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Fichamentos:

SANTILLI, Juliana. A Lei de Sementes brasileira e os seus impactos sobre a agrobiodiversidade e os sistemas
agrícolas locais e tradicionais. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 2, p.
457-475, maio-ago. 2012.

MARCO LEGAL: Lei 10.711, de 05/08/2003

Disciplina: AGROECOLOGIA
Docentes:
Profa. Dra. Anne Geraldi Pimentel
Profa. Dra. Flávia Donini Rossito
Profa. Dra. Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

DISCENTE: Hansmüller Salomé

CITAÇÕES

(p. 458).

A agrobiodiversidade é um termo amplo que inclui todos os componentes da biodiversidade


que têm relevância para a agricultura e alimentação, bem como todos os componentes da
biodiversidade que constituem os agroecossistemas. São as variedades e a variabilidade de
animais, plantas e de microrganismos, nos níveis genético e de espécies. E dos ecossistemas
nos quais se inserem e que são necessários para sustentar as funções dos agroecossistemas,
suas estruturas e processos. Num conceito mais sintético, a agrobiodiversidade pode ser
compreendida como a parcela da biodiversidade utilizada pelo homem na agricultura, ou em
práticas correlatas, e na natureza, de forma domesticada ou semi-domesticada. A
agrobiodiversidade é o conjunto de espécies da biodiversidade utilizada pelas comunidades
locais, povos indígenas e agricultores familiares. Estas diferentes comunidades conservam,
manejam e utilizam os diferentes componentes da agrobiodiversidade. Agrobiodiversidade
(agrobiodiversity) tem como sinônimo biodiversidade agrícola ou “agricultural biodiversity”.
O conceito de agrobiodiversidade reflete as dinâmicas e complexas relações entre as
sociedades humanas, as plantas cultivadas e os ambientes em que convivem, repercutindo
sobre as políticas de conservação dos ecossistemas cultivados, de promoção da segurança
alimentar e nutricional das populações humanas, de inclusão social e de desenvolvimento
local sustentável. A biodiversidade ou diversidade biológica é a diversidade de formas de
vida engloba três dimensões de variabilidade. A diversidade de espécies, a diversidade
genética que é a variabilidade dentro do conjunto de indivíduos da mesma espécie e a
diversidade ecológica, que se refere aos diferentes ecossistemas e paisagens. Isso ocorre
também em relação à agrobiodiversidade, que inclui a diversidade de espécies de plantas
cultivadas, como o milho, o arroz, a abóbora, o tomate e outras, a diversidade genética como
variedades diferentes de milho, feijão e outros e a diversidade de ecosssistemas agrícolas ou
cultivados como os sistemas agrícolas tradicionais de queima e pousio, também chamados de
coivara ou itinerantes, os sistemas agroflorestais, os cultivos em terraços e em terrenos
inundados e outros. Os agroecossistemas são áreas de paisagem natural transformadas pelo
homem com o fim de produzir alimento, fibras e outras matérias-primas. Uma das
características dos agroecossistemas é a predominância de espécies de interesse humano e
uma organização espacial que estrutura e facilita o trabalho de produção, segundo Kátia
Marzall (MARZALL, K. “Fatores geradores da agrobiodiversidade – Influências
socioculturais” Revista Brasileira de Agroecologia, Porto Alegre: Associação Brasileira de
Agroecologia, v. 2, n. 1, p. 237-240, fev. 2007).
(p. 461).
A substituição das sementes camponesas pelas industriais é um processo que ganhou
acelerou-se e ocupou mais espaços jurídico-comerciais nas últimas décadas. No século XX,
quando a obtenção e a produção de sementes se tornaram atividades independentes da
agricultura em si, as variedades camponesas foram sendo gradualmente substituídas pelas
industriais. Na Europa e na América do Norte esse processo estendeu-se ao longo de várias
décadas, impulsionado por novas tecnologias como a das sementes híbridas. Na Ásia, na
África e na América Latina arrancou nos anos 1960 com os chamados programas de
desenvolvimento promotores de colheitas “de alto rendimento” com a utilização dos insumos
químicos (a chamada Revolução Verde). Nos últimos 20 anos, percebe-se uma nova
abordagem institucionalizante com o lançamento de uma vaga agressiva de leis das sementes,
justificadas pela lógica mercadológica da eficiência produtiva moderna, redução de preços
com aumento da oferta, abastecimento e distribuição tempestiva de alimentos diante de uma
demanda cada vez mais crescente, melhoramento e qualificação genética com
ecossustentabilidade. Contudo, aduz-se que o impulsionamento dado pela lei ao sistema
“formal” acaba por travar quase todas as atividades realizadas pelas comunidades
tradicionais, que operacionalizam o dito “sistema informal” (local e tradicional) com as suas
sementes adaptadas a condições locais específicas e heterogêneas.
(p. 464).
Os registros, cadastros e listas dispostos e implementados pelas legislações ou
regulamentações normativas brasileiras situam-se em dois polos. O primeiro, que regula o
sistema formal de sementes e mudas, dando a garantia e proteção jurídica para a circulação
como mercadorias. Esses sistemas, especialmente o Registro Nacional de Sementes e Mudas
e o Cadastro Nacional de Cultivares, acabam por trazer exceções às sementes crioulas, mas
também criam entraves para a comercialização dessas sementes dos agricultores familiares,
camponeses, indígenas e de comunidades tradicionais no “mercado” geral. Já o segundo polo
refere-se ao cadastro das próprias sementes crioulas, o Cadastro Nacional de Cultivares
Crioulas e a “lista” prevista no Decreto 8.772/2016, que regulamenta a Lei da
Biodiversidade. O que se identifica é que estes instrumentos são pouco efetivos na proteção
de sementes crioulas ou mesmo na repartição de benefícios com as comunidades que
desenvolveram as variedades crioulas ou tradicionais. Também podem ensejar a coleta de
informações delicadas sobre esse rico patrimônio genético desenvolvido pelos
conhecimentos tradicionais associados dos povos. A questão da “melhor” forma de garantir a
continuidade da diversidade na agrobiodiversidade é altamente complexa e por essa razão
deve ser discutida de forma transparente e com a participação da sociedade civil e dos
movimentos sociais. Acreditamos que uma mudança nos sistemas de controle até então
estabelecidos somente pode ser feita desde que seja construída uma metodologia
que permita a participação efetiva dos agricultores e agricultoras na construção, na
implementação e na avaliação das estratégias que permitam pensar a agrobiodiversidade
como forma de reprodução da vida. Entendemos que a melhor proteção das sementes
está ligada a dar condições de reprodução dos sistemas agrários, o que pressupõe acesso à
terra, aos instrumentos de trabalho, aos insumos, a garantia dos serviços públicos essenciais
para a moradia e trabalho no campo, dentre outros aspectos que permitam repensar a noção
de desenvolvimento agrário e buscar alternativas ao modelo dependente de produção
agrícola. O grande desafio que se coloca é que justamente as sementes crioulas desafiam a
lógica proprietária ancorada nas relações jurídicas. Assim, é preciso questionar até quando se
forçará juridicamente a classificação, registro, cadastramento e apropriação de sementes que
circulam e brotam livres na solidariedade comunitária de agricultores, camponeses, povos
indígenas e comunidades tradicionais.

