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Miguel Prata Roque

MANUAL
DE GOVERNAÇÃO
ADMINISTRATIVA

2019
1
2
ÍNDICE

INTRODUÇÃO
O que é a Governação Administrativa

PARTE I
Conceito, Fundamento e Objeto da Governação (“Governance”) Administrativa

CAPÍTULO I
Delimitação do conceito

SECÇÃO I
Distinção entre governação e conceitos afins: governo, governabilidade e governança

1. A polissemia do conceito
2. Governo em sentido orgânico
3. Governo em sentido funcional
4. Governabilidade
5. Governança
6. Sentido pejorativo de governança
7. Governação enquanto função executiva
8. Governação enquanto função administrativa

SECÇÃO II
A evolução histórica do conceito de governação: da gestão de tipo empresarial à
“governance”

9. A crise do Estado Social


10. As reformas da década de 1980
11. A “New Public Management”
12. O fracasso da “New Public Management”
14. A “governance” como reação de segunda vaga
14. A “governance” como instrumento programático
15. O domínio científico e técnico

3
SECÇÃO III
O sentido atual de governação administrativa

16. A conceção institucionalista


17. A conceção endoestruturalista
18. A conceção autogestionária
19. A conceção participativa
20. Adoção de um conceito funcional de governação

CAPÍTULO II
Fundamentos da governação

SECÇÃO I
A gestão de recursos públicos

21. Avaliação da suficiência dos recursos públicos


22. Tipologia de recursos públicos
23. Gestão de recursos públicos
24. O tempo das decisões de gestão
25. Tecnologia aberta e condicionamento futuro

SECÇÃO II
O princípio da maximização da felicidade

26. O progresso como condição do sucesso governativo


27. Critérios econométricos quantitativos e produto interno bruto (PIB)
28. O estado estacionário: John Stuart Mill
29. O retrocesso temporário
30. A felicidade como bem jurídico
31. A medição da felicidade
32. A governação como instrumento de maximização da felicidade

SECÇÃO III

4
O princípio do equilíbrio intergeracional

33. A proliferação de necessidades coletivas


34. O esgotamento dos recursos públicos
35. A gestão da escassez
36. A sustentabilidade das decisões governativas
37. Em especial, a sustentabilidade ambiental
38. Os tipos de equilíbrio intergeracional
39. O equilíbrio intergeracional

SECÇÃO IV
O princípio da boa administração

40. Relação entre meios usados e utilidades obtidas


41. Noção de eficácia
42. Noção de eficiência
43. Noção de economicidade
44. A natureza económica do conceito de boa administração
45. A natureza jurídica do conceito de boa administração
46. O (res)surgimento da boa administração num contexto de escassez
47. Subsidiariedade face a outros princípios gerais
48. A dificuldade de controlo jurisdicional

SECÇÃO V
O princípio da simplificação

§ 49. Simplificar a governação


§ 50. Distinção face a conceitos afins
§ 51. A dimensão normativa: em especial, a previsibilidade
§ 52. A dimensão orgânica: em especial, a cooperação
§ 53. A dimensão procedimental: em especial, a desburocratização
§ 54. A dimensão prestacional: em especial, a celeridade
§ 55. Risco de conflito com direitos e garantias dos administrados
§ 56. Controlo político

5
§ 57. Controlo jurisdicional (remissão)

SECÇÃO VI
O princípio da colaboração

§ 58. Colaboração: um conceito plurissignificativo


§ 59. Distinção face à mera participação
§ 60. Colaboração intra-administrativa
§ 61. Colaboração interadministrativa
§ 62. Colaboração público-privada
§ 63. O funcionamento em rede
§ 64. A escolha dos interlocutores
§ 65. O risco de inércia
§ 66. O risco de favorecimento setorial

SECÇÃO VII
O princípio da monitorização

§ 67. A urgência da monitorização


§ 68. Os custos políticos da monitorização
§ 69. O conceito de avaliação de impacto
§ 70. Avaliação prévia vs. avaliação subsequente
§ 71. Avaliação concentrada vs. avaliação desconcentrada
§ 72. Avaliação quantitativa vs. avaliação qualitativa
§ 73. Avaliação interna vs. avaliação externa
§ 74. A participação dos “stakeholders”
§ 75. A carência de recursos para monitorização
§ 76. Avaliação de custos, encargos e ónus
§ 77. Avaliação de benefícios

CAPÍTULO III
Objeto da governação

SECÇÃO I

6
Tipos de atuação

§ 78. Atuação política


§ 79. Atuação administrativa
§ 80. Atuação jurisdicional
§ 81. Atuação europeia
§ 82. Atuação transnacional

SECÇÃO II
Modos de atuação

§ 83. Desmaterialização
§ 84. Desconcentração
§ 85. Delegação de competências
§ 86. Transferência legal de competências
§ 87. Transferência contratual de competências
§ 88. Descentralização
§ 89. Privatização de funções e de serviços
§ 90. Colaboração público-privada
§ 91. Integração orgânica de particulares

SECÇÃO III
Instrumentos de atuação

§ 92. Departamentos ministeriais


§ 93. Serviços partilhados
§ 94. Estruturas de missão
§ 95. Entidades de gestão de fundos
§ 96. Entidades administrativas independentes

PARTE II
Modelos de Governação Administrativa

CAPÍTULO I - Perspetiva comparada

7
§ 98. A influência dos sistemas políticos
§ 99. O modelo francês de administração executiva de pendor objetivista
§ 100. O modelo alemão de administração executiva de pendor subjetivista
§ 101. O modelo de administração judiciária
§ 102. O modelo norteamericano de presidencialismo com agências independentes
§ 103. O modelo chinês de centralismo estatizante
§ 104. O modelo islâmico de Estado confessional

CAPÍTULO II
Tipologia de modelos

§ 105. Modelo libertário – “A mão invisível”


§ 106. Modelo totalitário – “O punho de ferro”
§ 107. Modelo participativo – “O aceno de mão”
§ 108. Modelo colaborativo – “O aperto de mão”

CAPÍTULO III
A Emergência da Governação Global

§ 109. A globalização enquanto fenómeno social, económico e cultural


§ 110. Deslocalização, desregulação e “race-to-the-bottom”
§ 111. Os paraísos administrativos: fraude à lei e fuga à regulação administrativa
§ 112. A inadequação dos modelos de governação de âmbito estadual
§ 113. O défice democrático da governação global
§ 114. A reforma do modelo de governação global
§ 115. Pressupostos de governação global (I): participação
§ 116. Pressupostos de governação global (II): prestação de contas (“accountability”)
§ 117. Pressupostos de governação global (III): impugnabilidade

PARTE III
Modernização Administrativa, Automação e Tecnologia

CAPÍTULO I

8
Modalidades de modernização administrativa

§ 118. Modernização substantiva


§ 119. Modernização orgânica
§ 120. Modernização funcional
§ 121. Modernização procedimental
§ 122. Modernização processual

CAPÍTULO II
Instrumentos e modelos de reorganização administrativa

§ 123. Racionalização de recursos humanos


§ 124. Racionalização de infraestruturas e de serviços públicos
§ 125. Racionalização de recursos financeiros
§ 126. Modelos de reorganização administrativa
§ 127. Extinção e fusão de serviços
§ 128. Estruturas de tipo hierarquizado
§ 129. Estruturas de tipo colaborativo
§ 130. Estruturas nucleares
§ 131. Estruturas multidisciplinares

CAPÍTULO III
Tecnologia, automatização e administração eletrónica

§ 132. O uso de meios tecnológicos e científicos como instrumento de modernização


§ 133. Tecnocracia e discricionariedade técnica: controlo político e jurisdicional
§ 134. Contratação pública e ponderação de objetivos de modernização tecnológica e
científica
§ 135. Readaptação tecnológica dos serviços públicos
§ 136. Readaptação tecnológica do procedimento
§ 137. Readaptação tecnológica dos métodos de diálogo e da participação dos particulares
§ 138. A automatização e a formação da vontade administrativa
§ 139. A automatização e a comunicação da vontade administrativa

9
§ 140. Os primórdios da regulação jurídica das atuações eletrónicas: o Decreto-Lei n.º
335/99
§ 141. A Reforma do CPA/2015 e a administração eletrónica
§ 142. O regime especial de notificações eletrónicas associadas à morada digital única: o
Decreto-Lei n.º 93/2017
§ 143. O atendimento preferencial por via digital: o Decreto-Lei n.º 74/2014
§ 144. A chave móvel digital
§ 145. O Sistema de Certificação de Habilitações Profissionais

10
PARTE I
CONCEITO, FUNDAMENTO E OBJETO DA
GOVERNAÇÃO (“GOVERNANCE”) ADMINISTRATIVA

CAPÍTULO I
DELIMITAÇÃO DO CONCEITO

SECÇÃO I
DISTINÇÃO ENTRE GOVERNAÇÃO E CONCEITOS AFINS:
GOVERNO, GOVERNABILIDADE E GOVERNANÇA

1. A polissemia do conceito - O conceito de “governação” (ou de “governance”)


administrativa abrange uma multiplicidade de potenciais objetos de análise juscientífica.
O saber científico que a ela se dedica – que se situa entre o Direito Administrativo, a
Gestão e a Ciência da Administração Pública – tem vindo a ser associado ao uso de
terminologia variada, que visa transpor para o ordenamento jurídico português o conceito
global(ista) de “governance”. Conforme melhor infra se demonstrará1, a própria
terminologia “(administrative) governance” encerra, em si mesma, uma novidade do
ponto de vista da Ciência da Administração Pública, pois pressupõe um modo inovador,
mais colaborativo e paritário, de exercício da função administrativa2.
Termos como “governo”, “governança”, “administração participativa”,
“administração colaborativa” ou “governação” têm sido, frequentemente, empregues para
traduzir este subramo do saber científico, que se dedica ao estudo dos processos, métodos
e estratégias de planeamento, de gestão, de modernização, de monitorização, de avaliação
e de participação dos administrados nos serviços e infraestruturas encarregues da
prossecução da função administrativa.

2. Governo em sentido orgânico - Não raras vezes, o termo “governo” é usado


enquanto sucedâneo de “governance”. Por exemplo, como “governo administrativo”,
como “governo da administração pública”3, num sentido mais amplo, como “governo das

1
Cfr. § # do presente Manual.
2
MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, Oxford University Press, Oxford, 2012, p. 5.
3
PEDRO COSTA GONÇALVES (Org.), O Governo da Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2018.

11
organizações”4 ou mesmo, numa dimensão jusprivatista, como “governo das
sociedades”5. Porém, na medida em que o mesmo seja empregue em sentido orgânico –
isto é, enquanto denominação do órgão encarregue de determinada função de gestão e de
decisão (e, portanto, de governo)6 –, o mesmo não serve para caraterizar a atividade que
será objeto do presente estudo. Governo, aqui empregue enquanto órgão de soberania do
Estado português – ou enquanto órgão de gestão e de decisão de qualquer outra pessoa
coletiva pública –, corresponde a uma realidade institucionalizada e estática, que não se
revela apta para caraterizar a noção dinâmica de “governance” (administrativa).

3. Governo em sentido funcional - Mais próximo da significância própria da


“governance” (administrativa), encontra-se o termo “governo”, quando considerado na
sua estrita dimensão funcional. Governo corresponderia, assim, à ação de governar. Não
se acolhe, porém, esta terminologia por duas razões. Em primeiro lugar, porque correria
o risco de associar, em excesso, a ideia de “governance” (administrativa) a uma atividade
exclusivamente prosseguida por via de entidades jurídico-públicas, pois o conceito social
de “governar” permanece cativo da ideia de exercício de poderes de supremacia por parte
de autoridade pública. Em segundo lugar, porque aumentaria a probabilidade de confusão
entre o órgão “Governo” e a atividade de governação de infraestruturas e de serviços
administrativos.

4. Governabilidade - Associado a uma dimensão qualitativa7 do ato de governar,


surge o termo “governabilidade”. O mesmo corresponde a uma suscetibilidade ou
potencialidade de bem governar8. E implica, invariavelmente, a análise da ocorrência de

4
PAULO CÂMARA (Org.), O Governo das Organizações: A Vocação Universal do Corporate Governance,
Almedina, Coimbra, 2011.
5
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Do governo das sociedades: a flexibilização da dogmática continental, in
«Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos: Homenagem da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa», Almedina, Coimbra, 2007, pp. 91-103; ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Manual de Governo das
Sociedades, Almedina, Coimbra, 2018.
6
Assim, ver MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., p. 2-3; JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos
de los conceptos de gobernabilidad y gobernanza (una manera de diferenciarlos), in «Gobernabilidad y
Gobernanza – En los Albores del Siglo XXI y Reflexiones sobre el Mexico Contemporáneo» (Org. Bertha
Lerner), Instituto de Administración Pública del Estado de Mexico, Mexico, 2012, pp. 220-222.
7
ALCINDO GONÇALVES, O conceito de governança, in «XV Congresso Nacional do CONPEDI/UEA -
Manaus: Anais de Congresso», 2006; pp. 2-3; FRANCISCO GARCÍA PÉREZ, Gobernanza, gobernalibilidad,
gobernación y gobierno, in «La Opinión – A Coruña», 29/04/2011, disponível in
https://www.laopinioncoruna.es/opinion/2011/04/29/gobernanza-gobernabilidad-gobernacion-
gobierno/490808.html; JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos de los conceptos de gobernabilidad y gobernanza (una
manera de diferenciarlos), cit., pp. 220 e 222-223.
8
JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos de los conceptos de gobernabilidad y gobernanza (una manera de
diferenciarlos), cit., p. 220.

12
determinadas condições, estruturais e conjunturais9, que permitem aos atores políticos
exercer a função administrativa de modo a satisfazer, em simultâneo, os respetivos
programas de governo e os destinatários das suas políticas públicas. Tendo em conta essa
dimensão qualitativa da noção de “governabilidade”, esta afasta-se no conceito neutro de
“governação” (ou de “governance”), que pretende antes traduzir o conjunto de processos,
métodos e estratégias necessários ao desempenho de quem governa10.

5. Governança - São inúmeros os autores – em especial, os de nacionalidade


brasileira11 – que empregam o termo “governança” como sinónimo direto da expressão
inglesa “governance”. Com efeito, este vocábulo demonstra uma inegável aptidão para
traduzir e caraterizar uma nova realidade jurídica, atenta a sua aparente novidade
juscientífica e o seu descomprometimento terminológico com objetos de estudo
anteriores. “Governança” traduz, aliás, uma ideia de movimento, contínuo e sucessivo,
que se prolonga no tempo12. E traduz ainda uma atuação administrativa informal, mais
centrada na ciência da gestão do que propriamente na mera vinculação a critérios
normativos aos quais obedece o exercício da função administrativa.
Curiosamente, o vocábulo “governança” encontra raízes culturais profundas na
língua portuguesa, não se revelando de criação recente. Já no seu compêndio “Leal
Conselheiro – Livro da Ensinança da Arte de Cavalgar a Toda a Sella”, cuja primeira
edição data de 1438, D. Duarte I, recorre, abundantemente, à expressão “governança”
para designar a arte de agir e decidir com bom-senso13. O uso literário da ideia de
“governança” não fica por aqui. Pela mão de Luís Vaz de Camões, pode ler-se também
na estrofe 136 do Canto III de “Os Lusíadas”, uma referência à trágica vingança de D.
Pedro I, pela morte de Inês de Castro, logo “Que, em tomando do Reino a Governança”14.

9
Sobre alguns indicadores de governabilidade, ver, por todos, ARIEL KLEIMAN, Acercamientos empíricos
al fenómeno de la gobernabilidad, in «Gobernabilidad y Gobernanza – En los Albores del Siglo XXI y
Reflexiones sobre el Mexico Contemporáneo» (Org. Bertha Lerner), Instituto de Administración Pública
del Estado de Mexico, Mexico, 2012, pp. 195-216.
10
Em sentido próximo, ver ALCINDO GONÇALVES, O conceito de governança, cit., pp. 3-4.
11
Por todos, ver ALCINDO GONÇALVES, O conceito de governança, cit.; LEO KISSLER/FRANCISCO G.
HEIDEMANN, Governança Pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e
sociedade?, in «Revista de Administração Pública», volume 40, n.º 3, mai./jun, 2006; ANTÓNIO
GONÇALVES OLIVEIRA (Org.), Gestão e Governança Pública – Aspetos Essenciais, UTFPR, Curitiba, 2016.
12
MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., p. 3; JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos de los
conceptos de gobernabilidad y gobernanza (una manera de diferenciarlos), cit., p. 224.
13
É o que acontece, por exemplo, a pp. 196, 219, 511, 633 e 664. Assim, ver DOM DUARTE, Leal
Conselheiro – Livro da Ensinança da Arte de Cavalgar a Toda a Sella, J.P.Aillaud, Paris, 1842.
14
Rezava assim a estrofe camoniana, que ora se transcreve: “Não correu muito tempo que a vingança /
Não visse Pedro das mortais feridas, / Que, em tomando do Reino a governança, / A tomou dos fugidos
homicidas. / Do outro Pedro cruíssimo os alcança, / Que ambos, imigos das humanas vidas, / O concerto

13
Tanto basta para demonstrar, o usual emprego do vocábulo “governança” para
designar a atividade de governar; isto é, de decidir.

6. Sentido pejorativo de governança – Não se compartilham, portanto, as críticas


de uma (pretensa) derivação linguística, pouco recomendável, do vocábulo, sob
influência do português escrito e falado no Brasil15. Nem essa é, tão pouco, a razão que
justifica o abandono da mesma, enquanto sinónimo de “governance”. Sucede apenas que
a expressão “governança” ainda assume uma significância social pejorativa, enquanto
sinónimo de forma engenhosa, astuciosa, artificiosa, desembaraçada e, até, amadora de
governar. Por vezes, é mesmo associada ao ato de os próprios governantes se governarem,
daí extraindo benefícios indevidos. É, aliás, assim que os dicionários a designam16.
Para além disso, conforme melhor infra se demonstrará17, o conceito de
“governança” já se encontra demasiado comprometido, em termos ideológicos, pois
pressupõe a prevalência de um modelo económico capitalista, de matriz neoliberal. Quem
a usa tem a pretensão de designar uma nova forma de governação, menos assente na
prestação de serviços por parte das instituições públicas e mais centrada na atuação
colaborativa de entidades privadas. Face às exigências da ciência jurídica, recomenda-se,
pois, o uso de uma terminologia neutra.

7. Governação enquanto função executiva - Conclui-se, assim, pela maior


adequação do termo “governação” para designar a atividade de planear, gerir, decidir,
modernizar, monitorizar, avaliar e promover a participação dos envolvidos no exercício
da função administrativa. Concede-se alguma simetria (e até sinonímia) entre
“governação” e “governança”, mas opta-se pelo emprego da primeira, em função das
razões já expostas.
Frisa-se, porém, que, sempre que se utilizar o termo “governação administrativa”,
não se estará a circunscrevê-lo ao exercício da função executiva, por parte do Governo,

fizeram, duro e injusto, / Que com Lépido e Antônio fez Augusto”. Assim, ver LUÍS VAZ DE CAMÕES, Os
Lusíadas, Editora Guerra e Paz, Lisboa, 2016.
15
Com efeito, os linguistas têm vindo a demonstrar que os vocábulos “governação” e “governança” sempre
coexistiram, enquanto variantes corradicais, desde o período do português médio (séculos XIV e XV).
Coexistiram com significados praticamente idênticos, ainda que o segundo apenas tenha mantido o seu uso
corrente no Brasil. Assim, ver GRAÇA MARIA RIO-TORTO, Morfologia lexical no português médio:
variação nos padrões de nominalização, in «Rosae – Linguística Histórica, História da Língua e Outras
Histórias» (org. Tânia Lobo), SciELO Books, Salvador, 2012, pp. 312 e 318-320.
16
Assim, ver o significado de “Governança”, in «Dicionário Porto Editora», Porto, 2003-2018, que a
define como: “2. antiquado, pejorativo – ato ou efeito de governar; governo; governação”.
17
Cfr. § ## do presente Manual.

14
enquanto órgão do Estado dela encarregue. Essa aceção redutora de “governação
administrativa”, que pressupõe a centralização da satisfação das necessidades coletivas
em órgãos, serviços e infraestruturas estaduais, não logra identificar e descrever a ampla
variedade de processos, estratégias e métodos típicos deste ramo das ciências sociais e
humanas.

8. Governação enquanto função administrativa pública - Por conseguinte,


proceder-se-á, de ora em diante, ao estudo da “governação administrativa”, sempre
entendida enquanto atividade indispensável à prossecução de fins públicos, seja esta
assegurada por órgãos estaduais, centrais ou periféricos, seja por outras pessoas coletivas
públicas, nacionais, estrangeiras, internacionais ou transnacionais, seja ainda por pessoas
privadas. A “governação administrativa” traduz um novo modo de encarar o exercício
dos poderes públicos, pois assenta no abandono de um modelo hierárquico e autoritário,
fazendo-o substituir por metodologias promotoras do diálogo, da cooperação e da atuação
em rede18.
Ela abrange não só o exercício de competências formais e institucionalizadas, mas
também de poderes informais. Ela pressupõe redes transnacionais colaborativas e aceita
que a satisfação de necessidades coletivas tanto pode ser obtida através da intervenção
direta de instituições públicas, como de entidades privadas, nacionais, estrangeiras ou
transnacionais. Tendo por pressuposto este enquadramento, evitar-se-á o recurso a
qualquer anglicismo, substituindo a expressão inglesa “governance” administrativa por
“governação administrativa”.

18
MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., pp. 5-6.

15
SECÇÃO II
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE GOVERNAÇÃO:
DA GESTÃO DE TIPO EMPRESARIAL À “GOVERNANCE”

9. A crise do Estado Social – Com o advento da industrialização e da


mecanização, a crença no virtuosismo da ciência, da tecnologia e do saber técnico
conheceu um período áureo. O surgimento do Estado Social (ou Estado-Providência), no
início do século XX, e a necessidade de intervenção pública na reconstrução subsequente
ao fim da 2ª Guerra Mundial criaram a ilusão de que só os aparelhos administrativos
estatais eram capazes de assegurar uma boa governação. Desse modo, lograr-se-ia limitar
qualquer sectarismo dos agentes políticos democraticamente eleitos. Surge, então, a
crença na “burocracia” estadual. Isto é, num corpo especializado de peritos e técnicos –
supostamente neutros face aos sucessivos titulares de órgãos políticos –, que se manteria
fiel e apenas ao serviço do bem comum e do interesse público19.
Sucede porém que, durante a década de 1970, emergem três fatores que
contribuem para a descrença no virtuosismo da intervenção estadual e do seu aparelho
burocrático:
⎯ Primeiro: As crises petrolíferas (de 1973/74 e de 1979/80), abertas
pela subida exponencial do preço do petróleo20;
⎯ Segundo: O incremento excessivo das despesas públicas, em grande
parte provocada pela hipertrofia de um aparelho administrativo
indispensável à prestação de crescentes e novos serviços públicos21;
⎯ Terceiro: A crise orçamental, resultante da consciencialização da
necessidade de subida da carga fiscal, de modo a suportar o aumento
de despesas públicas22.

19
Esta conceção é bem ilustrada pelo pensamento de WOODROW WILSON, The study of administration, in
«Political Science Quarterly», Vol. 2, 2 (1887), pp. 209-210 e 216-217. Sobre esta fase de prevalência do
modelo burocrático, ver MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp. 37-40; IDEM, Governance –
A Very Short Introduction, cit., p. 57.
20
FRANZ ROJAS ORTUSTE, Gobernabilidad y Gobernanza, Aneas, 2010, p. 16.
21
CHRISTOPHER HOOD, The New Public Management in the 1980´s: variations on a theme, in «Accounting,
Organizations and Society», Vol. 20, 3 (1995), p. 103; JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos de los conceptos de
gobernabilidad y gobernanza (una manera de diferenciarlos), cit., p. 229.
22
Note-se que a crise orçamental – em grande parte decorrente da perda de receitas fiscais – não parou de
acentuar-se, ao longo das últimas décadas. Em grande medida, isso decorre do fenómeno da globalização e
da porosidade dos ordenamentos jurídicos nacionais, que se revelam incapazes de tributar património e
rendimentos auferidos por particulares com capacidade de criação de estruturas transnacionais de
planeamento (ou, em alguns casos, de elisão) fiscal, muitas vezes, através da manipulação fraudulenta dos

16
Em suma, o último quarto do século XX foi pautado pela constatação da (aparente)
falência do Estado Social e da incapacidade de este fazer face à emergente
transnacionalização, globalização e desmaterialização da economia e das relações
jurídicas23.

10. As reformas da década de 1980 - Face àquelas circunstâncias históricas,


alguns governos nacionais – com particular destaque para os governos conservadores de
Margareth Tatcher, no Reino Unido, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América
– encetaram, com largo apoio do eleitorado, a uma profunda reforma do setor público24.
As referidas reformas visavam transformar o setor público, sujeitando-o aos métodos de
gestão empresarial próprios do setor privado. Em traços largos, essas reformas assentaram
em três vetores:
(a) Gestão empresarial do setor público;
b) Privatização do exercício de funções e de infraestruturas públicas;
c) Abertura ao mercado de setores económicos vedados, em regime concorrencial.

Esta corrente privatizadora e neoliberal foi reforçada pela progressiva adesão de


novos Estados-membros à União Europeia (então, CEE – Comunidade Económica
Europeia). Isto porque o respetivo adquirido comunitário (“acquis communautaire”)
incluía o dever de implementação das liberdades fundamentais de circulação e, em
especial, o fim dos monopólios estaduais, como resultado do direito ao livre
estabelecimento por parte de agentes económicos de outros países. Mais tarde e
sucessivamente, essas reformas foram-se disseminando pelos países em vias de
desenvolvimento – em grande medida, por força de programas de assistência económico-

elementos de conexão das situações jurídicas potencialmente tributáveis. Sobre este fenómeno, ver JÜRGEN
HABERMAS, Die postnationale Konstellation – Politische Essays, Suhrkamp, 2005, pp. 106-107.
23
MICHEL CROZIER/SAMUEL P. HUNTINGTON/JOJI WATANUKI, The Crisis Of Democracy – Report on the
Governability of Democracies to the Trilateral Commission, New York University Press, 1975; NORBERTO
BOBBIO, La crisis de la democracia y la lección de los clássicos, Editoral Ariel, 1985; FRANZ ROJAS
ORTUSTE, Gobernabilidad y Gobernanza, cit., p. 51; MARK BEVIR, Governance – A Very Short
Introduction, cit., p. 16.
24
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, in «Public Administration», Vol. 69, Spring
(1991), pp. 6-7; IDEM, The New Public Management in the 1980´s: variations on a theme, cit., p. 100;
CHRISTOPHER POLLITT, Clarifying Convergence – Striking similarities and durable differences in public
management reform, in «Public Management Review», Volume 4, 1 (2002), p. 471; MARK BEVIR, Key
Concepts in Governance, Sage, Los Angeles, 2009, pp. 9-10 e p. 142-143; IDEM, Governance – A Very
Short Introduction, cit., pp. 58-60; JOAQUIM RUBENS FONTES FILHO, Da Nova Gestão Pública à Nova
Governança Pública: as novas exigências de profissionalização da função pública, in «XIX Congreso
Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública», Equador, Quito, 11-
14 nov. 2014, p. 3.

