participante no acolhimento de duas turmas de crianças
visitantes, explicitamos brevemente algumas considerações sobre o an-
tes, durante e depois das visitas ao espaço expositivo de leitura.

3.1. A exposição e os aprendizados


Certamente, a exposição dos livros artesanais produzidos em
sala de aula constituiu um aprendizado que se iniciou muito antes

56
Processo que se faz via textos literários e compreende uma dimensão diferenciada do
uso social desta forma de escrita assegurando seu efetivo domínio. Para saber mais, ver Cosson
(2012).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
152

da instalação espácio-temporal da referida mostra. O processo de le-


tramento literário permeou toda a vivência de criação das obras ali
expostas e ganhou maior amplitude com o “fazer a exposição” num
movimento de vivências fecundas, de interação e compartilhamento. O
planeamento, a escolha e a disposição cuidadosa dos livros produzidos
artesanalmente pela(o)s aluna(o)s escritora(e)s trouxe uma visualidade
colorida e o encantamento da originalidade. Livros em formato de árvo-
re (fig. 42), de almofada, de caixa, de boneca (fig. 43). Livros que guar-
dam ou revelam segredos (fig. 45). Livros primorosamente pintados,
bordados e escritos que exibiam narrativas diversas como A menina do
campo57, As manias de Leo58 e Os paninhos da vovó Lica59, entre outras.
Histórias criadas pela(o)s aluna(o)s que, de alguma forma, se tecem no
contexto autobiográfico de suas/seus autora(e)s e as/os impulsionam
para conhecer muitas outras histórias.
Por esse mesmo viés, acreditamos que a produção dos livros ar-
tesanais e as narrativas ali registadas não trouxeram apenas ao cenário
as experiências de leitura literária (o acervo pessoal) da(o)s aluna(o)
s-autora(e)s, como possibilitaram igualmente a reflexão sobre os signi-
ficados sociais do livro enquanto artefacto cultural e o valor atribuído
a este objeto na sociedade contemporânea. Além disso, expositores, or-
ganizadores e visitantes acabam por formar, ainda que de modo bas-
tante efémero, “uma comunidade de leitores. É essa comunidade que
oferecerá um repertório, uma moldura cultural dentro da qual o leitor
poderá se mover e construir o mundo a ele mesmo” (Cosson, 2012: 47).
Se essa(e) leitora/leitor é aluna(o) de Pedagogia (futura(o) professora/
professor), essa experiência consolida uma prática leitora que poderá
ser transposta para a ação pedagógica.
As imagens60 seguintes mostram a criatividade na confeção dos
livros:

57
Maria de Lourdes Ramos.
58
Débora Terezinha de Jesus.
59
Andréia Lopes.
60
Todas fotos usadas na ilustração deste texto pertencem ao acervo particular das pes-
quisadoras.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 153

Figura 42 - Livro árvore Figura 43 - Livro boneca

Figura 44 - Exemplares únicos Figura 45 - Livro que guarda segredo

3.2. Exposição, leitura e afetividade


Outra questão que merece realce é o envolvimento afetivo visi-
velmente manifestado pela(o)s autora(e)s ao reencontrarem a sua pro-
dução no espaço expositivo. Momentos de afeto, satisfação e partilha.
Não bastava rever o seu livro exposto num contexto de dignificação.
Era preciso ler a história com um olhar inaugural. A/os aluna(o)s auto-
ra(e)s leram seus próprios livros e os dos seus colegas compartilhando
a narrativa com os demais visitantes. Algumas diziam: “olha, esse é o
meu livro!”. Ou, se não conseguia visualizá-lo imediatamente, a per-
gunta era feita em voz alta: “onde está o meu livro?”
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
154

Figura 46 - (Re)Encontro autor-obra Figura 47 - (Re)Encontro e encantamento

3.3. Os visitantes e as interações


O encontro e a leitura (fig. 46 e 47) realizada num espaço expo-
sitivo temporário possuem formas diferenciadas daquelas possibilita-
das por uma biblioteca, por exemplo, cujo espaço físico é permanente,
porém, isso não significa menor entusiasmo para os leitores. Pelo con-
trário, pode representar uma oportunidade única que, se perdida, pode
ser apenas lamentada. De todo modo, os visitantes são a razão maior
de uma mostra, seja ela uma feira literária ou uma exposição de livros
artesanais como esta. O seu objetivo geral é compartilhar com o público
externo um determinado acervo. Mas é também efetivar um convite à
leitura literária ancorado na relevância que esta possui na formação de
leitores. A chegada do público externo mobiliza organizadores e expo-
sitores criando expectativas no sentido de poder qualificar as possibili-
dades leitoras pretendidas.
Nesta mostra apareceram muitos visitantes, adultos e crianças.
As crianças eram especialmente esperadas no espaço expositivo, ti-
nham livre acesso. Enquanto expositores e mediadores dos espaços e
instrumentos de leitura literária somos incansáveis defensores das vi-
sitas das crianças. Esperamos por elas. Desejamos que elas dialoguem
com os objetos e interajam com eles. Por outro lado, precisamos de
nos preparar para que a visita das crianças se torne uma experiência
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 155

qualificada. Precisamos de compreender a recetividade e o modo de


agir das crianças em relação aos objetos expostos, neste caso os livros
artesanais, para poder auxiliá-las, mediando a visita de modo a torná-la
bem-sucedida.
A imagem seguinte (fig. 48) regista o momento em que a exposi-
ção foi visitada por um grande número de crianças. Duas turmas vieram
juntas, acompanhadas pelas respetivas professoras.

Figura 48 - As crianças na exposição

Como podemos perceber, a exposição recebeu um grupo grande


de crianças ao mesmo tempo. A reivindicação de um número menor de
alunos em sala de aula também pode ser pensada nas experiências de
visitação aos museus, exposições e outros espaços de leitura como as
bibliotecas públicas. Muitas vezes a escola encaminha grandes grupos
no sentido de viabilizar a deslocação e expandir o convite ao maior nú-
mero possível de alunos sem levar em conta a qualidade da experiência
que o grupo poderá obter, enquanto grupo (coletivo) e principalmente
de cada criança (individualmente). Será que se cada turma viesse em
momentos diferentes a qualidade das experiências (individuais e cole-
tivas) seria superior?
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
156

Ao recebermos um grupo maior de crianças ficamos apreensivos


no sentido de dar atendimento adequado às crianças e, ao mesmo tem-
po, de as orientar quanto aos cuidados no manuseio das obras. Faz-se
necessário, por parte dos mediadores, muita disponibilidade, atenção
e cuidado para acompanhar a dinâmica de visita das crianças (e suas
peculiaridades) e assegurar tanto o contacto fértil com os livros ex-
postos, a experiência leitora da criança visitante, quanto o aprendizado
de preservação do acervo. Esse último não se pode sobrepor ao resto,
ainda que no aprendizado de sua preservação esteja implícito o valor
atribuído ao saber literário.
Além dos cuidados e da orientação no espaço expositivo, uma
visita de alunos precisa de ser pensada antes, durante e depois. O/a
professor/a precisa de qualificar a vivência, comunicando e combinan-
do com as crianças os detalhes da visita. Elas precisam de saber com
antecedência onde vão, o que pretendem fazer, o que podem encontrar
nesse local e como precisam de agir (criar um horizonte de expectativas
e orientar as questões organizacionais). Depois da visita, no retorno
para a escola, a conversa, a partilha e o registo da/sobre a experiência
leitora das crianças, sobre as histórias que elas leram e conheceram é
fundamental para solidificar o processo de letramento literário.
Por outro lado, a movimentação dessa “superpopulação” de lei-
tores fez-se por conta da exposição. Essa imagem leva-nos a pensar que,
embora a mostra dos livros se instale na efemeridade espácio-temporal,
a experiência vivenciada por uma criança pode ser carregada pelo “res-
to” da sua vida, transformando-se em elemento motivador da sua cons-
tituição de sujeito-leitor. Nesse sentido, enquanto mediadores da leitura
literária, podemos criar diferentes formas, espaços e oportunidades de
leitura literária, dentro ou fora das escolas. Como diz Cosson (2012),
precisamos “reinventar a roda” constantemente e tornarmo-nos a partir
“[d]e hoje[...][um] contador viajante” que aproveita as oportunidades
para ler e compartilhar generosamente as histórias que encontra pelo
caminho.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 157

4. Do que fica e do que ainda precisa ser dito

A experiência do fabrico dos livros artesanais e a sua socializa-


ção através das exposições têm evidenciado o quanto esse exercício
com o manuseio do livro e a sua descaracterização quotidiana (na fei-
tura e forma de leitura) pode ser mais um caminho para potencializar
a leitura e seus protocolos nas práticas pedagógicas com as crianças
desde muito cedo. Por outro lado, vale marcar também a importância
para a(o) estudantes/futura(o)s professora(e)s na sua formação, ao tra-
zer para o cenário da prática pedagógica a possibilidade de autoria e
reconhecimento das partes constitutivas de um livro.
Referências bibliográficas:
CHARTIER, Roger (1996). “Do livro à leitura”. in Práticas de leitura.
São Paulo: Estação Liberdade, pp. 77-105.
COELHO, Nelly Novaes (1993). Literatura Infantil. São Paulo: Ática.
COSSON, Rildo (2012). Letramento literário: teoria e prática. 2 ed.
São Paulo: Contexto.
DEBUS, Eliane Santana Dias (2006). Festaria de Brincança: a leitura
literária na Educação Infantil. São Paulo: Paulus.
DEBUS, Eliane (2003). “A confecção artesanal de livros infantis: ca-
minhos da ludicidade”. in Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.
140. Congresso de Leitura do Brasil (COLE). ANAIS do Congresso de Leitu-
ra. Campinas, SP: Graf FE, s/p.
KAERCHER, Gládis E. (2001). “E por falar em literatura...” in CRAI-
DY, Carmem Maria; KAERCHER, Gládis E. (org.) Educação infantil: para
que te quero? Porto Alegre: Artmed, pp. 83-84
MONTELLO, Josué (s/d). Guia de leitura - Ciranda de livros. São
Paulo: Hoechst, FNLIJ e Fundação Roberto Marinho.
PERROT, Jean (2002). “Os “livros-vivos” franceses. Um novo paraíso
cultural para nossos amiguinhos os leitores infantis”. in KISHIMOTO, Tizuko
M. 2.ed. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira T.L., pp. 33-37.
ROSING, Tânia M. K.; TUSSI, Rita de Cássia (2009). Programa Bebe-
lendo: uma intervenção precoce de leitura. São Paulo: Global.
SOARES, Magda (2008). “Livros para a educação infantil: a perspecti-
va editorial”. in PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda (Org.). Literatura infan-
til: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, pp. 21-33.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 159

10. O livro como objeto - Bernardo Carvalho


no papel de ilustrador-designer

Sandie Mourão

1. A Planeta Tangerina e Bernardo Carvalho

Em Portugal, há um número significativo de editoras que pro-


duziram catálogos repletos de literatura infantil de qualidade, várias
focando-se em publicar excelentes seleções de livros-álbum. A Planeta
Tangerina inclui-se neste grupo e tem o que Salisbury e Styles (2012)
descreveram como “a passion for quality visual literature and [an un-
derstanding of] its important role in the intellectual and cultural deve-
lopment of the child” (p. 176), realizando um movimento em direção
à valorização do visual e dando atenção a novas tendências em ilustra-
ção. De acordo com Hellige e Klanten (2012), os criadores da Planeta
Tangerina “are making books in which text and images work together
and complement each other to create a beautifully integrated reading
experience for book lovers both old and young” (p. 12-13). Prova da
sua excelência como editores é terem sido galardoados com o prémio
de Melhor Editora Europeia Infantil de 2013, na Feira de Livros Infan-
tis de Bolonha.
A Planeta Tangerina começou, em 1999, como um estúdio de
design especializado em projetos para crianças e jovens, tendo sido
criada por quatro amigos que andaram na escola juntos e mais tarde
estudaram Comunicação e Design na Faculdade de Belas Artes da Uni-
versidade de Lisboa: João Gomes de Abreu, Bernardo Carvalho, Isabel
Minhós Martins e Madalena Matoso. Numa entrevista realizada a Isa-
bel Martins61, ela afirma que a Planeta Tangerina é, antes de mais, um
estúdio de design gráfico, enfatizando que “faz parte do nosso ADN”.

61
Entrevista com Isabel Martins via Skype no dia 8 de outubro de 2012.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
160

Apesar de tudo, tem consciência de que a Planeta Tangerina é segu-


ramente mais conhecida como editora – as pessoas vão ter com eles
com trabalhos de design gráfico por causa dos livros que publicaram.
No entanto, Isabel M. Martins acredita também que existem enquanto
editora por serem designers gráficos: é esta última parte, sublinha, que
lhes proporciona os meios e a liberdade de criar os livros-álbum que
querem fazer.
Os quatro amigos começaram a editar livros-álbum em 2004,
com a intenção de criar algo diferente. Isabel descreve os livros ilus-
trados que havia em Portugal nessa altura como “uma guerra entre tex-
to e imagem” (TSF Rádio Notícias, 21 dezembro de 2011): os quatro
empresários estavam certos de que conseguiriam fazer algo diferente.
Juntou-se-lhes, nesse ano, Yara Kono, uma jovem ilustradora e desig-
ner brasileira. Desde então, a equipa editorial da Planeta Tangerina ga-
nhou vários prémios nacionais e internacionais de ilustração e design
editorial e os seus livros foram analisados atentamente por académicos
portugueses (ver Borges e Mourão, 2014; Ramos, 2010; Reis da Silva,
2011; Sotto Mayor, 2009) e estrangeiros, tendo igualmente sido alvo de
estudos pós-graduados (ver Borges, 2012; Luz, 2010).
A tecnologia alterou profundamente a forma como ilustradores e
designers trabalham. O aparecimento do Macintosh e o acesso a softwa-
re estandartizado permitiu a estes profissionais combinarem facilmente
os papéis, trazendo-lhes liberdade e conforto, assim como velocidade
ao processo criativo. Em resultado, o livro-álbum evoluiu consideravel-
mente, o que em Portugal se tornou muito evidente nos últimos anos.
Os ilustradores e designers do século XXI usaram em seu benefício as
enormes possibilidades permitidas pela tecnologia e estão, nas palavras
de Helfand, “staking claim to and shaping a new and unprecedented uni-
verse” (2001: 39). Bernardo Carvalho é reconhecido em Portugal como
um criador de livros-álbum desta nova geração. Dentro da Planeta Tan-
gerina, assume os papéis combinados de ilustrador, designer e diretor ar-
tístico, funções que se fundem numa só enquanto cria livros-álbum que,
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 161

de acordo com o website da Planeta Tangerina, buscam um “equilíbrio”


entre os textos visual e verbal, levando a “um resultado único”. Os seus
álbuns são realizados em coautoria, muitas vezes com textos de Isabel
M. Martins, ou não têm palavras. Em editoras maiores, as funções de
autor, ilustrador, designer e diretor artístico costumam ser preenchidas
por pessoas diferentes. Provavelmente estamos bastante seguros sobre
o que um autor ou um ilustrador fazem, mas os outros dois papéis não
são tão claros. De acordo com Solomon (2003), o designer é responsá-
vel por “the overall appearance of the book and the care brought to the
sensitive working together of story and picture and typographic treat-
ment” (p. 197). Já o diretor artístico, se conseguirmos desentrelaçar os
papéis, pensa o catálogo da editora como um todo, dando-lhe “a look
that embodies and reflects the publisher’s philosophy and mission” (p.
198). Isabel Minhós Martins62 afirma que o papel de diretor artístico é
um papel ainda invulgar em Portugal.