(p. 465).
(p. 473).
O processo de mercantilização, apropriação e controle da cadeia agroalimentar tem limitado
agricultores familiares, camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais na prática
de seleção das plantas, favorecendo as pesquisas de “melhoristas” de laboratório, que
privilegiam homogeneidade, distinguibilidade e estabilidade das cultivares. Assim, os
sistemas agrícolas são inseridos paulatinamente no mercado internacional e guiados a partir
da circulação de mercadorias. Tanto é que, garantidoras das lógicas mercadológicas, as
relações jurídicas incidem sobre as sementes: regulando-as, classificando-as, travestindo-as
sob o manto proprietário (especialmente da propriedade intelectual) e atribuindo-lhes valor
monetário e controle normativo. Existem exceções relativas aos agricultores familiares,
assentados da reforma agrária e povos indígenas na legislação, isentando-os de inscrição no
Renasem15 e também autorizando a comercialização de sementes locais, tradicionais ou
crioulas pelos agricultores familiares e empreendimentos familiares no âmbito do Programa
de Aquisição de Alimentos (PAA). Tais exceções são decorrentes da organização da classe
camponesa por meio de movimentos, associações, sindicatos e entidades representativas. O
que se percebe dessas exceções ou isenções é que afastam a regulação das sementes crioulas
e dos agricultores familiares e camponeses no sistema formal, mas não há nada
especificamente que garanta a proteção das sementes crioulas e variedades locais como
estratégicas para a reprodução das comunidades rurais, do patrimônio genético
agrobiodiverso brasileiro. Assim, a lei estabelece um impasse: de um lado, exclui as
sementes crioulas do mercado formal, permitindo apenas o uso, troca e comercialização entre
agricultores; e, de outro lado, exclui a venda no mercado amplo sem os devidos registros e
atendimentos dos requisitos mencionados. A exceção colocada pela lei às sementes crioulas é
ao mesmo tempo um entrave que não permite que a partir delas se possa gerar um
significativo crescimento econômico, pois a preocupação legislativa centra-se no mercado
formal, do qual elas estão excluídas.