17
financeira desenhados pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)25, bem
como em países próximos ao Reino Unido e aos Estados Unidos da América, como
Austrália, Canadá, Chile e Nova Zelândia.

11. A “New Public Management” - O substrato ideológico (privatizador e


neoliberal) desta corrente de reformas do setor público traduziu-se na metodologia que
viria a ser crismada de “New Public Management (NPM)”26. Esta agrega um conjunto de
práticas inovadoras que visavam adequar a organização e o funcionamento do setor
público às estratégias de gestão empresarial e de privatização do exercício da função
administrativa, com o propósito de replicar os ganhos de produtividade obtidos no setor
privado27.
Teoricamente, a “New Public Management” visava substituir o modelo
burocratizado, assente numa lógica de autoridade pública28, por um modelo empresarial,
assente numa lógica de competitividade entre agentes económicos29. Como tal, esta
pressupunha a abertura da prestação de serviços públicos aos mercados, visando o fim
dos monopólios estatais. Assentava ainda na ideia de que o Estado (e os demais poderes
públicos) deveriam limitar a sua intervenção à definição de políticas públicas (“public

25
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., pp. 3-4; IDEM, The New Public
Management in the 1980´s: variations on a theme, cit., p. 93; MARK BEVIR, Key Concepts in Governance,
cit., p. 141.
26
Para uma análise mais desenvolvida sobre os principais traços da NPM, ver, entre muitos outros,
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., pp. 3-19; IDEM, The New Public
Management in the 1980´s: variations on a theme, cit., pp. 93-109; CHRISTOPHER POLLITT, Clarifying
Convergence – Striking similarities and durable differences in public management reform, cit., pp. 471-
492; IDEM, The New Public Management: An Overview of Its Current Status, in «Administratie si
Management Public», 8 (2007), pp. 110-115; MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp.141-144;
JOAQUIM RUBENS FONTES FILHO, Da Nova Gestão Pública à Nova Governança Pública: as novas
exigências de profissionalização da função pública, cit., pp. 3-4; PATRICK DUNLEAVY/HELEN
MARGETTS/SIMON BASTOW/JANE TINKLER, New Public Management Is Dead – Long Live Digital-Era
Governance, in «Journal of Public Administration Research and Theory», 16 (2005), pp. 469-478; JANINE
O’FLYNN, From New Public Management to Public Value: Paradigmatic Change and Managerial
Implications, in «Australian Journal of Public Administration», vol. 66, 3 (2007), pp. 353-366; S. VAN DE
WALLE, S./G. HAMMERSCHMID, The impact of the new public management: Challenges for coordination
and cohesion in European public sectors, in «Halduskultuur – Administrative Culture», 2 (2011), pp. 190-
209; NAZMUL AHSAN KALIMULLAH/KABIR M. ASHRAF ALAM/M. M. ASHADUZZAMAN NOUR, New Public
Management: Emergence and Principles, in «Bangladesh University of Professionals Journal», Volume 1,
1 (2012), pp. 1-22.
27
CHRISTOPHER HOOD, The New Public Management in the 1980´s: variations on a theme, cit., p. 56-57;
S. VAN DE WALLE, S./G. HAMMERSCHMID, The impact of the new public management: Challenges for
coordination and cohesion in European public sectors, cit., p. 3; JANINE O’FLYNN, From New Public
Management to Public Value: Paradigmatic Change and Managerial Implications, cit., pp. 354-355.
28
MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., pp. 17-22.
29
Sobre estes diversos modelos, ver os §§ # e # do presente Manual.

18
policy making”) e à monitorização, supervisão e regulação das atividades prosseguidas
por entidades privadas, com vista à satisfação de necessidades coletivas. Caberia, então,
aos agentes económicos privados substituir-se ao Estado, enquanto prestador de serviços
de interesse geral30.

12. O fracasso da “New Public Management” - Teoricamente, as estratégias


privatizadoras dos defensores da “New Public Management” deveriam ter promovido
poupanças acrescidas, incrementado ganhos de produtividade e aberto vários setores de
atividade económica aos mercados, assim potenciando uma sã competitividade entre os
agentes económicos. Sucede, porém, que os ganhos de produtividade efetivamente
medidos, após privatização de tais serviços públicos, foram muito inferiores aos
prometidos31; com efeito, alguns autores têm-nos estimado em apenas cerca de 3% ao
ano32. Ao contrário das promessas, os resultados da “New Public Management”
traduziram-se antes em:
⎯ Substituição dos anteriores monopólios públicos por novos
monopólios privados;
⎯ Favoritismo na escolha dos prestadores privados e promiscuidade entre
os decisores públicos e os contratados33;
⎯ Proliferação de agentes prestadores de serviços de interesse geral e
incapacidade de controlo democrático dos mesmos34;
⎯ Opacidade e perda de transparência no acesso aos bens e serviços de
interesse público35;
⎯ Surgimento de novos fenómenos de criminalidade económico-
financeira (ex: corrupção, tráfico de influências, gestão danosa,
conflitos de interesses);

30
DAVID OSBORNE/TED GAEBLER, Rethinking Government, Addison-Wesley, 1992; MARK BEVIR, Key
Concepts in Governance, cit., pp. 4-5; IDEM, Governance – A Very Short Introduction, cit., pp. 60-61.
31
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., p. 9; S. VAN DE WALLE, S./G.
HAMMERSCHMID, The impact of the new public management: Challenges for coordination and cohesion in
European public sectors, cit., pp. 8-10; MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., p. 12.
32
MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., p. 12.
33
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., p. 9; JANINE O’FLYNN, From New
Public Management to Public Value: Paradigmatic Change and Managerial Implications, cit., p. 355;
MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., p. 61; PATRICK DUNLEAVY/HELEN
MARGETTS/SIMON BASTOW/JANE TINKLER, New Public Management Is Dead – Long Live Digital-Era
Governance, cit., p. 472.
34
NAZMUL AHSAN KALIMULLAH/KABIR M. ASHRAF ALAM/M. M. ASHADUZZAMAN NOUR, New Public
Management: Emergence and Principles, cit., p. 17.
35
MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., p. 144.

19
⎯ Incremento de funções de regulação e de supervisão pelos poderes
públicos36;
⎯ Aumento das despesas públicas, decorrente da criação de estruturas
administrativas necessárias à regulação e supervisão das atividades dos
agentes privados37;
⎯ Captura dos reguladores pelos regulados;
⎯ Diminuição da qualidade dos serviços prestados ao público38.

Em bom rigor, apesar de, na pureza dos seus conceitos, a “New Public
Management” assentar numa teórica abertura à concorrência e à competitividade sã e leal
entre agentes económicos, esta acabou por redundar num manifesto fracasso. Com ela,
veio antes a criação de novas castas de “empresários”, agora dependentes do setor
público, a blindagem do acesso de novos competidores àquele mercado e a segmentação
dos poderes públicos (outrora centralizados) em várias redes de decisão e de influência.
Assim se impediu a geração de verdadeiras e significativas poupanças públicas. E assim
se logrou transferir a propriedade pública de meios e infraestruturas essenciais às
comunidades, apenas para que os investidores privados deles pudessem extrair e distribuir
dividendos.

13. A “governance” como reação de segunda vaga – O fracasso da fúria


privatizadora dos anos 1980´s e a proliferação de novas redes de decisão e de influência
implicou uma transformação profunda da própria função dos poderes públicos. A
principal consequência da “New Public Management” foi ter desagregado os centros de
poder públicos39, tendo-os distribuído pelo anonimato dos conselhos de administração
das empresas que os substituíram.

36
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., p. 9; PATRICK DUNLEAVY/HELEN
MARGETTS/SIMON BASTOW/JANE TINKLER, New Public Management Is Dead – Long Live Digital-Era
Governance, cit., pp. 476-477.
37
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., p. 9; MARK BEVIR, Key Concepts in
Governance, cit., p. 144; JANINE O’FLYNN, From New Public Management to Public Value: Paradigmatic
Change and Managerial Implications, cit., p. 357~; PATRICK DUNLEAVY/HELEN MARGETTS/SIMON
BASTOW/JANE TINKLER, New Public Management Is Dead – Long Live Digital-Era Governance, cit., 472.
38
PATRICK DUNLEAVY/HELEN MARGETTS/SIMON BASTOW/JANE TINKLER, New Public Management Is
Dead – Long Live Digital-Era Governance, cit., pp. 475-476.
39
CHRISTOPHER HOOD, The New Public Management in the 1980´s: variations on a theme, cit., pp.95-97;
MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., p. 13; IDEM, Governance – A Very Short Introduction,
cit., p. 70; PATRICK DUNLEAVY/HELEN MARGETTS/SIMON BASTOW/JANE TINKLER, New Public
Management Is Dead – Long Live Digital-Era Governance, cit., p. 470; JOAQUIM RUBENS FONTES FILHO,
Da Nova Gestão Pública à Nova Governança Pública: as novas exigências de profissionalização da função

20
Acentuou-se, então, a constatação de que o Estado (e os demais poderes públicos)
já não dispunha(m) dos meios indispensáveis à regulação satisfatória de novos fenómenos
sociais, económicos e culturais. Tudo isto, potenciado pela galopante globalização e
desmaterialização das relações jurídicas, obrigou a um redimensionamento e a uma
reorientação das estruturas administrativas. Passou, então, a dedicar-se maior atenção à
importância da coordenação, da supervisão e da monitorização das atividades dos agentes
económicos privados40. E passou a adotar-se novas estratégias colaborativas, através das
quais a administração pública, procura ganhar a confiança e o contributo dos particulares,
com vista à prossecução de políticas públicas. Atua-se em rede; e não verticalmente.
Atua-se em diálogo; e não autoritariamente.
Durante a década de 1990, emerge, portanto, a consciência de que a nova forma
de “governação administrativa” – tão bem ilustrada pela expressão inglesa “governance”
– assenta numa lógica de parceria entre o setor público e o setor privado41. Passa a imperar
o modelo colaborativo, que substitui, definitivamente, o modelo autoritário. Nenhum
outro vocábulo ilustra tão bem este novo ideário. A ideia de “governação administrativa”
(no sentido de sucedâneo de “governance”) surge, assim, como a tradução perfeita deste
novo modelo de governar: dialogante, colaborativo e participado. Pode mesmo afirmar-
se que a “governance” funciona como uma segunda vaga do movimento de reformas do
setor público42.
Ela é particularmente bem personificada pela chamada “Terceira Via” (ou “Third
Way”) social-democrata e trabalhista43, que procurou conciliar a ideia de criação de valor
económico com a intervenção redistributiva dos poderes públicos, através da promoção

pública, cit., p. 7; S. VAN DE WALLE, S./G. HAMMERSCHMID, The impact of the new public management:
Challenges for coordination and cohesion in European public sectors, cit., pp. 3 e 5.
40
LEO KISSLER/FRANCISCO G. HEIDEMANN, Governança Pública: novo modelo regulatório para as
relações entre Estado, mercado e sociedade?, cit., p. 482.
41
Surge, então, o modelo de parcerias público-privadas (PPP´s) e de “project finance”, através do qual se
procurou – quase sempre sem grande sucesso – um equilíbrio entre a necessidade de obter recursos ou
financiamento privado para obras públicas, infraestruturas e prestação de serviços públicos. Sobre este
modelo, ver, entre outros, LEO KISSLER/FRANCISCO G. HEIDEMANN, Governança Pública: novo modelo
regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade?, cit., pp. 486-490; MARK BEVIR, Key
Concepts of Governance, cit., pp. 160-163; IDEM, Governance – A Very Short Introduction, cit., pp. 68-69;
ALEXANDRA LEITÃO, Lições de Direito dos Contratos Públicos, AAFDL Editora, Lisboa, 2014, pp. 76-85.
42
MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp. 12-13; FRANZ ROJAS ORTUSTE, Gobernabilidad y
Gobernanza, cit., p. 60; JANINE O’FLYNN, From New Public Management to Public Value: Paradigmatic
Change and Managerial Implications, cit., p. 358; JOAQUIM RUBENS FONTES FILHO, Da Nova Gestão
Pública à Nova Governança Pública: as novas exigências de profissionalização da função pública, cit., p.
5; ERIK HANS KLIJN, New Public Management and Governance: a comparison, in «The Oxford Handbook
of Governance» (org. David Levi-Faur), Oxford University Press, 2012, pp. 201-214; FELICITY
MATTHEWS, Governance and State Capacity, in «The Oxford Handbook of Governance» (org. David Levi-
Faur), Oxford University Press, 2012, pp. 284-288.
43
MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., p. 12.

21
da racionalização e da modernização do setor público. De algum modo, ela surge,
também, como uma reação aos excessos privatizadores dos anos 1980´s, em especial, pela
mão de agentes políticos como TONY BLAIR (Reino Unido), BILL CLINTON (Estados
Unidos da América) e GERHARD SCHÖDER (Alemanha).

14. A “governance” como instrumento programático - Nesse sentido, o


surgimento da ideia de “governação administrativa” (isto é, da “governance”) equivale a
um verdadeiro desígnio de modernização e de reestruturação da administração pública.
Ela figura como reação a uma conceção autoritária e incrementalista da administração
pública44, visando não só novas práticas e estratégias na condução da governação pública,
mas constituindo mesmo um novo discurso legitimador.
Os decisores políticos (e os demais dirigentes administrativos) abandonam uma
conceção de governo meramente executor da lei, mediante imposição vertical de decisões
unilateralmente tomadas, para virem de encontro à necessidade de justificação
permanente e quotidiana da ação administrativa. A partir da ideia de “governação
administrativa”, chega-se à constatação de que bem governar é, também, planear, ouvir,
negociar, ponderar interesses conflituantes, modernizar, ser eficaz e eficiente, monitorizar
e avaliar os processos de implementação das decisões45. Pelo que a “governação
administrativa” deixa de ser uma mera arte de implementação da vontade do titular de um
cargo administrativo, para passar a ser um instrumento de eficácia e um discurso de
legitimação do exercício do poder46.

44
CHRISTOPHER HOOD, A public management for all seasons?, cit., pp. 5-6; JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos de
los conceptos de gobernabilidad y gobernanza (una manera de diferenciarlos), cit., p. 239; LEO
KISSLER/FRANCISCO G. HEIDEMANN, Governança Pública: novo modelo regulatório para as relações entre
Estado, mercado e sociedade?, cit., p. 482; JOAQUIM RUBENS FONTES FILHO, Da Nova Gestão Pública à
Nova Governança Pública: as novas exigências de profissionalização da função pública, cit., pp. 7-8.
45
O Relatório “Governance and Development”, do Banco Mundial, reconhece-o expressamente, como
demonstra ALCINDO GONÇALVES, O conceito de governança, cit., p. 1. Frisando esta natureza polifuncional
da noção de “governance”, ver JOSÉ JUAN SÁNCHEZ, Usos de los conceptos de gobernabilidad y
gobernanza (una manera de diferenciarlos), cit., pp.226-228; MARK BEVIR, Governance – A Very Short
Introduction, cit., pp. 1-3.
46
Ao ponto de haver mesmo quem qualifique a “governance” como um fetiche: GUY PETERS, Governance
as political theory, in «The Oxford Handbook of Governance» (org. David Levi-Faur), Oxford University
Press, 2012, p. 18. Notando este cunho ideológico, ver FRANCISCO GARCÍA PÉREZ, Gobernanza,
gobernalibilidad, gobernación y gobierno, cit.; JAN KOIMAN, Governing as Governance, SAGE
Publications, London, 2003, p. #; NAZMUL AHSAN KALIMULLAH/KABIR M. ASHRAF ALAM/M. M.
ASHADUZZAMAN NOUR, New Public Management: Emergence and Principles, cit., pp. 17-18; DAVID LEVI-
FAUR, From “Big Government” to “Big Governance”?, in «The Oxford Handbook of Governance» (org.
David Levi-Faur), Oxford University Press, 2012, pp. 3 e 7-8.

22
15. O domínio científico e técnico - Com a noção de “governação administrativa”
vem igualmente a constatação de que o decisor administrativo precisa de dominar e de
beneficiar dos ensinamentos de outras ciências indispensáveis à boa administração: a
gestão empresarial (e institucional, em sentido mais lato), a gestão de recursos humanos,
a logística e a gestão de infraestruturas, o planeamento estratégico, a sociologia das
organizações, a psicologia, a estatística, a engenharia informática e de sistemas, entre
outras.
Com a emergência de um novo período histórico, denominado de Estado Global,47
os conhecimentos científicos, tecnológicos e técnicos transformam-se em critério de
decisão, muitas das vezes, eximindo e substituindo-se ao critério normativo. Ao longo do
século XXI, tem vindo a consolidar-se um predomínio da tecnocracia e, com ela, dos
critérios técnicos de decisão48. Por conseguinte, a (boa) “governação administrativa”
pressupõe ainda o domínio de pressupostos científicos, tecnológicos, técnicos,
infraestruturais e circunstanciais, o que transforma este ramo do saber numa ciência que
convoca saberes multidisciplinares e perspetivas transversais49, bem mais próximos da
Ciência da Administração do que da tradicional (mera) execução da lei.

47
Sobre este período histórico contemporâneo, por todos, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão
Transnacional do Direito Administrativo – Uma Visão Cosmopolita das Situações Jurídico-
Administrativas, AAFDL Editora, Lisboa, 2014, pp. 199-208.
48
Sobre o problema, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A República Tecnocrática – Reformar os decisores ou
reformar os técnicos?, in «Direito & Política», 6 (2014), 15-29.
49
Assim, ver PEER ZUMBANSEN, Governance: An interdisciplinar perspective, in «The Oxford Handbook
of Governance» (org. David Levi-Faur), Oxford University Press, 2012, pp. 83-92.

23
SECÇÃO III
O SENTIDO ATUAL DE GOVERNAÇÃO ADMINISTRATIVA

16. A conceção institucionalista - O estudo da “governação administrativa” pode


ser encarado como a mera análise da atividade das pessoas coletivas públicas encarregues
da função administrativa. Tal visão reducionista implicaria apenas o estudo das
instituições públicas50 e do seu modo de agir administrativo. “Governação”
corresponderia, assim, apenas ao processo de governo prosseguido por instituições e
poderes públicos. Tal implicaria ignorar fenómenos atuais de exercício da função
administrativa que extravasam a clausura do aparelho estadual 51. Não serve, por si só,
como válido instrumento de aprendizagem.

17. A conceção endoestruturalista - Uma perspetiva endoestruturalista da


“governação administrativa” reconduzir-se-ia apenas ao estudo acerca do modo de
organização interna das pessoas coletivas públicas (e respetivos órgãos, serviços e
departamentos)52. Como tal, prevaleceria a sua dimensão de ramo da Ciência da
Organização Administrativa, ainda que complementada pela análise do modo como a
administração pública exerce o seu poder decisório, através das suas estruturas próprias.
Nessa perspetiva, estudar-se-ia apenas de que modo é que as estratégicas e metodologias
de “governação administrativa” afetariam a organização interna e a respetiva prossecução
de tarefas de interesse público. A monitorização e a avaliação dos ganhos e das
ineficiências (ou “bottlenecks”)53 do agir administrativo surgiriam como principal
propósito desta ciência jurídica54.

50
Sobre a noção de institucionalismo, para efeitos de governação administrativa, ver MARK BEVIR, Key
Concepts of Governance, cit., pp. 110-113; DAVID LEVI-FAUR, From “Big Government” to “Big
Governance”?, cit., p. 8.
51
Salientando a natureza plurisubjetiva da “governação administrativa” (ou “governance”), por esta poder
ser exercida, quer por entidades públicas, quer por entidades privadas, ver MARK BEVIR, Governance – A
Very Short Introduction, cit., pp.6-7.
52
Conforme demonstra a doutrina mais atenta, a “governance” tem mais a ver com o estudo de processos
e metodologias do que com instituições. Assim, ver MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction,
cit., p. 11.
53
Os “bottlenecks” correspondem aos estrangulamentos de um determino sistema organizacional ou
procedimental, que dificultam a obtenção de ganhos de eficácia e de eficiência. Sobre o conceito, ver, por
todos, HERBERT WERLIN, Understanding administrative bottlenecks, in «Public Administration and
Development», volume 11, 3 (1991), pp. 193-206.
54
Sobre os indicadores de boa governação, ver MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp. 96-99.

24
18. A conceção autogestionária - Outras vezes, o conceito de “governação
administrativa” tem sido empregue como sinónimo dos processos de autogestão interna
da administração pública55. Desde a gestão de recursos humanos e avaliação de
desempenho, passando pela conservação e frutificação do património e das infraestruturas
públicas, até à gestão e responsabilidade financeira, focar-nos-íamos no estudo dos
métodos e estratégias de autogoverno da própria administração pública. Em especial, nos
casos de autonomia administrativa e financeira56 – por exemplo, de universidades, de
estruturas de missão, de comissões e agências de gestão de fundos europeus, de entidades
reguladoras e de supervisão, etc. –, a “governação administrativa” surgiria como um
elemento típico do moderno Estado Global, em que as funções e tarefas administrativas
são partilhadas por estruturas intermédias, mas também supraestaduais.

19. A conceção participativa - A constatação da incapacidade do Estado para


lograr satisfazer, por si só, as necessidades coletivas provocou uma proliferação
exponencial de agentes do exercício da função administrativa. A globalização e a
emergência das relações jurídicas transnacionais acentuaram esta dinâmica
descentralizadora disruptiva. Visto desse prisma, o estudo da “governação
administrativa” é, também, o estudo do modo como os poderes públicos encaram, gerem
e fiscalizam as redes (formais e informais) de decisão administrativa57. Como tal,
governar passa a ser, igualmente, promover a participação dos particulares e, até, por
vezes, reconhecer que a pessoa coletiva pública é – ela própria – mera participante em
determinados procedimentos de tomada de decisão. Para que haja (boa) “governação
administrativa”, há que conhecer e dominar, portanto, os procedimentos de decisão
colaborativa, designadamente, através da criação de institutos participativos, que
contribuem para a prossecução do interesse público58.

55
Adotando esta linha de análise, ver, por exemplo, R.A.W. RODHES, Understanding Governance, Open
University Press, Buckingham, 1995, p. 15; BOB JESSOP, The Dynamics of partnership and governance
failure, in «The New Politics of Local Government in Britain» (org. G. Stoker), Oxford University Press,
1999, p. 15.
56
Para maior desenvolvimento, sobre os problemas suscitadas pela organização interna da administração
pública, ver AAVV, Organização Administrativa: Novos Actores, Novos Modelos, Volumes I e II, AAFDL
Editora, Lisboa, 2018.
57
MARK BEVIR, Key Concepts of Governance, cit., pp. 121-123; DAVID LEVI-FAUR, From “Big
Government” to “Big Governance”?, cit., p. 9.
58
Sobre este novo conceito de “governação colaborativa”, ver EVA SØRENSEN, Governance and innovation
in the public sector, in «The Oxford Handbook of Governance» (org. David Levi-Faur), Oxford University
Press, 2012, pp. 222-223. Sobre o tema, ver ainda o § # do presente Manual.

25
20. Adoção de um conceito funcional de governação - Ao longo do presente
Manual, adotar-se-á um conceito funcional de governação administrativa. Assim sendo,
estudar a “governação administrativa” equivale a conhecer e avaliar, criticamente, os
métodos, estratégias e procedimentos indispensáveis ao exercício da função
administrativa. Por conseguinte, o estudo da “governação administrativa” não se
circunscreve à análise das vinculações normativas que balizam o agir administrativo, nem
tão pouco à constatação do modo de organização das estruturas administrativas. Ele
pressupõe, antes, uma visão acerca da própria dinâmica quotidiana do ato de governar.
Ato esse que se assume como ato complexo. Simultaneamente executivo, mas também
prospetivo e, portanto, político. Simultaneamente decisório, mas também planificador59
e, portanto, estruturante. Simultaneamente unilateral, mas também participado e,
portanto, consensual. Enfim, não só como ato de mera execução da vontade política,
expressa na lei (e na Constituição), mas igualmente como ato, constante e permanente, de
avaliação e ponderação das concretas circunstâncias de cada momento histórico, com
vista à boa administração e à prossecução das tarefas de interesse público, reclamadas
pela comunidade jurídica, de acordo com as estruturas e as conjunturas vigentes.

59
MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp. 22-23.

26
CAPÍTULO II
FUNDAMENTOS DA GOVERNAÇÃO

SECÇÃO I
A GESTÃO DE RECURSOS PÚBLICOS

21. Avaliação da suficiência dos recursos públicos - A tarefa governativa exige


a dotação das estruturas administrativas de recursos públicos necessários à correta e
adequada prossecução das finalidades fixadas por via de decisão de índole político-
legislativa60. Isto significa que a operatividade da lei depende, forçosamente, da pré-
existência (ou, pelo menos, da criação concomitante ou superveniente) dos recursos
públicos especificamente exigidos por cada procedimento de execução administrativa.
Não basta, portanto, a publicação meramente proclamatória de leis e decretos em Diário
da República. Forçoso é que as estruturas administrativas (já) disponham dos meios
indispensáveis à sua efetiva implementação61.
Torna-se, então, crucial que o próprio legislador – no decurso do procedimento
legislativo – seja capaz de antecipar, estimar e garantir que as estruturas administrativas
disporão dos respetivos recursos públicos, logo que a decisão político-legislativa produza
efeitos. Entre outras tarefas, deve garantir-se a adequada e rápida (senão mesmo,
concomitante) regulamentação de atos legislativos, a avaliação do impacto legislativo62,
a formação de dirigentes e funcionários administrativos, a criação ou adaptação dos
sistemas informáticos existentes e, sempre que necessário, a fixação de períodos
experimentais e/ou transitórios, que permitam melhor avaliar as consequências da nova
decisão governativa.