2. A criação de um álbum da editora Planeta Tangerina


Design, tipografia e ilustração de um álbum são inseparáveis (Ra-
mos, 2010), mas diz-se que o livro beneficia se estes três aspetos forem
concebidos por uma pessoa (Salisbury, 2004). No caso em análise, esta
pessoa é Bernardo Carvalho, responsável por juntar as palavras de Isabel
Minhós Martins com as suas próprias ilustrações nos projetos de livro-
-álbum que tem a seu cargo. No entanto, durante a fase criativa de cada
projeto, a equipa editorial da Planeta Tangerina, composta pela autora e
pelos três ilustradores residentes, junta-se e discute o que se está a fazer.
Partilham-se ideias, que são debatidas em grupo aberto, clarificam-se
dúvidas, trocam-se opiniões e fazem-se ajustes às palavras da Isabel ou
às ilustrações do Bernardo. No entanto, em cada etapa do processo cria-
tivo, o espaço profissional de cada um é respeitado. Durante uma entre-
vista à rádio TSF, Bernardo Carvalho descreveu o seu processo criativo:

62
Entrevista com Isabel Martins via Skype em outubro de 2012.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
162

Quando olho para um texto para ilustrar, não começo logo com de-
senhos. Começo a tentar imaginar o livro em si, é um todo. Quando
ilustramos para livros, estamos a ilustrar desenhos que se complemen-
tam entre si. Não são desenhos que supostamente funcionam sozinhos,
ou servem para viver sozinhos, são desenhos que vivem no meio dos
outros e dentro daquele livro e, por isso, às vezes não parece que o de-
senho precisa de ser espetacular, ou muito bonito para funcionar. Tento
que o livro seja bonito e o álbum, o objeto, seja bonito. (TSF Rádio
Notícias, 22 dezembro de 2011)

Pretende-se, neste estudo, sublinhar a ideia de que a Planeta Tan-


gerina produz livros-álbum de qualidade como resultado de um traba-
lho de equipa e de colaboração, mas também porque cada ilustrador é,
adicionalmente, ou talvez possamos dizer cumulativamente, designer e
diretor artístico em cada projeto. São estas especificidades que fazem
da Planeta Tangerina uma editora bem-sucedida que produz um objeto
singular – o livro-objeto.

3. Os livros de Bernardo Carvalho


Dezassete dos livros-álbum da Planeta Tangerina foram da res-
ponsabilidade de Bernardo Carvalho. Quatro não têm palavras e os
treze livros restantes podem ser divididos entre os que usam texto ma-
nuscrito e os que não o recorrem a esta forma de escrita. Três utilizam
o texto manuscrito com maiúsculas e três surgem manuscritos com
minúsculas, forma típica da letra manuscrita que se aprende na esco-
la em Portugal. Selecionei este último conjunto para demonstrar quão
bem-sucedido Bernardo Carvalho é a fundir as funções de ilustração e
de design. Também gostaria de demonstrar que os três títulos permitem
observar o percurso de Bernardo Carvalho enquanto ilustrador e desig-
ner híbrido. Os livros-álbum em análise são Pê de Pai (Martins e Car-
valho, 2006), Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008) e Depressa
Devagar (Martins e Carvalho, 2009).
Uma vez que todos começaram como textos escritos por Isabel Mi-
nhós Martins, iniciarei a análise de cada álbum examinando brevemente o
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 163

que dizem e como o dizem. Continuarei, observando como estas palavras


foram interpretadas e apropriadas por Bernardo Carvalho, considerando a
composição e os ritmos visual e verbal de cada livro-álbum. Comentarei
os peritextos como as capas, as guardas e as páginas de rosto para perceber
como constroem o estilo Planeta Tangerina e contribuem para a fluidez vi-
sual dentro de cada livro objeto.

3.1 Pê de Pai
As palavras
Pê de Pai é um livro-álbum que nasceu quando Isabel Minhós
Martins estava a estender a roupa e o seu filhote rastejou por entre as
suas pernas: “Mãe túnel”, disse. Isabel riu-se e pensou que era uma
excelente ideia para um livro-álbum. Enquanto escrevia as palavras que
Bernardo Carvalho mais tarde ilustraria, decidiu que seria muito melhor
se fosse um pai e o seu filho, e assim surgiu o Pê de Pai63. É o livro mais
vendido da Planeta Tangerina, foi reimpresso sete vezes e tem recebido
prémios pelo seu design.
O texto verbal é formado por uma série de descritores metafóri-
cos de duas palavras, o nome pai mais um nome com valor adjetival,
replicando a experiência de Isabel, no seu quintal, enquanto estendia a
roupa, num registo em tudo semelhante às expressões telegráficas de
uma criança quando está a aprender a falar. Em português, as frases
fluem lindamente, criando cinco quadras com uma rima alternada, nos
segundos e quartos versos.

Pai casaco
Pai avião
Pai cabide
Pai travão

(Martins e Carvalho, 2006: 1-4)

63
Já analisado, por exemplo, por Ramos (2010).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
164

A última estrofe termina com o único “verdadeiro” adjetivo e


o único sinal de pontuação de todo o livro, criando um ritmo fluido e
confortável.

Pai carrossel
Pai cavalinho
Pai túnel
Pai pequenino!

(Martins e Carvalho, 2006: 21-24)

As ilustrações e o design
O formato do livro é bastante pequeno e a capa é dura, seme-
lhante à maior parte dos livros da Planeta Tangerina. A paleta de cores
é pastel escuro ou “tons terra” (Ramos, 2010: 38) – um tom comum aos
três títulos de que descrevo aqui. Entrevistei o Bernardo Carvalho, em
preparação para este texto64 e ele disse-me que este foi o primeiro livro
que concebeu usando exclusivamente ilustrações criadas a computador.
Para Bernardo Carvalho, este volume foi o seu livro de descoberta. O
criador optou por ilustrar cada frase telegráfica através de uma série
de figuras naïves minimalistas, recriando pai e filho sobre um fundo
monocolor. Cada cena está solidamente emoldurada numa página qua-
drada. Em cada página, são usadas três cores principais: uma para o
fundo, outra para o pai e outra para o filho. O texto manuscrito é, em
quase todas as ilustrações, da mesma cor do pai ou do filho, criando
um elo visual entre as palavras e as figuras. Ocasionalmente, formas
adicionais e uma ou outra cor são incluídas para acrescentar elementos
à ilustração, como acontece, por exemplo, com as botas e as pegadas
nas páginas 5 e 6 (fig. 49).

64
Entrevista, não publicada, realizada a Bernardo Carvalho no seu atelier em maio de 2013.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 165

Figura 49 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006)

O leitor é exposto a doze páginas duplas, cada uma com imagens


diferentes na página par e ímpar: o ritmo visual replica o verbal. Se-
ria de supor que ilustrar pai e filho em cores diferentes nos daria uma
sensação de separação, mas existe uma proximidade aconchegante em
todas as cenas, excepto numa. Ramos (2010) descreve essa proximi-
dade entre pai e filho como resultante de “elementos anatómicos mais
expressivos do ponto de vista da manifestação da afectividade - a boca,
os olhos, os braços” (p. 39). Acrescento que, na maioria das páginas,
as figuras de pai e filho estão a tocar-se ou a figura do pai envolve o fi-
lho de alguma maneira, sugerindo intimidade, afeto e cumplicidade, ao
partilharem ambos a experiência de serem importantes um para o outro.
O texto manuscrito acentua as elocuções acriançadas e esse facto
pode estar na base da opção de Bernardo Carvalho pela forma cursiva,
típica das crianças que aprendem a escrever na escola. Quando lhe per-
guntei a razão da escolha, não se lembrava. Por vezes, as frases escritas
seguem os contornos minimalistas do pai e filho, ou assentam conforta-
velmente no espaço, equilibrando a composição. No caso deste volume,
destaca-se que as palavras ainda são obviamente o texto verbal, e as
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
166

ilustrações ainda são claramente o texto visual. Entidades separadas


mas coabitando, confortavelmente, um espaço partilhado. No entanto,
há uma cena que é ligeiramente diferente das demais, “Pai seta” (página
14).
Aqui pai e filho não estão a partilhar um espaço físico na compo-
sição, e a postura do pai é uma barreira visual ao afeto. Os seus olhos
mostram-no triste e em tumulto, mas resoluto, sabendo que tem de mos-
trar a sua autoridade. A elocução, aqui, com as letras da mesma cor
que a criança, está cortada em dois segmentos pelo braço do pai, que
aponta para fora do livro. Defendo que, neste caso, o texto verbal está a
contribuir para a mensagem visual de uma forma ligeiramente diferente
da das outras páginas. A separação das duas palavras sugere distância e
reforça a rutura (fig. 50). Nos outros dois álbuns em estudo, Bernardo
Carvalho vai desenvolver este pormenor.

Figura 50 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006)

Os peritextos
Considerando as capas, o fundo monocromático é replicado na
capa e na contracapa. Também nos peritextos mais importantes, há três
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 167

cores principais, como em cada cena dentro do livro. A repetição do


azul permite aos olhos passar facilmente pela contracapa e pela capa,
seguindo a cabeça redonda e o braço curvado do pai, amando visivel-
mente o filho. O título é manuscrito. O castanho também é uma cor
que liga os três elementos através das duas capas. Um elemento de
design que aparece nos livros iniciais da Planeta Tangerina, mas que
já não é incorporado atualmente, é um jogo visual com o código de
barras. Aqui, o código de barras está dentro de um peixe maior, com
um peixe mais pequeno a nadar atrás. Ramos (2010: 39) alude a uma
relação intertextual entre a imagem e o provérbio português “Filho de
peixe sabe nadar”. Na contracapa, as figuras do pai e filho realçam esta
interpretação, sendo que ambos estão representados a castanho, com
grandes bocas e narizes, braços longos e pernas curtas, um é pequeno
e o outro é grande!
As guardas também são castanho-escuro, com um padrão de
imagens do pai sem o filho, sob a forma de motivos padronizados, que
Ramos (2007) sugere que funciona “como ‘Mote’ ou mesmo chave de
leitura” (p. 230) do livro. Não imitam as posições que encontramos
dentro do livro, mas servem para apresentar o pai que conhecemos e
amamos em todos os seus momentos. As figuras podem servir como
estímulo para as crianças falarem das diferentes emoções e posições
do seu pai.
Um aspeto do design destes três álbuns que parece quebrar a flui-
dez do livro como objeto é a página de rosto e a ficha técnica feitos em
branco, contrastando com as tons terra, neste caso, da restante publica-
ção. A ilustração do prólogo revela uma criança envolvida pela sombra
do pai: estão inexpressivos e parece que estão prontos para começar
algo juntos – a pequena ilustração brinca com a ideia de “pê”, de pai,
uma vez que ambos se parecem com dois “pês”.
No primeiro álbum de Bernardo Carvalho, feito a computador,
ele começou a brincar com o texto manuscrito, e o resultado, de acordo
com esta análise, deve-se às suas muitas responsabilidades, de ilustra-
dor, designer e diretor artístico, dentro da editora.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
168

3.2. Coração de Mãe


As palavras
Coração de Mãe foi publicado em 2008 e é o segundo melhor
livro nas vendas da Planeta Tangerina. Isabel Minhós Martins descreve
como se sentiu acerca das palavras deste álbum, afirmando que “quan-
do escrevi o texto sabia que estava mesmo na fronteira da pieguice,
nas mãos de outro ilustrador podia ter-se tornado ‘o livro mais piroso
no mundo!’”. Ela queria o Bernardo Carvalho como ilustrador porque
sentia que “precisava de alguma coisa agressiva para levar a história até
ao fim” (TSF Rádio Notícias, 21 dezembro de 2011).

As ilustrações e o design
O tamanho e formato, assim como o uso do computador para
criar as ilustrações são iguais ao título anteriormente analisado, tal
como o recurso a uma paleta de cores reduzida. As cores utilizadas são
diferentes, desta vez não são tons terra, mas antes várias cores, com a
predominância de preto e branco ao lado de azul-marinho, vermelho e
verde seco, com duas páginas duplas (a primeira e a última) construídas
sobre o fundo laranja. O texto verbal é mais longo e detalhado, assim
como as figuras – cada uma usa roupas e tem feições mais definidas do
que o livro anterior. O livro todo é mais apertado e menos espontâneo,
sendo, por isso, um objeto completamente diferente de segurar e ler. As
palavras descrevem o coração de uma mãe:
O coração de mãe não é só um músculo que bate sem parar. É um lugar
mágico onde acontecem as mais extraordinárias coisas... O coração de
mãe está ligado a cada coração de filho por um fio fininho, quase invi-
sível.

