Você está na página 1de 15

PROF A.

MARIANA ESPOSITO

BIOÉTICA
CAPÍTULO 3. SAÚDE E PESQUISA CIENTÍFICA

OBJETIVO
• Compreender o surgimento do SUS como direito Constitucional e da sua
importância;
• Contextualizar o surgimento da ética em pesquisas humanas e a
formação do comitê de ética.

SUMÁRIO

Atenção à saúde como Direito Constitucional ................................................. 2


Pesquisa científica e Comitê de ética ............................................................. 8
Referências ................................................................................................... 16
Material de apoio........................................................................................... 16
Atenção à saúde como Direito Constitucional

Após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se a Declaração Universal dos


Direitos Humanos (figura 1), em 1948, entre os quais, destaca-se o Direito
Humano à Saúde e a proteção da vida. Contudo, a ampliação e
universalização de direitos sociais, demorou pelo menos 40 anos até que esse
processo fosse introduzido no Brasil, que só passou a internalizar esses valores a
partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que consagrou, dos
artigos 196 a 2001, o conceito ampliado da saúde, responsabilizando o Estado
pela sua garantia ao definir - “Saúde é direito de todos e dever do Estado” - e
pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), processo motivado pela
Declaração de AlmaAta de 1978, mas principalmente pelo movimento pela
Reforma Sanitária Brasileira, como parte da luta pela democracia, o
movimento sanitário alcançou a garantia constitucional do direito universal à
saúde e a elaboração institucional do SUS, tendo como pontos altos a 8º
Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a própria promulgação da
Constituição Federal (CESAU, 2019).

1 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física
ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem
um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III -
participação da comunidade.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente,
em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre
I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os
arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam
os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.
§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá
I - os percentuais de que tratam os incisos II e III do § 2º;
II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados
destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais;
III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital
§ 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio
de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação
§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação
das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência
financeira complementar aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial
§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às
de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos
específicos, fixados em lei, para o seu exercício.
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante
contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
§ 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
§ 3º É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos
em lei. § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de
transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo
de comercialização.
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos,
equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;
III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;
IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;
V - incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação;
VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; VII -
participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Figura 1. Plenário da ONU no dia 10 de dezembro de 1948 (Fonte: Agência
Senado).

Durante a abertura da 8ª Conferência Nacional de Saúde (figura 2), o


sanitarista Sérgio Arouca em seu discurso defendeu a ideia de que
“Democracia é saúde”. Naquele momento o país vivia o período de
redemocratização política e a Conferência fez a associação da Democracia
com a Saúde, mobilizando a sociedade brasileira na defesa da ampliação do
conceito sobre Saúde, elevandoa à condição de Direito Humano
Fundamental. De acordo com Arouca conseguir a democracia era o “ponto
de partida” para se ter saúde, ou seja, “a saúde está diretamente relacionada
ao conceito de democracia”.
Figura 2. 8ª Conferência Nacional de Saúde: quando o SUS ganhou forma. Em
1986, foram lançadas as diretrizes para a construção de um sistema
descentralizado e único. Saúde é vista como dever do Estado (Fonte:
Conselho Nacional em Saúde, 2021).

(...) saúde não é simplesmente ausência de


doença: "é um bem-estar físico, social, afetivo e
que pode significar que as pessoas tenham mais
alguma coisa do que simplesmente não estar
doentes: que tenham direito à casa, ao trabalho,
ao salário condigno, à água, à vestimenta, à
educação, às informações sobre como dominar o
mundo e transformá-lo. Que tenham direito ao
meio ambiente que não os seja agressivo, e que,
pelo contrário, permita uma vida digna e decente.
Direito a um sistema político que respeite a livre
opinião, a livre possibilidade de organização e
autodeterminação de um povo, e que não esteja
todo tempo submetido ao medo da violência,
daquela violência resultante da miséria, e que
resulta no roubo, no ataque. Que não esteja
também submetido ao medo da violência de um
governo contra o seu próprio povo, para que sejam
mantidos interesses que não são do povo (...)".
Sergio Arouca, 1986.

Os ataques ao Estado Democrático de Direito colocam a Saúde em risco A


Constituição Federal de 1988 foi promulgada numa época de instabilidade
econômica e de crise do capitalismo mundial, durante a qual os movimentos
sociais que foram a base da mobilização das novas conquistas se retraíram; a
ideologia neoliberal baseada nos processos de financeirização, de
mercadorização e da desnormatização da relação Estado/Sociedade,
proliferava pelo mundo e na América Latina; e os trabalhadores perdiam
poder de compra causado pela estagnação econômica e pela hiperinflação
(CESAU, 2019).