22. Tipologia de recursos públicos - Os recursos públicos correspondem aos


meios e infraestruturas que o decisor administrativo emprega, com vista à implementação
das políticas públicas. À semelhança dos factos juridicamente relevantes, os recursos
públicos também podem ser naturais – quando pré-existem a uma intervenção dos

60
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo (revisto por Diogo Freitas do Amaral), Vol. II,
7ª reimpressão da 10ª edição, 2004, p. 879; MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp. 41-43.
61
Os recursos surgem na esfera de titularidade das pessoas coletivas quer por via originária, quer por via
aquisitiva, seja esta por via de celebração de contratos (ex: empreitada de obras públicas, fornecimento de
bens ou prestação de serviços, entre outros), seja por via unilateral. Assim, ver MARCELO CAETANO,
Manual de Direito Administrativo, Tomo II, cit., pp. 879 e 920-921.
62
Para uma análise deste mecanismo, ver o § # deste Manual.

27
decisores políticos ou dos agentes económicos –, como podem ser humanizados – isto é,
resultantes de uma ação voluntária do ser humano. Para além disso, os recursos públicos
são de diversa índole, pois podem consubstanciar-se em:
⎯ Recursos financeiros;
⎯ Recursos humanos;
⎯ Recursos infraestruturais;
⎯ Recursos logísticos;
⎯ Recursos científicos;
⎯ Recursos tecnológicos.
Estes tanto podem ser originariamente públicos (isto é, pertencentes ao domínio
público do Estado e das demais pessoas coletivas públicas), como podem corresponder a
meios e infraestruturas pertencentes a particulares63 que, por via de negócio consensual,
de requisição civil ou ao abrigo do estado de necessidade administrativa, integram essa
esfera ampla de juspublicidade.

23. Gestão de recursos públicos - Cabe a quem governa gerir os recursos


disponíveis para fazer face às diversas exigências da comunidade jurídica, sejam elas
permanentes ou conjunturais64. A gestão de recursos públicos pressupõe a tomada de
decisão sobre a aquisição ou manutenção de determinados recursos, bem como decisões
subsequentes sobre a sua conservação, frutificação, substituição e até eventual alienação.
Tendo em conta que a prossecução do interesse público tanto pode depender da atuação
direta de entidades públicas, como assentar na colaboração de particulares, que
disponibilizam os seus recursos para fins de interesse geral, a própria decisão acerca da
natureza pública ou privada dos recursos a utilizar.

24. O tempo das decisões de gestão - As decisões de gestão de recursos públicos


tanto podem ser de curta, de média ou de longa duração. Não raras vezes, o
prolongamento no tempo de decisões de gestão permite ganhos e poupanças incrementais,
quer porque os recursos que permanecem na esfera pública se tornam mais facilmente
rentabilizáveis, quer porque os recursos obtidos junto dos particulares sofrem uma

63
MARCELO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, cit., p. 879-881 e 1050-1051; MARK
BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., pp. 60-61.
64
Sobre esta faceta da governação administrativa, ver WOODROW WILSON, The study of administration,
cit., p. 212.

28
redução do custo a suportar pela entidade pública, em troca da longevidade da relação
jurídica a estabelecer. Porém, no caso de decisões de médio e longo prazo – em particular,
quando estas excedam o termo do mandato do decisor administrativo –, pode colocar-se
a dúvida sobre se o concreto titular do órgão ou serviço, em exercício de funções, pode
comprometer os futuros titulares. No caso de meras promessas administrativas65, dirigidas
a terceiros, deve entender-se que as mesmas não vinculam os novos titulares. Quanto a
decisões efetivas de gestão, já consumadas, o princípio da segurança jurídica impõe que
as mesmas sejam respeitadas e mantidas. Claro está, sem prejuízo da sua eventual
ilegalidade; por exemplo (mas sem pretensão exaustiva), em caso de desvio de poder para
prossecução de fins públicos distintos dos visados pela lei.

25. Tecnologia aberta e condicionamento futuro - A crescente carência de


recursos científicos e tecnológicos, associada à falta de autonomia (e mesmo de
soberania), a esse nível, tem tornado as entidades públicas excessivamente dependente de
parceiros privados66. Esse monopólio do conhecimento científico e tecnológico – por
exemplo, em matéria de sistemas informáticos, de sistemas de comunicação, de
fornecimento de energia e, até, de segurança de infraestruturas críticas – tem tornado as
entidades públicas em reféns daqueles atores privados67. Não raras vezes, os sistemas

65

A força jurídica de uma promessa administrativa decorre, essencialmente, da circunstância de a mesma


gerar uma expetativa jurídica na esfera do destinatário da mesma, convocando a proteção quer do princípio
da boa fé, quer do princípio da segurança jurídica. Desde logo, as promessas administrativas só relevam em
sede de exercício de poderes predominantemente discricionários, pelo que o momento decisivo para a
fixação definitiva da posição da administração pública corresponde à fase final, em que a mesma profere
decisão vinculativa. Assim, a mesma configura um instrumento de autovinculação da própria administração
pública, mas não impõe, forçosamente, a sua implementação mecânica e automática, sendo configurável
como lícito o incumprimento da mesma, desde que sujeito ao dever de fundamentação acrescida e ao de
indemnizar. Sobre a promessa administrativa, adotando este critério restritivo, ver HARTMUT MAURER,
Manuel de Droit Administratif Allemand (trad. Michel Fromont), LGFJ, 1994, pp. 225-226; PAULO OTERO,
Legalidade e Administração Pública – O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina,
2003, p. 861; LUÍS CABRAL DE MONCADA, Boa fé e tutela da confiança no Direito Administrativo, in
«Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia», Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. 583.
Em sentido contrário, considerando que a promessa administrativa configura sempre a prática de um ato
administrativo declarativo e aplicando o regime de revogação administrativa de atos constitutivos de
direitos, ver JOÃO TABORDA DA GAMA, Promessas Administrativas – Da Decisão de Auto-Vinculação ao
Acto Devido, Coimbra Editora, 2008, 184-190 e 244.
66
PATRICK DUNLEAVY/HELEN MARGETTS/SIMON BASTOW/JANE TINKLER, New Public Management Is
Dead – Long Live Digital-Era Governance, cit., p. 472; ERAN FISHER, E-governance and e-democracy:
questioning technology-centered categories, in «The Oxford Handbook of Governance» (org. David Levi-
Faur), Oxford University Press, 2012, p. 579.
67
Salientando este problema, ver MARK BEVIR, Governance – A Very Short Introduction, cit., p. 61;
SUSANA BORRÁS, Three Tensions in the governance of science and technology, in «The Oxford Handbook
of Governance» (org. David Levi-Faur), Oxford University Press, 2012, pp. 436-438; ERAN FISHER, E-
governance and e-democracy: questioning technology-centered categories, cit., p. 579.

29
operativos fornecidos às entidades públicas não são compatíveis com equipamentos e
sistemas de outros operadores privados68 ou requerem a aquisição futura e constante de
atualizações, o que inibe a possibilidade de séria negociação, por parte dos adjudicatários
públicos e favorece a eternização de determinados contratantes privados, que dominam
determinado saber científico e tecnológico. Obviamente, essa posição de privilégio
natural acarreta perigosas consequências em matéria de contratação pública, pois afeta,
de modo significativo, o princípio da concorrência e estimula programas de concurso e
cadernos de encargos “feitos à medida” (“taylor made”). Não raras vezes, a especificação
contratual de caraterísticas peculiares de certos bens ou serviços tem apenas por propósito
condicionar e forçar a escolha de um pré-determinado agente económico. O que faz
acrescer o risco de atuação ilícita e, mesmo, de eventual responsabilidade criminal.
O antídoto ideal para este fenómeno concentracionário passa pela promoção de
tecnologia de uso aberto (“open source technology”)69, designadamente, através da sua
especificação em programas de concurso e cadernos de encargo. A tecnologia de uso
aberto assegura a sua compatibilidade com equipamentos e sistemas fornecidos por outros
agentes económicos e combate a excessiva dependência do Estado (e das demais pessoas
coletivas públicas) face a um só fornecedor ou prestador de serviços. A moderna (boa)
gestão de recursos públicos pressupõe, assim, a preservação da soberania científica e
tecnologia das entidades públicas. Se necessário, mediante investimento público direto
em equipamentos, tecnologias e infraestruturas70.

68
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 490.
69
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., 494.
70
MARIANA MAZZUCATO, O Estado-Empreendedor – Desmascarando o Mito do Setor Público vs. Setor
Privado (traduzido por Elvira Serapicos), Companhia das Letras, 2011; SUSANA BORRÁS, Three Tensions
in the governance of science and technology, cit., p. 431.

30
SECÇÃO II
O PRINCÍPIO DA MAXIMIZAÇÃO DA FELICIDADE

26. O progresso como condição do sucesso governativo - Uma boa gestão dos
recursos públicos deve visar a maximização da felicidade coletiva e individual. A
felicidade71 é aqui definida enquanto somatório de utilidades auferidas e gozadas por cada
um dos membros de uma comunidade, para satisfação das suas necessidades, quer de
mera sobrevivência, quer de desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. Nesse
sentido, o progresso – isto é, o incremento de utilidades efetivamente gozadas – constitui
um critério e, mesmo, uma condição do sucesso governativo.
Porém, esse progresso tanto pode ser quantitativo, quando apenas assente na
mensurabilidade aritmética de vetores e índices (em regra, de natureza económica e
financeira), como pode ser qualitativo, quando radique na qualidade e intensidade da
satisfação obtida, relativamente a numerosas esferas da vivência humana72. Em tais
esferas, compreendem-se, entre outras, a fruição cultural, o tempo de lazer e de repouso,
a preservação e a coexistência ambiental, a compatibilização da vida profissional com a
vida familiar, o desenvolvimento harmonioso da personalidade individual, nela incluídos
a reflexão filosófica e as crenças de cada membro de uma comunidade.

27. Critérios econométricos quantitativos e produto interno bruto (PIB) - Por


serem mais facilmente mensuráveis, os dados e elementos estatísticos têm prevalecido
como suporte de um método analítico de aferição do sucesso governativo, por se crer que
aqueles indiciariam o estado de progresso relativamente a várias dimensões da atividade
humana. Por conseguinte, tem imperado uma crença – não raras vezes, infundada – na
centralidade do crescimento (ou do decréscimo) do produto interno bruto (PIB). Através
da análise de vários critérios econométricos, procura-se determinar, então, qual o grau de
progresso (ou de retrocesso) de determinado país, em determinado período. Sucede,
porém, que, conforme demonstram vários estudos73, a medição quantitativa dos vetores

71
Para um maior desenvolvimento, sobre o conceito de felicidade, numa perspetiva jusfilosófica e
jusconstitucional, ver MIGUEL PRATA ROQUE, O direito à felicidade fundamental à felicidade, in «Estudos
em Homenagem ao Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro», Almedina, 2019, em especial, §§ 2 a 4.
72
Sobre a importância da Justiça Redistributiva e da possibilidade de os membros de determinada
comunidade obterem uma satisfação assimétrica, mas compensadora, através do equilíbrio no acesso a bens
sociais que se integram em várias esferas da vivência humana, ver MICHAEL WALZER, As Esferas da
Justiça, Editorial Presença, Lisboa, 1999.
73
A mero título de exemplo, denunciando as insuficiências de métodos de avaliação exclusivamente
centrados no PIB, ver ROBERT COSTANZA/MAUREEN HART/STEPHEN POSNER/JOHN TALBERTH, Beyond

31
que contribuem para a formação do produto interno bruto (PIB) não espelha, de modo
adequado (ou sequer rigoroso), o efetivo estado histórico da felicidade de uma
determinada comunidade. Assim é, porque aquele medidor apenas afere dados
quantitativos assentes em critérios econométricos, que tendem a acentuar apenas o ganho
global de determinada economia nacional, sem procurar saber da distribuição e repartição
desse ganho por cada um dos seus membros.
Entre outras, têm-lhe sido apontadas as seguintes insuficiências:
⎯ Primeira: Mera medição das quantidades de produção de bens
comercializáveis;
⎯ Segunda: Desconsideração dos custos do uso e do esgotamento de
recursos públicos naturais;
⎯ Terceira: Desconsideração do valor económico do trabalho não
remunerado e da criação de bens e serviços não disponibilizados em
mercado;
⎯ Quarta: Falta de critérios qualitativos de medição do bem-estar, que
dispensem uma medição económica assente na produção de bens
materiais;
⎯ Quinta: Falta de avaliação de critérios como a diversidade de
rendimentos obtidos e a tipologia de consumo efetivamente realizado;
⎯ Sexta: Falta de avaliação da efetiva redistribuição da riqueza criada,
designadamente, através da aferição da oscilação do rendimento médio
e mínimo obtidos pelos membros de uma determinada comunidade.

Em suma, os governos tendem a ser julgados e, mais do que isso (!), até mesmo a
autoimpor-se um julgamento que parte de uma (infantil) medição da amplitude de
crescimento (ou decréscimo) do PIB. É vê-los a puxar dos galões, quando o mesmo
cresce, e a oposição a exigir cabeças, quando o mesmo decresce.

GDP: The Need for New Measures of Progress, in «The Pardee Papers», n.º 4, January 2009, Boston
University; SONJA C. KASSENBOEHMER/CHRISTOPH M. SCHMIDT, Beyond GDP and Back: What is the
Value-Added by Additional Components of Welfare Measurement?, in «Discussion Paper No. 5453»,
January 2011; IDA KUBISZEWSKI/ROBERT COSTANZA/CAROL FRANCO/PHILIP LAWN/JOHN TALBERTH/TIM
JACKSON/CAMILLE AYLMER, Beyond GDP: Measuring and achieving global genuine progress, in
«Ecological Economics», 93 (2013), pp. 57-68; CHARLES I. JONES/PETER J. KLENOW, Beyond GDP?
Welfare across Countries and Time, in «American Economic Review», 106 (2016), pp. 2426-2457.

32
28. O estado estacionário - Este modo, predatório e incremental74, de encarar a
governação administrativa contribui, sobremaneira, para a pilhagem e para o esgotamento
dos recursos públicos. Que fique bem claro: nem sempre a boa gestão dos recursos
públicos passa por um crescimento incremental da produção ou da extração quantitativa
de utilidades desses mesmos recursos.
Aliás, isso mesmo já foi, há muito, reconhecido por autores como JOHN STUART
MILL, que ousou defender, talvez pela primeira vez, as virtudes de um estado estacionário
de desenvolvimento económico75. Ao contrário de autores como THOMAS MALTUS,
DAVID RICARDO ou KARL MARX, que viam no decréscimo económico (ou mesmo na sua
estagnação) um indício de um estado de declínio económico, JOHN STUART MILL evitou
diaboliza-lo. Pelo contrário, demonstrou que, desde que atingido um grau adequado de
desenvolvimento, seria até desejável que economias sãs fossem sustentáveis e
preservassem os respetivos recursos públicos, através da redistribuição equitativa da
riqueza gerada pelos seus membros. Assim, apesar de reconhecer a inevitabilidade das
leis económicas que potenciam uma produção incremental constante, o autor preconizava
que as instituições políticas deveriam ser capazes de limitar os excessos individualistas
da busca de criação de mais riqueza, através da sua redistribuição.
Note-se que JOHN STUART MILL nunca preconizou o miserabilismo, enquanto
política pública, ou sequer a fixação de barreiras ao progresso. Pelo contrário, o estado
estacionário corresponderia antes à constatação de que uma boa gestão dos recursos
públicos passa pela autolimitação dos agentes económicos, com vista a evitar o
esgotamento desses mesmos recursos. Atingido um estado adequado de desenvolvimento
e de bem-estar material, os próprios membros de uma comunidade (incluindo empresários
e trabalhadores) concluiriam pela inviabilidade de um crescimento incremental dos bens
produzidos e da própria população, adotando novos modos de vida, que preservassem o
bem-estar social e estimulassem o progresso qualitativo. Trata-se, pois, de um estado
estacionário autoimposto (e desejado) e não de um estado de declínio económico imposto
por condicionantes externas. E também não se trata, portanto, de uma política pública de
“crescimento zero”, mas antes de um apelo à gestão criteriosa e adequada dos recursos
públicos.

74
Sobre o modelo incremental, ver MARK BEVIR, Key Concepts in Governance, cit., pp. 106-109.
75
JOHN STUART MILL, Principles of Political Economy, The Project Gutenberg Ebook, 2009 (a partir de
edição de 1882, sendo a edição originária de 1848).

33
29. O retrocesso (temporário) - Importa ainda frisar que a circunstância de a
governação administrativa dever funcionar como instrumento de maximização da
felicidade não significa uma impossibilidade, teórica e prática, de situações históricas de
retrocesso. Desde logo, o surgimento de crises económicas cíclicas justifica a
possibilidade de decisões governativas que impliquem um retrocesso desses níveis de
felicidade. Não se partilha, assim, a defesa de uma (suposta) proibição do retrocesso76.
Contudo, esse retrocesso não pode deixar de ser temporário, enquanto subsistirem os
fatores que justificaram a compressão de direitos ou de prestações públicas77.
Para além disso, o retrocesso temporário permanece sempre condicionado ao
respeito dos demais princípios gerais de Direito, tais como os princípios da igualdade, da
proporcionalidade, da segurança jurídica, entre outros. O desrespeito por qualquer uma
das supra mencionadas condições implica, sempre e inevitavelmente, um controlo
jurisdicional acerca dos parâmetros normativos em crise. Assim, torna-se admissível uma
gestão dos recursos públicos que, a título meramente temporário, restrinja as utilidades
disponibilizadas aos membros de certa comunidade, desde que a mesma vise enfrentar
crises conjunturais. E desde que essas políticas públicas retrocessivas apenas perdurem
pelo tempo exatamente necessário à proteção de outros valores constitucionalmente
protegidos.

30. A felicidade como bem jurídico - Em suma, a felicidade apresenta-se como


um bem jurídico constitucionalmente protegido e diretamente invocável pelos
particulares contra os poderes públicos. Não se exige, sequer, a sua verbalização expressa,
como acontece nos textos constitucionais dos Estados Unidos da América78, da Coreia do
Sul79 ou do Reino do Butão80. Basta a constatação de que os textos constitucionais

76
Para maior desenvolvimento, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Juízos precários de constitucionalidade – O
Tribunal Constitucional perante a crise do modelo social europeu e o retrocesso dos direitos fundamentais,
in «Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda», Volume II, 2012, pp. 870-886.
77
MIGUEL PRATA ROQUE, Juízos precários de constitucionalidade, cit., pp. 886-894.
78
No preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, redigida por THOMAS
JEFFERSON e aprovada pela “Committee of the Whole” do “Second Continental Congress”, a 4 de julho de
1776, pode ler-se: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are
endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the
pursuit of Happiness”; isto é: “Tomamos estas verdades por autoevidentes, que todos os homens foram
criados como iguais, que eles foram dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis, e que, entre
estes, estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”.
79
O artigo 10.º da Constituição da Coreia do Sul, de 1987, reconhece aos seus cidadãos: “Todos os cidadãos
verão assegurada a sua dignidade e valor humanos e têm o direito de buscar a sua felicidade. Será dever
do Estado confirmar e garantir os fundamentais e inalienáveis direitos humanos individuais”.
80
O artigo 9.º da Constituição do Reino do Butão, adotada em 2008, determina expressamente que: “1 – O
Estado esforçar-se-á por aplicar os Princípios de Política do Estado fixados neste artigo, com vista a

34
asseguram direitos fundamentais à autorrealização do indivíduo; por exemplo, através do
direito ao livre desenvolvimento da personalidade, às demais liberdades fundamentais
(tais como a liberdade pessoal, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão) e
aos direitos sociais, económicos e culturais. Como acontece, aliás, na Constituição
portuguesa81. No caso português, destaca-se, em especial, a circunstância de o legislador
constituinte ter fixado, como tarefa fundamental do Estado, a promoção do “bem-estar e
[d]a qualidade de vida do povo e [d]a igualdade real entre os portugueses” [cfr. artigo
9.º, alínea d), da Constituição da República Portuguesa].
De onde se conclui que, sem qualquer margem para dúvidas, a felicidade é
constitucional e universalmente reconhecida como um bem jurídico. Pode apenas –
quanto muito – discutir-se se a mesma deve ser concebida como bem jurídico individual
ou, ao invés, como mero bem jurídico coletivo. Segundo a primeira conceção, ele seria
oponível aos poderes públicos (e até às entidades privadas), enquanto direito subjetivo.
Caso se optasse pela segunda conceção, caberia antes aos poderes públicos avaliar e
determinar o grau de concretização de uma (pretensa) felicidade coletiva. Face à natureza
personalista da Lei Fundamental portuguesa, crê-se que só a primeira dimensão se afigura
como aceitável, sob pena de se ter de tolerar que o Estado programe a própria felicidade
dos seus membros, determinando aquilo que os faz felizes ou infelizes82. Sem prejuízo da
ponderação democrática acerca das consequências das políticas públicas sobre cada um
dos indivíduos – que, frise-se, é perfeitamente admissível –, não se pode aceitar uma
conceção instrumentalizadora e heteroimpositiva de um ideário (único) de felicidade
coletiva.

31. A medição da felicidade - Como reação às insuficiências dos métodos


econométricos de medição do progresso, têm proliferado as tentativas de racionalização
e de medição objetiva da felicidade. São conhecidas as experiências desenvolvidas no
Reino do Butão, através do desenvolvimento de índices e critérios de aferição daquilo
que é hoje designado por Felicidade Interna Bruta (FIB) – ou, na sua versão inglesa,

assegurar uma boa qualidade de vida para o Povo do Butão, num país progressivo e próspero que está
comprometido com a paz e a amizade no mundo. 2 – O Estado empenhar-se-á em promover aquelas
condições que irão permitir a prossecução da Felicidade National Bruta”.
81
Para uma análise mais exaustiva e criteriosa, ver MIGUEL PRATA ROQUE, O direito à felicidade
fundamental à felicidade, cit., em especial, §§ 8 a 12.
82
MIGUEL PRATA ROQUE, O direito à felicidade fundamental à felicidade, cit., § 12.

35
“Gross National Happiness” (GNH)83. Aferição essa que se encontra a cargo de uma
comissão independente (a “Gross National Happiness Commission), que procede a uma
avaliação de impacto das leis e das políticas públicas, em matéria de felicidade.
Mas, atenta a dimensão exígua daquele país, mais relevante se tornou o Relatório
da Comissão para a Medição do Desempenho Económico e do Progresso Social,
concluído em setembro de 2009 e que costuma ser apelidado de “Relatório
STIGLITZ/SEN/FITOUSSI”84. O referido relatório centrou-se na propositura de novos
métodos de aferição do bem-estar (que incluem o bem-estar material, mas também
critérios não económicos ou aferíveis pela sua comercialização em mercado) e de aferição
da sustentabilidade, incluindo ambiental, das decisões governativas. Como reação às
insuficiências de métodos assentes no PIB, o Relatório STIGLITZ/SEN/FITOUSSI preconiza:
⎯ Primeiro: Recentrar a avaliação dos níveis de rendimento e de
consumo, em detrimento dos níveis de produção;
⎯ Segundo: Enfatizar o rendimento e consumo das famílias, incluindo o
resultante de atividades comunitárias, voluntárias e não remuneradas,
que não são mensuráveis com base na lógica dos mercados;
⎯ Terceiro: Considerar a influência da saúde no bem-estar humano;
⎯ Quarto: Conferir predominância às formas de redistribuição de
rendimentos;
⎯ Quinto: Ter em conta a multiplicidade de fontes de bem-estar, para
além da posse de bens materiais e de consumo.

83
Sobre o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB) e o modelo implementado no Butão, ver, entre outros,
SANDER G. TIDEMAN, Gross National Happiness, in «Ethical Principles and Economic Transformation –
A Buddhist Approach (Org. L. Zsolnai), Springer, 2011, pp. 133-153; KARMA URA, The Experience of
Gross National Happiness as Development Framework, in « ADB South Asia Working Paper Series», n.º
42, december 2015; ALLEN KOJI UKAI, Gross National Happiness-Based Economic Growth –
Recommendations for Private Sector Growth Consistent with Bhutanese Values, Harvard Kennedy School
John K. Kennedy School of Government, 2016.
84
O referido relatório foi elaborado por um grupo de peritos, coordenado pelos economistas que lhe deram
nome; isto é, por JOSEPH STIGLITZ, Nobel da Economia e Professor na University of Columbia (USA), por
AMARTYA SEN, Nobel da Economia e Professor na University of Harvard (USA), e por JEAN-PAUL
FITOUSSI, Professor no Institut d´Études Politiques (Paris). Este relatório foi encomendado, em fevereiro
de 2008, pelo Presidente da República Francesa, NICHOLAS SARKOZY, que se encontrava insatisfeito com
o estado da recolha de informação estatística sobre a economia e com as insuficiências do PIB, enquanto
instrumento de medição da atividade governativa. O Relatório STIGLITZ/SEN/FITOUSSI pode ser consulado
in http://ec.europa.eu/eurostat/documents/118025/118123/Fitoussi+Commission+report.

36
Em suma, a busca de métodos fiáveis de medição da felicidade humana, enquanto
manifestação da satisfação de necessidades individuais e coletivas, constitui, hoje, uma
salutar preocupação, quer dos decisores políticos, quer dos investigadores.

32. A governação como instrumento de maximização da felicidade – Atenta a


capacidade atual de avaliação do impacto (potencial e, mais tarde, efetivo) das decisões
e das políticas públicas, a governação administrativa transformou-se, cada vez mais, num
instrumento de maximização da felicidade. Não se cura aqui de uma felicidade impulsiva,
egoísta ou isolacionista, mas antes do anseio natural de cada indivíduo a uma vida digna
e com direitos. Assim, governar é, essencialmente, prover. Ou seja, garantir a máxima
satisfação do maior número possível de membros de determinada comunidade. (Bem)
gerir recursos públicos é emprega-los, de uma forma eficiente, ponderada e equilibrada,
com vista a essa maximização de utilidades, que devem ser redistribuídas, em função das
necessidades de cada um.
De onde resulta o primeiro dos comandos da (boa) gestão de recursos públicos: a
maximização da felicidade.