É por causa deste fio que tudo o que acontece aos filhos faz acontecer
alguma coisa dentro do coração de mãe. (Martins e Carvalho, 2006:
1-2)

Assim começamos uma viagem metafórica através do livro-ál-


bum. As palavras contam-nos como se sente o coração de uma mãe,
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 169

com as metáforas aparecendo aos pares, frases escritas em oposição ou


de alguma forma relacionadas entre si:
Quando um filho adoece, o coração de mãe fica às pintinhas (e muito
mais pequenino...).
Mas o coração de mãe volta a crescer quando o filho se sente finalmente
melhor! (Martins e Carvalho, 2008: 5-6)

O design do corpo do livro acentua o ritmo visual, com as pági-


nas a seguirem uma espécie de sequência: começam e terminam a la-
ranja, ambas são duplas páginas mostrando mãe e filho juntos, íntimos e
próximos. A psicologia das cores diz-nos que a cor laranja irradia calor
e felicidade, combinando a energia física e estímulo do vermelho com
a vivacidade e bonomia do amarelo. As únicas duplas onde a ilustração
ocupa as duas páginas são as que incluem mãe e filho juntos, no caso, a
primeira e as últimas três. Todas as restantes recorrem à ilustração em
página simples, uma do lado esquerdo e outra do lado direito, recriando,
assim, as diferentes cenas metafóricas contadas pelas palavras.
O texto manuscrito já não é apenas o texto verbal, o seu posicio-
namento cria significado visual. Serve para enfatizar elementos-chave,
como o movimento ou a emoção. Na página com fundo em vermelho,
vemos o traseiro da mãe a dançar, o texto visual são as linhas de mo-
vimento deste elementos dançante. Dizem: “Quando os filhos dão gar-
galhadas o coração de mãe até dança” (p. 3). Na página 5, com fundo
a verde seco, o texto verbal está junto à criança deitada doente, quase
a acariciando. E na página ímpar, o texto chama atenção para o tama-
nho do coração inchado, à medida que o seu filho melhora. As palavras
estão escritas dentro do peito da mãe e dizem “Mas o coração de mãe
volta a crescer quando o filho se sente finalmente melhor!” (fig. 51)
Neste livro, o texto verbal já não está apenas coabitando um espaço
partilhado na composição, fundiu-se com as formas e os contornos das
ilustrações. No entanto, permanecemos conscientes de que continua a
ser o texto verbal.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
170

Figura 51 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008)

A agressividade que Isabel Minhós Martins queria é visível na


forma como a mãe é representada na maior parte das ilustrações: não
vemos sempre a sua cara, uma vez que o foco está em diferentes partes
do seu corpo – as costas, as pernas ou o peito. Nas páginas 17 e 18,
as suas pernas passeiam pela página dupla (ver fig. 52). As palavras
dizem-nos, numa página com fundo em vermelho: “Aliás, quando que-
rem fazer mal aos seus filhos, o coração de mãe enche-se de garras e
dentes afiados!” (p. 17). E o sapato pontiagudo representado é mesmo
assustador! Na página ímpar, as palavras dizem “Quando chegam as
férias o coração de mãe bate mais devagarinho...” (p. 18). Mas, apesar
de estar de férias, o seu pé descalço, menos agressivo, ainda é protetor
ao colocar-se entre o leitor e o seu filho. E, uma vez mais, as linhas do
texto manuscrito são as linhas de movimento.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 171

Figura 52 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008)

Quando Bernardo Carvalho estava a explicar como e quando


decidiu onde colocar o texto nas páginas, desenhou rapidamente uma
ilustração para mostrar (fig. 53), provando que, logo desde o início, tem
uma visão clara do propósito que ele quer que o texto visual transmita.

Figura 53 - Esboço de Bernardo Carvalho


ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
172

Os peritextos
A capa e contracapa estão unidas por uma única ilustração, uma
imagem invertida das páginas 19 e 20. O texto manuscrito na capa
equilibra a composição, uma extensão do cabelo da mãe, exatamente
alinhada com a cabeça e cotovelo do filho. Os nomes da escritora e
do ilustrador contornam as figuras, acariciando-as, como nas páginas
interiores do volume. A pose da criança cabe quase como um puzzle ao
lado da mãe, numa composição que satisfaz. O branco do fundo está
presente em todas as duplas páginas do livro, nomeadamente nas letras
ou algures nas figuras. Mas, as guardas quebram esse padrão do branco
– ao abrir o livro somos “bofeteados” com múltiplos corações, numa
combinação de verde e vermelho pulsantes. Os únicos que aparecem
no livro, porque não há nem a sombra de um coração nas ilustrações.
Como no livro anterior, a ficha técnica e a página de rosto são brancas:
as letras usam as quatro cores da história – preto, vermelho, verde e
azul. Também aqui as letras apresentam a forma de um trompete, como
se estivessem a ser chamadas.
Coração de Mãe é tudo menos piroso, Bernardo Carvalho trouxe
uma agressividade simpática à forma como os textos verbal e visual se
conjugam num todo coerente, criando um livro objeto de qualidade que
resulta da união dos papéis de ilustrador, designer e diretor artístico.

3.3. Depressa Devagar


O último dos álbuns selecionados para esta análise é Depressa
Devagar, um dos favoritos de Bernardo Carvalho. Ganhou o Prémio
Nacional de Ilustração em 2009, e também ganhou prémios pelo seu
design, mas está longe de ser um bestseller. Apenas foi impressa uma
edição e o livro encontra-se esgotado. Apesar disso, a Planeta Tangerina
não tenciona fazer outra edição.

As palavras
Isabel Minhós Martins escreveu a prosa em pares, observando,
de forma muito original, a maneira como nós, adultos, gerimos o tem-
po. O livro começa assim:
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 173

Lá fora, o tempo passa por uma máquina de contar que faz contas aos
segundos e marca os dias sem enganos.
Cá dentro, os relógios não se preocupam em contar: ora abrandam dis-
traídos quando há muito que fazer, ora passam apressados quando não
há tempo a perder.
Mas, lá fora, o tempo não aprecia passeios nem corridas... e sempre por
isso, a toda a hora, grita palavras de ordem cá para dentro: Depressa
devagar. De manhã ao deitar, são estas as palavras que tomam conta do
meu dia... (Martins e Carvalho, 2009: 1-2)

Começando e acabando com momentos de intimidade familiar, o


foco deste livro-álbum é a rotina diária de uma criança e a sua interação
com os pais, condutores de autocarro, professores e até amigos, permi-
tindo acompanhar as suas ações através do recurso a imperativos en-
graçados e sugestivos, contendo os advérbios “depressa” e “devagar”.

As ilustrações e o design
A primeira dupla página é diferente do resto da história, já que o
texto verbal é aí uma massa condensada de linhas. Shulevitz escreveu
que “With few exceptions type is more readable than hand lettering”
(1985: 109), e a verdade é que a quantidade de texto manuscrito causa
aqui alguma interferência à legibilidade. Uma vez passada essa dupla
página, as seguintes apresentam um ritmo que segue os pares de ordens
ou conselhos, às vezes sob a forma de perguntas, que formam o resto
do texto: “Depressa, entre sem interromper. Mais devagar... aqui não se
pode correr” (p. 11-12). Ou “Devagar, o que estás tu a fazer? Depressa,
o que estás tu a pensar?” (p. 19-20). Cada dupla página mostra-nos uma
cena onde surgem relacionadas as duas ideias contrárias, uma apelando
à calma e outra à pressa, surgindo o advérbio sempre visualmente des-
tacado, de forma a enfatizar, como um refrão, a sua importância. Este é
o único livro do corpus que apresenta sempre uma ilustração a unir as
duas páginas, esquerda e direita (ímpar e par).
O estilo ilustrativo “encaracolado” de Bernardo Carvalho imita a
sua caligrafia manuscrita ou é ao contrário? Há linhas na ilustração que
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
174

parecem prontas a unir-se a algo. Ou as letras desaparecem, como ca-


maleões, por entre as formas e os arabescos desenhados. Neste livro, os
dois textos comungam de uma forma diferente da dos anteriores – aqui
têm em comum as formas em si, não apenas um espaço partilhado. Não
há metamorfose, uma vez que as palavras não pretendem ser linhas de
movimento ou uma mão acariciadora. Os dois textos partilham da mes-
ma essência, as linhas enlaçadas. A espontaneidade dos traços de Ber-
nardo Carvalho traz velocidade a estas ilustrações, o que sublinha a sua
coesão com o tema. Mas a apressada continuidade das linhas não imita
apenas a escrita, liga as personagens e reforça as relações existentes. A
combinação de cor em bloco e formas transparentes, muitas vezes so-
brepostas, permite-nos ver versões diferentes: de uma massa movimen-
tada manifestam-se formas singulares, olhos e cabelo são partilhados e
a forma de uma personagem transforma-se na de outra (ver fig. 54, na
qual o olho da mãe se sobrepõe ao cabelo do filho e as pinceladas do
cabelo podiam fazer parte do texto escrito).

Figura 54 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009)


APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 175

A paleta cromática é mais variada neste livro-álbum, mas consis-


te nos mesmos tons pastel e tons terra dos títulos anteriores, aos quais
são adicionados uns brilhantes rosas e roxos. A sensação Planeta Tan-
gerina continua presente.
Quando entrevistei Bernardo Carvalho sobre o seu trabalho, per-
guntei por que é que este livro não é um bestseller. E por que razão é
que ele gosta tanto do livro. Ele acredita que este livro-álbum é simples-
mente demasiado diferente. Quando está a trabalhar num livro-álbum
sabe que muitas das suas sugestões são consideradas demasiado fantás-
ticas e, em conjunto com a equipa criativa da Planeta Tangerina, deci-
dem o que deve sair no produto final. Mas isso não o impede de sair um
pouco das linhas e uma das razões por que gostou tanto deste projeto
foi ter sentido menos restrição. Conta que passou dias a desenhar com
pincel em grandes folhas de papel. Centenas de folhas foram deitadas
fora no processo de seleção e digitalização, depois de criadas as páginas
duplas usando a tecnologia do computador, cuja técnica se tem tornado
tão habilidoso a aplicar.

Figura 55 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009)


ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
176

Não é apenas o estilo da ilustração que é bastante invulgar, já


que até aparece um macaco representado nas páginas 15 e 16 (fig. 55).
Quando perguntei por que é que ele estava lá, o ilustrador encolheu os
ombros e disse: “Ninguém me pediu que o tirasse!”. Pensei, talvez,
que poderia ser por causa de outro livro no qual tinha estado a traba-
lhar como ilustrador e designer gráfico, Dança quando chegares ao fim.
Bons conselhos de amigos animais65. O estilo é semelhante, e também
tem macacos. Ele não se lembrava. Quando eu estava a ler o livro a um
grupo de crianças de 5 anos, perguntei o que pensavam do macaco: uma
criança pensou que podia ser um professor ou pai, outro disse simples-
mente, “É um macaco”, como se fosse a coisa mais normal do mundo
almoçar com um macaco. De facto, tudo pode acontecer no mundo das
crianças.

Os peritextos
A capa e a contracapa preparam-nos para o invulgar estilo ilus-
trativo do criador, com as figuras sólidas e transparentes a partilharem
um olho e o texto manuscrito encostado sobre as figuras, refletindo as
suas cores. Os nomes da autora e do ilustrador passam pelo meio da
perna do “g” a mostrar, logo aqui, que os dois textos partilham a mes-
ma essência. As figuras na contracapa são tiradas de uma ilustração no
interior do livro e a sinopse aí incluída é parte do texto verbal da pri-
meira dupla página. Os outros dois álbuns usaram letra à máquina nas
suas contracapas, mas aqui Bernardo Carvalho deixou o manuscrito,
que completa bem este conjunto.
As guardas são uma celebração de arabescos! Decorativas em
todos os sentidos, mas preparando-nos para as curvas que se tornarão
palavras ou figuras, ao virar das páginas. Bernardo Carvalho criou duas
guardas diferentes, semelhantes em tudo exceto na troca do verde pelo
branco. A página de rosto, com fundo branco, como nos outros dois

65
Uma coletânea de breves poemas sobre animais escrita por Richard Zimler e publicada
pela Caminho Editora.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 177

livros, usa essa informação essencial – autor, ilustrador, título e editora


– para criar a imagem de uma criança, seus braços bem abertos, rece-
bendo-nos no livro. Há uma arrumação nesta “ilustração de prólogo”
que não é evidente no corpo do livro, mas vem no seguimento da visão
editorial do livro como objeto.

4. Considerações finais: a mão do diretor artístico.


O que faz destes três livros produtos tão evidentes da Planeta
Tangerina é o papel desempenhado por Bernardo Carvalho enquanto
diretor artístico. Essa função está presente:
• na escolha do formato, já que todos os livros têm 20 cm x 22,5
cm, capa dura, 32 páginas e doze páginas duplas;
• no uso de papel de gramagem e qualidade elevadas, mate, sen-
do um papel que aguenta bem a tinta e dá uma sensação reconfortante;
• no uso de cores carregadas, tons terra bastante invulgares;
• nas guardas com padrões coloridos, representando o tema do
livro;
• na opção pela página de rosto e ficha técnica em branco.
Mas, acima de tudo, é a qualidade dos álbuns Planeta Tangerina
como objetos em si mesmos, um casamento perfeito entre ideias, con-
ceitos e talentos. Design e direção artística unem “the visual and tex-
tual elements of the book into a coherent, aesthetically pleasing whole”
(Salisbury, 2004: 118). Há uma fluidez entre os textos visual e verbal,
resultado da forma como as ilustrações, o design e o texto manuscrito
são abordados dentro dos livros, desde capa à contracapa, assim como
a dinâmica visual no virar de página e a composição de cada página.
Este capítulo incidiu na análise de três livros publicados pela
Planeta Tangerina, com vista a discutir a forma como Bernardo Car-
valho combinou as técnicas de ilustrador, designer e diretor artístico.
Centrou-se em títulos criados com texto manuscrito da mão do próprio
Bernardo Carvalho como base para afirmar o quanto ele torna, citando
agora Lupton (2010), “design and illustration into [a] fluidly integrated
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
178

practice” (p. 64). Os livros foram criados num período de quatro anos
e podemos ver como o ilustrador progrediu no uso da mancha gráfica
como elemento visual da composição, e também como criador híbrido
de livros-álbum. Estes livros são lugares de encontro de texto, imagem
e design com o desígnio de que “o livro seja bonito e o álbum, o objeto,
seja bonito” (TSF Rádio Notícias, 22 dezembro de 2011).

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rina.” www.tsf.pt/Programas/programa.aspx?content_id=2163338&audio_
id=2195721.
TSF Rádio Notícias (22 dezembro de 2011). “A Conversa Decorre com
Bernardo Carvalho, Co-Fundador da Editora Planeta Tangerina.” www.tsf.pt/
Programas/programa.aspx?audio_id=2195722&content_id=2163338.


APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 181

11. O leitor no espaço do livro infantil.


Para uma poética da leitura
a partir da materialidade.

Rosa Tabernero-Sala

1. Leitura, livro-álbum e o livro como objeto

Desde os inícios dos estudos sobre o livro-álbum e o livro ilustra-


do, a importância do suporte na construção de sentidos tem sido um dos
elementos mais destacados. Assim, já Barbara Bader (1976: 1), autora
de uma das definições mais emblemáticas do livro-álbum, chamava a
atenção para o aspeto material do livro ao mencionar conceitos como o
design, a arte ou a manufatura.
Desde então, vários são os autores que se referiram ao aspeto
material do livro, tanto na perspetiva da leitura, como da conceção ar-
tística do discurso literário para a infância. Deste modo, Sophie Van der
Linden (2007: 8) menciona como um livro-álbum não só não se reduz
à interação entre palavras e imagens, mas também deve ter em con-
ta, na sua caracterização, os detalhes que decorrem da sua construção
como objeto. A mesma estudiosa (2013; 2015), num trabalho posterior,
conclui a sua reflexão propondo uma definição do género que parte da
conceção do livro como suporte:
El álbum es un soporte de expresión cuya unidad primordial es la dob-
le página, sobre la que se inscriben de manera interactiva imágenes y
texto y que sigue una concatenación articulada de página a página. La
gran diversidad de sus realizaciones deriva de su modo de organizar
libremente texto, imagen y soporte (2015: 28-29).

Por outro lado, quando Van der Linden se detém na questão da


materialidade do livro-álbum salienta que
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
182

La materialidad del objeto libro es importante en un álbum ya que la


elección de una cubierta, un papel o unas guardas ejerce una gran in-
fluencia en el proyecto, al aportarle una dimensión significativa, incluso
puede llegar a adquirir un rol narrativo (2015: 10).

Na mesma linha, Daniel Goldin (2006: 1) também se refere ao


mesmo aspeto:
Con mayor intensidad que el resto de los libros para niños, el álbum
insiste en su condición material. No permite que olvidemos que es un
objeto que pesa, huele, se toca, tiene un cuerpo. Y desde su materialidad
nos seduce y enamora.

O aspeto material do livro-álbum não só se destaca nas tentativas


de caracterização do género, como surge repetidamente nas investiga-
ções levadas a cabo sobre as respostas leitoras, como analisa Virginia
Calvo no capítulo seguinte deste livro. Deste modo, estudiosos como
Lawrence Sipe (2001), Morag Styles e Evelyn Arizpe (2004) chamam a
atenção para a importância que tem para o leitor a apreensão do objeto.
Também Jean Perrot (1999: 119), refletindo sobre a curiosidade e o jogo
que devem sustentar o ato de ler desde a infância, identifica a manipu-
lação do livro como um dos elementos-chave para o desenvolvimento
do leitor. Na mesma linha, Geneviève Patte (2008: 2011; 2012; 2015)
defende a necessidade de analisar o livro a partir da perspetiva material
para acompanhar o leitor na sua viagem desde as primeiras leituras até
todas as formas de literatura. Assim, María Bonnafé (2008: 57) resume
as ideias que apresentámos até ao momento:
Cuando les leemos un cuento, se divierten leyéndolo ellos solos, a su
manera, imitando al adulto y mostrando que poder manipular el libro
a su antojo es importante para ellos. El niño pequeño (…) se apropia
en cierta manera del álbum, pero con sus manipulaciones, se apropia
también de su contenido.

Trata-se, nesta medida, de uma apropriação do objeto, para além


do conteúdo, como assinalava Maurizio Corraini (cit. por Martin Salis-
bury, 2012: 50) quando se referia à possibilidade de transformar a arte
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 183

num hábito do quotidiano, mediante o contacto da criança com o livro


na sua vertente material.
Para além dos estudiosos, também os criadores abordaram a
questão do aspeto material do livro-álbum como um elemento carac-
terizador do género e com funcionalidade discursiva. Veja-se, como
exemplo, a valorização que Suzy Lee atribuí ao ato de abrir fisicamente
um livro:
Abrimos un libro ilustrado. Contemplamos el sueño que hay dentro del
libro. Sin embargo, de un modo u otro, nos afecta la forma del libro,
la textura del papel, la dirección en la que pasamos las páginas. (…)
Después de sumergirnos en un libro y volver a salir de él como quien
sale de un sueño, el libro en tanto que objeto parece bastante distinto.
(Suzy Lee, 2014: 6)

As reflexões de Katsumi Komagata (cf. José Antonio Barreiro,


2015) ou de Kitty Crowther (Cf. Rosa Tabernero, 2016), sobre a in-
fluência das condições materiais de um livro no ato de leitura, resultam
esclarecedoras acerca do significado que os aspetos materiais incorpo-
ram, coincidindo com Karen Littau (2008: 67), quando este autor ex-
plica como o suporte do discurso condiciona a interpretação e a com-
preensão.
É desde o século XIII que se pode falar da existência de livros
animados e é nos princípios do século XIX quando, como refere Jean-
-Charles Trebbi (2012: 11), começam a aparecer os primeiros livros de
sistemas articulados destinados à infância. O século XX, a partir dos
anos 60, marcará o início do pop-up moderno. Por essa altura, distin-
guem-se as figuras de alguns criadores de referência, com origem no
universo do design gráfico, potenciando a materialidade do livro como
elemento de caráter discursivo. Obras como El libro inclinado (1910),
de Peter Newels, En la noche oscura (1956), de Bruno Munari, Pequeño
azul, pequeno amarillo (1959), de Leo Lionni, Babar (1962), de Jean
de Brunhoff, Teatro de medianoche (1992), de Kveta Pacovska, We are
allin the dumps (1993), de Maurice Sendak ou El globito rojo (2006),
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
184

de Iela Mari, constituem referências incontornáveis da importância do


suporte material na construção do discurso, tanto no livro-álbum como
no livro ilustrado.
Desde então, o panorama da literatura infantil tem vindo a modi-
ficar-se, no que respeita ao livro-álbum e ao livro ilustrado, sendo uma
das tendências dominantes a valorização da materialidade das publica-
ções associadas ao leitor interativo, para além da sua componente lúdi-
ca, tal como destaca Bettina Kümmerling-Meibauer (2015: 252-253). O
livro-álbum parece evoluir neste sentido, de acordo com o próprio mer-
cado editorial. De qualquer modo, no seguimento do êxito de Un libro
(2011), de Hervé Tullet, torna-se relevante refletir sobre as razões que
conduziram o livro a evoluir neste sentido. Não é irrelevante considerar
que a erupção dos suportes virtuais e da leitura no écran, eminente-
mente interativa, pode estar na origem da necessidade de o objeto livro
potenciar ao máximo a sua especificidade. Pelo menos é o que sugere
Gaëlle Pelachaud (2010: 35):
À l’ère du livre numérique, du livre inmatériel, nous éprouvons un be-
soin frénétique de rematérialiser le livre, de redonner la priorité a nos
cinq sens. Le livre animé, le livre magique, ne serait-il pas la traduction
papier du multimédia?

Neste sentido, parece-nos relevante analisar com detalhe o dis-


curso que surge tanto da perspetiva da obra, como do ponto de vista do
leitor definido como estratégia textual. Conceitos como o jogo ou a in-
teratividade revelam-se de grande complexidade quando se trata de não
converter o discurso em mera interação lúdica, que, como já referimos,
acontece em alguns casos.
A segunda parte deste estudo será, por isso, dedicada a analisar
o espaço do leitor no livro entendido como objeto, com o objetivo de
apresentar as bases para estabelecer uma poética da sua leitura. Acre-
ditamos que a materialidade do livro-álbum dá origem a um leitor e a
um tipo de leitura que é preciso analisar, sobretudo quando falamos da
formação de leitores.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 185

2. O espaço do leitor no livro como objeto

Tal como defende Liliane Cheilan (2009: 18), qualquer livro, na


sua forma mais simples, é, por definição, um livro animado, já que a
partir do momento em que o leitor abre a capa e vira a página, podemos
falar de interação com a materialidade do livro para levar a cabo o ato
de ler. O livro é, antes de tudo, um espaço físico no qual se produz um
encontro entre autor e leitor (cf. Michèle Petit, 2015). É por isso que,
nas linhas que se seguem, aludiremos à identificação do suporte (mate-
rialidade, formato e dobra) como elemento discursivo (cf. Sophie Van
der Linden, 2015: 10-11), vinculado a um leitor colaborador, do ponto
de vista físico, e a um tipo de leitura interativa.
O relevo dos aspetos materiais do livro, nos últimos anos, envol-
ve a melhoria das qualidades físicas, exigindo um leitor interativo que
explora as propostas que o livro lhe faz, tal como sucede com Un libro
(2011), de Hervé Tullet, obra onde, de forma explícita, o leitor deve
interagir com o texto simulando uma aplicação móvel (app). Assim, a
tridimensionalidade é outro dos fatores que deve ser estudado quando
se pensa em identificar as estratégias propostas pelos livros aos leitores
que leem também com as mãos e que, deste modo, anulam a bidimen-
sionalidade que é tradicionalmente inerente ao objeto livro. Por estes
motivos, é difícil não pensar numa relação causal entre a leitura no
écran e o espaço físico do livro, associado, desde sempre, a uma das
linhas de desenvolvimento do discurso literário para a infância, isto é,
ao conceito de jogo (cf. Johan Huizinga, 1988). É a partir do jogo que se
desenvolvem os conceitos de interação e de leitor interativo, essenciais
à leitura de apps, sublinhando a colaboração com o texto de modo a
gerar sentidos. Como consequência, alude-se a uma leitura hipertextual,
em sentido lato, uma vez que o movimento de manipulação do leitor,
na maior parte das vezes, implica o funcionamento do livro como hi-
pertexto que rejeita a leitura linear. Em suma, os espaços do leitor e do
livro sobrepõem-se, e as fronteiras entre realidade e ficção eliminam-se
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
186

para dar lugar à verdade ficcional, o que existe de verdade por trás da
ficção. Neste jogo de espaços produz-se uma rutura de níveis de ficção
que Genette (2004) designa por metalepse. A metalepse é uma forma
de metaficção que, de acordo com Lauro Zavala (2014: 1), “puede ser
considerada como uno de los recursos más radicales, lúdicos irónicos
y paradójicos del arte para contribuir a despertar o estimular la con-
ciencia ética y estética de los receptores”, características que resultam
de especial interesse quando se fala da formação de leitores. Assim, a
metalepse é a estratégia metaficcional que define a proposta discursiva
de todas as obras que potenciam a vertente material do livro na criação
de sentidos. Produz-se, deste modo, uma sobreposição de planos refe-
renciais que anulam a separação entre a realidade do leitor e a ficção do
discurso. O leitor passa a formar parte do discurso, confundindo o seu
espaço real com o da ficção. Por outro lado, a hipotipose seria a figura
de retórica que definiria este tipo de criação, baseada na dissolução das
fronteiras entre a representação e o representado.
Tendo em conta que a metalepse, como forma de metaficção,
subjaz, como estratégia, às obras que potenciam a perspetiva “obje-
tual”, podemos estabelecer uma tipologia de discursos segundo a forma
e os objetivos que a metalepse apresenta para definir um leitor que co-
labora com o discurso de uma maneira física, para além de intelectual,
como defende Jean-Marie Antenen (2009: 13):
Les pop-ups fonctionnent selon les principes élémentaires de la méca-
nique, soit roue et, surtout, levier. L’énergie donnée par le lecteur qui
tourne les pages est transformée en action physique, matérielle, alors
qu’elle reste puremente intellectuelle dans la lecture de l’album “classi-
que” (Jean-Marie Antenen, 2009: 13).

Em virtude do lugar que ocupa o leitor no discurso, podemos


distinguir várias modalidades de obras que analisaremos seguidamente.

a. Formato e manipulação na construção de sentidos


Tal como referia Lawrence Sipe (2001: 2), o formato do livro
é uma das decisões que condiciona as expectativas do leitor. De tal
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 187

modo que, por exemplo, o tamanho reduzido conduz a uma leitura ín-
tima e privada, como ocorre com Poka & Mina en el cine (2010), de
Kitty Crowther, enquanto os grandes formatos sugerem histórias mais
enérgicas, como é o caso da reedição, em 2016, de El viaje de Babar,
pela editora Milenio-Nandibú, recuperando as grandes dimensões das
paisagens e dos protagonistas. Referência especial merece a obra El li-
vro-álbum de Adela (2015) (fig. 56), de Claude Ponti, que parte da ideia
da invasão do espaço do leitor, sugerida desde a capa onde surge uma
menina dentro do mundo que o livro reflete.

Figura 56

Para além do formato com que todo o livro-álbum se apresenta,


existem obras que solicitam a manipulação do leitor para a construção
do sentido. Publicam-se, assim, livros que, para serem lidos, devem
ser retirados de um invólucro, seja ele uma caixa, um envelope, ou ou-
tro tipo de cobertura. Espera-se que o leitor jogue com os efeitos de
surpresa e curiosidade, partindo do princípio que um elemento crucial
da história rompe o plano da ficção para ocupar a realidade do leitor.
Como exemplo, recorde-se Mi cajón favorito (2014), de Decur, obra na
qual o próprio livro se guarda numa caixa que, por sua vez, é o motivo
principal da narrativa. O jogo entre a caixa que encerra a ficção e o ex-
travasamento que se produz no momento de “extrair” a ficção pode ser
exemplificado através de Korokoro (2009), de Émilie Vast.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
188

Em outro tipo de propostas, das opções de manipulação do leitor


depende o desenvolvimento de uma intriga ou de outra, como acontece
em El libro de la suerte (2014), de Sergio Lairla e Ana González Lar-
titegui. Trata-se de duas histórias paralelas que coincidem num ponto
central, sobre a forma de um desdobrável que, uma vez aberto, invade
o espaço do leitor. O livro define, deste modo, o ritmo da leitura, obri-
gando o leitor a deter-se no detalhe que ocupa o seu próprio espaço,
numa estratégia de extravasamento comum com outras obras como El
maravilloso Mini-Peli-Coso (2014), (fig. 57 e 58) de Béatrice Alemag-
na, livro-álbum no qual a história da busca de Edith requer dimensões
maiores, correspondendo, assim, ao ponto de vista a partir do qual se
observa o universo da protagonista.