Simultaneamente a essa reforma, as empresas de saúde se reorganizavam


para atender às demandas dos novos clientes, recebendo subsídios do
governo, por meio de isenções fiscais e de descontos no imposto de renda,
consolidando os investimentos no setor privado. Com isso, a Constituição
Cidadã vem sendo atacada desde sua promulgação, o que impôs barreiras
para efetivação de políticas públicas que dessem materialidade aos seus
apontamentos, como o Direito à Saúde e ao Bem-Estar Social. Todavia, os
mais duros ataques ao Estado Democrático de Direito, preconizado pela

Constituição Federal de 1988, foram feitos justamente ao seu caráter


Democrático e de Direito (CESAU, 2019).

É indiscutível que o direito à saúde se relaciona de forma direta com o direito


à vida. Todavia, não é nada fácil, nem simples, desenvolver um conceito
jurídico do que seja saúde. Segundo Reissinger, o principal conceito se dá a
partir do próprio preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de
Saúde: "estado completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de doenças ou enfermidades."

A Lei Orgânica da Saúde (Lei n° 8.080/90)2, por outro lado, apresenta uma
leitura que engloba ainda no conceito de saúde um conjunto de ações
públicas que assegurem uma vida digna e a autonomia dos sujeitos
beneficiários. Por isso mesmo, fala-se em medidas de saúde preventiva e
medidas de saúde

2 TÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos
de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para
a sua promoção, proteção e recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.
Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre
outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o
lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força docondições de bem-estar físico, mental e social. disposto no
artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade

curativa: o primeiro conceito se revelaria como um status positivus libertatis -


na leitura de Jellinek, conectado à noção de mínimo existencial -, enquanto o
segundo, um status positivus socialis (isto é, um direito social, propriamente
dito) (FERNANDES, 2017).

A Constituição de 1988, portanto, instituiu um sistema único de saúde (SUS –


Figura 3), compreendendo as diversas ações e serviços de natureza pública
ligados à saúde a partir de uma rede regionalizada e hierarquizada, sob as
seguintes diretrizes: descentralização - com direção única em cada esfera de
governo; atendimento integral - fixando prioridades para as atividades de
cunho preventivo, mas sem prejuízo dos serviços assistenciais; e possibilidade
de participação da comunidade.

Figura 3. O SUS precisa de investimentos, mas o governo Temer e os políticos


aliados, logo após o golpe, congelaram os recursos da saúde por 20 anos
(Fonte:https://www.smetal.org.br/imprensa/precisamos-falar-mais-sobre-
osistema-unico-de-saude-sus/20180914-130423-x320).

A partir da Emenda Constitucional n° 29/00, o § 2° do art. 198 passou a dispor


da obrigatoriedade de uma aplicação de recursos mínimos em ações e
serviços públicos de saúde, transformando essa reserva de recursos como
norma de observância obrigatória, inclusive sob pena de intervenção no caso
de descumprimento (art. 34, VII, "e") (FERNANDES, 2017).

Outra importante via de efetivação do direito à saúde se dá pela ação do


Ministério Público, que, através de ação civil pública, tem legitimidade para
provocar o Poder Judiciário quanto às omissões totais ou parciais por parte do
Poder Público na implementação das ações e serviços de saúde.

Uma discussão importante, levantada por Marcos Gouvêa, fica por conta de
saber se há um direito subjetivo ao recebimento de medicamentos por parte
do Estado. O autor observa que a partir da década de 1990, foi se tornando
cada vez mais comum o ajuizamento de ações perante o Judiciário
invocando o direito ao recebimento de medicamento por parte do Poder
Público - principalmente no caso de pacientes com AIDS, câncer, cirrose,
doenças renais, etc. Num primeiro momento, essas ações estavam fundadas,
principalmente, no art. 196 da Constituição de 1988; após pressões político-
sociais, foi publicada a Lei n° 9.313, dispondo sobre a "distribuição gratuita de
medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS". Os recursos para
tais medicamentos viriam dos respectivos orçamentos da União, dos Estados e
dos Municípios, a serem regulamentados (FERNANDES, 2017).