37
SECÇÃO III
O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO INTERGERACIONAL

33. A proliferação de necessidades coletivas - A busca incessante de progresso


– que é desejável e condição da evolução humana, note-se – transporta consigo uma
proliferação de necessidades coletivas. Que aumentam, na exata medida das descobertas
científicas e tecnológicas e da experimentação dos seus frutos, pelos indivíduos. Como
tal, o progresso alcançado desde a Revolução Industrial do século XIX tem vindo a criar
novos anseios e, com eles, novas necessidades coletivas a satisfazer pelos poderes
públicos85. De algum modo, independentemente da matriz ideológica de cada
circunstancial decisor político, a governação administrativa passou a corresponder,
também, à arte de conciliação de interesses e de necessidades conflituantes. Ser bem
sucedido, na arte de governar, traduz-se em bem administrar recursos públicos escassos
e exíguos, logrando a satisfação de necessidades coletivas incrementais e potencialmente
ilimitadas.

34. O esgotamento dos recursos públicos - Nem sempre satisfazer todos os


anseios dos governados significa bem governar. Face à escassez dos recursos públicos
disponíveis, deve evitar-se o exaurimento – em especial, o definitivo – daqueles86. Aliás,
a constatação da falência de critérios econométricos exclusivamente alicerçados na
produção (isto é, no PIB) reforça a emergência do combate ao esgotamento dos recursos
públicos e recomenda a passagem para um novo modelo de aferição da satisfação de
necessidades coletivas, assente na felicidade e no bem-estar humano.

85
Sobre o surgimento de novas necessidades coletivas e as funções do Estado Social, enquanto prestador
de serviços públicos, ver, por todos, LÉON DUGUIT, Law in the Modern State (trad. Frida e Harold Laski),
George Allen & Unwin, 1921, 30; OTTO BACHOF [cfr. Die Dogmatik des Verwaltungsrecht vor den
Gegenwartsaufgaben der Verwaltung, in «VVDStL», 30 (1972), 204-205; PETER HÄBERLE,
Verfassungsprinzipien im Verwaltunsverfahrensgesetz, in «Verwaltungsverfahren – Festschrift für 50
Jäherigen Bestehen der Richard Boorberg Verlag», 1ª edição, Boorberg, 1977, 47-93; CHRISTOPH
MÖLLERS, Globalisierte Verwaltungen zwischen Verselbständigung und Übervernetzung, in
«Rechtstheorie», 39 (2008), 217; MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito
Administrativo, cit., pp. 192-199.
86
Salientando que os decisores políticos não podem “ter vistas curtas” (em inglês, “shortsightedness”),
quando tomam decisões, pois devem refletir sobre as consequências a longo prazo e não estar
exclusivamente preocupados com os efeitos eleitorais das medidas adotadas, ver BRETT M. FRISCHMANN
Some Thoughts on Shortsightedness and Intergenerational Equity, in «Loyola Chicago University Law
Journal», volume 36, 2 (2005), pp. 458-459.

38
A finitude dos recursos públicos é mais evidente no caso dos recursos naturais87.
Mas pode também ser notada em recursos humanizados, tais com os recursos financeiros
e os recursos humanos88. Nas últimas décadas, tem vindo a acentuar-se um confronto
entre os que persistem num modelo que aposta na extração de vantagens imediatas dos
recursos existentes e os que alertam para os riscos de uma governação administrativa
predadora89. Discute-se se as gerações atuais podem, com vista a um progresso contínuo,
extrair o máximo de proveito material imediato, hoje, ainda que tal implique o
esgotamento dos recursos públicos, em prejuízo das gerações vindouras. Essa discussão
abrange a preservação dos recursos naturais e do ambiente, mas também o risco de
exaurimento do erário público, provocado pela manutenção dos níveis de proteção de
direitos sociais, atingidos em anteriores conjunturas históricas. Os casos mais
paradigmáticos reconduzem-se à discussão sobre o aquecimento global90, sobre a dívida
pública91, sobre os direitos laborais e sobre os direitos à segurança social das gerações
mais velhas92.

35. A gestão da escassez – A duração reduzida dos mandatos dos titulares de


cargos políticos tende a promover uma governação administrativa de curto prazo,
orientada pelos ciclos eleitorais93. Como tal, não raras vezes, as decisões de gestão de
recursos públicos escassos são tomadas ao sabor da volatilidade da opinião pública. Sem

87
EDITH BROWN WEISS, Climate Change, Intergenerational Equity, and International Law (reimpressão
de artigo publicado em 1987)), in «Vanderbilt Journal of Environmental. Law», 9 (2008), pp. 619-621;
MARCELA VITORIANO E SILVA, O princípio da solidariedade intergeracional: um olhar do Direito para o
futuro, in «Veredas do Direito», volume 8, 16 (2011), pp. 128-129; BRETT M. FRISCHMANN Some Thoughts
on Shortsightedness and Intergenerational Equity, cit., pp. 461-462.
88
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 140.
89
DAVID GRAEBER, The Utopia of Rules – On Technology, Stupidity, anda the Joys of Bureaucracy,
Melville House, Brooklyn/London, 2015, p. 9; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume
I, cit., pp. 139-140.
90
EDITH BROWN WEISS, Climate Change, Intergenerational Equity, and International Law, cit., pp. 619-
620.
91
JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracional: entre a Política e o Direito Constitucional, in «Justiça
entre Gerações – Perspetivas Interdisciplinares» (org. Jorge Pereira da Silva/Gonçalo de Almeida Ribeiro),
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2017, p. 95.
92
BRETT M. FRISCHMANN Some Thoughts on Shortsightedness and Intergenerational Equity, cit., p. 459;
JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracional: entre a Política e o Direito Constitucional, cit., pp. 99-
110.
93
J.J. GOMES CANOTILHO, Sustentabilidade – um romance de cultura e de ciência para reforçar a
sustentabilidade democrática, in «Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra», I (2012),
p. 9; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 145-146; JORGE PEREIRA DA
SILVA, Justiça intergeracional: entre a Política e o Direito Constitucional, cit., pp. 98-99; GONÇALO DE
ALMEIDA RIBEIRO, O problema da tutela constitucional das gerações futuras, in «Justiça entre Gerações –
Perspetivas Interdisciplinares» (org. Jorge Pereira da Silva/Gonçalo de Almeida Ribeiro), Fundação
Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2017, p. 140.

39
dúvida, reconhece-se legitimidade política (e ética) à tomada de decisões governativas
que pressuponham uma especial oneração ou desgaste de determinados recursos públicos.
Desde que, porém, elas cumpram as seguintes condições:
⎯ Atualidade – isto é, apenas vinculem as gerações atuais, que participam
no procedimento democrático de decisão94;
Ou, caso contrário:
⎯ Compensação – ou seja, promovam ganhos futuros que compensem ou
mesmo ultrapassem os custos de uso de um recurso público escasso;
E, simultaneamente:
⎯ Transitoriedade – na medida em que não impliquem um exaurimento
definitivo e irreversível do recurso público utilizado95.

A médio e longo prazo, o esgotamento de recursos públicos escassos implica,


sempre, uma dependência externa do Estado e das demais entidades públicas96. E conduz,
invariavelmente, à necessidade de aumento da carga fiscal e à implementação de políticas
austeritárias, que visam reequilibrar os recursos disponíveis. Instaura-se, assim, um
estado de emergência económico-financeira permanente.
Para evitar esse ciclo vicioso, impõe-se reconhecer que as decisões governativas
atuais não devem condicionar, de modo irreversível, as decisões a tomar pelas gerações
futuras. Cabe à governação administrativa garantir que essas gerações futuras recebem
um legado97, pelo menos, idêntico àquele que foi recebido pelas gerações que as

94
BRETT M. FRISCHMANN Some Thoughts on Shortsightedness and Intergenerational Equity, cit., p. 459;
JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracional: entre a Política e o Direito Constitucional, cit., pp. 99-
104.
95
JOHANNES CASPAR, Generationen-Gerechtigkeit und moderner Rechtsstaat. Eine Anaylse rechtlicher
Beziehungen innerhalb der Zeit, in «Zukunftsverantwortung und Generationensolidarität» (org. Dieter
Birnbacher/Gerd Brudermülle), Königshausen & Neumann, 2001, pp. 103-104; CHRISTOPH LUMER,
Principles of generational justice, in «Handbook of intergenerational justice» (org. Joerg Chet Tremmel),
Edward Elgar, 2006, p. 39; JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracional: entre a Política e o Direito
Constitucional, cit., p. 131.
96
Assim, ver LARS OSBERG, Meaning and Measurement in Intergenerational Equity, in «Government
Finances and Intergenerational Equity» (org. Miles Corak), Statistics Canada, Ottawa, 1998, p. 132.
97
Ao invés de colocar o assento tónico na ideia de legado, o conhecido provérbio índio-americano opta por
lembrar que: “Não herdámos a Terra dos nossos antepassados; recebemo-la, por empréstimo, dos nossos
filhos” [apud ANDRÉ SANTOS CAMPOS, Teorias da Justiça Intergeracional, in «Justiça entre Gerações –
Perspetivas Interdisciplinares» (org. Jorge Pereira da Silva/Gonçalo de Almeida Ribeiro), Fundação
Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2017, pp. 52-53]. Em sentido idêntico, THOMAS JEFFERSON, na sua
carta a JAMES MADISON, enviada de Paris, em 6 de setembro de 1789, já alertava que “a Terra apenas
pertence, em regime de usufruto, aos vivos” [cfr. MERRILL D. PETERSON (org.), The Portable Thomas
Jefferson, Penguin Books, The Viking Library, New York, 1977, pp. 444-445].

40
antecederam98. Obviamente, isto não inviabiliza as políticas macroeconómicas contra-
cíclicas, nem tão pouco impede os decisores políticos de tomarem decisões redistributivas
que favoreçam determinados grupos sociais, num determinado momento histórico. Mas
exige um delicado equilíbrio intergeracional, que não se esgote no horizonte temporal de
cada ciclo eleitoral.

36. A sustentabilidade das decisões governativas - O critério decisivo para a


legitimidade da governação administrativa reconduz-se, então, à sustentabilidade das
decisões tomadas. Será sustentável aquela decisão que possa ser mantida durante um
período histórico longo – sempre superior, pelo menos, a um mandato completo –, sem
necessidade de realocação de outros recursos públicos e/ou de eliminação ou redução do
grau de proteção de outros direitos fundamentais conflituantes99.
Há quem discuta a juridicidade do conceito de sustentabilidade, sob a alegação de
que o mesmo apenas assumiria uma dimensão social, económica ou especulativa100. A
sustentabilidade consistiria, portanto, numa mera aferição técnica, “ex ante”, que
nortearia a decisão pública. Sem prejuízo da necessidade de recurso a conhecimentos
técnicos – em especial, nas áreas da econometria, da estatística e das ciências exatas –,
com vista à avaliação do impacto das decisões governativas sobre recursos públicos
escassos, deve entender-se que a aferição da sustentabilidade constitui um princípio geral
de Direito101. Por conseguinte, ela constitui um parâmetro válido de controlo da
governação administrativa.

98
Reportando-se a um (novo) imperativo ético, de acordo com o qual o indivíduo deve agir de modo a que
a sua atuação não afete a sobrevivência, a longo prazo da Humanidade, ver HANS JONAS, Philosophische
Untersuchungen und metaphysische Vermutungen, Insel Verlag. Frankfurt, 1979, p. 128.
99
Referindo-se ao critério do Relatório “Our Common Future”, da Comissão Mundial sobre Ambiente e
Desenvolvimento, que qualifica a sustentabilidade como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades
do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer as suas próprias
necessidades”, ver BEATRIZ ESPERANÇA, Sustainable development concerning socioeconomic rights: A
duty towards future generations? An international humanitarian legal right for future generations, in «e-
Pública», volume 2, n.º 2, junho de 2015, p. 66; JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracional: entre a
Política e o Direito Constitucional, cit., p. 111.
100
Abordando estas críticas, mas concluindo pela sua natureza de princípio federador ou agregador, ver J.J.
GOMES CANOTILHO, O princípio da sustentabilidade como princípio estruturante do Direito
Constitucional, in «Tékhne – Revista de Estudos Politécnicos», 13 (2010), p. 9.
101
Em idêntico sentido, ver BRETT M. FRISCHMANN, Some Thoughts on Shortsightedness and
Intergenerational Equity, cit., p. 460; J.J. GOMES CANOTILHO, O princípio da sustentabilidade como
princípio estruturante do Direito Constitucional, cit., p. 8; JOÃO CARLOS LOUREIRO, Autonomia do Direito,
futuro e responsabilidade intergeracional: para uma teoria do Fernrecht e da Fernverfassung em diálogo
com Castanheira Neves, in «Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra», 2010, p. 39;
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 143.

41
37. Em especial, a sustentabilidade ambiental - A consciencialização da
escassez dos recursos naturais contribuiu, em grande medida, para que a sustentabilidade
surgisse, em primeiro lugar, como um critério operativo essencial ao Direito do
Ambiente; em especial, através do princípio da precaução102. Vários países avaliam, aliás,
a sustentabilidade ambiental como um critério decisivo da avaliação de impacto
legislativo e governativo. Face à finitude dos recursos naturais, cientificamente
comprovada, vários instrumentos de Direito Internacional têm vindo a acentuar o dever
de adoção de políticas públicas ambientalmente sustentáveis103. Essas políticas públicas
sustentáveis traduzem, como nenhumas outras, uma busca incessante de equilíbrio
intergeracional. Em suma, cabe às gerações atuais garantir que as gerações futuras podem
continuar a usufruir dos mesmos recursos naturais de que aquelas beneficiaram104.

38. Os tipos de equilíbrio intergeracional - O próprio conceito de gerações não


é unívoco105. Tanto podemos considera-lo como:
⎯ Familiar – quando assente nas gerações sucessivas de bisavós, avós,
filhos, netos e bisnetos;

102
Sobre o tema, ver CARLA AMADO GOMES, Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de
Deveres de Protecção do Ambiente, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 252-416; DANIEL KAZHDAN,
Precautionary pulp: «Pulp Mills» and the evolving dispute between international tribunals over the reach
of the precautionary principle¸ in «European Law Quarterly», 38 (2011), pp. 529-541.
103
Por exemplo, a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972, proclama:
“Princípio 2 - Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e,
especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício
das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planeamento ou administração adequada. (…)
Princípio 5 - Os recursos não renováveis da Terra devem ser utilizados de forma a evitar o perigo do seu
esgotamento futuro e a assegurar que toda a humanidade participe dos benefícios de tal uso”. E, mais
tarde, a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (mais conhecida por
Declaração do Rio sobre as Alterações Climáticas), de 1992, reafirma que: “Princípio 3 - O direito ao
desenvolvimento deve exercer-se de forma tal que responda equitativamente às necessidades de
desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e futuras”. Sobre esta dimensão internacional, ver
EDITH BROWN WEISS, Climate Change, Intergenerational Equity, and International Law (Introduction), in
«Vanderbilt Journal of Environmental. Law», 9 (2008), pp. 617-618; MARCELA VITORIANO E SILVA, O
princípio da solidariedade intergeracional: um olhar do Direito para o futuro, cit., pp. 119-120; BEATRIZ
ESPERANÇA, Sustainable development concerning socioeconomic rights: A duty towards future
generations?, cit., pp. 66-68; CRISTINA FORONI CONSANI/ YANKO MARCIUS DE ALENCAR XAVIER,
Considerações a respeito da relação entre Justiça Intergeracional, democracia e sustentabilidade, in
«Nomos - Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC», volume 36, 1 (2016), p. 148.
104
EDITH BROWN WEISS, Climate Change, Intergenerational Equity, and International Law, cit., pp. 622-
623; IDEM, Intergenerational Equity: Toward an International Legal Framework, in «Global Accord:
Environmental Challenges and International Responses» (org. Nazli Choucri), 1995, pp. 47-94.
105
Sobre as várias conceções de “geração”, ver JOERG CHET TREMMEL, A theory of intergenerational
justice, Earthscan, London, 2009, pp. 19-21.

42
⎯ Social – quando assente na homogeneidade de determinados grupos
de indivíduos (por exemplo, a geração de maio de 1968; os
“babyboomers”; os “millenials”); ou
⎯ Cronológico – quando abrange indivíduos nascidos em determinado
intervalo de tempo (por exemplo, indivíduos nascidos em determinada
década ou num período de 20/30 anos, correspondente à sua idade
reprodutiva potencial).

Para além disso, do ponto de vista da conexão relacional entre as diversas gerações
pode ainda traduzir-se em:
⎯ Equilíbrio pretérito – quando diga respeito à relação entre as gerações
antepassadas e uma geração contemporânea a um certo período
histórico;
⎯ Equilíbrio contemporâneo – quando analise a relação entre gerações
coexistentes em determinado período histórico, sendo volátil e flexível
a definição das fronteiras entre elas;
⎯ Equilíbrio futuro – que já assenta numa relação entre as gerações já
nascidas e as gerações vindouras.

Na medida em que nenhuma medida política ou administrativa afeta as gerações


antepassadas106, o princípio do equilíbrio intergeracional só se revela útil para avaliar,
comparativamente, o grau de bem-estar daquelas e o nível de evolução das gerações
atuais. O que pode auxiliar um juízo de cumprimento ou de incumprimento do referido
equilíbrio intergeracional, quando a disparidade entre gerações atuais e vindouras seja
desproporcionadamente inferior ou superior à média habitual das gerações antepassadas.
Por sua vez, o equilíbrio entre gerações coexistentes afigura-se como o mais facilmente
mensurável107.

106
Ficou célere a polémica entre THOMAS JEFFERSON e JAMES MADISON, durante a qual o primeiro
sustentou o direito de a geração dos vivos manter a capacidade de tomar decisões políticas coletivas, que
não sejam condicionadas por decisões anteriores dos seus antepassados; em especial, por cláusulas
constitucionais pétreas ou por quóruns qualificados. Sobre estas posições, ver CRISTINA FORONI CONSANI/
YANKO MARCIUS DE ALENCAR XAVIER, Considerações a respeito da relação entre Justiça Intergeracional,
democracia e sustentabilidade, cit., p. 146.
107
Porém, para alguns autores, o problema de equilíbrio entre gerações coexistentes não pode ser
qualificado como verdadeira questão intergeracional, mas apenas como questão relativa ao equilíbrio
temporal presente (ou intrageracional). Assim, ver JOERG CHET TREMMEL, A theory of intergenerational
justice, cit., pp. 4 e 24-25; CRISTINA FORONI CONSANI/ YANKO MARCIUS DE ALENCAR XAVIER,

43
Para além disso, na medida em que cada uma das categorias de gerações
coexistentes (por exemplo: jovens, adultos e velhos) podem concorrer para a formação da
vontade democrática, torna-se mais leal e operativo o processo de escolha política desse
mesmo “equilíbrio contemporâneo”. Mais delicado é o problema da delimitação do
equilíbrio entre as gerações atuais e as gerações vindouras. Pode mesmo refletir-se se não
estaremos a incorrer numa ficcional atribuição de direitos sem sujeitos108, na medida em
que os respetivos beneficiários não só não nasceram, como não podem ser
democraticamente representados por potenciais procuradores109.

39. O equilíbrio intergeracional - Impõe-se, assim, que a governação


administrativa acautele e promova um equilíbrio potencial entre as utilidades de que cada
geração pode usufruir. Por se tratar de um mero mandado de otimização, o princípio do
equilíbrio intergeracional não obriga os poderes públicos a um concreto dever de agir110.
Mas ele exige uma ponderação, equitativa e justa, dos interesses conflituantes, de modo
a que as decisões presentes não condenem as gerações futuras, de modo irreversível, à
privação dos recursos públicos existentes durante o período de vida das gerações
antecedentes.
Esclareça-se que isso não impede a ocorrência de períodos históricos de
retrocesso. Nem tão pouco a Constituição ou a lei poderiam ambicionar impedir o curso,
por vezes, brutal e surpreendente, da História. Obviamente, o princípio do equilíbrio

Considerações a respeito da relação entre Justiça Intergeracional, democracia e sustentabilidade, cit., pp.
150-151.
108
Discutindo a questão, mas admitindo a existência de direitos das gerações vindouras, ainda que futuros
e sem suporte presente de um sujeito deles diretamente detentor, ver JOERG CHET TREMMEL, A theory of
intergenerational justice, cit., pp. 56-57; ELSA VAZ DE SEQUEIRA, Direitos sem sujeitos?, in «Justiça entre
Gerações – Perspetivas Interdisciplinares» (org. Jorge Pereira da Silva/Gonçalo de Almeida Ribeiro),
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2017, pp. 19-20; JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça
intergeracional: entre a Política e o Direito Constitucional, cit., pp. 125-129.
109
Salientando esta contingência das gerações vindouras, que se encontram arredadas das decisões tomadas
antes do seu nascimento, ver LARS OSBERG, Meaning and Measurement in Intergenerational Equity, cit, p.
131; JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracional: entre a Política e o Direito Constitucional, cit., p.
96; GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO, O problema da tutela constitucional das gerações futuras, cit., p. 140.
110
É de rejeitar, por exemplo, a inscrição de um limite quantificado de défice orçamental no texto
constitucional. Quer porque isso implicaria que os tribunais (incluindo o Tribunal Constitucional)
passassem a controlar decisões políticas e administrativas – e não apenas normas jurídicas (cfr. artigo 277.º,
n.º 1, da CRP) –, já que a verificação de um défice superior ao estimado na Lei do Orçamento só ocorreria
após a execução orçamental. Quer porque corresponderia a uma rigidificação desnecessária e excessiva do
âmbito de livre decisão administrativa do Governo, através da previsão de um dever jurídico que poderia
revelar-se-á desadequada a determinada conjuntura histórica. Sobre a inexistência de previsão
constitucional expressa do princípio da sustentabilidade financeira, ver MARCO CALDEIRA, Sobre a
consagração da denominada «regra de ouro» no ordenamento jurídico português, in «Direito & Política»,
3 (2013), pp. 40-70.

44
intergeracional não pressupõe uma equiparação, milimétrica e forçosa, entre gerações.
Pode ocorrer que, de acordo com as regras do processo democrático, uma certa geração
obtenha vantagens assimétricas relativamente a outra geração111. O que não pode é
promover-se essa assimetria, seguros de que a delapidação dos recursos públicos
presentes apenas onerará os vindouros. Isso significaria privá-los da sua soberania e da
sua capacidade de livre escolha política, que ficaria cativa de decisões tomadas por outros
que não eles112. Assim, a oneração excessiva dos recursos públicos, que contribua para o
seu esgotamento ou para a sua escassez, constitui uma medida inadmissível de gestão dos
recursos públicos, por ser contrária ao princípio do equilíbrio intergeracional.

111
Nesse sentido, reconhecendo que o equilíbrio intergeracional não impõe uma equiparação absoluta e
mecânica entre gerações, ver SUZANA TAVARES DA SILVA, O problema da justiça intergeracional em jeito
de comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013, in «Cadernos de Justiça Tributária»,
n.º 00, abril/junho, 2013, p. 9; JORGE PEREIRA DA SILVA, Justiça intergeracinal: entre a Política e o Direito
Constitucional, cit., pp. 129-130.
112
Precisamente por isso, há quem se refira à pré-existência de um “contrato entre gerações” que, no plano
constitucional, garante que as decisões constituintes são não só tomadas pelas e para as gerações atuais,
mas também para as gerações vindouras. Assim, ver PETER HÄBERLE, A constitutional law for future
generations – the ‘other’ form of the social contract: the generation contract, in «Handbook
of intergenerational justice» (org. Joerg Chet Tremmel), Edward Elgar, 2006, pp. 223-225; CATARINA
SANTOS BOTELHO, A tutela constitucional das gerações futuras: profilaxia jurídica ou saudades do futuro?,
in «Justiça entre Gerações – Perspetivas Interdisciplinares» (org. Jorge Pereira da Silva/Gonçalo de
Almeida Ribeiro), Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2017, pp. 199-203.

45
SECÇÃO IV
O PRINCÍPIO DA BOA ADMINISTRAÇÃO

40. Relação entre meios usados e utilidades obtidas - Uma governação


criteriosa pressupõe a obtenção do máximo de utilidades dos recursos públicos
disponíveis. Como tal a gestão de recursos públicos pressupõe a sua maximização – em
termos de eficácia, de eficiência e de economicidade –, com vista à satisfação, tão ampla
quanto possível, das necessidades coletivas. Na verdade, a existência de numerosos
recursos públicos não corresponde, forçosamente, à obtenção de níveis simétricos de
satisfação dos cidadãos e das empresas. O sucesso relativo da governação administrativa
pressupõe, portanto, não só o escrupuloso uso dos recursos públicos disponíveis e a
execução das normas vigentes, mas também a capacidade de bem os administrar. Isto é,
de deles extrair a máxima rentabilidade possível. O princípio da boa administração surge,
então, como um conceito inter-relacional, dotado de uma inegável
pluridimensionalidade113.

41. Noção de eficácia - O conceito de eficácia pressupõe apenas a adequação de


certa atuação, ativa ou omissiva, para alcançar, total ou parcialmente, determinado
resultado ou objetivo. Ser eficaz é sinónimo de ser bem-sucedido. Nesse sentido, o
princípio da boa administração inclui, entre outras dimensões, um compromisso de
governar de modo eficaz. Geralmente, na ciência da gestão de empresas, a eficácia vem
associada às noções de eficiência e de economicidade, que formam a política dos “3E´s”.
Procurando, desde já, distingui-la da eficiência, a noção de eficácia corresponde
ao grau de alcance de determinado objetivo, enquanto a eficiência se apresenta como um
parâmetro operacional do modo de realização de um determinado procedimento. Por
vezes, no discurso empresarial e de gestão, é usual afirmar-se que ser eficaz é concretizar
as coisas certas, enquanto que ser eficiente é fazer certo as coisas 114. Curiosamente, o
atual artigo 5.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), não formula

113
JOÃO CARLOS LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos
Particulares (algumas considerações), Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 131-132; PAULO OTERO,
Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, Almedina, Coimbra, 2016, p. 106.
114
Em inglês, a distinção entre eficácia e eficiência traduz-se na diferença entre “do the right thing” e “do
things right”. Entre outros ver, ERIK SUNDQVISTA/FREDRIK BACKLUNDA/DIANA CHRONÉER, What is
project efficiency and effectiveness?, in «Procedia - Social and Behavioral Sciences» 119 (2014), p. 281.