Figura 57 Figura 58

Merece destaque, nesta linha, Open this little book (2013), de


Jesse Klausmeier e Suzy Lee (fig. 59 e 60). Esta obra pressupõe um
jogo de manipulação e formato que conduz o leitor num itinerário de
surpresas criadas através de livros que escondem outros livros, perso-
nagens que dão lugar a outras personagens, numa estrutura circular que
termina onde começa. Trata-se de um discurso metaléptico no qual o
leitor deve obedecer a ordens para poder avançar num mundo de sur-
presas previsíveis.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 189

Figura 59 Figura 60

b. A dobra
A utilização da dobra na construção do discurso é uma das estra-
tégias que requerem a imersão física quer das personagens, quer do lei-
tor. Uma das partes do livro desempenha a função de barreira entre dois
planos. Assim, o espaço ergue-se como uma dimensão real com a qual
as personagens interagem no seu mundo de ficção. O leitor deve acatar
as regras do jogo para construir o sentido. Uma vez mais, realidade e
ficção veem anuladas as suas fronteiras para ocupar o espaço físico do
leitor a partir da própria ficção. É o que acontece em livros-álbum como
La ola (2008), Sombras (2010) e Espejo (2010) (fig. 61), de Suzy Lee,
obras nas quais a dobra constitui um elemento que está a meio do cami-
nho entre a realidade do leitor e o mundo da ficção. Igualmente, Daqui
ninguém passa! (2014) (fig. 62), de Isabel Minhós Martins e Bernardo
Carvalho, conta com a dobra do livro para diferenciar os espaços por
onde as personagens se movem.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
190

Figura 61

Figura 62

3. A leitura hipertextual dos clássicos

Em alguns casos, propõe-se ao leitor, através da presença de um


elemento tridimensional, um passeio inferencial por obras que ele já co-
nhece. Produz-se um contacto físico com um mundo conhecido e com
o qual o leitor deve colaborar ao nível das estratégias de manipulação
existentes. Incluem-se no discurso um sem número de pormenores que
podem ser interpretados por um leitor que se deixa surpreender pela
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 191

animação de um universo que conheceu antes de forma bidimensional.


Neste tipo de propostas sublinha-se a vertente hipertextual da leitura
uma vez que, em todas elas, existe um hipotexto cujo conhecimento
ajuda o leitor a mover-se nos caminhos pelos quais o discurso avança.
É o que acontece, por exemplo, em Alicia en el país de las maravillas
(2006), de Robert Sabuda, versão pop-up da obra de Lewis Carroll, na
qual o autor escolhe as partes mais emblemáticas da história e recria-as
num formato a três dimensões que acaba por ocupar o espaço do leitor,
para além de rodear cada uma das cenas centrais de pequenos aponta-
mentos criativos nos quais também se escondem, debaixo de abas, ou-
tros desdobráveis que reproduzem mais momentos da obra clássica. A
leitura afasta-se da linearidade que implica o virar de página sequencial
e passa a depender das decisões que o leitor toma na hora de manipular
o objeto livro. O mesmo também se verifica com as versões pop-up de
El principito (2009), de Antoine de Saint Exupéry, ou de Le petit Ni-
colas (2008), de René Goscinny e Jean-Jacques Sempé. Nestes casos,
produz-se uma rutura dos planos da ficção que provoca a entrada do
leitor no mundo ficcional.
Assim, a adaptação pop-up de The Snowman (2014), de Ray-
mond Briggs (fig. 63), obra embalada numa caixa e produzida em for-
mato acordeão, reúne todas as possibilidades mencionadas até ao mo-
mento. Trata-se de uma leitura hipertextual de um clássico, com um
ritmo de leitura muito marcado tanto pelo conceito de viagem através
do espaço físico do livro, como pelo cuidado que implica a animação
em papel das personagens em cada um dos seus movimentos.

Figura 63
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
192

4. A arte de descobrir o oculto

É habitual nos livros que denominamos como animados o jogo


criado desde o início com a arte de desvendar o que está escondido.
Perante a presença recorrente de ocultamentos, seja através de abas ou
do próprio movimento de virar da página, o leitor é obrigado a realizar
contínuas inferências que podem ou não ser confirmadas pelo discurso.
A curiosidade, o jogo e a exigência de cooperação do leitor no processo
de manipulação constituem as chaves da leitura hipertextual, ou seja,
não linear ou sequencial. Mais uma vez, anulam-se as fronteiras entre
os espaços do leitor e do discurso ficcional, de tal modo que o leitor se
converte em protagonista essencial à história. Vejam-se, como exem-
plos, Un huevo con sorpresa (2012) (fig. 64), de Emily Gravett, Flora
y el flamenco (2012), de Molly Idle, ou ¿Hay un perro en este libro?
(2015), de Viviane Schwarz. No caso deste último, a interpelação ao
leitor é contínua, à maneira de uma hiperlepse, uma vez que o leitor
tem de agir para que a narrativa se desenvolva. Os gatos protagonistas
fogem de um cão que, supõe-se, existe neste livro, e solicitam a ajuda
do leitor, através de um jogo hipertextual, para que os esconda.

Figura 64
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 193

Com características semelhantes, ¿Mamá? (2006), de Maurice


Sendak, é um livro-álbum no qual o leitor acompanha o protagonista na
busca da sua mãe ao longo de uma galeria formada pelas personagens
tradicionais de terror do imaginário infantil.
Nos últimos tempos publicaram-se livros para os mais pequenos
que, com recurso à mesma técnica, asseguram a colaboração do leitor
na manipulação para chegar à proposta que partem da saída física das
personagens do espaço do livro, recorrendo ao estilo de obras já clás-
sicas como ¿Dónde está el osito de Kipper? (1995), de Mike Inkpen.
Estamos a referir-nos, por exemplo, a ¡Qué sueño! (2016), de Anne
Crahay, ou Un besito y ¡a dormir! (2016), de Patricia Geis, obras pen-
sadas para os mais pequenos caracterizadas pela curiosidade, o jogo e
a manipulação em função da construção de uma história, requisitos de-
finidos Jean Perrot (1999) para assegurar a formação de leitores desde
as primeiras idades.

5. A ficção que se apodera do espaço do leitor

Com matizes muito subtis, distingue-se, no atual panorama edi-


torial, a presença de obras que anulam as fronteiras entre a ficção e a
realidade logo a partir dos níveis de receção que o próprio discurso
ficcional propõe. É pelo menos assim que lemos álbuns como Océano
(2013) ou Oh! mon chapeau (2014), de Anouck Boisrobert e Louis Ri-
gaud, ou Les Shadoks (2015) (fig. 65), de Thierry De Jean e Philippe
Ug.

Figura 65
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
194

6. Entre realidade e ficção: o caso do livro de artista.

Na dinâmica que se estabelece entre o leitor e a obra em livros


onde o aspeto material é explorado ao máximo, é relevante atentar nas
propostas editoriais que estabelecem um jogo de espaços no qual so-
bressai o plano artístico da criação. O espaço e as suas possibilidades
de criação convertem-se em temas de um discurso extremamente autor-
referencial. É o que se verifica em obras como Un punto rojo (2004), de
David A. Carter, Petit arbre/Little tree (2008), de Katsumi Komagata,
ABCD (2008), de Marion Bataille, Popville (2009) (fig. 66), de Anouck
Boisrobert e Louis Rigaud, ou Flocons de neige (2012), de Jennifer
Preston e Yevgeniya Yeretskaya. Todas estas se aproximam do tipo de
obras que poderíamos denominar como livros de artista.

Figura 66

7. A rutura da quarta parede

Por último, cabe destacar a componente de teatralidade que se


instala em alguns livros, convertendo o leitor em espectador na medida
em que se produz a rutura da quarta parede que caracteriza o modo tea-
tral. Alguns desses livros apresentam mesmo a forma de teatrinhos de
papel nos quais o leitor deve aventurar-se para assegurar o movimento
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 195

animado. Assim, versões de El increíble niños comelibros, de Oliver


Jeffers, como L’extraordinaire garçon qui devorait les livres (2007),
baseiam a sua animação numa proposta teatral na qual o espectador
deverá desempenhar a função de “animador”. Exemplos deste tipo de
discurso são observáveis em Paris s’envole (2015), de Hélène Druvert,
Excentric Cinema (2014), de Béatrice Coron, ou em Caperucita Roja
(2013), recriada por Clémentine Sourdais.

8. Para terminar

Depois da exposição realizada até ao momento, é possível avan-


çar com algumas conclusões provisórias que requerem um estudo mais
aprofundado das diferentes modalidades enunciadas. Como se pode
confirmar pelas datas de edição das obras aludidas, estamos perante
uma das tendências da evolução do livro-álbum que tem a ver com a
exploração da materialidade do livro na construção do discurso. Ao
contrário do que se poderia pensar, não se trata de obras que propõem
um simples jogo de manipulação, mas de propostas criativas que vão
mais longe, desafiando o leitor constantemente durante a leitura, desde
a vertente hipertextual até à presença da terceira dimensão que surge
associada ao jogo e à curiosidade. Neste sentido, a estratégia discursiva
baseada na metalepse como forma de metaficção e a rutura constante
das fronteiras entre a realidade do leitor e a ficção do discurso obrigam
a estabelecer uma tipologia que agrupe estes novos espaços que o leitor
ocupa neste tipo de obras. Estamos, pois, perante um discurso metafic-
cional que se desenvolve em torno da reflexão sobre a própria criação
e conduz o leitor a colocar uma das questões centrais sobre a arte: a
distinção entre realidade e ficção ou, dito de outro modo, a relativização
da verdade ficcional que depende do contexto e do próprio recetor. O
espaço deste leitor cúmplice, que colabora com o texto para dar sentido
ao discurso, resulta de importância vital quando se trata de leitores em
formação. Neste sentido, é função do mediador estabelecer as fronteiras
entre o artifício inútil e o discurso que oferece um novo espaço físico
ao leitor.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
196

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 201

12. Respostas leitoras


de crianças e de adolescentes ao livro-objeto.
Análise qualitativa e proposta de classificação
Virginia Calvo

1. Introdução
Neste capítulo abordamos a análise de respostas leitoras infantis
e de adolescentes ao livro como objeto a partir da leitura em voz alta
do adulto (investigador) e posterior diálogo literário. Para isso, apre-
sentamos algumas propostas do grupo de investigação ELLIJ (Educa-
ción para la Lectura, Literatura Infantil y Juvenil y construcción de
Identidades, Universidade de Saragoça, Espanha), que se debruçaram
sobre o leitor como parte do discurso literário e sobre a sua importância
na construção de sentidos. Partimos, assim, dos estudos da Estética da
Receção, da Teoria das Respostas Leitoras (Rosenblatt, 2002; Sipe66,
2001, 2002) e do enfoque de leitura proposto por Aidan Chambers em
Dime (2007a), El ambiente de la lectura (2007b) e em Conversaciones
(2008), o modelo da discussão e as respostas do leitor com as suas im-
plicações, mais o trabalho do “facilitador”.
Por outro lado, também nos temos servido dos estudos sobre a
leitura literária de Bonnafé (2008), Patte (2008), Nodelman (2008), Ta-
bernero (2011, 2012, 2013, 2014). Neste campo, conceitos como leitura
distanciada (Lewis, 2008), leitura refletora e metáfora (Ricoeur, 1980,
1996), enfoque transacional (Rosenblatt, 2002), competência lectolite-
rária (Mendoza, 2004, 2010; Tabernero, 2005, 2009) e construção de
identidades narrativas (Barthes, 1987; Bruner, 2004) resultam básicos,
tendo em conta a nossa conceção de discurso literário e de leitor no
século XXI.

66
Ver também, deste autor, uma conferência realizada no âmbito do “Máster de Libros
y Literatura para niños y jóvenes” da Universidade Autónoma de Barcelona, no 5 de fevereiro de
2010, disponibilizada no site GRETEL: http://www.literatura.gretel.cat/
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
202

Seguidamente, e como eixo da nossa reflexão, apresentamos um


quadro conceptual de categorias a partir da classificação das respostas
leitoras e das produções escritas dos informantes objetos de estudo nos
projetos de investigação levados a cabo. Estas investigações centraram-
-se na educação lectoliterária do leitor infantil e juvenil, nos fatores
que intervêm na receção e no discurso literário como um meio para a
construção de identidades no contexto das distintas etapas educativas:
Ensino Pré-escolar, Ensino Básico e Ensino Secundário.
Deste modo, da análise dos resultados das investigações mencio-
nadas emerge a categoria do livro como objeto físico como uma variá-
vel constante que engloba respostas verbais, corporais e escritas dos lei-
tores. Esta categoria revela dados interessantes para abordar a educação
literária, já que os leitores constroem sentidos não só através do texto
escrito e das mensagens visuais, mas também através dos elementos
relacionados com o design, o formato, a materialidade e o suporte, que
contribuem para o desenvolvimento de competências orais, leitoras e
de escrita. Para tal, selecionámos uma amostra de excertos relativos a
conversações literárias mantidas com crianças e jovens, assim como
produções escritas originadas pela leitura partilhada que exemplificam
a relevância do livro como objeto (Sipe, 2001) enquanto experiência
estética prazerosa para os alunos.