Por parte dos Tribunais - e principalmente, dos Tribunais Superiores - a discussão


de casos concretos envolvendo o direito ao recebimento de medicamentos
primeiramente receberam uma leitura processual, em que não se reconhecia
um direito líquido e certo a tal pretensão, por reconhecer mero caráter
programático a tais normas. Em seguida, o STJ passou a dar plena aceitação
aos pedidos. Certo é que o STF, desde 1999, demonstra assumir um
posicionamento favorável ao deferimento (contextualizado) das pretensões
aos medicamentos. Nesses termos, temos ainda que o STF, recentemente,
com fundamento no art. 23, li da CR/88, afirmou, a responsabilidade solidária
dos entes da Federação no que tange ao direito fundamental a saúde. Nesse
sentido, foi a ementa da STA nº 175 em AgR julgado em 10.03.2010: "(. .. )
Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública.
Sistema único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à
saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos
concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes
da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento:
Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de
grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública.
Possibilidade de ocorrência de dano inverso.

Agravo regimental a que se nega provimento (. .. )" (Fernandes, 2017).

Outra questão importante sobre o tema (do direito social à saúde), envolve a
discussão sobre o intitulado atendimento de urgência na rede hospitalar.
Certo é que, a recente Lei n° 12.653 de 28.05.2012, tipificou o crime de
condicionar atendimento médico-hospitalar emergencial a qualquer tipo
garantia. Nesses termos, conforme o recém-criado art. 135-A do Código Penal,
é crime exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem
como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição
para o atendimento médico-hospitalar emergencial. A pena será de
detenção, de 3 (três) meses a l (um) ano, e multa. A pena é aumentada até o
dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza
grave, e até o triplo se resulta a morte. Temos ainda, que, o estabelecimento
de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial, a partir da
nova Lei, ora em comento, fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou
equivalente, com a seguinte informação: "Constitui crime a exigência de
cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do
preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o
atendimento médicohospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do
Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Fernandes,
2017).
Pesquisa científica e Comitê de ética

A ciência moderna, iniciada com os experimentos de Galileu (1564-1642) e a


entusiasmada aprovação de Francis Bacon (1561-1626), manteve durante
muito tempo a certeza de ser uma atividade objetiva, benéfica para a
humanidade – na medida em que promove o conhecimento – e eticamente
neutra – na medida em que apenas valores morais relacionados a uma
prática correta devem ter importância. Equivocadamente Max Weber (1864-
1920) é citado para fundamentar essa tese da neutralidade moral da ciência,
quando na verdade ele defendeu que a ciência recebe da sociedade o
encargo de solucionar determinados problemas, sendo seus resultados
aplicados segundo prioridades também sociais. Esses dois momentos sociais,
aquele que recorre à ciência e aquele que utiliza seus resultados, estão
subordinados a ponderações de valores e são, portanto, eminentemente
éticos. Weber insistia que era necessário afastar o método científico
propriamente dito de toda influência subjetiva, a fim de pesquisar de forma
moralmente neutra, sem vieses nem distorções (KOTTOW, 2008).

No decorrer do século XX, a expansão tecnocientífica alcançou proporções


tais que o método científico não podia ser aplicado sem se ponderar a
relação entre benefícios e riscos. Isso adquiriu especial importância em
pesquisas biomédicas em que o estudo com seres vivos poderia produzir
danos irreversíveis ou até a morte. Resistentes à avaliação ética, os cientistas
contemporâneos ainda se opõem à introdução de uma ética em pesquisa
empenhada em estabelecer normas morais especialmente relacionadas com
a proteção das pessoas e comunidades envolvidas em estudos científicos. A
história reconhece, contudo, que desde muito tempo já estava presente a
reflexão ética sobre os estudos de cadáveres e de seres vivos tantos humanos
como não-humanos (KOTTOW, 2008).