46
qualquer referência expressa à eficácia, como critério indiciador de boa administração115.
Tal não significa, porém, que aquela não integre o referido princípio, pois a obtenção dos
resultados ou objetivos visados pelo bloco de normatividade vigente e fixados pelos
governantes, de acordo com a vontade democraticamente expressa, constitui condição
primária da boa governação administrativa. A eficácia já decorreria, aliás, do princípio da
boa prossecução do interesse público116, que integra um comando aos titulares de órgãos
administrativos para que governem de modo eficaz. Isto é, que alcancem os objetivos
fixados.

42. Noção de eficiência - Como já se intui (do que anteriormente foi dito), ser
eficiente pressupõe a comparação entre a atuação adotada, ativa ou omissiva, e todas as
demais atuações que poderiam ser potencialmente adotadas, com vista a medir se os
resultados foram obtidos com o máximo de poupança dos recursos públicos utilizados. O
grau de eficiência é medido em função do sucesso na alocação de recursos públicos a uma
certa atividade117. Em suma, governar eficientemente é concretizar determinada tarefa da
melhor maneira possível. Isto é, com o menor desperdício de recursos públicos, incluindo
tempo, meios humanos e infraestruturas118.
A recente reforma da lei procedimental administrativa veio conceder um maior
destaque à dimensão da eficiência, ainda que submergindo-a no conceito, mais amplo, de
boa administração119. Na verdade, o (agora revogado) artigo 10.º do CPA/1991 tinha por
epígrafe “Princípio da desburocratização e da eficiência”, conferindo maior destaque à
ideia de simplificação de procedimentos e de aproximação das decisões aos destinatários,
tomando-as como sinónimos de medidas promotoras da eficiência. Curiosamente (e,

115
Salientando esta omissão, ver MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Os princípios no novo CPA e o princípio da
boa administração, em particular, in «Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo», 1ª
edição, AAFDL Editora, Lisboa, 2015, p. 165.
116
Sobre a relação do princípio da boa administração com outros princípios gerais, ver o § # deste Manual.
117
JOÃO CARLOS LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos
Particulares (algumas considerações), cit., p. 124; ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR, Princípio
Constitucional da Eficiência Administrativa, Belo Horizonte, 2004, pp. 213-214; PAULO OTERO, Direito
do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 107.
118
A própria Constituição o impõe, quando determina, no seu artigo 267.º, n.º 5, que: “5 - O processamento
da atividade administrativa será objeto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a
utilizar pelos serviços (…)”.
119
Alguma doutrina expressa o seu temor pela perda de autonomia e, consequentemente, perda de utilidade
dogmática da eficiência, por força da sua integração no princípio, mais amplo, da boa administração. Nessa
perspetiva, teme-se que a eficiência passe a funcionar como mero subprincípio ou, até, mero critério da boa
administração. Assim, ver RUTE SARAIVA, O princípio da eficiência económica e financeira, in
«Organização Administrativa: Novos Actores, Novos Modelos», Volumes I, AAFDL Editora, Lisboa,
2018, pp. 228-229.

47
porventura, erradamente), o atual artigo 5.º do CPA mantém a desburocratização e a
aproximação como manifestações do princípio da boa administração. Essa opção não
encontra paralelo com outros ordenamentos jurídicos e tende a confundir o princípio da
boa administração com o princípio da simplificação e com o princípio da responsabilidade
democrática (ou “accountability”). De qualquer modo, certo é que a integração da noção
de eficiência no princípio de boa administração não desvalorizou a sua importância, antes
reforçando-a120. Com efeito, a medida do sucesso na implementação de procedimentos
para obtenção de um resultado tornou-se num aspeto central da própria normativização
do referido princípio, permitindo, designadamente, o seu controlo jurisdicional121.

43. Noção de economicidade - Por último, tem-se tornado habitual isolar ainda,
como dimensão da boa administração, a economicidade do uso de recursos públicos.
Assim, será económica a atuação que permita alcançar os objetivos da governação
administrativa com o mínimo dispêndio de recursos monetários e financeiros122. Só será
conforme a essa busca de economicidade uma decisão governativa que seja implementada
a um custo (monetário e financeiro) razoável. Essa razoabilidade é aferida por via
comparativa, à luz de análises económicas fundadas nos custos médios de atividades
similares que tenham sido desenvolvidas quer por entidades públicas distintas, quer por
entidades privadas que prossigam atividades comparáveis, quer ainda comparando os
custos anteriores de atividades similares, mesmo que prosseguidas pela mesma pessoa
coletiva pública.
Esta dimensão do princípio da boa administração encontra acolhimento expresso
no artigo 5.º, n.º 1, do CPA. Note-se, contudo, que o legislador aparenta ter secundarizado
a noção de economicidade face à noção de eficiência, pois alterou a ordem de menção às
mesmas, dando primazia à eficiência. Isto quando comparado com a redação do (agora
revogado) artigo 10.º, n.º 1, do CPA/1991. Com efeito, uma decisão governativa pode ser
mais eficiente, mas menos economizadora123. Obviamente, a aferição do respeito pelo
princípio da boa administração pressupõe uma ponderação acerca do equilíbrio entre cada
uma das suas dimensões: eficácia, eficiência e economicidade.

120
MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em
particular, cit. 164.
121
Para maior desenvolvimento, ver os §§ # e # deste Manual.
122
ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR, Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa, cit., pp. 228-
229; PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., pp. 107-108.
123
RUTE SARAIVA, O princípio da eficiência económica e financeira, cit., p. 230.

48
44. A natureza económica do conceito de boa administração - A discussão
acerca da boa administração corre sempre o risco de se confundir ou com a tomada de
decisões de cariz técnico ou com a formulação de juízos de mérito ou de oportunidade124.
Ora, caso a análise sobre a boa administração redundasse em qualquer um daqueles juízos,
estar-se-ia longe da vinculatividade normativa que é própria de um verdadeiro princípio
geral de Direito. E, com efeito, durante muito tempo, considerou-se que a avaliação da
boa (ou má) administração se reduzia a uma análise simultaneamente política – porque
valorativa – e técnica125. Predominava, assim, a natureza económica do conceito de boa
administração. O que impediria o controlo jurisdicional da má administração, na medida
em que a mesma apenas decorreria de juízos de mérito, de oportunidade ou técnicos.

45. A natureza jurídica do conceito de boa administração - Em grande medida,


por força da influência do Direito da União Europeia, enveredou-se pelo extremo oposto.
De acordo com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (cfr. artigo 41.º)126
e do Código Europeu de Boa Conduta Administrativa127 – que, por sua vez, se limitaram
a prosseguir a jurisprudência consolidada no Tribunal de Justiça128 –, procurou-se
juridificar tanto o conceito de boa administração que este acabou por se assimilar ao
próprio princípio da vinculação à normatividade. No fundo, de acordo com esta visão
extremada, bem administrar corresponderia a respeitar as vinculações jurídicas vigentes.
Ao invés, a má administração seria detetável sempre que o governante não implementasse
mecanismos e procedimentos previstos pela lei. Como é bom de ver, esta opção

124
Acentuando a cada vez mais ténue distinção entre legalidade e mérito, em grande medida, por via da
metodologia de controlo que é própria do princípio da proporcionalidade, ver LUÍS FILIPE COLAÇO
ANTUNES, Interesse público, proporcionalidade e mérito: relevância e autonomia processual do princípio
da proporcionalidade, in «Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço»,
Coimbra Editora, 2002, passim e, em especial, pp. 541-542; PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Volume I, cit., p. 272.
125
Bem ilustrativa deste entendimento foi a posição acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA),
durante a vigência do CPA/1991. Por exemplo, através do Acórdão proferido em 15 de outubro de 2003,
pela 3ª Subsecção do Contencioso Administrativo, no âmbito do Proc. n.º 03/02, o STA afirmou, para que
dúvidas não restassem, que a boa administração corresponderia a “um dever jurídico imperfeito, pois a sua
eventual violação que não se consubstancie na violação de princípios constitucionais ou legais não implica
qualquer sanção de caráter jurisdicional”.
126
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., p. 49;
MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em particular,
cit., pp. 167-168; PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 106.
127
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., p. 51.
128
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., pp. 49-50.

49
metodológica implicava hiperbolizar o princípio da boa administração, nele reunindo
vários outros princípios gerais, tais como:
(a) Garantias dos administrados;
(b) Transparência e acesso a documentos administrativos;
(c) Participação;
(d) Fundamentação racional.

Esta hipertrofia do conceito de boa administração contribuiria, assim, para uma


(quase) absoluta assimilação entre aquele e o princípio da vinculação à normatividade129.
O que implicaria uma perda inegável da autonomia e, portanto, da utilidade científica e
prática daquele.
A visão maximizadora, supra descrita, não se coaduna com a tradição juscientífica
portuguesa130. Nem tão pouco se revela útil, por redundar num controlo jurisdicional
maximalista de cada uma das normas aplicáveis a uma situação concreta. Contudo, tal
não significa que não haja interesse juscientífico numa tentativa de normativização do
critério da boa administração, transformando-o num efetivo princípio geral de Direito.
Para tanto, concorda-se com quem sustenta que há que reconhecer que o conceito
de boa administração engloba, em simultâneo, uma dimensão não jurídica e uma
dimensão jurídica131. A dimensão não jurídica corresponde à aferição técnica acerca da
eficácia, da eficiência e da economicidade das decisões governativas132. A dimensão
jurídica circunscreve-se apenas, e só, à aferição acerca da dimensão vinculada do
exercício do poder discricionário em causa133. Ainda que o juízo de mérito e de
oportunidade seja insindicável, existe uma dimensão normativa desse exercício que

129
Nesse sentido, ver o alerta de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo:
temas nucleares, cit., p. 52.
130
Desde há muito que a doutrina jusadministrativista tem vindo a autonomizar a boa administração das
demais vinculações normativas do agir administrativo. Entre outros, ver ROGÉRIO EHRHARDT SOARES,
Interesse Público, Legalidade e Mérito, Atlântida, Coimbra, 1955, pp. 179-180; PAULO OTERO, O Poder
de Substituição em Direito Administrativo, Volume II, Lex, Lisboa, 1995, pp. 638-639.
131
Nesse sentido, ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas
nucleares, cit., pp. 66-69.
132
Entre outros aspetos, há quem identifique como elementos não jurídicos: a) acessibilidade dos serviços
públicos; b) efetividade do cumprimento de tarefas administrativas; c) formação adequada dos dirigentes,
funcionários e agentes públicos; d) qualidade da regulamentação; e) uso adequado dos recursos públicos;
f) simplificação dos procedimentos. Assim, ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito
Administrativo: temas nucleares, cit., p. 69.
133
Em bom rigor, nenhum ato administrativo é verdadeira e integralmente discricionário, visto que existem
sempre dimensões do agir administrativo vinculadas aos princípios gerais de Direito. Por isso mesmo, deve
antes falar-se de atos predominantemente discricionários. Em sentido próximo, demonstrando que mesmo
os atos praticados ao abrigo de poderes discricionários permanecem sujeitos aos demais parâmetros de
normatividade, ver PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 77.

50
pressupõe o respeito mínimo por aspetos essenciais da boa governação134. Caso a atuação
seja frontalmente ineficaz, ineficiente ou não economizadora, então a vinculação jurídica
ao princípio da boa administração conduz à sua ilegalidade. E o mesmo se diga se houver
preterição de procedimentos e diligências que garantam a fiabilidade e correção dos juízos
acerca da eficácia, da eficiência ou da economicidade de determinada medida135.

46. O (res)surgimento da boa administração num contexto de escassez - A


consagração do princípio da boa administração, quer pelo Direito da União Europeia,
quer pelo Código de Procedimento Administrativo (CPA/2015), decorre de um propósito
ideológico inegável. Através dele, o legislador quis acentuar a lógica de poupança pública
e de gestão criteriosa dos recursos públicos, num contexto de inegável escassez. Não se
estranha, por conseguinte, que o próprio preâmbulo do CPA/2015 destaque que a
consagração do mesmo resulta do acolhimento de soluções de Direito Comparado136.
Aliás, em boa verdade, a expressa consagração do princípio da boa administração traduz
mais uma (dispensável) prestação de vassalagem ao Programa de Assistência Económico-
Financeira (2011-2014), que apenas evidencia uma capitulação ao discurso punitivo e aos
desígnios austeritários de determinadas correntes de pensamento político e financeiro137.
Em boa verdade, na lógica discursiva destas correntes, brandir o princípio da boa
administração significa vergar o Estado português à constatação de que deve gerir bem
os seus recursos públicos. Se esta (inconfessada) esperança – e mesmo crença – no poder

134
Porventura, acabando por incorrer no defeito que aponta à perspetiva europeia, AROSO DE ALMEIDA (cfr.
Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., p. 68) apenas logra identificar como
elementos jurídicos da boa administração vários princípios gerais e deveres procedimentais que podem ser
facilmente autonomizáveis. Ora, se a dimensão normativa se circunscrevesse a tais princípios e deveres,
não se vislumbraria qualquer utilidade dogmática na autonomização do princípio da boa administração.
135
Na linha do Acórdão “Technisch Universität München”, de 21 de novembro de 1991, Proc. n.º C-
269/90, do TJUE, entendo ser admissível um controlo jurisdicional que vise determinar se os elementos de
facto e os elementos jurídicos necessários à prolação de decisão administrativa de natureza técnica ou
predominantemente discricionária estão reunidos. Por exemplo, cabe aos tribunais determinar se os
procedimentos tendentes à avaliação técnica foram os mais adequados a garantir uma decisão fidedigna,
rigorosa e imparcial, à luz dos conhecimentos técnicos existentes à data. Para maior desenvolvimento, ver
MIGUEL PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu – A Convergência Dinâmica no
Espaço Europeu de Justiça Administrativa, Coimbra Editora, 2011, pp. 404-407.
136
Criticando o acolhimento do princípio da boa administração, por se tratar de uma importação acrítica de
ideias estrangeiras, de acordo com as tendências do momento, ver JORGE PEREIRA DA SILVA, Âmbito de
aplicação e princípios gerais no projeto de revisão do CPA, in «Projeto de Revisão do Código do
Procedimento Administrativo – Colóquio de 25 de junho de 2013» (org. Rui Machete/Luís Sousa da
Fábrica/André Salgado de Matos), UCP, Lisboa, 2013, pp. 65-68.
137
Qualificando essa cedência como uma capitulação ao “colonialismo científico estrangeiro”, ver PAULO
OTERO, O significado político da “revisão” do Código do Procedimento Administrativo (policopiado), in
«Colóquio “O Projecto de Revisão do Código do Procedimento Administrativo”», 3 de julho de 2013,
Ordem dos Advogados, Lisboa, em especial, pp. 6-10.

51
da lei para conter gastos públicos goza de um correspondente suporte racional, já são
contas de um outro rosário. O certo é que a consagração legislativa do princípio da boa
administração revela um excessivo apego a um conceito económico – ou mesmo
economicista – de governação administrativa. Porventura, serviu mais para adicionar uma
cruz na “check-list” de medidas impostas pela (extinta) “troika” do que para resolver
qualquer problema efetivamente diagnosticado.

47. Subsidiariedade face a outros princípios gerais - A interconexão do


princípio da boa administração com os demais princípios gerais de Direito demonstra,
aliás, que o mesmo só será aplicado a título subsidiário, quando os outros não sirvam
como parâmetro adequado de controlo de normatividade. Isto resulta, bem entendido, da
dupla dimensão (jurídica e não jurídica) do conceito de boa administração e do risco de a
sua apreciação implicar a formulação de juízos de mérito, de oportunidade ou meramente
técnicos. Como tal, apenas esgotada a aferição de eventual incumprimento dos demais
princípios é que haverá lugar à análise do princípio da boa administração.
Diga-se, aliás, que algumas das dimensões do princípio da boa administração
podem mesmo confundir-se com outros princípios gerais. Desde logo, com o princípio da
proporcionalidade138. Com efeito, o critério da eficácia aproxima-se, em muito, do critério
da adequação – isto é, da aptidão ou idoneidade do ato para proteção de outro valor
constitucionalmente protegido –, que constitui um dos três elementos do princípio da
proporcionalidade139. E, em certa medida, a proporcionalidade em sentido estrito também
revela inúmeras parecenças com a própria eficiência, já que pressupõe que se pode
discernir e alcançar a justa medida de determinada restrição; isto é, a medida alternativa
mais eficiente para alcançar determinado fim140. Outro princípio vizinho à moderna boa
administração é o princípio da (boa) prossecução do interesse público (cfr. artigo 266.º,

138
Nesse sentido, ver JOÃO CARLOS LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a
Garantia dos Particulares (algumas considerações), cit., p. 137; PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Volume I, cit., pp. 272-273.
139
MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em
particular, cit., p. 176.
140
A tal ponto que certa corrente doutrinária aparenta mesmo sugerir que esse controlo da boa administração
se traduza num controlo exclusivamente centrado na metódica própria do princípio da proporcionalidade.
Seria má governação uma governação que contendesse com este último princípio. A meu ver, tal esvazia
de conteúdo útil o princípio da boa administração. Representando essa corrente doutrinária, ver JOÃO
CARLOS LOUREIRO, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares
(algumas considerações), cit., p. 137; PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I,
cit., pp. 272-274.

52
n.º 1, da CRP, e artigo 4.º do CPA)141. Que também se confunde, em grande medida, com
a eficácia da governação. Por último, refira-se ainda o princípio do respeito pelos direitos
e interesses juridicamente protegidos dos administrados (cfr. artigo 266.º, n.º 1, da CRP,
e artigo 4.º, in fine, do CPA). Ora, a exigência de boa administração visa, também, quer
diretamente – por pressupor a satisfação de necessidades coletivas–, quer indiretamente
– através da poupança de recursos públicos e da abstenção de aumento da carga fiscal –,
o respeito e mesmo a promoção das posições jurídico-administrativas ativas dos
indivíduos e das empresas.
Em conclusão, não pode senão registar-se a exiguidade do espaço dentro do qual
se move o princípio da boa administração, visto que o mesmo se encontra cercado por
vários outros princípios gerais, cuja operatividade se tem revelado deveras superior. Até
pela sua maior sedimentação doutrinária e jurisprudencial. De onde resulta essa natureza
meramente subsidiária do princípio da boa administração.

48. A dificuldade de controlo jurisdicional - Sob pena de violação do princípio


da separação de poderes142, o princípio da boa administração só pode ser alvo de controlo
jurisdicional na sua dimensão jurídica. Isto é, não cabe aos tribunais conhecer da justeza
ou inadequação dos juízos sobre a eficácia, a eficiência ou a economicidade das medidas
adotadas. Cabe aos governantes governar. E aos tribunais garantir que aqueles o fazem,
respeitando a lei. Essa dimensão não jurídica, na medida em que envolve a prolação de
juízos técnicos, de mérito e de oportunidade, não é passível de qualquer sindicância
jurisdicional.
Isto não significa, porém, que essa mesma avaliação administrativa acerca da
eficácia, da eficiência e da economicidade não possa ser sindicada, em casos extremos143.
O que se exige é que esse controlo jurisdicional se restrinja à aferição sobre se a
formulação de tais juízos de mérito e de oportunidade incorpora uma violação grave e

141
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., p. 69.
142
PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 288-289; IDEM,
Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 274; MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Os princípios
no novo CPA e o princípio da boa administração, em particular, cit., p. 181.
143
Ao contrário, admitindo um controlo ainda mais amplo – que não se limitaria a violações graves e
manifestas –, por considerar que seria sempre possível juridificar o critério da eficiência, como repartição
ponderada dos meios empregues, com vista a alcançar determinado objetivo, ver MIGUEL ASSIS RAIMUNDO,
Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em particular, cit., pp. 184-185.

53
manifesta144 do princípio da boa administração145. Portanto, apenas decisões governativas
que desconsiderem, por completo ou de modo intenso, critérios de eficácia, de eficiência
e de economicidade é que são suscetíveis de invalidação jurisdicional. Daqui decorre que
é forçoso que se densifiquem critérios e parâmetros de controlo jurisdicional dessa
dimensão jurídica. O que não é tarefa fácil. Alguma doutrina propõe que se recorra às
deliberações e às recomendações de organizações internacionais146 – tais como o
Conselho da Europa e a OCDE – ou a padrões técnicos globais, fixados, por exemplo,
através de códigos de boa administração ou de boa conduta administrativa. Sucede que
tais padrões de boa administração correspondem, não raras vezes, a outros princípios
gerais e até a deveres jurídicos autónomos.
Mais uma vez, correríamos o risco de vir a sindicar o respeito por princípios como
os da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, da colaboração e da
transparência, ou por direitos como os do acesso à informação e aos documentos
administrativos, à fundamentação racional e à audiência prévia. Isso redundaria num
controlo sumptuário (e, portanto, dispensável) da (boa) governação, visto que bem
administrar corresponderia, afinal – e apenas nesta perspetiva –, ao mero respeito pelas
vinculações normativas vigentes. Desde que a lei fosse cumprida, concluir-se-ia por uma
boa governação. Ora, como é evidente, pode cumprir-se a lei sem se obter resultados
satisfatórios, sem usar os recursos do modo mais eficiente e sem curar de os usar de forma
criteriosa e economizadora147. Não cabe ao julgador decidir o que é agir de modo eficaz,
eficiente e economizador148. Mas cabe ao julgador assegurar que esses juízos foram
formulados de acordo com critérios, índices e parâmetros médios habitualmente

144
De certo modo, recuperar-se-ia o critério do erro manifesto de apreciação, relativamente a decisões
ostensivamente inadmissíveis ou manifestamente desacertadas, preconizado, para efeitos de controlo
jurisdicional de conhecimentos científicos e técnicos, por DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito
Administrativo, Volume II (col. Pedro Machete/Lino Torgal), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 94-
95. Rejeitando este critério, por temer que isso implique uma fragilização do direito de impugnação dos
particulares e por sustentar que essas dificuldades de controlo seriam colmatadas pela colaboração de
peritos científicos e técnicos, ver PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, cit., p. 768.
145
Em sentido mais amplo, mas também conferindo menor autonomia dogmática ao princípio da boa
administração, alguma doutrina prefere realçar a possibilidade de controlo de decisões de mérito, a partir
da sua juridificação, às mãos do princípio da proporcionalidade. Assim, ver FILIPA URBANO CALVÃO, O
princípio da eficiência, in «Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto», 7 (2010), pp. 332-
333; PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., 273-274.
146
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., pp. 58-59 e
67-68.
147
Alertando para a circunstância de não ser suficiente que se cumpram as vinculações procedimentais,
sendo indispensável que se garanta também a dimensão substantiva da boa administração, ver MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., pp. 60-61; PAULO
OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 110.
148
Adotando uma posição particularmente restritiva quanto à amplitude dessa intervenção jurisdicional, ver
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., pp. 72-73.

54
aplicados. Em suma, só um controlo mínimo da própria eficácia, eficiência e
economicidade, em casos de grave, manifesta e evidente violação permite salvar a
autonomia dogmática do princípio da boa administração.

55
SECÇÃO V
O PRINCÍPIO DA SIMPLIFICAÇÃO

§ 49. Simplificar a governação - Do princípio da boa administração já


resultariam deveres jurídicos de promoção da maximização do uso dos recursos públicos
(dimensão de “eficiência”) e de poupança de procedimentos e diligências que impliquem
custos acrescidos (dimensão de “economicidade”)149. Porém, a simplificação do ato de
governar emerge como princípio geral autónomo, dotado de especiais particulares que o
distinguem do anterior. Desde logo, porque simplificar a governação administrativa pode
até, no limite, nem implicar ganhos – pelo menos aparentes – para a administração
pública. Assim sucederá sempre que a simplificação vise beneficiar os indivíduos e
empresas que são destinatários de tais medidas150. Por outro lado, ainda que, em regra,
implique sempre ganhos de eficiência e, por conseguinte, poupanças públicas, certo é que
o principal objetivo da simplificação é tornar menos complexo e reduzir a volumetria151
de uma dada estrutura administrativa, de determinado procedimento ou de certo modo de
prestação de bens ou serviços públicos.
Algo menos complexo é algo mais facilmente apreensível por quem com ele
contacta. Por isso mesmo, a simplificação constitui também condição indispensável à
transparência administrativa e ao controlo democrático por parte de todos e, portanto, à
prestação de contas (ou “accountability”) por parte de quem governa. Se há algo que os
cidadãos têm vindo a reclamar, de modo reiterado, é que o Estado e os demais poderes
públicos sejam capazes de simplificar. Isto é, de não lhes criar problemas
(injustificados)152. Também por isso, a simplificação pressupõe a dispensa da prática de

149
Talvez por isso, alguma doutrina inclui a desburocratização como corolário do próprio princípio da boa
administração. Assim, ver PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 107.
150
Essa tem sido, aliás, a fundamental prioridade de todos os programas de simplificação administrativa e
de redução de encargos para os particulares. Assim, ver DOLORS CANALS AMETLLER, Simplificación
administrativa y directiva de servicios: objetivos, medios e incidencias, in «Revista Aragonesa de
Administración Pública», número especial («El Impacto de la Directiva Bolkenstein y la Reforma de los
Servicios en el Derecho Administrativo»), 12 (2010), pp. 306-307; MICHAEL PENFOLD/ANA AGUILERA, El
uso de las TIC para la simplificación de barreras administrativas a la inversión – Casos exitosos en
América Latina, in «Serie Políticas Públicas y Transformación Productiva», Banco de Desarrollo de
America Latina, 1 (2011), p. 7.
151
SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración Pública, in
«Revista de Administración Pública», 147 (1998), p. 7.
152
Assinalando a complexidade do cumprimento de deveres jurídicos e ónus como um dos principais
encargos e custos de contexto que os particulares enfrentam, ver DOLORS CANALS AMETLLER,
Simplificación administrativa y directiva de servicios: objetivos, medios e incidencias, cit., p. 306.

56
atos inúteis e injustificados153, bem como uma proibição de duplo fardo; isto é, de
repetição de diligências ou ónus redundantes154.
Bem entendido, simplificar não significa desregular, abster-se de intervir ou
deixar de garantir os valores e bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Não deve
confundir-se simplificação com desregulação155 ou com privatização156. Bem pelo
contrário, só através da simplificação se logra manter a qualidade dos serviços públicos e
a preservação dos recursos necessários à boa governação157.