2. Enquadramento teórico
O enquadramento teórico da nossa linha de investigação susten-
ta-se na teoria do pensamento narrativo de Bruner (2002, 2004). Para
este autor, o indivíduo constrói a sua identidade através das narrações
que lê e escreve, já que a narrativa permite-lhe dar sentido ao mundo
e distanciar-se da realidade quotidiana para refletir. Deste modo, os es-
tudos de Ricoeur (1980, 1996) defendem a linguagem literária como
veículo privilegiado para a compreensão do ser humano; através da lin-
guagem simbólica e metafórica acede-se a parcelas da subjetividade:
“la poesía articula y preserva, en unión con otros modos de discurso,
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 203

la experiencia de pertenencia que incluye al hombre en el discurso y al


discurso en el ser” (Ricoeur, 1980: 424). Neste sentido, resulta perti-
nente o seu conceito de leitura refletora para denominar o processo de
leitura no qual o leitor é construído no e pelo texto.
Outro dos conceitos relevantes nos nossos trabalhos tem sido a
noção de leitura distanciada, cunhada por Lewis (2008), associada à
forma como o leitor se projeta no texto, se afasta dele ou se aproxi-
ma. A este propósito, recorremos à teoria transacional de Rosenblatt
(2002) – no âmbito da corrente teórica das Respostas Leitoras –, leitura
aferente e leitura estética. A leitura pressupõe uma interação recíproca
(transação) entre texto e leitor, o leitor elabora significados vinculando
as suas emoções e experiências ao discurso literário. Esta perspetiva
presta atenção à vertente afetiva da leitura, ao primeiro encontro com o
texto, às expectativas do leitor e à valorização da experiência prévia do
leitor, facilitando o diálogo, ou seja, a transação com o texto.
Para tal, tomámos como elementos de referência as categorias
propostas por Sipe (2010): analítica, intertextual, pessoal, transparente
e performativa. Esta classificação refere-se aos cinco tipos básicos de
respostas das crianças quando interagem com livros ilustrados que lhes
são lidos em voz alta. De acordo com Sipe, a leitura literária permite
às crianças escaparem da vida quotidiana, tornando-se mais objetivas e
reflexivas acerca de muitos aspetos da vida. Assim, através da literatu-
ra, o leitor aprofunda e enriquece a sua autoimagem, mas também o seu
papel na comunidade e no universo mais amplo.
Por outro lado, Sipe insiste na ligação entre a leitura e a escri-
ta, o que nos conduziu ao aprofundamento deste binómio a partir das
teorias de Meek (2004), Barthes (1987), Bruner (2004), Ferreiro (1999,
2002), Alvarado (2013), Salgado (2014), Calvo e Tabernero (2014),
Calvo (2015). Também assumimos a conceção que Barthes (1987) atri-
bui à experiência com a palavra escrita como meio através do qual o
leitor se constrói graças às leituras que dão origem à escrita.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
204

3. Aproximação da leitura
O enquadramento teórico sustenta o relevo assumido pelo traba-
lho de campo nos nossos projetos de investigação, o que nos conduziu
a experimentar com os informantes a proposta de Dime, de Chambers
(2007b), na medida em que está orientada para leitores que se iniciam
na leitura de textos literários. Para este autor, o interesse de crianças e
jovens pela leitura surge como resultado de uma atmosfera emocional
propiciadora, que inclui pessoas, atividades, espaços, tempos e textos
que estimulam a leitura. De entre todos eles, o autor destaca a possi-
bilidade de conversar sobre as leituras realizadas como o fator mais
decisivo. Assim, seguem-se as seguintes fases de intervenção nas aulas:
3.1. Leitura em voz alta dos livros por parte dos professores e/
ou investigadores. Considerou-se que esta modalidade de leitura podia
aproximar os alunos da leitura literária das obras. Deste modo, o adulto
dá voz ao texto e as crianças, através do “leer mirando” (Tabernero,
2009), acompanham a leitura através da observação das ilustrações. De
acordo com Chambers, a experiência com a narrativa oral familiariza o
aluno com a linguagem, facilita o armazenamento de palavras e o reco-
nhecimento da estrutura narrativa.
3.2. Se a leitura em voz alta se apresenta como um dos elementos
fundamentais no ambiente de leitura, conversar e falar sobre o que se
leu, fazer visível o pensamento e escutar a experiência pessoal do leitor
com o texto constituem pontos essenciais de Dime. Deste modo, a se-
gunda fase corresponde à conversação literária gerada a partir das fun-
dações da estrutura das quatro perguntas básicas definidas por Cham-
bers: de que gostaste no texto?, de que não gostaste?, encontraste algo
estranho ou novo?, e a leitura fez-te recordar alguma coisa?
3.3. A escrita e/ou desenho livre. A leitura ativa, a oralidade e
a discussão literária foram criando pontes para a escrita em duas das
investigações que comentaremos nos dois segmentos seguintes deste
texto. Para o desenho desta fase, baseámo-nos nas considerações de
Barthes (1987) sobre as leituras que dão origem à escrita. Seguimos, as-
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 205

sim, as teorias de Freinet (1973) sobre o texto livre, como a composição


criada de forma espontânea pelo leitor depois da leitura e da conversa
em grupo. O modelo proposto por este autor baseia-se na expressão
livre, na liberdade da escolha do tema, da extensão do texto e do seu
ritmo de produção. Neste sentido, Sipe (2002), quando identifica as dis-
tintas tipologias de respostas literárias das crianças ao contemplarem e
falarem sobre livros, identifica a categoria “taking over” como o modo
segundo o qual as crianças utilizam o texto como uma plataforma para
explorar a sua própria criatividade:
The last type of expressive engagement is taking over the text and ma-
nipulating it for one’s own purposes. In this type of response, anything
goes because children abandon any attempt at interpretation or u n -
derstanding and treat the story as a launching pad for the expression of
their own creativity (Sipe, 2002: 478).

Interessou-nos, assim, o processo de escrita desencadeado a par-


tir da leitura e a forma como a escrita se converte num procedimento
para refletir, organizar o pensamento, explorar as possibilidades narra-
tivas da linguagem e construir a identidade, ou, por outras palavras, “el
ser humano como relato” (Ricoeur, 1996).

4. Projetos de investigação
Oferece-se, em seguida, uma síntese de alguns projetos que se
debruçaram sobre a análise das respostas leitoras como meio para com-
preender como o leitor infantil e juvenil atribui sentidos à experiência
de leitura literária. Acreditamos que o estudo das relações que o leitor
estabelece com o livro, as suas intervenções, desenhos, reflexões orais
e escritas, pode ajudar a descobrir mais sobre o processo de leitura e
sobre a formação de leitores.

4.1. Tradição oral e construção de identidades. Análise qualita-


tiva de atitudes em famílias imigrantes67

67
Esta investigação corresponde ao Trabalho de Conclusão de Mestrado de Irene Gar-
cía, orientado pelas professoras Rosa Tabernero e Virginia Calvo: https://zaguan.unizar.es/recor-
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
206

O propósito deste estudo consistiu em conhecer as histórias que


sete famílias imigrantes transmitem aos seus filhos e a forma como in-
tegram a tradição oral da sua cultura de origem, assim como perceber a
oralidade como um meio de estabelecer vínculos, como uma forma de
favorecer o diálogo transcultural.
Para tal, realizaram-se entrevistas em profundidade às famílias,
recorreu-se ao diário de campo dos investigadores e a grupos de discus-
são com os filhos das famílias ao longo dos anos 2013/2014. Os dados
recolhidos foram analisados com o programa ATLAS-TI e observámos
que a categoria livro como objeto físico aparecia com uma frequência
de 32 vezes. No enquadramento desta investigação, a palavra-chave
“livro como objeto” foi interpretada como formato e suporte impresso
escolhido pelas famílias imigrantes para ler aos seus filhos histórias
das suas culturas de origem. Este resultado confirmou-se nos grupos de
discussão com os alunos, nos quais estes comprovaram o uso de livros
em papel tanto na escola como no âmbito privado.
Para além disso, o livro como objeto físico é considerado pelas
famílias como um instrumento de valor e de abertura ao mundo. A título
de exemplo, veja-se o seguinte excerto de uma entrevista a uma família:
Família 2: Investigadora: pensas que na escola, além dos contos que
lemos, deveríamos mudar e ler outros contos ou contar outras histórias?
Mãe: Não, eu estou, estou bem, assim com o que vocês fazem, sabes?
Acho muito bem porque, eu quando estudava aqui depois não, não leva-
va livros nem nada, só os que compras e os lês e já está bem. Agora, as
crianças depois trazem, conhecem livros que não tinham, não tinham,
muitos livros já os conhecem, assim, por causa da escola.

Deste modo, o livro objeto surge como um meio para o encontro


entre indivíduos, para além da variável cultural, tal como salienta Bon-
nafé (2008: 71): “El libro es un soporte para el intercambio entre niños
y adultos y enlaza asimismo al individuo con su comunidad”.

d/31021?ln=es
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 207

4.2. Para que serve um livro sem ilustrações? Livro-álbum e


formação de leitores68
Trata-se de um projeto de caráter qualitativo baseado na análi-
se das respostas leitoras de alunos do Ensino pré-escolar e na análise
das atitudes dos professores e da família. Esta investigação realizou-se
com a “Red Comarcal de Bibliotecas de Somontano” (Huesca), alunos
do segundo ano do ensino pré-escolar de três escolas de Barbastro, as
bibliotecas municipais de Barbastro e o CIFE (Centro de Inovação e
Formação Educativa) correspondente à zona citada. O guia da exposi-
ção69 toma em consideração várias premissas em relação à formação de
leitores literários no Ensino pré-escolar e no primeiro ciclo do Ensino
Básico, das quais destacamos as seguintes:
• O livro é uma ferramenta magnífica para facilitar as relações,
favorece a transmissão cultural entre pais, professores e filhos
e constitui um apoio de qualidade para a integração (Bonnafé,
2008).
• A consideração do livro como objeto resulta essencial em três
aspetos: primeiro, através da manipulação, a criança apropria-se
do conteúdo; em segundo lugar, distingue entre texto e imagens,
e, em terceiro, refere-se ao livro como suporte para o intercâmbio
entre crianças e adultos e liga o indivíduo à comunidade.

Deste modo, propõe-se um itinerário com uma série de orienta-


ções destacáveis no tratamento de cada um dos livros que compõem a
exposição. O objetivo foi o de exemplificar algumas linhas que pudes-
sem servir de referência concreta na educação literária. Para esse efeito,
insistiu-se na necessidade de desenvolver ferramentas que permitam ao
aluno incorporar-se nas convenções literária próprias da ficção, dotan-

68
Exposição UNED Barbastro. Maio, 2014. Diretora da exposição: Rosa Tabernero Sala e
autora do guia: https://elreyrojo.files.wordpress.com/2015/05/ver-texto-rosa-album.pdf
69
É possível aceder ao guia completo da exposição no seguinte endereço: https://issuu.
com/fontoval/docs/guia__de_lectura_rosa_tabernero
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
208

do-o de instrumentos de interpretação que possam consolidar o percur-


so de leitura (Tabernero, 2014). Assim, a seleção de obras incluídas na
exposição segue este objetivo. Por outro lado, defendemos, na esteira
de Nodelman (2010), a dualidade adulto/criança que preside ao discur-
so literário infantil e, em particular, ao livro-álbum como um “artefac-
to” artístico, objetual e inovador:
Un álbum ilustrado es texto, ilustraciones, diseño total; es obra de ma-
nufactura y producto comercial; documento social, cultural, histórico y,
antes que nada, es una experiencia para los niños. Como manifestación
artística, se equilibra en el punto de interdependencia entre las imáge-
nes y las palabras, en el despliegue simultáneo de las páginas encontra-
das y en el drama de la vuelta a la página (Bader, 1976: 1).

4.3. Como leem as crianças? Leituras infantis e leituras adultas 70


No seguimento do mesmo projeto referido anteriormente, rea-
lizou-se uma exposição intitulada Lo que leen los niños y los adultos
deberían conocer, como resultado da investigação levada a cabo. Este
estudo partiu, entre outros, dos seguintes pressupostos:
• As respostas dos alunos do Ensino Pré-escolar podem indicar-
-nos quais são as chaves a que o leitor recorre na sua aproxima-
ção aos livros literários.
• Os preconceitos dos mediadores influenciam a seleção de obras
literárias.
• A leitura que os adultos mediadores de leitura realizam é dife-
rente da das crianças.

Depois de selecionar um corpus para servir de base às discussões


literárias (Chambers, 2007a; Tabernero, 2013), usaram-se as seguintes
técnicas e instrumentos de recolha de dados: transcrições das sessões
propostas, entrevistas semiestruturadas a mediadores (professoras,

70
Maio de 2015: Exposição UNED Barbastro. Lo que leen los niños. Diretora da ex-
posição: Rosa Tabernero Sala e autora do guia da exposição: https://issuu.com/fontoval/docs/
guia_lo_que_leen_los_ni__os
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 209

famílias e bibliotecárias), grupos de dis-


cussão com professoras e bibliotecárias e
anotações no caderno de campo das inves-
tigadoras. Através da análise qualitativa
dos dados recolhidos, um dos resultados
mais relevantes é a diferença que existe
entre a leitura adulta e a leitura infantil de
uma mesma obra, neste caso, um livro-ál-
bum. Este resultado confirmou-se durante
a exposição, durante a qual se dava a op-
ção de aceder à leitura num écran, através
Figura 67 - do recurso aos códigos QR das obras (fig.
Documento relativo à Exposição
67). Assim, a categoria livro como objeto
emerge a partir da importância do formato selecionado para ler, “los
niños leen con las manos”, enquanto a leitura em écran surgia como
possibilidade, ainda que condicionada pelo contexto. Entre ecrãs e li-
vros, o leitor escolhe o livro na exposição (Tabernero, 2016).

5. Modelo de categorização. O livro como objeto


Seguidamente, abordaremos o processo de categorização das res-
postas leitoras e escritas de crianças e adolescentes, contextualizado em
duas investigações: por um lado, a leitura literária com adolescentes
imigrantes (Calvo e Tabernero, 2014; Calvo, 2015) e, por outro, a apro-
ximação de crianças com transtornos do espectro do autismo ao livro-
-álbum (Calvo e Tabernero, 2015), com o objetivo de contribuir para a
construção de um modelo de categorização no qual o conceito de livro
como objeto se apresenta como uma variável a ter em conta no processo
de receção de uma obra literária.
5.1. A leitura literária nos processos de acolhimento e inclusão
de adolescentes imigrantes71

71
Esta investigação corresponde à tese de doutoramento de Virginia Calvo, orientada por
Rosa Tabernero. A mesma está acessível no seguinte endereço: http://puz.unizar.es/detalle/1627/
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
210

Trata-se de uma investigação cujo objetivo de estudo consistiu


em investigar qual pode ser o contributo da leitura literária no proces-
so de inclusão dos alunos imigrantes na sociedade de acolhimento. A
investigação teve como contexto o Ensino secundário obrigatório em
Espanha e tomou como ponto de partida as necessidades objetivas e
subjetivas do adolescente imigrante.
O desenho da investigação configura-se a partir do paradigma
qualitativo/interpretativo e da investigação-ação no contexto de qua-
tro aulas de espanhol. Centrámo-nos na análise das respostas leitoras e
das produções escritas de uma amostra de trinta adolescentes imigran-
tes. Os resultados obtidos fornecem orientações significativas sobre o
discurso literário como um meio para a construção de identidades dos
adolescentes imigrantes no processo de acolhimento e aprendizagem do
espanhol como língua segunda. Deste modo, reflete-se sobre o papel da
escrita como um meio para tornar os adolescentes visíveis e participati-
vos na sociedade de acolhimento. A este respeito, propõe-se um modelo
metodológico para a leitura e escrita nas aulas de espanhol com leitores
iniciais, concretizam-se critérios e chaves para a seleção de itinerários
textuais a partir da análise das respostas leitoras e das produções escri-
tas dos informantes. Para a realização dos critérios de seleção foram
fundamentais as seguintes categorias que nos permitiram interpretar as
respostas dos informantes:
1 - Categoria analítica: respostas metacognitivas como antecipações e
inferências.
2 - Categoria intertextual: relação do texto lido com outros textos.
3 - Categoria cultural: respostas nas quais o leitor reflete e questiona
modelos culturais.
4 - Categoria emocional: a conexão do texto com as emoções dos leito-
res, participando na história e/ou rejeitando.
5 - Categoria metafórica: respostas nas quais o leitor expressa prazer

La+lectura+literaria+en+los+procesos+de+acogida+e+inclusi%F3n+de+adolescentes+inmigran-
tes-0.html
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 211

por “como se conta uma história”, evocando palavras, imagens e me-


táforas.
6 - Categoria criativa: respostas que dão origem à escrita.