André Vesalio (1514-1564) quebrou o tabu teológico e moral de estudar a


anatomia humana por meio de cadáver para refutar os ensinamentos de
Galeno (129-199), que acreditava que a dissecção de porcos e macacos lhe
daria informações fidedignas sobre a morfologia interna do ser humano. A
dissecção anatômica do cadáver humano somente foi oficialmente
autorizada por Clemente VII, em 1537, uma vez que fazê-lo anteriormente era
considerado um sacrilégio, a menos que se tratasse de um homem e,
possivelmente, de um criminoso. O valor e a certeza do conhecimento
residiam no estudo teológico e não na observação natural, a qual era menos
estimada. Com o auge da pesquisa experimental em animais não-humanos
desde o século XVII – com Harvey, Hales e Hooke –, surgiu também a reflexão
ética mais sistemática, sob a forma da controvérsia entre os vivisseccionistas e
os opositores a essa prática. A controvérsia foi se intensificando até o século
XIX, quando se criaram as primeiras Sociedades de Proteção aos Animais, ao
mesmo tempo em que o campo científico defendia a experimentação em
seres vivos não-humanos, com o apoio de figuras como Virchow e Bérnard
(KOTTOW, 2008).
Um fenômeno característico dessa época foi a autoexperimentação:
Sertürner estuda em si mesmo os efeitos da morfina, Hunter se auto-inocula
material extraído de um cancro luético, Davy inala óxido nitroso para
conhecer suas propriedades, Auzias se vacina com baixas doses de material
sifilítico, e o pitoresco Brown-Séquard menciona em suas palestras que aos 72
anos conseguiu rejuvenescer com auto-administrações de extrato testicular
de porquinho-da-índia e cachorro. Não faltaram críticos argumentando que
colocar o próprio pesquisador em risco era tão inaceitável como lesar outras
pessoas.

Os primeiros vislumbres da participação do paciente em suas decisões clínicas


se deram em 1914, quando se considerou ilícito e punível invadir
cirurgicamente o corpo de uma pessoa sem seu prévio consentimento. Essa
doutrina somente encontrou reforço jurídico com a introdução, em 1957, da
expressão “consentimento informado” para situações clínicas, o que já havia
ocorrido dez anos antes nas pesquisas envolvendo seres humanos. Os estudos
com humanos foram praticados com crescente assiduidade, mas os
pesquisadores não se sentiam obrigados a realizar uma reflexão ética
específica para sua atividade (KOTTOW, 2008).

O que foi dito até aqui não se contradiz com o surgimento visível e explícito de
uma preocupação ética com a pesquisa envolvendo seres humanos a partir
dos julgamentos de Nurembergue. Nessa ocasião, foram julgados criminosos
da Segunda Guerra Mundial, entre os quais se encontravam alguns médicos
que tinham protagonizado ou participado de torturas disfarçadas de
pesquisa. Hans-Martin Sass (1983 apud KOTTOW, 2008) apresenta situações
ainda anteriores à guerra, como a de uma circular emitida pelo Ministério da
Saúde alemão em 1931, um documento que regulamentava, de forma muito
ávida e contemporânea, as “novas terapias e experimentação humana”,
abordando a vontade do participante, a diferença entre ensaios terapêuticos
e não-terapêuticos e a responsabilidade do médico como pesquisador e
como terapeuta. O esquecimento cultural e legal no qual recaiu essa norma
do Terceiro Reich contrasta penosamente com outra publicação da época,
que introduziu com sucesso o conceito de “vidas indignas de serem vividas” e
o tornou a base do genocídio, dos campos de concentração e das torturas
médicas que caracterizaram esse período (BINDING et al. 1920 apud KOTTOW,
2008).
Figura 4. Julgamento de Nurembergue. À frente, de cima para baixo:
Hermann Göring, Rudolf Heß, Joachim von Ribbentrop, Wilhelm Keitel. Atrás,
de cima para baixo: Karl Dönitz, Erich Raeder, Baldur von Schirach, Fritz
Sauckel (Fonte: Work of the United States Government - Esta mídia está
disponível no acervo do

National Archives and Records Administration, catalogada sob o identificador


ARC (National Archives Identifier) 540128. Domínio público,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=182386).