§ 50. Distinção face a conceitos afins - Em boa verdade, pode simplificar-se de


várias formas. Desburocratizando procedimentos. Modernizando organizações e
métodos. Abreviando o tempo necessário às decisões. Acelerando a implementação de
direitos. É normal, assim, que a simplificação administrativa ande de braço dado com
vários outros conceitos, que revelam estratégias indispensáveis ao ato de simplificar. A
própria Lei Fundamental assume essa multiplicidade terminológica158. Começa, aliás, por
referir-se à desburocratização159 (cfr. artigo 267.º, n.º 1, 1.º trecho, da CRP), na linha das

153
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 54.
154
MICHAEL PENFOLD/ANA AGUILERA, El uso de las TIC para la simplificación de barreras
administrativas a la inversión – Casos exitosos en América Latina, cit., p. 10. Sobre o conceito de duplo
fardo, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 445-447,
609-610, 1200-1202, 1247 e 1290-1291.
155
Seria absurdo eliminar todas as exigências destinadas a garantir bens jurídicos como, a mero título de
exemplo (e sem qualquer pretensão de exaustão), o livre acesso à informação, indispensável a uma
concorrência sã e leal, ou a segurança alimentar. Precisamente por isso, custos administrativos como o
dever de comunicação de factos relevantes a entidades reguladoras ou como o dever de aposição de
etiquetagem informativa dos componentes e métodos de uso de produtos de consumo são, não só
perfeitamente justificados, como até desejáveis. Nesse sentido, ver MICHAEL PENFOLD/ANA AGUILERA, El
uso de las TIC para la simplificación de barreras administrativas a la inversión – Casos exitosos en
América Latina, cit., p. 9. Em sentido idêntico, referindo-se à desregulação do setor bancário como um dos
principais fatores da crise económico-financeira de 2008, ver DAVID GRAEBER, The Utopia of Rules – On
Technology, Stupidity, anda the Joys of Bureaucracy, cit., p. 8.
156
Em sentido próximo, ver MICHAEL PENFOLD/ANA AGUILERA, El uso de las TIC para la simplificación
de barreras administrativas a la inversión – Casos exitosos en América Latina, cit., p. 7.
157
SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración Pública, cit., p.
37.
158
Registando-a, ver SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración
Pública, cit., p. 7; ROSARIO FERRARA, Le “Complicazioni” della semplificazione amministrativa: verso
un’amministrazione senza qualità?, in «Diritto Processuale Amministrativo», Anno 17, 2 (1999), p. 345.
159
Curiosamente, a origem da expressão “burocracia” deve-se ao nome que era dado aos panos (“bureaux”)
que, por tradição, cobriam as mesas dos oficiais do governo francês, durante o século XVIII. Atento o
predomínio do modelo administrativo francês, rapidamente o termo passou a ser empregue para designar
os gabinetes onde os decisores e funcionários públicos trabalhavam, para, progressivamente, assumir a
noção contemporânea de aparelho burocrático. Sobre essa origem histórica, ver Reinhard Bendix,
Bureaucracy, in «International Encyclopedia of the Social Sciences» (org. David L. Sills), Volume 2,
Macmillan, New York, 1968, p. 206; MICHAEL A. LUTZKER, Max Weber and the Analysis of Modern
Bureaucratic Organization: Notes Toward a Theory of Appraisal, in «American Archivist», Vol. 45, 2
(1982), p. 120.

57
preocupações vigentes à data da sua redação, que assentavam no fim do modelo
burocrático weberiano160. Essa visão foi logo reforçada pela própria redação originária do
CPA/1991 que escolheu o termo “desburocratização” para dar mote à epígrafe do (agora
revogado) artigo 10.º. Só recentemente, com a aprovação do CPA/2015, se abandonou a
centralidade daquele conceito – inclusive, eliminando-o da epígrafe –, ainda que se tenha
mantido uma referência ao dever de organizar as estruturas e serviços administrativos de
forma não burocratizada (cfr. artigo 5.º, n.º 2, do CPA/2015).
Outro modo de simplificar pode traduzir-se (ou não) na modernização de
estruturas ou de procedimentos. Modernizar significa criar novos métodos ou adaptar
antigos métodos à descoberta de novos meios científicos e tecnológicos de organização e
prestação de serviços públicos. Pelo menos em regra, modernizar implica um aumento da
eficiência e uma maximização das necessidades coletivas satisfeitas. Devo alertar, porém,
que a modernização administrativa deve sempre passar pelo teste da simplificação e da
eficiência. Infelizmente, nem sempre a mera adaptação tecnológica implica a efetiva
poupança de tempo, de recursos e de atos, pelos respetivos destinatários; sejam eles os
administrados ou os próprios dirigentes e funcionários administrativos. Como tal, o
recurso a meios tecnológicos e a modernização das organizações e dos procedimentos
não deve ser vista como um mero fetiche161. Sempre que a mesma implique um aumento
de tempo e de recursos gastos, não pode senão concluir que a mesma nada simplifica.
Um terceiro conceito afim da simplificação corresponde à aceleração
administrativa. Não pode negar-se que a busca de celeridade nos procedimentos constitui
um dos principais objetivos de uma boa governação162. E que essa mesma celeridade é
até exigida pela própria Constituição (cfr. artigo 268.º, n.º 6, da CRP), que impõe um
prazo máximo de resposta pela administração, que é fixado pela lei em 90 (noventa) dias
(cfr. artigos 9.º e 58.º, n.º 1, do CPA). Acresce ainda que a própria lei procedimental
administrativa impõe aos órgãos administrativos um dever de celeridade, que inclui o
dever de evitar tudo o que seja impertinente ou dilatório (cfr. artigo 57.º do CPA).

160
Sobre este modelo, ver MICHAEL A. LUTZKER, Max Weber and the Analysis of Modern Bureaucratic
Organization: Notes Toward a Theory of Appraisal, cit., pp. 119-130.
161
Para uma crítica a este novo-riquismo juscientífico e político, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Administração
eletrónica e automatização: Contributos para uma reformulação da teoria geral das atuações
administrativas, in «Estudos em Homenagem de Rui Machete», Almedina, 2015, pp. 794-795.
162
Fixando-o como um dos elementos da boa governação, ver MILAGROS MARAVÍ SUMAR, La
simplificación administrativa: un assunto complejo, cit., p. 291; PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Volume I, cit., p. 108.

58
Contudo, a simplificação não se limita ao abreviamento de determinado
procedimento. Sem dúvida, deve promover-se a eliminação de fases procedimentais
meramente ociosas e, portanto, dispensáveis. Mas não basta acelerar determinado
procedimento para se concluir que o mesmo foi simplificado. Aliás, por vezes, simplificar
pode exigir conceder tempo suficiente ao administrado para bem compreender as várias
opções que se lhe apresentam. Em suma, ainda que, em regra, a simplificação
administrativa compreenda uma exigência de celeridade, nem sempre esta corresponde
ao desígnio de tornar menos complexo determinado procedimento.
Por fim, quer a Constituição (cfr. artigo 267.º, n.º 1, da CRP), quer a lei
procedimental administrativa (cfr. artigo 5.º, n.º 2, do CPA) fixam um dever de
aproximação dos serviços às populações163. Nem sempre essa aproximação corresponde
a uma simplificação. Pelo menos, quando aquela se traduza apenas numa aproximação
física ou presencial. Bem pelo contrário, ela pode mesmo implicar a criação de estruturas
orgânicas complexas e de procedimentos burocráticos dispensáveis. Isto é, caso a
aproximação dos serviços às populações seja exclusivamente interpretada como
manifestação de uma desconcentração administrativa, através da criação e manutenção
de serviços periféricos do Estado (e das demais pessoas coletivas públicas) presenciais164,
poderá mesmo questionar-se se a mesma não é adversa e até contraditória com o princípio
da simplificação165. Ainda para mais quando, por via do uso quotidiano e contínuo de
novos meios tecnológicos, se pode garantir essa mesma aproximação, com dispensa da
presença física de órgãos e serviços da administração pública166.

§ 51. A dimensão normativa: em especial, a previsibilidade – Quando se trata


de simplificar, a lei deve ser a primeira a dar o exemplo. Uma lei clara, enxuta e facilmente
compreensível é o (melhor) começo para a simplificação administrativa. Não é de

163
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 107.
164
Alguns autores parecem manter-se (porventura, excessivamente) presos ao conceito tradicional de
desconcentração, assente na ideia de criação e manutenção em funcionamento, com poderes próprios – e
não como meros coadjuvantes do órgão executivo central – de serviços físicos e presenciais. Assim, HONG
CHENG LEONG, O princípio da desconcentração, in «Organização Administrativa: Novos Actores, Novos
Modelos», Volumes I, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, passim e, em especial, pp. 187-188. Porém, quer-me
parecer que o conceito atual de “desconcentração” não abrange, apenas, os serviços presenciais, mas
também quaisquer meios tecnológicos, à distância, que permitam a aproximação dos serviços às
populações.
165
Nesse sentido, ver PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, cit., p. 489; IDEM, Direito do
Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 108.
166
Sobre o conflito entre a desconcentração, a descentralização e, por outro lado, a desmaterialização
eletrónica, ver o § # do presente Manual.

59
estranhar, portanto, que a doutrina167 e as instituições públicas, nacionais e internacionais,
se tenham afeiçoado a programas sucessivos de “Legislar Melhor” (ou de “Better
Regulation”)168. Atento o objeto do presente Manual, não se aprofundará o estudo acerca
da simplificação legislativa. De qualquer modo, não há como conter as seguintes (breves)
notas:
⎯ Lei simples é uma lei escassa – a contenção legislativa constitui
condição indispensável de simplificação, pois evita a proliferação de
regimes e a dúvida constante sobre a sua vigência e o seu conteúdo169;
⎯ Lei simples é uma lei clara – a natureza autoexplicativa e a redação
cuidada e espartana do texto normativo favorece a imediata
apreensibilidade e evita significativos custos de contexto, quer para a
administração, quer para os particulares, dispensando o recurso a
profissionais jurídicos e evitando conflitos, incluindo judiciais;
⎯ Lei simples é uma lei autossuficiente – deve evitar-se o uso abusivo de
conceitos jurídicos indeterminados e a remissão para normas
regulamentares que densifiquem conteúdos precetivos essenciais,
devendo estas já estar preparadas e prontas para imediata aprovação,
logo que a lei a regulamentar entre em vigor;

167
AAVV, Legística - Perspectivas Sobre a Concepção e Redacção de Actos Normativos, Almedina, 2002;
CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística – Critérios científicos e técnicos para legislar melhor,
Verbo, 2007.
168
O Programa ou Agenda “Legislar Melhor” (ou “Better Regulation”) corresponde a um desígnio da
União Europeia, com vista à sucessiva simplificação legislativa. Desde 2012, ele foi complementado pelo
programa “REFIT”, que visa proceder a uma revisão retrospetiva de toda a legislação europeia, de modo a
identificar oportunidades de revogação, consolidação ou fusão; isto é, de simplificação legislativa. Contudo,
sem prejuízo das boas intenções e da importância teórica de tais programas, não pode deixar de notar-se
que, não raras vezes, a legislação é fonte de criação de encargos sucessivos nos ordenamentos jurídicos dos
Estados-membros e peca por demasiado complexa e por ser hiperreguladora. É caso para se dizer, “bem
prega Frei Tomás; faz o que ele diz e não o que ele faz”. Sobre o conceito de “Legislar Melhor”, ver, entre
muitos outros, STEPHEN WEATHERILL, Better Regulation (Studies of the Oxford Institute of European and
Comparative Law), Hart Publishing, 2007; Robert Baldwin, Better Regulation: the search and the struggle,
in «The Oxford Handbook of Regulation» (org. Robert Baldwin/Martin Cave/Martin Lodge), Oxford
University Press, 2010; SACHA GARBEN/INGE GOVAERE, The EU Better Regulation Agenda – A Critical
Assessment, Hart Publishing, 2018.
169
O Programa do XXI Governo Constitucional (cfr. pp. 46-47) comprometeu-se em reduzir a quantidade
de legislação aprovada, sendo que o artigo 3.º, n.º 1, do Regimento do Conselho de Ministros, aprovado
pela Resolução n.º 95-A/2015, de 17 de dezembro, determina que apenas se realiza uma reunião mensal
com vista à aprovação de atos normativos. Com efeito, várias das medidas implementadas conduziram a
que, no ano de 2016, fosse obtido o recorde de menor produção legislativa do Governo, tendo sido apenas
publicados em Diário da República 96 (noventa e seis) decretos-leis. Para além disso, foi implementado o
Programa “Revoga Mais”, nos termos do que se procedeu a um levantamento sistemático de legislação
vigente, com vista à sua revogação ou à consolidação em diplomas únicos. Através do Decreto-Lei n.º
32/2018, de 8 de maio, procedeu-se à declaração formal de caducidade, por desuso ou por produção integral
de efeitos, de 1449 decretos-lei.

60
⎯ Lei simples é uma lei avaliada – só após uma prévia avaliação dos
impactos potenciais de novas medidas legislativas é que se pode
antecipar os recursos públicos indispensáveis à sua adequada
execução, bem como simplificar as exigências e encargos a que os
destinatários ficarão submetidos170.

De qualquer modo, a simplificação normativa abrange igualmente a simplificação


regulamentar e a simplificação interpretativa/aplicativa.
⎯ Simplificação regulamentar – Quanto à primeira, é crucial que a
administração esteja preparada para regulamentar as leis,
imediatamente a seguir à sua entrada em vigor, sob pena da sua
improdutividade171. As normas regulamentares devem ser igualmente
claras e sintéticas, não fixando encargos que não constem do respetivo
ato legislativo;
⎯ Simplificação interpretativa/aplicativa – Quanto à segunda, ao abrigo
do seu poder de autotutela declarativa172, os órgãos administrativos
devem apostar na adoção de circulares administrativas173 que
procedam à fixação da interpretação a aplicar ou, pelo menos, de
critérios interpretativos que permitam a cada serviço público aplica-
las, sem risco de falta de uniformidade.

170
Sobre o tema, ver o § # deste Manual.
171
Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, do Regimento do Conselho de Ministros do XXI Governo
Constitucional, aprovado pela Resolução n.º 95-A/2015, de 17 de dezembro, logo na fase de iniciativa,
todos os projetos legislativos devem incluir os respetivos projetos de atos regulamentares, bem como um
relatório sobre o grau e os custos de adaptabilidade dos sistemas tecnológicos e informáticos aos novos
regimes jurídicos propostos.
172
Relacionando esse poder de interpretar e aplicar as normas vigentes, ao abrigo dessa autotutela
declarativa com a necessidade de ponderação constantes entre princípios e bens jurídicos conflituantes,
reforçada pela proliferação de conceitos jurídicos indeterminadas e normas de textura aberta, ver PAULO
OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 434-437.
173
As circulares administrativas não se confundem nem são, forçosamente, regulamentos internos (ainda
que alguma, possam sê-lo, do ponto de vista material). Não raras vezes, elas são um instrumento de mera
comunicação intra-administrativa e de clarificação de procedimentos a adotar, ainda que possam não dispor
de força vinculativa própria, para além daquela que decorre do exercício do poder de supremacia
hierárquica. No fundo, elas correspondem a um ato administrativo plural, de eficácia interna, através do
qual o titular do órgão com poder de fixar a interpretação normativa aplicável, evita comunica-la,
individualmente, a cada um dos seus subordinados, optando por fazer circular essa informação. Assim,
rejeitando a natureza normativa de todas as circulares – o que, porventura, pode ser excessivo e carece de
análise casuística –, ver o Acórdão n.º 583/2009 (Vítor Gomes), do Tribunal Constitucional. Sobre o
conceito, rejeitando a conclusão maximalista da jurisprudência constitucional citada, ver JOÃO TABORDA
DA GAMA, Tendo surgido dúvidas sobre o valor das circulares e outras orientações genéricas, in «Estudos
em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches», Volume III, Almedina, 2011, pp. 157-225.

61
Para além disso, uma governação simplificada deve ainda apostar na adoção de
manuais e guias de procedimento174 e no uso de linguagem jurídica acessível175 nas
comunicações (incluindo atendimento presencial, telefónico e ofícios) que mantém com
os particulares.

§ 52. A dimensão orgânica: em especial, a cooperação - A simplificação


administrativa exige ainda a definição e a manutenção de estruturas e serviços
racionalmente adequados à obtenção dos resultados visados (dimensão da “eficácia”).
Conforme já demonstrei, num outro estudo176, a extinção, fusão e reestruturação
orgânicas constituem instrumentos habituais para obter ganhos de produtividade do setor
público. Portanto, simplificar (numa perspetiva orgânica) pode querer dizer racionalizar
– isto é, extinguir, fundir ou reestruturar – estruturas e serviços administrativos. Como é
óbvio, existe um ponto ótimo de estruturação administrativa. Devo reiterar, porém, que,
não raras vezes, a ânsia de reorganização administrativa acaba por redundar em custos
acrescidos e não em verdadeiras poupanças dos recursos públicos177. Isto porque essa
reorganização pode implicar:
(a) Mudança ou adaptação de instalações;
(b) Alteração de material de uso corrente (ex: papel timbrado, cartões
identificativos, placas de orientação, etc.);
(c) Transferência e formação de dirigentes e funcionários;
(d) Custos com transferência de património;

174
Com efeito, o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, que aprovou o novo Código do
Procedimento Administrativo, estabelecia um prazo de um ano, contado da entrada em vigor do mesmo,
para aprovação de um «Guia de Boas Práticas Administrativas». Passados mais de 2 (dois) desse prazo, o
referido guia continua sem ver a luz do dia.
175
A redação em linguagem simplificada já constitui, aliás, um dever jurídico, expressamente fixado pelo
artigo 16.º do regime jurídico das medidas de modernização administrativa (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
135/99, de 22 de abril, e de acordo com a redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 73/2014, de
13 de maio), que impõe que todos os documentos administrativo e, em especial, os que sejam utilizados em
comunicações com os particulares devem usar “linguagem simples, clara, concisa e significativa, sem
siglas, termos técnicos ou expressões reverenciais ou intimidatórias”. Mais uma vez, temos as leis
perfeitas. Falta só concretizá-las.
176
MIGUEL PRATA ROQUE, O princípio da mutabilidade das estruturas administrativas: extinção, fusão e
reestruturação orgânicas, in «Organização Administrativa: Novos Actores, Novos Modelos», Volumes I,
AAFDL Editora, Lisboa, 2018, pp. 297-298.
177
Na verdade, impõe-se garantir alguma estabilidade orgânica e institucional, visto que o princípio
democrático – que justifica a imposição de novas decisões e políticas públicas – deve ser compatibilizado
com o princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de previsibilidade. Assim, para maior
desenvolvimento, ver MIGUEL PRATA ROQUE, O princípio da mutabilidade das estruturas administrativas:
extinção, fusão e reestruturação orgânicas, cit., pp. 293-297.

62
(e) Perdas de eficiência resultantes da adaptação dos administrados, dos
dirigentes e dos funcionários.

Para além da própria definição da estrutura orgânica, há ainda que garantir a


simplificação das relações intra e interorgânicas. Do princípio da simplificação
administrativa pode extrair-se, ainda, o princípio da cooperação administrativa178. Quer
os órgãos da mesma pessoa coletiva pública (cooperação intra-administrativa), quer os
órgãos de pessoas coletivas públicas distintas (cooperação inter-administrativa) devem
contribuir para a simplificação de procedimentos e, como tal, para a racionalização do
uso de recursos públicos. Para tal, surgem como fundamentais instrumentos como a troca
de informações, o envio oficioso de pedidos, o auxílio administrativo ou as conferências
procedimentais. Atenta a natureza pedagógica do presente Manual, passa a sintetizar-se
alguns desses instrumentos de simplificação.
Quanto à troca de informações, deve realçar-se a urgência na implementação da
metodologia “uma só vez” (ou “once only”)179. Ela impõe que a administração pública
não possa exigir ao administrado que apresente determinado documento ou cumpra certo
ónus mais do que uma vez. Em especial quanto a informação que conste de registos
públicos ou de outras bases documentais administrativas, de acesso livre, não é admissível
que os serviços administrativos façam recair sobre os cidadãos e empresas o ónus de

178
Ao contrário do que sucede com o ordenamento jurídico alemão – em que o artigo 35.º, n.º 1, da Lei
Fundamental de Bona (“Grundgesetz”) impõe um dever de auxílio mútuo, entre todas as entidades
administrativas (e judiciais) –, a Constituição portuguesa não consagra expressamente o princípio geral da
cooperação administrativa. Ainda assim, ele tanto pode ser retirado, quanto ao órgão de soberania Governo,
do artigo 111.º, n.º 1, da CRP, do qual se deduz um dever de cooperação interinstitucional, como do artigo
229.º, que impõe um dever de cooperação entre a República e as Regiões. Para maior desenvolvimento,
sobre o princípio da cooperação administrativa, ver RUI LANCEIRO, O auxílio administrativo, in
«Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo», 1ª edição, AAFDL Editora, Lisboa,
2015, pp. 304-319.
179
A regra “uma só vez” (ou “once only”) já se encontra, hoje, expressamente consagrada. Com efeito,
desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 73/2014, de 13 de maio, o regime jurídico das medidas de
modernização administrativa (originariamente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril) não
só dispõe que os particulares estão dispensados da apresentação de documentos que se encontrem na posse
de qualquer organismo ou serviço da administração pública, cabendo a esta obtê-los (cfr. artigo 28.º-A)
Para além disso, os particulares também ficam dispensados da entrega de originais de documentos
autênticos ou autenticados (cfr. artigo 32.º, n.º 1), como impõe que, sempre que tais documentos constem
de arquivo de serviço público, cabe à administração pública confirmar a fidedignidade e a natureza oficial
de tais documentos (cfr. artigo 32.º, n.º 4). Para uma caraterização genérica da regra “uma só vez”, ver
ROBERT KRIMMER/TARMO KALVET/MAARJA TOOTS/ALEKSANDRS CEPILOVS/EFTHIMIOS TAMBOURIS,
Exploring and demonstrating the once-only principle: a European pespective, in «Proceedings of the 18th
Annual International Conference on Digital Government Research», Staten Island, 2017, pp. 546-551;
MARIA A. WIMMER/EFTHIMIOS TAMBOURIS/ROBERT KRIMMER/J. RAMON GIL-GARCIA/AKEMI TAKEOKA
CHATFIELD, Once only principle: benefits, barriers and next steps, in «Proceedings of the 18th Annual
International Conference on Digital Government Research», Staten Island, 2017, pp. 602-603.

63
cumprimento de determinado dever de informação ou de prestação180. Quando a
administração já dispõe de determinada informação em seu poder, ela não deve repercutir
esse encargo sobre os cidadãos e as empresas, devendo antes garantir a partilha de
informação, através da cooperação administrativa181. De modo algum, a decisão política
de desconcentração ou de descentralização pode repercutir-se, negativamente, sobre a
esfera dos administrados.
Outro instrumento inovador de simplificação, introduzido pela reforma da lei
procedimental administrativa, traduz-se no dever de envio oficioso de requerimentos que
tenham sido entregues perante órgão incompetente (cfr. artigo 41.º do CPA e artigo 12.º
do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril, correspondentemente alterado). Precisamente
por reconhecer que a atual complexidade orgânica pode induzir o administrado em erro,
o legislador ampliou o dever de envio oficioso, deixando de o restringir aos casos de erro
desculpável (cfr. artigo 41.º, n.º 1, do CPA/2015, por comparação com o, agora revogado,
artigo 34.º, n.º 1, do CPA/1991). Pode, contudo, questionar-se se a simplificação obtida,
do ponto de vista dos particulares, não corresponderá a uma simétrica complexificação,
no que concerne aos próprios serviços administrativos. Na verdade, não raras vezes, em
função de alguma iliteracia jurídica dos particulares (que se traduz na dificuldade de
comunicação e exposição das questões a tratar), torna-se extremamente difícil – senão
mesmo impossível – interpretar alguns requerimentos, de modo a diagnosticar qual será
o órgão ou serviço administrativo efetivamente competente. O que pode gerar, aliás, nova
devolução do requerimento por parte do órgão ou serviço a quem o requerimento é
reenviado182. Do simples se faz complicado, portanto.
Teoricamente, o mecanismo do auxílio administrativo constituiria uma outra
forma de simplificação, pois permitia uma forma expedita de obtenção de conhecimentos
técnicos ou de informações relevantes, dentro da própria administração183. Sucede,
porém, que o modo como o mesmo foi construído pelo legislador (cfr. artigo 66.º do CPA)
corre o risco de tornar mais complexo o procedimento e, principalmente, mais moroso184.

180
MILAGROS MARAVÍ SUMAR, La simplificación administrativa: un assunto complejo, in «Themis –
Revista de Derecho», 40 (2000), pp. 296-297.
181
Assinalando a troca de informações como uma consequência da cooperação administrativa, ver RUI
LANCEIRO, O auxílio administrativo, cit., p. 316.
182
Parecendo admitir esse reenvio, ver JOÃO TIAGO SILVEIRA, Simplificação administrativa no Código do
Procedimento Administrativo, in «Curso sobre a Revisão do CPA», Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
da Faculdade de Direito de Lisboa, 3 de julho de 2017, p. 5.
183
RUI LANCEIRO, O auxílio administrativo, cit., pp. 337-338.
184
Apontando igualmente esse receio, ver JOÃO TIAGO SILVEIRA, Simplificação administrativa no Código
do Procedimento Administrativo, cit., p. 6. De modo mais crente no dever de celeridade que resulta do
artigo 59.º do CPA, ver RUI LANCEIRO, O auxílio administrativo, cit., p. 331.