A aplicação da categoria metafórica e da categoria criativa está


associada a dois conceitos essenciais: o livro como objeto estético e a
ilustração como elemento que facilita a construção de significados por
parte de leitores que se iniciam na leitura de textos na sua língua segun-
da (L2). É o que revelam as respostas obtidas a El libro de las preguntas
(2006), cuja dimensão poética do texto e da imagem, recriando o uni-
verso de Neruda através das texturas, das linhas e dos traços de Isidro
Ferrer, causou espanto e surpresa nos círculos de leitura. Trata-se, pos-
sivelmente, de um livro fronteiriço dentro da tipologia do livro-álbum,
no qual os poemas partem a sua condição verbal para se converterem
numa realização artística global (Tabernero, 2009: 27).

(Conversa antes da leitura: mostramos o


livro, observam-no e conversam)
9.Youness: Pablo Neruda é um escritor
10.Ruihao: um ilustra e o outro escreve
11.Youness: como o livro das greguerías
12.Ruihao: é mais fácil compreender as
perguntas
13.Youness: um homem está a pescar as
perguntas
14.Ahmed: os peixes
15.WeiPei: é diferente
16.XiaoWei: o homem que está a pescar
17.Ruihao: Pablo Neruda ou Isidro Ferrer?
Figura 68 - Libro de las preguntas 18.Youness: este escritor está a trabalhar só
com madeira, os peixes são de madeira, o
homem é de madeira, as ilustrações são de
madeira, tem alguma coisa a ver com a madeira
(Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Goya, Saragoça)
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
212

A pergunta surge como um bom convite para o conhecimento do


indivíduo numa edição bela, inteligente, dirigida a um leitor sensível
que se atreve a brincar com a linguagem a partir dos pormenores de
ilustração do livro:
1. Zineb: vai fazer-nos perguntas e temos de responder
2. Binta: gosto da capa
3. Inv: o que é que gostam na capa?
4. Kadiatou: gosto das ilustrações
5. Aissatou: das ilustrações
6. Massa: dos peixes, do pescador
7. Aissatou: do pescador
8. Zineb: nós vamos pescar perguntas
9. Aissatou: ou não?
(Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Lucas Mallada,
Huesca)

A composição da capa convida à observação atenta, a olhar,


refletir, conversar e até a brincar com as palavras. Zineb interpreta a
imagem, associa ideias, lê e relaciona-as até brincar com a linguagem
através da imagem, criando uma metonímia. O poder sugestivo da ilus-
tração (as texturas, a luminosidade, a passagem do tempo nos traços
das letras do título, as figuras planas e quase simétricas) invade os lei-
tores e mexe com os seus afetos, provoca espanto ao leitor imigrante,
permite-lhe estabelecer inferências e construir significados através do
conhecimento partilhado e da conversa em grupo. Nesta medida, o lei-
tor detém-se a observar a ilustração do livro e a apreciá-lo como objeto
estético.
Outra obra que estimulou os leitores imigrantes a fixarem-se na
estética do livro foi a novela gráfica de Shaun Tan Emigrantes (2007).
Serve como exemplo a entrada seguinte, extraída do blogue da investi-
gação72 (fig. 69), na qual uma adolescente alude expressamente ao seu
gosto pela estética deste livro:

72
http://leemosymas.blogspot.com.es/
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 213

Figura 69 - Excerto de um blogue de uma leitora

A capa desta obra, dura, com textura e relevo, o tom castanho


escuro e opaco das margens que parecem simular as rachaduras origi-
nadas pela passagem do tempo e a imagem brilhante ao centro apro-
ximam-na de um velho álbum de fotografias. Trata-se de uma edição
cuidada, da qual resulta grande beleza, aspetos que são observáveis nas
respostas dos alunos:
11.Aissatou: eu adoro isto (indica e toca na capa) é como se fosse an-
tiga, a capa
12.Zineb: sim parece muito antigo
13.Aissatou: eu gosto da capa, não sei o que existe lá dentro, mas gosto
da capa
(Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Lucas Mallada,
Huesca)

O autor escolhe as dimensões de um livro em função do que quer


transmitir e representar. Tal como explica Sipe (2001), um formato
muito horizontal pode ser selecionado para um livro cujas ilustrações
incluem mais fundo, paisagem ou uma perspetiva panorâmica, enquan-
to um formato mais vertical permite ao artista representar personagens
humanas numa escala próxima, em primeiro plano, como acontece com
Emigrantes (fig. 70).
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
214

O leitor recebe a obra literária como objeto estético e plástico e,


desse modo, o poder evocativo das cores, dos silêncios, das luzes e das
sombras recria uma atmosfera que emociona os leitores, conduzindo-
-os a expressar o prazer pelas imagens que leem, a realizar inferências
sobre a história e a estabelecer as suas relações intertextuais (“parece a
pintura do barroco”):
32.Zineb: como se fosse silêncio não? há si-
lêncio na cidade, vê, vão no comboio e não se
querem separar
33.Fatima: a mulher
34.Aissatou: a mulher regressou, não foi?
35.Massamba: com o seu filho
36.Aissatou: foi para outro país, está a comer
no barco, olhando para a fotografia da sua fa-
mília. O céu, que bonito!
37.Zineb: (risos) céu negro
38.Aissatou: parece a pintura do barroco
39.Zineb: já chegou à cidade
40.Aissatou: gosto das ilustrações

Enquanto determinadas páginas


da novela gráfica conduzem a uma leitu-
Figura 70 - Página do livro de
ra visual, pausada, lenta e simbólica das
Shaun Tan
ilustrações, apreciando os pormenores
estéticos, na discussão em grupo, os alunos revelaram que a narrativa
lhes fez recordar o seu próprio processo migratório, tendo ressonâncias
com a sua experiência de vida enquanto filhos de imigrantes. Assim,
como consequência, produz-se uma rejeição da temática do livro:
97.Zineb: Lembro-me de quando o meu pai, no meu país, me disse que
tinha de ir para Espanha, tinha 12 anos, este livro não me deixa pensar
98.Aissatou: Outras pessoas têm de o conhecer
99.Fátima: Esta história já a conheço, o meu pai ficou na floresta e
comeu folhas
(Conversa grupal sobre Emigrantes - Aula de espanhol do Instituto de
Educação Secundária Lucas Mallada, Huesca).
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 215

O estilo do desenho a lápis sobre papel procura assemelhar-se


à fotografia. O emigrante da novela é todos os emigrantes de todos os
países e de todos os tempos. Foi assim que os alunos entenderam a
mensagem quando contemplaram os rostos nas guardas do livro, seme-
lhantes a fotografias de passaportes, relembrando e projetando as suas
histórias pessoais de vida para a narração. Desta forma, estes jovens
gastaram o seu tempo a ler, observando, e analisaram o livro como um
objeto estético para além das suas circunstâncias pessoais.

5.2. O livro-álbum em contextos inclusivos. Estudo de caso com


crianças com transtorno do espectro do autismo73
Este estudo de caso centra-se em sete crianças do 1º. ciclo do
Ensino básico e seis do Ensino pré-escolar com transtorno do espectro
do autismo. O estudo parte das características específicas destes rece-
tores relativamente ao facto de se apoiarem em imagens, como, por
exemplo, pictogramas, para organizar, compreender e dar sentido ao
mundo (Rivière, 2001). Assim, a investigação toma como ponto de par-
tida a adequação do livro-álbum como ferramenta utilizada em contex-
tos inclusivos para promover o desenvolvimento cognitivo, emocional,
social e estético do indivíduo. As componentes narrativas e visuais que
estruturam um livro-álbum podem ajudar os alunos com transtorno do
espectro autista na construção de sentidos e na interação com o texto.
Esta premissa sustenta-se com contribuições de Tabernero (2005, 2009,
2013), Durán (2009), Salisbury e Styles (2012), no que diz respeito à
receção do livro-álbum: “El lugar del libro-álbum está en la contempla-
ción, en la educación de los sentidos, en la aproximación al objeto en
sí mismo, en la construcción de un espacio íntimo y privado, fuera de
los pensamientos impuestos” (Tabernero, 2009: 37). Por sua vez, Durán
(2005) destaca que “la gran virtud de la lectura visual que nos ofrecen

73
Os resultados da primeira fase desta investigação estão publicados na Revista de Edu-
cación Inclusiva, vol. 8 (3), novembro de 2015. http://www.revista-educacion-inclusiva.es/nume-
ros/anteriores/
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
216

los libros ilustrados es la de que nos permiten adquirir unas competen-


cias, experiencias y emociones que resultan básicas para nuestro desar-
rollo cultural y social” (Durán, 2005: 253).
Para tal, neste trabalho de campo experimentou-se a abordagem
de leitura de Chambers (2007a), com o objetivo de identificar em que
medida a leitura de livros-álbum podia favorecer a comunicação ver-
bal e social destas crianças. Como opção metodológica, optámos pelo
paradigma qualitativo/interpretativo e utilizou-se uma variada gama de
estratégias de recolha de dados: diário de observação das professoras,
entrevistas semiestruturadas às professoras, transcrições das conversas
orais das sessões de leitura e produções escritas das crianças.
Os resultados obtidos foram organizados em categorias com o
objetivo de estabelecer um quadro concetual de interpretação das res-
postas dos informantes. Neste sentido, foram-nos particularmente úteis
as classificações de respostas leitoras de outras investigações do grupo
ELLIJ (Tabernero, 2011; Calvo e Tabernero, 2014; Calvo, 2015). O re-
sultado foi um quadro composto por cinco categorias: o livro como
objeto físico, categoria narrativa-metafórica, categoria visual-metafó-
rica, emocional e social.
A categoria livro como objeto físico corresponde a todas as res-
postas verbais e corporais nas quais as crianças se aproximaram do livro
físico com o objetivo de o manipular, observar e, em alguns casos, para
copiar frases (fig. 71). Como exemplo, comentaremos as reações das
crianças à obra de Sendak, Donde viven los monstruos. Nas entrevistas
realizadas às professoras, elas sublinhavam o facto de estas crianças te-
rem muitas dificuldades na comunicação oral e escrita, e valorizaram de
forma positiva a iniciativa, a espontaneidade e a vontade manifestada
pelas crianças em se aproximarem do livro para o manipularem, o ob-
servarem e, ainda, copiar frases. Por outro lado, as professoras ficaram
surpreendidas com as reações de alguns alunos, nomeadamente quando
pegaram no livro para o levar para casa, de modo a partilharem a leitura
com as suas famílias.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 217

Donde viven los monstruos (fig. 72)


foi lido em três sessões, uma vez que as
crianças solicitaram essa leitura em vá-
rias ocasiões, através de afirmações como:
“quero ‘donde viven los monstruos’”! Se-
guindo a abordagem de Dime, de Cham-
bers, a professora formou um semicírculo
no espaço da sala e leu o texto em voz alta
ao mesmo tempo que mostrava as imagens
às crianças. Depois, questionou cada uma
delas sobre o que tinham gostado mais. Figura 71 - Exemplo de
Neste contexto, e tendo em conta que era produção escrita de um aluno
a primeira sessão na qual se realizava esta
atividade, a professora optou por formular as perguntas de forma indi-
vidualizada, uma vez que os alunos costumam responder a perguntas
dirigidas ao grupo. As respostas dadas pelas crianças no círculo de lei-
tura foram as seguintes:
A1: Max
A2: a sopa
A3: Gostei do sítio onde vivem os monstros
A4: rugiram com as suas garras terríveis
A5: quente quente
Professora 1: o quê?
A5: comida saborosa
Professora 1: gostaste de mais alguma coisa?
A5: vou-te comer
Professora 1: mais alguma coisa?
A5: rugidos terríveis, mostraram os seus dentes terríveis e os seus olhos
terríveis e mostraram as suas garras terríveis até que Max disse QUIE-
TOS por favor não vás embora vamos comer-te gostamos tanto de ti
Max disse NÃO comida saborosa e já está
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
218

Como se observa, os leitores referiram “a sopa, “os monstros”,


“comida saborosa”, “quente”, “vou-te comer” e um dos alunos repete as
frases de que mais gostou da audição do texto em voz alta: “rugidos ter-
ríveis”, “dentes terríveis”, “olhos terríveis”, “garras terríveis”, ou seja,
na sua transação (Rosenblatt, 2002) com o texto e a imagem, interio-
rizou o jogo sonoro de palavras no qual as ilustrações do “cortejo dos
monstros” têm um papel essencial na experiência da receção do livro.