LEI No 10.711, DE 5 DE AGOSTO DE 2003.


Dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e
Mudas e dá outras providências.
        O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES PRELIINARES
        Art. 1o O Sistema Nacional de Sementes e Mudas, instituído nos termos desta Lei e de seu regulamento,
objetiva garantir a identidade e a qualidade do material de multiplicação e de reprodução vegetal produzido,
comercializado e utilizado em todo o território nacional.

(p. 459).
O setor sementeiro começou a se organizar no Brasil com a edição da Lei de nº 6.507, de 19
de dezembro de 1977, a qual trouxe as primeiras disposições normativas para produção de
sementes no País. Essa lei normatizava a produção, as inspeções de campo e a fiscalização do
comércio de sementes e mudas. Essa legislação perdurou até a Lei nº 10.711, de 5 de agosto
de 2003, regulamentada pelo Decreto nº 5.153, de 23 de julho de 2004, que instituiu o
Sistema Nacional de Sementes e Mudas, cujo objetivo é garantir a identidade e a qualidade
do material de multiplicação e de reprodução vegetal produzido e comercializado no
território nacional. Entre os destaques da lei estão as disposições preliminares e as
atribuições do Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) e do Registro Nacional de
Cultivares (RNC).

O Renasem tem por objetivo inscrever e cadastrar as pessoas físicas e jurídicas que exerçam
as atividades previstas no Sistema Nacional de Sementes e Mudas, que foram instituídas pela
Lei nº 10.711 e posteriormente regulamentadas por decretos e instruções normativas.
Portanto, atendendo à legislação, todas as pessoas físicas e jurídicas que exerçam as
atividades de produção, beneficiamento, embalagem, armazenamento, análise, comércio,
exportação e importação de sementes e mudas são obrigadas à inscrição no Renasem.

O RNC é o cadastro das cultivares prontas para a sua utilização e tem por finalidade habilitar
previamente as cultivares para produção, beneficiamento e comercialização de sementes e
mudas no País. Visa proteger o agricultor da venda indiscriminada de sementes e mudas não
testadas, sem o devido registro no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, com
penalidades previstas em lei federal para quem comercializa ou cultiva sementes sem prévia
inscrição da respectiva cultivar. Também determinou critérios, de acordo com a legislação
específica para organização e funcionamento do Sistema de Registro Nacional de Cultivares
(SRNC) em conjunto com as instituições públicas e privadas. Ficou também instituído o
Cadastro Nacional de Cultivares Registradas (CNCR) e de seus mantenedores. Não é
obrigatória a inscrição no RNC de cultivar local, tradicional ou crioula, utilizada por
agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas.

A Lei nº 10.711 atende, principalmente, aos interesses e necessidades do sistema ‘formal’ de


sementes e desconsidera o importante papel dos sistemas de sementes locais e tradicionais
(chamados frequentemente de ‘informais’), nos quais as atividades de produção, intercâmbio,
melhoramento e conservação de sementes são realizadas pelos próprios agricultores por meio
de suas redes sociais e segundo as normas locais. Os sistemas ‘formais’ de sementes estão
voltados, principalmente, para as espécies agrícolas de grande valor comercial e de ampla
utilização em ambientes homogêneos. Assim, não são capazes de oferecer sementes
adaptadas a usos e condições locais específicas e de atender às necessidades dos agricultores
tradicionais e locais, que dispõem de poucos recursos e vivem em regiões heterogêneas,
ambiental e culturalmente.

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