64
Em especial, quando o órgão a quem se requer auxílio não o presta dentro do prazo fixado
pelo órgão requerente, pois essa demora apenas poderá ser resolvida pelo órgão
encarregue da resolução de conflitos sobre atribuições ou competência185. O que, aliás,
suscita dúvidas sobre se, após requerido auxílio, o órgão requerente pode, ainda assim,
proferir decisão sem a intervenção do órgão requerido186.
Por fim, o mecanismo das conferências procedimentais visa igualmente
simplificar187 os procedimentos em que intervêm vários órgãos ou entidades públicas
distintas188. A prática tem demonstrado que a exigência de decisões e de pareceres por
várias entidades públicas – em especial, em sede de licenciamento industrial, comercial e
urbanístico – enreda os particulares num emaranhado diabólico. Porque neles proliferam
entidades, órgãos e serviços, muitas vezes com visões e interesses públicos antagónicos.
E porque a desarticulação entre os critérios e os tempos de decisão contribuem para o
aumento exponencial dos custos operacionais privados.
Mais uma vez, a boa intenção legislativa depara-se com algumas insuficiências,
na perspetiva da simplificação. Para começar, quando a lei, regulamento ou contrato
interadministrativo189 não as instituam – e sabemos que a previsão dessas conferências
ainda não constitui prática legislativa habitual190 – não se clarifica quando é que essas

185
Salientando a falta de clareza da solução normativa adotada, que não esclarece, de modo inequívoco,
qual a tramitação desse mecanismo de resolução de conflitos, ver RUI LANCEIRO, O auxílio administrativo,
cit., pp. 335-336.
186
Realçando que existe um dever jurídico de prestação do auxílio, dentro do prazo fixado, mas
reconhecendo que a lei procedimental administrativa não fixa nenhuma sanção para a falta de cumprimento
desse mesmo dever, veja-se RUI LANCEIRO, O auxílio administrativo, cit., p. 333.
187
Apontando-a, antes, como uma decorrência do princípio da boa administração, ainda que, porventura,
demasiado apegados à definição que o legislador delas dá, ver MARTA PORTOCARRERO, Procedimento
administrativo – aspetos estruturais, in «Cadernos de Justiça Administrativa», 100 (2013), p. 81; TIAGO
SERRÃO, A conferência procedimental no novo Código do Procedimento Administrativo: primeira
aproximação, in «Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo», 1ª edição, AAFDL
Editora, Lisboa, 2015, p. 350.
188
Em boa verdade, o legislador optou por não aderir ao modelo italiano de “conferência de serviços”,
exigindo que sejam os próprios órgãos administrativos (através dos seus titulares ou de terceiro com poderes
delegados) que intervenham nesse mecanismo de consensualização intra e interadministrativa. Assim,
expressando preferência por este modelo, ver MARTA PORTOCARRERO, Modelos de Simplificação
Administrativa – A Conferência Procedimental e a Concentração de Competências e Procedimentos no
Direito Administrativo, UCP, Porto, 2001, pp. 65-66; TIAGO SERRÃO, A conferência procedimental no novo
Código do Procedimento Administrativo: primeira aproximação, cit., p. 345.
189
Expressamente admitido pelo artigo 338.º do Código dos Contratos Públicos, conforme demonstra
TIAGO SERRÃO, A conferência procedimental no novo Código do Procedimento Administrativo: primeira
aproximação, cit., pp. 356-357.
190
Ainda assim, vai-se criando o hábito de consagrar, por via de ato legislativo, conferências
procedimentais em determinadas áreas da atividade económico. Por exemplo, foi isso que sucedeu com a
aprovação do regime jurídico de prevenção dos acidentes graves nas operações “off-shore” de petróleo e
gás, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 13/2016, de 9 de março, cujo artigo 4.º determina a realização de
conferências procedimentais deliberativas entre o Diretor-Geral da Direção-Geral dos Recursos Marinhos
e pela (agora extinta) ENMC – Entidade Nacional do Mercado de Combustíveis, E.P.E..

65
conferências assumem natureza deliberativa ou meramente coordenativa, o que pode
conduzir à tendência para apenas criar conferências de coordenação, reforçando o poder
de cada entidade ou órgão praticar atos autónomos191.
Por outro lado, não se simplifica o procedimento de emissão de pareceres – sendo
que, no caso do licenciamento, essa é uma vertente de particular complexidade e geradora
de ineficiências –, pois, ao invés de se impor a imediata prolação de pareceres, no próprio
decurso da conferência procedimental, permite-se que estes continuem a ser emitidos
autonomamente (cfr. artigo 79.º, n.º 7, do CPA)192. A exigência de delegação expressa,
sem concessão automática, “ex lege”, de poderes de decisão por representante designado
contribui ainda para uma formalização e demora excessivas do procedimento de
constituição de tais conferências. Por último, a ausência de regras claras quanto à
competência anulatória de atos complexos proferidos no decurso de conferências
deliberativas – que, portanto, são praticados por vários autores – também reduz o alcance
simplificador da medida legislativa, pois lança dúvidas sobre qual o destinatário de um
pedido de revogação ou de anulação193.

§ 53. A dimensão procedimental: em especial, a desburocratização - É usual


qualificar-se como burocratizado um procedimento que contenha fases, diligências ou
ónus que seriam dispensáveis para a boa tomada de decisão final. Dito de outro modo,
burocratiza-se quando o procedimento é moldado à imagem do órgão ou serviço
administrativo dele encarregue e não em função do objetivo final: a satisfação de
necessidades coletivas194. Isto é, quando as tarefas a cumprir pelos serviços e as
exigências a satisfazer pelos particulares apenas são impostas pela necessidade de
manutenção das rotinas dos dirigentes, funcionários e agentes da administração
pública195, assim justificando – na perspetiva do aparelho burocrático – a própria

191
Alertando para essa fragilidade, ver TIAGO SERRÃO, A conferência procedimental no novo Código do
Procedimento Administrativo: primeira aproximação, cit., p. 357; JOÃO TIAGO SILVEIRA, Simplificação
administrativa no Código do Procedimento Administrativo, cit., p. 7.
192
Isto sem prejuízo de se aceitar a participação de órgãos consultivos, competentes para a emissão de
pareceres, conforme também admite TIAGO SERRÃO, A conferência procedimental no novo Código do
Procedimento Administrativo: primeira aproximação, cit., pp. 351-352.
193
Assinalando essas dúvidas, ver TIAGO SERRÃO, A conferência procedimental no novo Código do
Procedimento Administrativo: primeira aproximação, cit., pp. 352-356.
194
Realçando que este deve ser o fim último do procedimento administrativo, ver MILAGROS MARAVÍ
SUMAR, La simplificación administrativa: un assunto complejo, cit., p. 290.
195
O que conduz à exasperação e ao desespero dos particulares que são forçados a relacionar, ocasional ou
sistematicamente, com a administração pública. Sobre essa dimensão pessoal de pesadelo, ver MICHAEL A.
LUTZKER, Max Weber and the Analysis of Modern Bureaucratic Organization: Notes Toward a Theory of
Appraisal, cit., p. 120.

66
sobrevivência da estrutura ou serviço administrativo196. Desburocratizar implica,
portanto, selecionar as fases, diligências e ónus que são essenciais e impreteríveis, à luz
da finalidade última da governação: garantir que são providos bens e serviços aos
particulares, com vista ao progresso social197.
A simplificação procedimental implica, então, desburocratizar o fluxo de tarefas
administrativas. Essa desburocratização pressupõe a primazia da materialidade
subjacente198 sobre o mero cumprimento de formalismos, legais ou apenas resultantes da
inércia administrativa, que prefere a repetição acrítica de meros usos (mais ou menos
compreensíveis) à flexibilidade necessária a uma atuação eficiente e adaptada a cada
situação concreta. Para tanto, o abandono de fórmulas sacramentais e excessivamente
apegadas à formalização surge como indispensável199. Nesse sentido, a desburocratização
pressupõe uma diminuição do formalismo excessivo200, através de estratégias como:
(a) Fim da exigência do preenchimento de informações desnecessárias, a
incluir em formulários201;
(b) Dispensa da apresentação de documentação comprovativa, de acordo
com o princípio “uma só vez” (ou “once only”)202;

196
Sobre as crónicas resistências de alguns setores do aparelho burocrático às mudanças que coloquem em
causa a sua própria subsistência, ver SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la
Administración Pública, cit., p. 10; O. TIEREAN/G. BRĂTUCU, The evolution of the concept of bureaucracy,
in «Bulletin of the Transilvania University of Braşov», Vol. 2, 51 (2009), p. 246; DAVID GRAEBER, The
Utopia of Rules – On Technology, Stupidity, anda the Joys of Bureaucracy, cit., p. 9.
197
Para alguns, mesmo a função prestadora do Estado deve ser encarada com suspeição e cinismo. Ficou
célebre a frase de Ronald Reagan, que ilustra bem este pensamento ultraliberal: “as nove palavras mais
aterrorizadoras, na língua inglesa, são: Sou do Governo e estou aqui para o ajudar” (na língua original:
“I´m from the government and I´m here to help”). Assim, ver DAVID GRAEBER, The Utopia of Rules – On
Technology, Stupidity, anda the Joys of Bureaucracy, cit., p. 4.
198
Nesse sentido, ver PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., pp. 108-109.
199
Sintomática deste hábito é a exigência reiterada de documentos legalizados ou notarialmente
reconhecidos e de certidões comprovativas, mesmo quando a lei não o impõe. Sobre este fenómeno,
SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración Pública, cit., pp. 31-
32; MILAGROS MARAVÍ SUMAR, La simplificación administrativa: un assunto complejo, cit., pp. 295-296.
200
Referindo-se-lhe como uma “rigidez frenética da procedimentalização”, ver ONOFRE ALVES BATISTA
JÚNIOR, Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa, cit., p. 351.
201
DOLORS CANALS AMETLLER, Simplificación administrativa y directiva de servicios: objetivos, medios
e incidencias, cit., p. 312. Hoje, já expressamente proibida pelo artigo 17.º, n.º 1, do regime jurídico das
medidas de modernização administrativa (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril, e de acordo
com a redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 73/2014, de 13 de maio), que determina: “1 - Nas
minutas e nos modelos de requerimento só devem constar os dados indispensáveis, nos termos do Código
do Procedimento Administrativo, ficando vedada a exigência de elementos que não se destinem a ser
tratados ou não acrescentem informação relevante à já existente no serviço ou que conste dos documentos
exigidos”. Faltará, contudo, efetivar este comando normativo. Visto que não são raros os formulários a
exigir o preenchimento de informações absolutamente dispensáveis e irrelevantes.
202
Assinalando a dupla (ou múltipla) exigência de documentos que já se encontram no poder da
administração pública como um dos principais vícios e excessos burocráticos, ver SEBASTIÁN MARTÍN-
RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración Pública, cit., pp. 31-32; MILAGROS
MARAVÍ SUMAR, La simplificación administrativa: un assunto complejo, cit., p. 296-297.

67
(c) Reconhecimento transnacional de documentos administrativos
estrangeiros, com vista à comprovação do cumprimento de exigências legais203;
(d) Criação de balcões únicos (“one stop shop”), perante os quais os
particulares possam obter informações, serviços e apresentar requerimentos204;
(e) Favorecimento do uso de meios desmaterializados e eletrónicos, que
permitam o tratamento digital em bases de dados;
(f) Interoperabilidade de sistemas informáticos, com vista ao acesso aberto
a informações administrativas;
(g) Promoção de sistemas de comunicação prévia, com fiscalização
subsequente, em detrimento de sistemas de licenciamento, com controlo prévio
do cumprimento de requisitos legais205;
(h) Dispensa da comparência presencial dos administrados perante os
órgãos e serviços administrativos.

§ 54. A dimensão prestacional: em especial, a celeridade - A simplificação


exige ainda uma mudança de paradigma, através da qual o foco da administração pública
deixe de estar sobre a própria tramitação burocratizada – tida como uma espécie de ritual
iniciático –, para passar a estar centrado na própria prestação pública. Não basta que o
procedimento de decisão seja simplificado. É ainda indispensável que a própria
operacionalização da decisão já tomada assegure uma execução desburocratizada da
prestação devida. De onde decorre uma nova centralidade da atuação administrativa, já

203
Assim, ver DOLORS CANALS AMETLLER, Simplificación administrativa y directiva de servicios:
objetivos, medios e incidencias, cit., pp. 312-315. Especificamente sobre os mecanismos de reconhecimento
transnacional de documentos e de atos administrativos estrangeiros, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A
Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 1199-1306.
204
SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración Pública, cit., p.
31; DOLORS CANALS AMETLLER, Simplificación administrativa y directiva de servicios: objetivos, medios
e incidencias, cit., pp. 315-317.
205
Em defesa deste modelo, ver, entre outros, PEDRO COSTA GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes
Públicos – O Exercício de Poderes Públicos de Autoridade por Entidades Privadas com Funções
Administrativas, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 202-203; MILAGROS MARAVÍ SUMAR, La simplificación
administrativa: un assunto complejo, cit., pp. 293-294; MARÍA CACHARRO LÓPEZ, Simplificación
administrativa, reducción de cargas y mejora de la regulación en materia urbanística, in «RIPS – Revista
de Investigaciones Políticas y Sociológicas», Vol. 12, 3 (2013), p. 124; DOLORS CANALS AMETLLER,
Simplificación administrativa y directiva de servicios: objetivos, medios e incidencias, cit., pp. 308-309.
Sustentando o modelo de comunicação prévia numa necessidade de promover a eficiência e a
economicidade, não prejudicando a livre iniciativa priva e o investimento privado, ver JOÃO MIRANDA, A
comunicação prévia no novo Código do Procedimento Administrativo, in «Comentários ao Novo Código
do Procedimento Administrativo», 1ª edição, AAFDL Editora, Lisboa, 2015, pp. 496-497.

68
não focada no próprio ato administrativo, mas nos atos reais tendentes à sua efetiva
implementação206.
Isto significa que o princípio da simplificação administração não vincula apenas
o administrador quando ele decide, mas também quando ele executa essas decisões207;
em especial, quando o mesmo provê bens ou presta serviços. Todos os atos reais de
execução devem ser balizados à luz desta exigência desburocratizadora. O fornecimento
de bens e a prestação de serviços públicos devem, então, dispensar fases, diligências ou
ónus que não sejam impostos pelo dever de garantir a satisfação, imposta pelo bloco de
normatividade, de uma concreta necessidade individual. Só assim, através da redução de
encargos administrativos desnecessários, se promove o investimento e o crescimento
económico sustentável208.
A execução da decisão que determina o fornecimento de um bem ou a prestação
de um serviço público deve ser simplificada, tecnologicamente apropriada, adequada e
célere. Aliás, a exigência de celeridade na prestação de serviços públicos constitui uma
decorrência direta do princípio da simplificação209, visto que a definição da prestação
devida já foi feita, no momento da tomada de decisão; isto é, da adoção do ato
administrativo que agora se executa. Salvo em caso de prévia fixação de uma condição
suspensiva, o protelamento na execução de uma prestação devida implica uma violação
do princípio da simplificação.

§ 55. Risco de conflito com direitos e garantias dos administrados - A


simplificação administrativa não pode ser confundida com a eliminação de mecanismos
de garantia do cumprimento das vinculações normativas vigentes ou dos direitos dos
particulares210. Atento o (ainda) elevado grau de iliteracia digital, a incessante tentativa

206
No dizer de PAULO OTERO, a execução, através de atos reais (que o autor denomina de operações
materiais), corresponde ao “momento da verdade e de realização prática do grau de insatisfação ou de
retrocesso/diminuição da sua efetivação”. Assim, ver PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Volume I, cit., p. 372.
207
Salientando a vinculação dos atos reais (ou operações materiais) aos princípios gerais de Direito, por via
do artigo 2.º, n.º 3, do CPA, ver PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p.
372.
208
SEBASTIÁN MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, De la simplificación da la Administración Pública, cit., p.
7; MILAGROS MARAVÍ SUMAR, La simplificación administrativa: un assunto complejo, cit., p. 290;
MICHAEL PENFOLD/ANA AGUILERA, El uso de las TIC para la simplificación de barreras administrativas
a la inversión – Casos exitosos en América Latina, cit., p. 20.
209
Assim, ver MILAGROS MARAVÍ SUMAR, La simplificación administrativa: un assunto complejo, cit., p.
291. Qualificando-a como complementar à desburocratização, ver PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, Volume I, cit., p. 108.
210
Alertando para a necessidade de continuar a garantir os bens jurídicos e o interesse público protegidos
pelas normas que regulam e disciplinam as atividades económicas, não se descurando o papel regulador e

69
de informatização e de desmaterialização corre mesmo o risco de degradar a posição
jurídica de uma fatia significativa da população atual211. Em especial, em matéria de
notificações administrativas212, a inexistência de meios tecnológicos que garantam a
fiabilidade da demonstração do efetivo conhecimento do teor dessas notificações afigura-
se particularmente preocupante, por colocar em causa o próprio princípio da segurança
jurídica. Precisamente por isso, o artigo 14.º, n.º 5, do CPA assegura que ninguém pode
ser prejudicado pela circunstância de não saber (ou não querer) usar meios eletrónicos,
nas suas interações com a administração pública213. Simplificar não pode significar
(apenas) reduzir custos para o Estado e para os demais poderes públicos. Esse fim obtém-
se através do princípio da boa administração, nas suas dimensões de eficiência e, acima
de tudo, da economicidade. O que não pode é invocar-se, interesseiramente, o desígnio
da simplificação administrativa, escondendo-se uma agenda de mera poupança de custos.
Para além disso, a passagem da documentação administrativa do suporte físico,
em papel, para o suporte digital comporta inegáveis vantagens214, mas também encerra as
suas desvantagens. É verdade que a desmaterialização permite uma poupança de recursos
públicos; entre os quais, o próprio consumo de papel, os recursos humanos necessários
ao arquivo e tratamento da documentação, os materiais de impressão, etc. 215. Mas essa
mesma desmaterialização também implica custos e riscos acrescidos:
⎯ Necessidade de aquisição de sistemas tecnológicos216 fiáveis e amigos
dos utilizadores (“user-friendly”);
⎯ Dependência dos órgãos e serviços públicos face aos fornecedores e
prestadores privados de equipamento e serviços informáticos;
⎯ Perda de soberania tecnológica e risco de quebra de confidencialidade
de informação administrativa, incluindo a reservada;

supervisor da administração pública, com vista à prevenção e repressão de infrações administrativas, ver
DOLORS CANALS AMETLLER, Simplificación administrativa y directiva de servicios: objetivos, medios e
incidencias, cit., p. 332.
211
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 489.
212
Recentemente, foi aprovado um novo regime de notificações administrativas, de adesão facultativa (cfr.
Decreto-Lei n.º 93/2017, de 1 de agosto). Sobre este regime e, em especial, sobre a sua dificuldade de
compatibilização com o regime geral fixado pelo Código do Procedimento Administrativo, ver o § # deste
Manual. A propósito do tema, ver ainda MIGUEL PRATA ROQUE, O procedimento administrativo eletrónico,
in «Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo», 1ª edição, AAFDL Editora, Lisboa,
2015, pp. 297-302.
213
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 489 e 493.
214
ALFONSO MASUCCI, L’Atto Amministrativo Informático – Primi Lineamenti di una Reconstruzione,
Jovene Editore, Napoli, 1993, p. 88.
215
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 488.
216
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 489-490.

70
⎯ Risco de adulteração dos suportes digitais217;
⎯ Vulnerabilidade dos sistemas informáticos à cibercriminalidade
(“hacking”, “phishing”, “malware”, “randsomware”);
⎯ Maior porosidade e circulação facilitada de informação pertencente às
entidades públicas e a terceiros.

Em especial, o uso de meios eletrónicos, com vista à simplificação administrativa,


facilita e é particularmente permeável à violação de dados pessoais e da reserva da vida
privada218. É, aliás, com acrescida preocupação que se encara a efervescente explosão de
mecanismos de interconexão de dados entre órgãos e entre entidades administrativas. Ao
invés de obedecerem a um regime jurídico especificamente concebido o efeito, esses
mecanismos de interconexão têm proliferado em normas orçamentais avulsas219.
Sem dúvida, a interconexão de dados permite concretizar uma cooperação
administrativa intra e interadministrativa, dispensando os particulares de comunicarem à
administração pública informações de que ela já dispõe220. Contudo, não pode senão
estranhar-se (ou antes se percebe bem) que o decisor político apenas se empenhe na
interconexão de dados que comporta consequências desvantajosas para o particular. E
não naquela que promova ganhos de eficiência, quer para a administração pública, quer
para os indivíduos e as empresas.
Para além disso, suscitam sérias dúvidas sobre a sua constitucionalidade as normas
que remetem para meros protocolos, entre pessoas coletivas públicas, órgãos, serviços, a
definição dos termos da troca eletrónica de dados, bem como as suas condições, incluindo
a definição dos titulares, dos dados e dos procedimentos abrangidos. Na realidade,
implicando elas uma restrição de direitos, não poderiam constar apenas de mero protocolo

217
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 494.
218
Para uma abordagem mais profunda aos problemas inerentes à detenção, tratamento e conservação de
dados informatizados, ver ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, “Privacy” e Protecção de Dados Pessoais: A
Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional, Volumes I e II, AAFDL Editora, Lisboa,
2015, passim e, em especial, pp. 557 e segs.; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I,
cit., pp. 490-495.
219
A título de exemplo, vejam-se: i) interconexão de dados entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e a
Direção-Geral das Atividades Económicas sobre imóveis nas quais haja lojas de interesse histórico, social
ou local (artigo 223.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para
2018, de ora em diante, apenas identificada como LOE/2018); ii) interconexão de dados entre os serviços
da Segurança Social e o Instituto de Emprego e de Formação Profissional, I.P., em matéria de apoios sociais
públicos e de prevenção da fraude (artigo 224.º da LOE/2018); iii) interconexão de dados entre a Autoridade
Aduaneira e Tributária e os serviços da área da administração interna e do planeamento e das infraestruturas,
em matéria de contraordenações rodoviárias (artigo 225.º da LOE/2018).
220
Reitera-se, portanto, a importância do princípio “uma só vez” (ou “once only”), tal como já realçado no
§ # deste Manual.

71
– isto é, de um contrato interadministrativo221 ou de um convénio interorgânico222,
consoante sejam órgãos de distintas ou da mesma pessoa coletiva pública –, devendo
antes ser previstas através de ato legislativo (cfr. artigo 18.º, n.º 3, da CRP). Mais um
exemplo de que a simplificação administrativa deve, tanto quanto possível, resultar da
prévia adoção de atos legislativos, sob pena de redução da margem de controlo
democrático e de prestação de contas (“accountability”) pelo administrador.

§ 56. Controlo político - Em primeiro lugar, cabe aos governantes serem agentes
de simplificação. Ora, para avaliar acerca da potencialidade simplificadora de medidas
concretas, há que ser capaz de medir, antecipadamente e “ex ante”, o seu impacto223.
Nesse sentido, no plano do Direito Comparado, vários governos têm procurado fixar
critérios de avaliação de impacto, que permitam melhor conhecer as consequências da
governação e desenhar as políticas públicas de simplificação. Por sua vez, a OCDE224
tem-se esforçado por traçar um quadro metodológico de medição – “ex ante”, mas
também “ex post” – dos custos de determinadas medidas (“SCM – Standard Cost
Model”), bem como dos respetivos benefícios.
Como tal, pode afirmar-se que existe um triplo controlo político:
⎯ Primeiro: por parte do Governo, dos demais titulares de cargos
políticos e dos dirigentes administrativos225;

221
Por todos, ver ALEXANDRA LEITÃO, Contratos Interadministrativos, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 116-
134.
222
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 340-342.
223
Sobre o princípio da monitorização e os vários métodos de avaliação de impacto de medidas legislativas
e administrativas, ver o § # deste Manual.
224
A OCDE tem publicado inúmeros estudos e relatórios sobre avaliação de impacto (“impact
assessment”), entre os quais se destacam os seguintes: i) “From Red Tape to Smart Tape” (2003); ii) “2005
Guiding Principles for Regulatory Quality and Performance”; iii) “2005 APEC/OECD Integrated
Checklist on Regulatory Reform”; iv) “Cutting Red Tape: National Strategies for Administrative
Simplification” (2006); v) “Overcoming Barriers to Administrative Simplification Strategies – Guidance
for policy makers” (2009); Notando a influência dos estudos da OCDE na delimitação de critérios e
metodologias de avaliação de impacto, ver, por exemplo, MARÍA CACHARRO LÓPEZ, Simplificación
administrativa, reducción de cargas y mejora de la regulación en materia urbanística, cit., pp. 129-132.
Para uma análise mais exaustiva sobre metodologias de avaliação de impacto, ver o § # deste Manual.
225
Há quem o qualifique antes como mero controlo administrativo, distinguindo-o entre autocontrolo e
heterocontrolo. Nesse sentido, ver PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, cit., p. 400. Porém,
na medida em que, frequentemente, os titulares de órgãos administrativos também são, em simultâneo,
detentores de poderes políticos – isto é, de poderes de definição de estratégias e de critérios gerais e
abstratos de afetação da realidade fáctica; que derivam da sua legitimidade democrática, direta ou indireta
–, creio tratar-se ainda de um efetivo controlo político. Isso é bem evidente, por exemplo, no caso do
Governo e no caso das Câmaras municipais. Neste último caso, aliás, pode suceder que – sempre que apenas
exista uma maioria relativa – que o órgão executivo seja maioritariamente constituído por partidos e listas
de cidadãos que se encontram a exercer o direito de oposição democrática. E o mesmo pode suceder em
casos de governos de coligação multipartidária. Por aqui se vislumbra o manifesto pendor político do
controlo exercido, mesmo por um órgão (teoricamente) executivo.

72
⎯ Segundo: por parte dos parlamentos e assembleias que assumem
funções de controlo;
⎯ Terceiro: pelos próprios cidadãos e pelos meios de comunicação
social226.

O controlo pelo Governo (e pelos demais dirigentes) é feito diretamente sobre os


serviços. O controlo pelos órgãos deliberativos apenas abrange o juízo político dos
titulares de órgãos, não sendo admissível um juízo diretamente dirigido às estruturas e
serviços administrativos que se encontram sobre a dependência daqueles. De qualquer
modo – até por força da crescente implementação de meios de avaliação de impacto –,
nada impede (e a prática até tem demonstrado o contrário) que os parlamentos sindiquem
o grau de cumprimento do princípio da simplificação administrativa. Quando disponham
de poderes legislativos, podem mesmo chegar a instituir novas metodologias e medidas
simplificadoras, com vista a suprir a incapacidade dos governos e das estruturas
administrativas para o fazer.

§ 57. Controlo jurisdicional (remissão) – Atenta a similitude das questões


suscitadas pela possibilidade de controlo jurisdicional do princípio da simplificação,
reiteram-se apenas as considerações já tecidas, a propósito do princípio da boa
administração227. Em suma, não cabe aos tribunais conhecer da correção, da oportunidade
ou, enfim, do mérito das decisões e das medidas simplificadoras – por exemplo, ajuizando
quais delas seriam mais adequadas –, mas apenas avaliar se, no percurso de decisão de
tais medidas, há elementos que permitam concluir pela ocorrência de um erro grave e
manifesto de apreciação pelo governante.