A publicação que mais teve impacto no período imediatamente após a


guerra foi um livro elaborado por Alexander Mitscherlich e Fred Mielke (1978).
A obra documenta e comenta os julgamentos de Nurembergue a que foram
submetidos os médicos que tinham sacrificado vidas humanas para conhecer
os limites de tolerância a condições extremas, como hipotermia, déficit de
oxigênio e injeção massiva de germes patogênicos. Em uma afirmação cuja
força reside precisamente em sua tautologia, Andrew Conway Ivy denominou
os experimentos criminosos de crimes. Como especialista participante dos
julgamentos dos médicos nazistas, Ivy (1977 apud KOTTOW, 2008) deixou-se
envolver em uma discussão na qual os crimes médicos tentavam ser
justificados, senão perdoados, como manifestações de uma ética
excepcional que vigorava em tempos de guerra. Essa intromissão de
argumentos éticos em situações de criminalidade e genocídio cobraria seus
perniciosos dividendos em princípios do século XX, quando proliferaram as
análises bioéticas em favor de participações médicas em assuntos militares e
de torturas (Kottow 2006 apud KOTTOW, 2008).
Dos horrores revelados nesses julgamentos nasceu o Código de Nurembergue,
que também representa uma ruptura histórica. Ainda que esse documento
tenha sido engatilhado pelos acontecimentos desvelados, não se refere a
eles, mas à conduta que um pesquisador científico deve seguir. É uma
demonstração de sabedoria que esse primeiro código de ética em pesquisa
tenha evitado aludir a situações altamente anômalas e preferido se
concentrar em normas éticas gerais e válidas para toda pesquisa. Ainda
assim, não deixa de chamar a atenção o fato de um julgamento de
criminosos de guerra ter inspirado um código de ética em pesquisa (KOTTOW,
2008).

Os notáveis progressos da medicina na segunda metade do século XX


repercutiram indiretamente no aumento do número de processos
apresentados nos tribunais. Lamentavelmente, os abusos na pesquisa
biomédica realizados pelo regime nazista e de forma menos ostensiva e em
número inferior em outros países, levantaram suspeitas sobre a confiabilidade
e retidão de alguns dos profissionais da medicina. O recurso à ética e à justiça
tornou-se, pois, uma necessidade premente. Uma corajosa denúncia dessa
triste realidade é o artigo de Henry K. Beecher “Ethics and Clinical Research” e
o livro de M. H. Pappworth, Human guinea piggs: experimentation in man
(CLOTET, 2003).

O Relatório Belmont introduz intencionalmente a linguagem dos princípios


éticos ao exigir que toda pesquisa seja respeitosa com as pessoas, benéfica
para a sociedade e equânime em seu balanço entre riscos e benefícios.
Desde o começo, lamentou-se a ausência de um quarto princípio que
incorporasse a dimensão comunitária, desencadeando um debate de duas
faces que ainda perdura (Childress 2000 apud KOTTOW, 2008).

O Juramento de Hipócrates (Ética Médica Hipocrática) balizou os aspectos


éticos da prática médica por mais de 2.500 anos; ele enfatiza os aspectos de
beneficência, não-maleficência e confidencialidade, mas não considera o
respeito à autonomia do paciente. O Código de Nuremberg é um marco na
história da humanidade e, possivelmente, o documento mais importante na
história da ética em pesquisa em seres humanos. Foi o primeiro a assegurar os
direitos dos sujeitos da pesquisa, enfatizando a necessidade e a qualidade do
consentimento do indivíduo pesquisado (ALVES; TUBINO, 2006).

Em 1964, a Associação Médica Mundial (World Medical Association) aprovou


uma codificação de maior abrangência que a de Nuremberg – a Declaração
de Helsinque. Embora sem status jurídico, é um código de conduta para
investigações médicas reconhecido internacionalmente. A Declaração de
Helsinque já foi objeto de cinco revisões, a última em outubro de 2000, e nela
são consagrados o princípio do consentimento informado por parte dos
sujeitos da pesquisa e a prevalência da beneficência do indivíduo sobre o
bem comum ou da ciência. Também passa a ser obrigatório que os projetos
sejam aprovados por uma comissão de ética independente (ALVES; TUBINO,
2006).
Os fundamentos da teoria do consentimento informado estão contidos de
modo implícito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). “Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Estão
dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros com
espírito de fraternidade” (Art. 1º). “Todos têm direito à vida, liberdade e
segurança pessoal.” Art. 3º). “Ninguém será submetido a tortura ou a punição
cruel, desumana ou degradante.” (Art. 5º). O Código de Nüremberg (1947)
fala no “consentimento voluntário”. A Declaração de Helsinki (1964), revisada
na 41ª Assembleia Médica Mundial, Hong Kong (1989), usa “consentimento
informado”. Referências ao mesmo termo podem ser encontradas no Belmont
Report (1978) e nos códigos deontológicos e nos códigos de ética médica das
diferentes nações. Uma exposição adequada sobre o mesmo tema está
contida nas Proposed International Guidelines for Biomedical Research
Involving Human Subjects