Figura 72 - Donde viven los monstruos

As ilustrações deste criador proporcionam um acompanhamen-


to visual das palavras, um guia que enriquece a experiência de leitura
nesse ambiente que facilita a aproximação de Dime, de Chambers: um
espaço acolhedor para falar, partilhar, escrever e desenhar.
A história da viagem de Max, o encontro do protagonista com os
monstros, as três duplas páginas nas quais os monstros uivam à lua, ba-
loiçam-se nos ramos das árvores e desfilam, em cortejo, até que a pro-
cissão se interrompe pelo “odor de comida saborosa”, transformou-se
numa atividade prazerosa para o grupo que atravessou e cruzou mundos
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 219

possíveis. Em conclusão, a forma como Sendak constrói, com subtileza


e força, um baile lúdico entre imagens e palavras possibilitou aos lei-
tores deste estudo apropriarem-se das palavras, ritmos, jogos sonoros e
metáforas, incorporando estes recursos na sua perceção do mundo e na
sua capacidade de se exprimirem. Tratou-se, sem dúvida, de uma expe-
riência de gozo deste clássico.
Nesta investigação, o suporte, a materialidade e o formato afetam
a receção e, neste processo, a função do mediador e a perspetiva de lei-
tura revelam-se como fatores importantes para produzir encontros entre
o livro e o leitor.
Como afirma Bonnafé (2008: 23): “el libro sólo tiene efecto si
es objeto de afectos compartidos”. Nessa medida, o livro é uma ferra-
menta que facilita as relações e “constituye un apoyo de calidad para
la integración” (Bonnafé, 2008: 34). Seguindo os estudos de Tabernero
(2015), o livro-álbum revela-se como um suporte para o intercâmbio
entre crianças e adultos, além de ligar o indivíduo à comunidade.

6. Para continuar
À luz dos resultados obtidos nas distintas investigações que apre-
sentámos, a categoria livro como objeto físico revela-se como uma va-
riável constante nas respostas leitoras que as crianças e os adolescentes
apresentam face aos livros e à experiência de leitura dos mesmos. Nesta
medida, reforça o quadro do estudo das Respostas Leitoras e permite
avançar em termos do conhecimento do leitor literário, nomeadamente
sobre a forma como este se aproxima dos livros e como se apropria
do seu conteúdo. O leitor recebe o livro na sua totalidade e, a partir
de todos os elementos que o integram, vai-se apropriando do conteúdo
da obra (Bonnafé, 2008). Em resultado, o livro como suporte físico e
estético – como artefacto artístico – requer um estudo que nos ajude a
compreender o papel que desempenha a sua materialidade no processo
de receção da obra literária, ou seja, o papel criado pelo livro-álbum
pós-moderno para acolher o leitor no seu mundo, como analisou a pro-
fessora Rosa Tabernero no capítulo anterior.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
220

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 223

13. Autoras

ANA MARGARIDA RAMOS é doutorada em Literatura e Professora


Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro,
onde leciona disciplinas da área da Formação de Leitores e da Literatura para
a Infância. Integra o Centro de Investigação em “Didática e Tecnologia na For-
mação de Formadores” (CIDTFF), da Universidade de Aveiro. Tem apresenta-
do várias comunicações em colóquios e congressos nacionais e internacionais.
Integrou a equipa que concebeu o projeto CASA DA LEITURA da Fundação
Calouste Gulbenkian. Integra, como investigadora, a equipa da Rede Temática
de Investigação Ibérica “As Literaturas Infantis e Juvenis do Marco Ibérico e
Iberoamericano” (www.usc.es/lijmi/). Integrou um projeto de Reestruturação
do Ensino Secundário em Timor-Leste, no âmbito do qual coordenou a equipa
responsável pela disciplina de Temas de Literatura e Cultura, cujos materiais
pedagógicos também realizou em coautoria. Publicou vários livros, dos quais
se destacam Livros de Palmo e Meio – Reflexões sobre literatura para a in-
fância (Caminho, 2007), Literatura para a Infância e Ilustração: leitura em
diálogo (Tropelias & Companhia, 2010) e Tendências contemporâneas da lite-
ratura portuguesa para a infância (Tropelias & Companhia, 2012).

CARINA RODRIGUES é Licenciada em Educação de Infância, pela


Escola Superior de Educação de Coimbra, desde 2004, e Mestre em Ciências
da Educação (Área de Especialização em Formação Pessoal e Social), pela
Universidade de Aveiro, desde 2008. Em 2013, concluiu o Doutoramento em
Literatura, na Universidade de Aveiro, com uma tese subordinada ao tema “Pa-
lavras e imagens de mãos dadas – a arquitetura do livro-álbum narrativo em
Manuela Bacelar” e realizada com o apoio da FCT (SFRH/BD/44145/2008). É
membro colaborador do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança)
da Universidade do Minho e vogal da direção de ELOS (Asociación Galego
Portuguesa de Investigadores en Literatura Infantil e X/Juvenil). Apresentou
várias comunicações em colóquios e congressos nacionais e internacionais, e
publicou recensões e artigos diversos no âmbito da Literatura Infantojuvenil.
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
224

CLÁUDIA SOUSA PEREIRA é Licenciada em Línguas e Literaturas


Modernas – variante de Português e Francês pela Universidade Nova de Lis-
boa (1989); Mestre em Literatura Comparada Portuguesa e Francesa – época
medieval, também pela Universidade Nova de Lisboa (1994); Doutorada em
Literatura Portuguesa pela Universidade de Évora (2000). Desde 1990, é do-
cente na Universidade de Évora, atualmente professora auxiliar de nomeação
definitiva, diretora do Curso de Licenciatura em Línguas e Literaturas e adjun-
ta da direção do Departamento de Linguística e Literaturas; Investigadora e
vice-diretora do CIDEHUS-UÉ (Centro Interdisciplinar de História, Culturas
e Sociedades da Universidade de Évora). Tem várias publicações nacionais e
internacionais. Foi Vereadora na Câmara Municipal de Évora com os pelouros
da Educação, Ação Social, Juventude e Desporto, Cultura, Património, Centro
Histórico e Turismo (2009 e 2013). É atualmente Vereadora sem pelouros.

DIANA MARIA FERREIRA MARTINS é aluna do Doutoramento em


Estudos da Criança, na especialidade de Literatura para a Infância, no Instituto
de Estudos da Criança, na Universidade do Minho. Licenciada em Design de
Comunicação pela Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos, é tam-
bém mestre em Ilustração, pela Escola Superior Artística do Porto – Guima-
rães, com uma monografia intitulada As cores de A Sombra, de Luísa Ducla
Soares - Percursos de re-ilustração e de construção de um livro-álbum poéti-
co. id5362@alunos.uminho.pt

ELIANE DEBUS é graduada em Letras (FUCRI, 1991), Mestre em


Literatura Brasileira (UFSC, 1996), Doutora em Teoria da Literatura (PUCRS,
2001) e atua como professora no Departamento de Metodologia de Ensino e
no Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Ciências da Edu-
cação, da Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis/SC/Brasil).
Líder do grupo Literalise – Grupo de pesquisa em Literatura Infantil e Juve-
nil e Práticas de Mediação Literária tem-se dedicado, nos últimos 25 anos, a
pesquisas sobre a literatura para infância e juventude. Autora de artigos em
periódicos nacionais e internacionais, capítulos de livros e livros, entre eles:
Monteiro Lobato e o leitor, esse conhecido (2004); Festaria de brincança: a
leitura literária na Educação Infantil (2006); e, em coorganização, Literatura
Infantil e Juvenil: leituras, análises e reflexões (2010). CV completo em http://
lattes.cnpq.br/8529733083684329.
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 225

ISABEL MOCIÑO é doutora em Filologia pela Universidade de San-


tiago de Compostela, em Espanha, e professora no Departamento de Didáti-
cas Especiais da Universidade de Vigo, onde leciona disciplinas da área da
Didática da Língua e da Literatura. É investigadora do Instituto de Ciências
da Educação (ICE-USC) e dos projetos “Informes de Literatura” e “A Lite-
ratura Infantil e Xuvenil” do Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en
Humanidades. Integra grupos e redes de investigação, como a Rede Temática
de Investigação “Las Literaturas Infantiles y Juveniles del Marco Ibérico e
Iberoamericano” (LIJMI) e “A LIX angloxermana e a súa tradución”, além de
ser membro da ANILIJ (Asociación Nacional de Investigación en Literatura
Infantil y Juvenil), da ELOS (Asociación Galego-Portuguesa de Investigación
en Literatura Infantil e X/Juvenil), da qual é presidente, e da Asociación Ga-
lega da Crítica (AGC). Tem participado em numerosos encontros científicos
nacionais e internacionais e publicado estudos em livros coletivos, revistas
e jornais sobre literatura galega e Literatura Infantil e Juvenil, com destaque
para a participação na Historia da Literatura Infantil e Xuvenil galega (Xerais,
2015), coordenada por Blanca-Ana Roig Rechou.

MARGARETH SILVA DE MATTOS é Professora de Ensino Básico


da Universidade Federal Fluminense (UFF-Brasil). Doutoranda em Estudos de
Linguagem da mesma Universidade, foi coorientada no seu estágio doutoral
pela Doutora Ana Margarida Ramos, do Departamento de Línguas e Culturas
da Universidade de Aveiro. Integrante dos grupos de pesquisa LeiFEn (Leitura,
Fruição e Ensino), e LELIS (Leitura, Literatura e Saúde: inquietações no cam-
po da produção do conhecimento), ambos cadastrados no Diretório dos Grupos
de Pesquisa no Brasil. margarethmattos@ua.pt

ROSA TABERNERO é professora titular de Universidade da área


da Didática da Língua e da Literatura na Universidade de Saragoça, em Es-
panha. É Investigadora Responsável do Grupo de Investigação Consolidado
Educación para la Lectura Literatura Infantil y Juvenil y construcción de
identidades (ELLIJ, http://ellij.blogspot.com.es/). Dirige o Máster Propio em
Lectura, libros y lectores infantiles y juveniles (http://www.literaturainfantil.
es/). Coordena e participa em projetos de inovação docente relacionados com
a educação literária e o desenho de itinerários de leitura no contexto do Espaço
Europeu de Educação Superior. Dirige a coleção da Imprensa Universitária de
Saragoça “[Re]pensar la educación”. Participa em grupos de investigação de
âmbito internacional. Integra, como investigadora, o projeto de investigação
ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.)
226

«Los espacios virtuales para la promoción del libro y la lectura. Formulación


de indicadores para evaluar su calidad y efectividad» FFI2015-69977-R, (Pro-
yectos I+D+I del Programa Estatal de Investigación, Desarrollo e Innovación.
Ministerio de Economía y Competitividad de España. Convocatoria 2015).

ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA é graduada


em Pedagogia pela Universidade do Contestado - UnC - Campus Canoinhas-
-SC (1993), mestre em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catari-
nense (UNESC, 2008) e doutoranda em Educação pela Universidade Fede-
ral de Santa Catarina (UFSC), com Estágio Científico Avançado no âmbito
do Doutoramento em Estudos da Criança na Universidade do Minho, Braga,
Portugal. Desenvolve a pesquisa: Infância e poesia: encontros possíveis no
espaço-tempo da escola. Bolseira do Programa de Apoio à Manutenção e ao
Desenvolvimento da Educação Superior (FUMDES). Atua como professora
nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da Rede Pública Estadual de SC.
É membro dos grupos de pesquisa: Literalise: Grupo de pesquisa em literatu-
ra infantil e juvenil e práticas de mediação literária na UFSC, do LITTERA:
Correlações entre cultura, processamento e ensino: a linguagem em foco na
UNESC, e do GPA - Grupo de Pesquisa em Arte. Atua principalmente nos se-
guintes temas: alfabetização, letramento, linguagem literária, poesia e pesquisa
com crianças. Autora de artigos em livros e coorganizadora de Cinema, in-
fância e imaginação: tecendo diálogos (2016). CV completo em http://lattes.
cnpq.br/1225742614101288.

SANDIE MOURÃO é Doutorada em Didática e Formação de Profes-


sores pela Universidade de Aveiro, em Portugal. É formadora de professores,
autora e consultora educativa e trabalha a tempo parcial na Universidade Nova
de Lisboa, lecionando no Mestrado de formação de professores de inglês do
1º. ciclo do Ensino Básico. É investigadora e dedica-se ao estudo das questões
do ensino/aprendizagem de línguas nos primeiros anos, bem como ao uso de
livros-álbum na educação em línguas de todos os níveis de ensino. É coeditora
do volume Early Years Second Language Education: International Perspecti-
ves on Theories and Practice (2015), publicado pela Routledge, e da Revista
online Children’s Literature in English Language Education.

SARA REIS DA SILVA é Professora Auxiliar na Universidade do Mi-


nho (Instituto de Educação). É doutorada em Literatura para a Infância pela
Universidade do Minho com uma tese intitulada Presença e Significado de
APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO:
DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 227

Manuel António Pina na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude,


editada, em 2013, com a chancela FCT/FCG. Desenvolve a sua docência e a
sua investigação na área dos estudos literários e, em particular, da literatura de
potencial receção infantojuvenil. Integrou a equipa responsável pelo projeto
Gulbenkian – Casa da Leitura (www.casadaleitura.org). É membro integrado
do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) e investigadora da
Rede Temática “Las literaturas infantiles y juveniles del marco ibérico. Su
influencia en la formación literaria y lectora” (RED LIJMI). Tem apresentado
diversas comunicações em colóquios e congressos nacionais e internacionais.
É autora de artigos/ensaios e recensões no referido âmbito investigativo. Pu-
blicou, entre outras obras, em 2002, A Identidade Ibérica em Miguel Torga,
em 2005, Dez Réis de Gente… e de Livros. Notas sobre literatura infantil, em
2010, Encontros e Reencontros. Estudos sobre Literatura Infantil e Juvenil e,
em 2015, Casas Muito Doces: reescritas infanto-juvenis de Hansel & Gretel.

VIRGINIA CALVO é doutora pela Universidade de Saragoça e licen-


ciada em Filologia Hispânica. Atualmente é professora ajudante doutora no
Departamento de Didática das Línguas e das Ciências Humanas e Sociais da
Universidade de Saragoça. Membro do Grupo de Investigação ELLIJ e sub-
diretora e professora no Máster en Lectura, libros y lectores infantiles y juve-
niles (http://www.literaturainfantil.es/). As suas investigações centram-se nas
questões da leitura literária, educação linguística e construção de identidades
no contexto das várias etapas educativas. Atualmente, integra a equipa de in-
vestigadores do projeto “Los espacios virtuales para la promoción del libro y
la lectura. Formulación de indicadores para evaluar su calidad y efectividad”.
Mais publicações em:
https://scholar.google.es/scholar?hl=es&q=virginia+calvo+valios&btnG=&lr=
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13614541.2016.1120071
http://www.elprofesionaldelainformacion.com/contenidos/2015/nov/11.html

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