(1982), traduzidas ao português e publicadas no Brasil sob o título Diretrizes


Internacionais Propostas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos (1985).
16 Uma nova edição aperfeiçoada dessas últimas são as International Ethical
Guidelines for Biomedical Research Involving Human Subjects (1993). No Brasil,
as Normas de Pesquisa em Saúde (1988), estabelecidas pelo Conselho
Nacional de Saúde, falam no “consentimento do indivíduo objeto da
pesquisa ou seu representante legal” (Art. 5º, V) e no “consentimento pós-
informação” (Art.
11) (CLOTET, 2003).
Entretanto, as primeiras normas governamentais para a pesquisa em seres
humanos foram estabelecidas pela Resolução n.º 1 de 18 de junho de 1988 do
Conselho Nacional de Saúde (CNS)1. Esse documento abordou aspectos
éticos das pesquisas, de biossegurança e de vigilância sanitária. Em 1995, foi
proposta uma revisão da Resolução 1/88 e constituído um grupo de trabalho
(ALVES; TUBINO, 2006).

Foram consultadas cerca de 30.000 pessoas e elaborada uma nova


resolução, cuja versão preliminar foi aprovada no I Congresso Brasileiro de
Bioética, realizado em São Paulo em julho de 1996. Atualmente, os aspectos
éticos das atividades de pesquisa em seres humanos no Brasil são regulados
pela Resolução CNS n.º 196/962 (Diretrizes e Normas de Pesquisas em Seres
Humanos) de outubro de 1996 e pelas resoluções complementares posteriores.
Foi criada a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e os Comitês
de Ética em Pesquisa (CEPs – Figura 5), que têm a função precípua de
“garantir e resguardar a integridade e os direitos dos voluntários participantes
nas pesquisas” (ALVES; TUBINO, 2006).

1
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/Reso01.doc
2
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html
Os CEPs terão sempre caráter multi e transdisciplinar, não devendo haver mais
que metade de seus membros pertencentes à mesma categoria profissional,
participando pessoas dos dois sexos. Sua constituição deverá incluir a
participação de profissionais da área de saúde, das ciências exatas, sociais e
humanas, incluindo, por exemplo, juristas, teólogos, sociólogos, filósofos,
bioeticistas e, pelo menos, um membro da sociedade representando os
usuários da instituição. É importante ressaltar que é assegurado aos CEPs
independência na tomada de decisões e que seus membros não podem
sofrer qualquer tipo de pressão por parte dos superiores hierárquicos. Todas as
pesquisas em seres humanos, no Brasil, deverão ser submetidas à apreciação
de um Comitê de Ética em Pesquisa (ALVES; TUBINO, 2006).

Figura 5. Atualmente, existem > de 800 CEP ligados a instituições de pesquisa


no País (Fonte: http://www.saocarlos.usp.br/o-que-voce-precisa-saber-antes-
defazer-uma-pesquisa-com-seres-humanos/).

Referências

ALVES, Elaine; TUBINO, Paulo. Ética na pesquisa em seres humanos. Rev Med
Fameplac, v. 1, p. 25-36, 2006.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
CESAU. “Democracia e Saúde: Saúde como Direito e Consolidação e
Financiamento do SUS”. 2019. Disponível em:
http://www.cesau.ce.gov.br/index.php/conferencias/category/40-
8oces?download=480%3Adocumentoorientador8ces250219. Acessado em: 07
de julho de 2021.

CLOTET, J. Bioética: uma aproximação – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.


FERNANDES, B.G. Curso de Direito Constitucional - 9. ed. rev. ampl. E atual. -
Salvador. JusPOOIVM, 2017.

KOTTOW, Miguel. História da ética em pesquisa com seres humanos. Revista


Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 2, 2008.

L8080. LEI Nº 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990. Dispõe sobre as condições


para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

Material de apoio

https://www.youtube.com/watch?v=zZAHdF0fNps

https://www.youtube.com/watch?v=qDYdc_7eHRQ

https://www.youtube.com/watch?v=nw2nGxJpVDg

https://www.youtube.com/watch?v=uApu0Eg1brY

https://www.youtube.com/watch?v=jgnzObbfy-c

https://www.youtube.com/watch?v=1DeW04it9xU

L8080. -
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm#:~:text=L8080&text=LEI%20
N%C2%BA%208.080%2C%20DE%2019%20DE%20SETEMBRO%20DE%201
990.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20condi%C3%A7%C3%B5es%20
para,correspondentes%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias

CF 88 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Você também pode gostar