226
Ao que acresce a função de ouvidoria do/a Provedor/a de Justiça, que recebe queixas e pode formular
recomendação, com particular interesse no caso da promoção da simplificação administrativa. Sobre esta
função do/a Provedor/a de Justiça. Sobre esta forma de controlo, ver PAULO OTERO, Manual de Direito
Administrativo, cit., p. 399.
227
Para maior desenvolvimento, ver o § # deste Manual.

73
SECÇÃO VI
O PRINCÍPIO DA COLABORAÇÃO

§ 58. Colaboração: um conceito plurissignificativo - Não é nada raro que o


termo “governação” (ou “governance”) seja logo secundado e complementado pelo
adjetivo “colaborativa” (ou “collaborative”). Este termo encerra, em si, a lógica de que
não basta governar, se essa governação não lograr a adesão e a colaboração dos
destinatários da medida. Colaborar surge, assim, como uma estratégia promotora da
eficácia das políticas públicas e da eficiência dos meios empregues. A ideia de
colaboração surge, assim, como uma nova fase da reforma do setor público, que abandona
a ideia neoliberal de privatização e de mercantilização dos serviços públicos, para passar
a assentar numa governação dialogada, partilhada; em suma, colaborativa.
Apesar de a lei procedimental administrativa se referir expressamente ao princípio
da colaboração (cfr. artigo 14.º do CPA)228, tem imperado o uso substitutivo da expressão
princípio da cooperação, que assume um peso particular no Direito da União Europeia229
e que, por essa via, tem influenciado a ciência jurídico-administrativa nacional230. A
colaboração assume um significado múltiplo, pois tanto se traduz numa dimensão interna,

228
Curiosa e infelizmente, o modo como o legislador consagrou o princípio da colaboração ainda padece
de algum anacronismo, pois limita-se a adotar uma conceção minimalista do mesmo. Nos termos dos n.ºs
1 e 2 do artigo 14.º do CPA, aquele princípio parece ainda encontrar-se demasiado apegado a uma conceção
unilateral do princípio da informação; isto é, pressupõe que a administração pública continua a ser o
principal veículo de comunicação com os particulares, prestando-lhes informações e esclarecimentos.
Mesmo quando se refere ao apoio e ao estímulo de iniciativas, sugestões e informações dos particulares,
fá-lo sempre secundarizando a intervenção dos particulares. Não os colocando de igual para igual com a
administração pública. Ora, o princípio da colaboração pressupõe bem mais do que tolerar as iniciativas
dos particulares. Exige que estes possam ser verdadeiros parceiros, trabalhando lado a lado com a
administração pública.
229
Por vezes, também apelidado de princípio da lealdade comunitária. Assim, ver JÜRGEN SCHWARZE,
Europäisches Verwaltungsrecht, Band II, 1988, Nomos Verlagsgesellschaft, Baden-Baden, 1988, p. 60;
SANTIAGO MUÑOZ MACHADO, Los princípios generales del procedimento en el Derecho Comunitario, in
«El desenvolupament del dret administratiu europeu», Barcelona, 1993, p. 164; ROBERTO CARANTA, Tutela
giurisdizionale (italiana, sotto l´influenza comunitária), in «Tratatto di Diritto Amministrativo Europeo»
(org. Mario Chiti/Guido Greco), Giuffrè Editore, 1997, p. 653; EBERHARD SCHMIDT-AΒMANN, Allgemeines
Verwaltungsrecht in Europäischer Perspektive, in «Zeitschrift für öffentliches Recht», Band 55, Heft 2,
2000, p. 163.
230
MIGUEL PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, cit., pp. 63-66; RUI TAVARES
LANCEIRO, O Tratado de Lisboa e o princípio da cooperação leal, in «O Direito» (Cadernos), 5 (2010),
pp. 283-317; IDEM, O princípio da cooperação leal no âmbito da administração pública em especial as
vinculações resultantes do direito da União Europeia para o procedimento administrativo nacional de
prática de acto administrativo, BFDUL, Lisboa, 2016, passim; IDEM, O princípio da cooperação leal, a
autonomia organizativa e o bom governo administrativo, in «A Prevenção da Corrupção e Outros Desafios
à Boa Governação da Administração Pública» (Ebook), ICJP/CIDP, 2018, pp. 147-172; IDEM, O princípio
da cooperação leal com a União Europeia no âmbito da autonomia organizativa dos Estados Membros, in
«Organização Administrativa: Novos Actores, Novos Modelos», Volumes I, AAFDL Editora, Lisboa,
2018, pp. 249-291.

74
que abrange a intra-administrativa e a interadministrativa, como se traduz numa dimensão
externa, quando se refira às relações entre a administração pública e os particulares. Por
outro lado, tanto se pode falar em cooperação administrativa nacional, internacional
(quando abranja entidades de Estados distintos e/ou organizações internacionais), como
transnacional (quando inclua a cooperação com redes transnacionais híbridas)231.
As vantagens da colaboração são infindáveis. Ela decreta o fim da imposição vertical,
de cunho autoritário, das decisões governativas. Ela promove uma maior adesão dos
destinatários das medidas, gerando um sentimento de pertença dos mesmos à ação
governativa. Ela contribui para a durabilidade das políticas públicas, pois assegura um
mínimo de consenso político e social; em especial, quanto a medidas de médio e longo
prazo. Em suma, a colaboração constitui uma fase mais avançada das metodologias de
governação administrativa.

§ 59. Distinção face à mera participação - A colaboração não deve ser


confundida com a mera participação232. Aliás, a própria lei procedimental administrativa
opta por distingui-las (cfr. artigos 14.º e 15.º do CPA, respetivamente).
Enquanto esta pressupõe uma visão estática das relações entre a administração
pública e os particulares, a colaboração traduz, como nenhuma outra, uma visão dinâmica
das mesmas. Participar significa tomar lugar num procedimento que é conduzido por
outrem. Prepondera, assim, uma dimensão meramente coadjuvadora ou espectadora da
intervenção dos particulares. É certo, o particular intervém, age, questiona, é ouvido;
enfim, participa. Mas apenas participa num guião pré-concebido por quem governa. Ao
invés, colaborar significa ser parte ativa num procedimento conduzido a dois (ou a tantos
quantos os intervenientes)233. Laborar em conjunto. A agenda governativa deixa de ser
unilateralmente fixada pelos decisores políticos e administrativos. Ela é compartilhada
com os demais atores, públicos e privados. A ideia de partilha, de diálogo, de negociação
surge, então, como um traço distintivo desta nova forma de administração colaborativa234.

231
Sobre a governação transnacional (ou “global governance”), ver o § # deste Manual.
232
Conforme melhor se demonstrará infra (cfr. §§ ## e ## deste Manual), a participação corresponde a um
modelo de “aceno de mão”, enquanto a colaboração se traduz num modelo de “aperto de mão”.
233
Em sentido próximo, há quem realce que a colaboração dos particulares na prossecução de funções
administrativas não se circunscreve, nem pode ser confundida com a mera participação procedimental.
Assim, ver PEDRO COSTA GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, cit., p. 439.
234
Nesse sentido, ver JACQUES CHEVALIER, O Estado Pós-Moderno (traduzido por Marçal Justen Filho),
Editora Fórum, Belo Horizonte, 2009, p. 161; JAVIER BARNES, La colaboración interadministrativa a
través del procedimiento administrativo nacional, in «La Transformación del Procedimiento
Administrativo», Global Law Press, Sevilla, 2008, pp. 243-244; EURICO BITENCOURT NETO, O princípio
da cooperação leal, a autonomia organizativa e o bom governo administrativo, in «A Prevenção da

75
§ 60. Colaboração intra-administrativa - A colaboração tanto pode ocorrer
entre serviços integrados e sujeitos à direção do mesmo órgão, como entre órgãos que
integrem a mesma pessoa coletiva pública. Por outro lado, essa colaboração intra-
administrativa tanto pode ser institucionalizada – por exemplo, quando decorra da lei235,
de um protocolo ou de um manual ou guia de procedimento –, como pode ser meramente
informal, quando se traduza na prática pontual e casuística de atos colaborativos.
O exercício de poderes de direção – e, por conseguinte, de poderes de supremacia
de tipo hierárquico – não obsta à instituição de mecanismos colaborativos. Sem prejuízo
do poder unilateral que o titular de poder hierárquico mantém, de fixar o conteúdo final
da sua decisão, a instituição de mecanismos colaborativos reforça – ao invés de
fragilizar236 – o poder fáctico e a autoridade ética do governante. Mesmo dentro de
serviços dependentes do mesmo órgão administrativo, a boa gestão de recursos humanos
recomenda o estabelecimento de mecanismos colaborativos, que promovam o
intercâmbio de informações e de sugestões237, bem como a autoestima e o empenho dos
dirigentes e funcionários públicos:
⎯ Reuniões interdepartamentais periódicas;
⎯ Inquéritos de opinião e de satisfação;
⎯ Mecanismos anónimos para apresentação de queixas e sugestões
(“whistleblowing”)238;

Corrupção e Outros Desafios à Boa Governação da Administração Pública» (Ebook), ICJP/CIDP, 2018, p.
16.
235
Um exemplo paradigmático da consagração legal de mecanismos de colaboração intra-administrativa
corresponde à REJURIS, rede de colaboração entre serviços jurídicos das várias áreas governativas, que
visa criar uma dinâmica colaborativa e uma partilha interministerial de saber em matéria jurídica [cfr.
artigos 2.º, n.º 2, alíneas h) e k), e 13.º a 17.º do Decreto-Lei n.º 149/2017, de 6 de dezembro). A referida
REJURIS foi concebida como instrumento privilegiado do primeiro centro de competências jurídicas da
administração pública direta e indireta – isto é, do novo JurisAPP –, que foi criado, de modo inovador, pelo
Decreto-Lei n.º 149/2017, de 6 de dezembro.
236
Neste sentido, apontando a implementação de mecanismos colaborativos como uma forma de reforçar
o poder e a fiabilidade dos decisores políticos, ver KURT T. DIRKS, Three fundamental questions regarding
trust in leaders, in «Handbook of Trust Research» (org. Reinhard Bachmann/Akbar Zaheer), Edward Elgar
Publishing, 2006, pp. 15-28, YOON JIK CHO/EVAN J. RINGQUIST, Managerial trustworthiness and
organizational outcomes, in «Journal of Public Administration Research and Theory», Volume 21, 1 2011,
pp. 53-86; YOON JIK CHO/JUNG WOOK LEE, Perceived trustworthiness of supervisors, employee
satisfaction and cooperation, in «Public Management Review», Volume 13, 7 (2011), pp. 941-965.
237
EURICO BITENCOURT NETO, O princípio da cooperação leal, a autonomia organizativa e o bom governo
administrativo, cit., pp. 14-15.
238
Sobre este mecanismo, essencial para garantir a legalidade da atuação administrativa e prevenir práticas
ilícitas, designadamente, as que conduzam ao cometimento de crimes de corrupção, de tráfico de influências
e de branqueamento de capitais, ver YOON JIK CHO/HYUN JIN SONG. Determinants of whistleblowing within
government agencies, in «Public Personnel Management», Volume 44, 4 (2015), pp. 450-472; CECILIA
FLORENCIA, Whistle-blowing: individual and organizational determinants of the decision to report

76
⎯ Interoperabilidade de sistemas informáticos;
⎯ Protocolos de acesso e troca de informações;
⎯ Partilha de minutas de atos e de diligências a praticar.

No caso da colaboração intra-administrativa entre órgãos da mesma pessoa


coletiva, ela pode implicar o auxílio acessório ou coadjuvante, mas não pode traduzir-se
no exercício substitutivo de competência do órgão que solicita a colaboração, salvo em
caso de expressa previsão legal (incluindo por instrumentos de Direito Internacional239),
designadamente, nos casos de substituição ou de delegação.
O sucesso na implementação da colaboração intra-administrativa pressupõe a
capacidade de quebrar os silos (“breaking the silos”)240 – ou, de acordo com a tradição
popular nacional, de colocar termo à existência de “capelinhas”241 –, de modo a que todos
os órgãos da mesma pessoa coletiva trabalhem para um desígnio comum: o interesse
público. Não raras vezes, cada órgão, serviço ou departamento do Estado procura
maximizar as suas próprias vantagens, quer ocultando informação dos demais, quer
hiperbolizando o relevo e a importância das funções por si prosseguidas, designadamente,
reclamando mais meios (financeiros, humanos e infraestruturais). Cabe aos governantes
perceber que não são representantes de determinado serviço público, mas antes membros
de um órgão complexo que representa o interesse de toda a comunidade. O fim do

wrongdoing in the Federal Government, in «American Review of Public Administration», Volume 46, 1
(2016), pp 113-136; JEANNETTE TAYLOR, Internal whistleblowing in the public servisse: a matter of trust,
in «Administrative Law Review», April (2018), pp. 1-36.
239
Com vista a estimular a colaboração administrativa transnacional, têm sido aprovados (ainda que rara e
demasiado timidamente) tratados internacionais que visam estabelecer um regime uniforme para a prática
de atuações administrativas extraterritoriais. Entre tais exemplos, veja-se a Convenção Europeia sobre a
Notificação no Estrangeiro de Documentos em Matéria Administrativa, de 24 de novembro de 1977, ou a
Convenção Europeia sobre a Obtenção no Estrangeiro de Informações e Provas em Matéria Administrativa,
de 15 de março de 1978. Para maior desenvolvimento, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão
Transnacional do Direito Admistrativo, cit., pp. 1145-1148.
240
A OCDE tem sido percursora do uso desta expressão, utilizando-a em vários dos seus relatórios oficiais
e estudos técnicos. A mero título de exemplo, ver: i) FRANCESCA FROY/SYLVAIN GIGUÈRE, Breaking out
of Silos: Joining up Policy Locally, Local Economic and Employment Development Programme (LEED
Programme), 2008; ii) IDEM, Breaking Out of Policy Silos – Doing More with Less, LEED Programme,
2010; iii) OCDE, Breaking Silos: Actions to Develop Infrastructure as na Asset Class and Address the
Information Gap – An Agenda for G20, December 2017. A referida expressão tem vindo a disseminar-se
entre os estudiosos da modernização administrativa. Assim, ver FRANK BANNISTER, Dismatling the silos:
extracting new value from IT investments in public administration, in «Information System Journal», 11
(2011), 65-84; RAIMONDO IEMMA/FEDERICO MORANDO/MICHELE OSELLA, Breaking Public
Administrations’ Data Silos – The Case of Open-DAI, and a Comparison between Open Data Platforms,
in «JeDEM – eJournal of eDemocracy and Open Gouvernment», Volume 6, 2 (2014), pp. 112-122.
241
Usando esta expressão, ver JOÃO TIAGO SILVEIRA, Simplificação administrativa em Portugal: sucessos
e obstáculos, in «Conferência sobre Serviços Públicos», MLGTS, Lisboa, 25 de novembro de 2016, p. 9.

77
sectarismo departamental começa, portanto, pelos próprios dirigentes políticos. Que
devem ser os primeiros a dar o exemplo.

§ 61. Colaboração interadministrativa - Este segundo tipo de colaboração


revela-se mais problemático, visto que trata da articulação de órgãos e serviços de pessoas
coletivas públicas distintas que, como tal, não se encontram sujeito ao poder hierárquico
de um só titular. Assim sendo, a colaboração interadministrativa tende a ser mais
institucionalizada e rígida, pois – em regra – depende da expressa previsão de normas
(legais ou meramente protocolares) que fixem os termos dessa mesma colaboração.
Em sistemas político-administrativos descentralizados, este tipo de cooperação
assume um papel de relevo, atenta a proliferação de pessoas coletivas públicas
encarregues da satisfação de necessidades coletivas242. Deve frisar-se que a
descentralização não deve ser confundida com colaboração interadministrativa, visto que
aquela pressupõe uma transferência definitiva de atribuições que anteriormente cabiam
ao Estado (ou a outras pessoas coletivas públicas territoriais), ainda que permaneçam
sujeitas a poderes de controlo por parte deste(s)243. Porém, as novas entidades públicas
passam a assumi-las, autonomamente e em nome próprio, essas mesmas atribuições, sem
que haja, em termos técnico-jurídicos, nenhuma cooperação. Isso não significa que não
possam ser instituídos mecanismos colaborativos, por exemplo, entre o Estado e as
autarquias locais. Mas essa colaboração pressupõe sempre a execução conjunta de
determinada tarefa (“co+laborar”) – de acordo e nos limites das atribuições de cada
pessoa coletiva pública interveniente –, a delegação de competências ou a celebração de
acordos colaborativos ou de protocolos entre aquelas entidades244.
No caso da colaboração com entidades administrativas independentes, torna-se
particularmente delicado assegurar a imparcialidade e autonomia daquelas. Os protocolos
e mecanismos de colaboração nunca podem colocar em causa a independência funcional
daquelas entidades e a imparcialidade dos titulares dos seus órgãos. Entre outras
salvaguardas, é crucial que a colaboração não implique um condicionamento ao exercício

242
Assinalando que o princípio da descentralização não pode prejudicar, de modo inexorável, o princípio
da aplicação uniforme do Direito Administrativo, ver por DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito
Administrativo, Volume I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, p. 696; PAULO OTERO, Manual de Direito
Administrativo, cit., pp. 357-358 e 364.
243
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 713-714.
244
Sobre a celebração de acordos de parceria entre pessoas coletivas públicas, ver ALEXANDRA LEITÃO, As
parcerias público-públicas, in «Novas Fronteiras da Contratação Pública» (org. Eduardo Paz Ferreira/Nuno
Cunha Rodrigues», Coimbra Editora, 2014, pp. 11-39.

78
de poderes parajurisdicionais e normativos das entidades administrativas
independentes245, que a colaboração não pressuponha a substituição de funções
reguladoras por serviços ou funcionários de outras entidades públicas (em especial, do
Estado) e que as regras de financiamento dessas atividades colaborativas não fiquem
sujeitas à condição de as entidades reguladoras não exercerem (ou exercerem de certo
modo) os seus poderes.
Por fim, a colaboração interadministrativa tanto pode ser de âmbito nacional,
como abranger pessoas coletivas públicas sedeadas fora do território nacional, sejam elas
outros Estados ou entidades infraestaduais246. Pode, então, distinguir-se entre:
⎯ Cooperação transfronteiriça (com Estados ou entidades vizinhas);
⎯ Cooperação interestadual (com Estados ou entidades não vizinhas);
⎯ Cooperação internacional clássica (com organizações internacionais;
⎯ Cooperação transnacional (com redes e entidades híbridas
transnacionais).

§ 62. Colaboração público-privada - A governação colaborativa pressupõe


ainda a colaboração da administração pública com os particulares que são destinatários
da sua atuação247. Conforme já demonstrado248, a colaboração excede, em muito, a mera
participação. Pressupõe uma atitude proativa, quer das entidades públicas, quer dos
próprios indivíduos e empresas249. No caso dos concessionários de serviços públicos, essa
colaboração acaba por, simultaneamente, se aproximar de uma colaboração
interadministrativa – visto que as empresas que os asseguram se integram num conceito

245
Realçando a natureza inovadora dos regulamentos aprovados pelas entidades reguladoras, ver MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares, cit., pp. 104-105.
246
Exclusivamente a propósito dos contratos interadministrativos transnacionais, enquanto manifestação
de cooperação administratriva transnacional, ver ALEXANDRA LEITÃO, Contratos Interadministrativos, cit.,
pp. 549-586.
247
Sobre as várias formas possíveis de colaboração público-privada, ver PEDRO COSTA GONÇALVES,
Entidades Privadas com Poderes Públicos, cit., passim e, em especial, pp. 437-461.
248
Cfr. § # do presente Manual.
249
Não estão aqui em causa, por conseguinte, apenas os “atos administrativos consensuais”, que são
aqueles que radicam numa dualidade entre uma fase bilateralizada de negociação dos termos da decisão a
tomar e uma fase, necessariamente unilateral, de tomada da decisão anteriormente negociada. Estão em
causa atuações em que o próprio conteúdo da decisão a implementar é definido, por acordo ou consenso,
entre a administração pública e os particulares. Sobre os atos administrativos consensuais, ver MASSIMO
SEVERO GIANNINI, Diritto Amministrativo, Volume II, A. Giuffrè, 1988, p. 151; STICCHI DAMINANI,
Attività Consensuale e Accordi di Programa, Giuffrè, 1992, pp. 61-62; CERULLI IRELLI, Corso di Diritto
Amministrativo, 2ª edição, Giapichelli, 1997, p. 525; PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório,
Coimbra Editora, 2001, §§ 30.3. e 69, respetivamente, pp. 268-269 e pp. 337-339; IDEM, Legalidade e
Administração, cit., 842-844; MARTA PORTOCARRERO, Modelos de Simplificação Administrativa, cit., pp.
66-70.

79
lato de administração pública – e de uma colaboração público-privada, na medida em que
estes se substituem ao Estado e às demais pessoas coletivas públicas, na prossecução de
tarefas de interesse geral. No caso dos demais particulares, essa colaboração tanto pode
ser gratuita (e, portanto, altruísta) – é o que acontece, em geral, com o voluntariado, com
o mecenato, com algumas cooperativas e com outras entidades do terceiro setor 250 –,
como pode ser onerosa. A fixação dessa contrapartida pela colaboração tanto pode ocorrer
por via de lei, como por via de regulamento ou de contrato administrativo.
Podem identificar-se várias formas de parceria ou de partenariado entre o setor
público e os setores privado, social e cooperativo. Em sentido lato, as parcerias público-
privadas incluem todas as formas de colaboração com particulares. O empreendedorismo
(ou a inovação) social corresponde a uma dessas tipologias de parceria, em sentido lato,
entre o setor público e, em especial, o setor social e cooperativo. Ele pressupõe a
substituição das entidades públicas por entidades privadas sem fins lucrativos que
contribuem para a satisfação de necessidades coletivas através de formas inovadoras de
prestar serviços e cuidados de interesse geral251. Destacam-se as cooperativas, as
mutualistas, as misericórdias, as IPSS´s e muitas outras formas de voluntariado e de ação
comunitarista. Outra forma de parceria, ainda em sentido lato, traduz-se em mecanismos
criativos de colaboração, tais como os concursos de ideias 252, abertos a particulares e,
algumas vezes, até a funcionários públicos. Deste modo, os particulares são convidados

250
Sobre o papel do terceiro setor, ver AFONSO D´OLIVEIRA MARTINS/GUILHERME W. D´OLIVEIRA
MARTINS, Conceito e regime do terceiro sector: alguns aspectos, in «Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles:
90 Anos – Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa», Almedina, 2007, pp. 7-37; RAYMOND PLANT,
Estado, sociedade civil e o sector do voluntariado, in «A Sociedade Civil e o Mercado» (org. João Carlos
Espada), UCP, Lisboa, 2010, pp. 11-22; VASCO ALMEIDA, Estado, mercado e terceiro setor: a redefinição
das regras do jogo, in «Revista Crítica de Ciências Sociais», 95 (2011), pp. 85-104.
251
Sobre o papel destas instituições, ver TOM WOLFF, Mudança social e inovação social: criar soluções
colaborativas, in «Inovação Social», 2009, pp. 111-126; NAZARÉ DA COSTA CABRAL, A «new public
governance” e a inovação social: sua relevância no plano da provisão de serviços públicos e o seu
significado na emergência de um novo paradigma de políticas públicas, in «Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Aníbal de Almeida», Coimbra Editora, 2012, pp. 255-287; AGOSTINHO INÁCIO BUCHA, A
relevância do empreendorismo social, in «Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas», 23 (2013), pp. 7-
14.
252
Durante muito tempo, o regime de contratação pública era particularmente avesso a premiar os esforços
criativos daqueles que – dentro ou fora da administração pública – descobriam novas formas de prestação
de serviços públicos, bem como novas soluções para problemas antigos. Isto porque, independentemente
da originalidade das propostas, as entidades públicas eram, depois, forçadas a abrir procedimentos
concursais para execução dessas ideias que, muitas vezes, eram ganhos por outros concorrentes; o que
suscitava delicados problemas de propriedade intectual e industrial. Atualmente, desde a entrada em vigor
do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, o Código dos Contratos Públicos passou a admitir o ajuste
direto, quando estejam em causa concursos de conceção (cfr. artigos 219.º a 219.º-I, do CCP), em que a
entidade adjudicante tenha aberto um procedimento para concurso de ideias, com vista à prestação de
determinado serviço [cfr. artigo 27.º, n.º 1, alínea g), do CCP].

80
a apresentar propostas de modernização administrativa, auferindo (ou não) um prémio,
que pretende compensar essa colaboração com o setor público253.
Em sentido técnico – e bem mais estrito, portanto –, é usual referir-se as parcerias
público-privadas (PPP´s) como um específico instituto colaborativo, que permanece
vinculado a um regime jurídico próprio254. Por se terem revelado como prejudiciais ao
interesse público – em função da inclusão de cláusulas leoninas que favorecerem os
interesses dos contratantes privados, por incúria ou por dolo dos negociadores públicos –
, as PPP´s gozam, hoje, de inegável má fama. Pensar-se em PPP´s é associar-se às mesmas
um ambiente de promiscuidade entre governantes, por um lado, e administradores e
acionistas privados, por outro255. Trata-se do já bem conhecido mecanismo das “portas
giratórias” entre as empresas e a administração pública.256.
Acresce que, atenta a complexidade técnica da negociação dessas PPP´s com as
entidades privadas, muitas vezes, a representação das adjudicantes públicas é contratada
a entidades externas, através de “outsourcing”. Ora, não raras vezes, a dependência e a
promiscuidade entre essas entidades privadas e os concorrentes (ou as instituições que os
financiam), contribuem para prejudicar o interesse público, através da facilitação de
cláusulas que apenas favorecem o contratante privado257. Contudo, este instituto jurídico,
desde que devidamente utilizado e rigorosamente escrutinado pode constituir um
instrumento precioso para estimular a colaboração de particulares na satisfação de
necessidade coletivas.

253
Este modelo corresponde ao do concurso de ideias (cfr. artigo 219.º-J do CCP), em que a administração
pública se abre à apresentação de sugestões e ideias de particulares, com vista à melhoria dos seus serviços
ou da sua forma de organização e funcionamento. As propostas escolhidas são remuneradas através da
atribuição de um prémio monetário, mediante a transferência dos direitos de propriedade intelectual. No
âmbito da modernização administrativa, como exemplo de concurso de ideias, pode destacar-se o programa
“StartUp Simplex”, cuja informação se encontra disponível in https://www.simplex.gov.pt/startup.
254
Para uma análise exaustiva sobre as parcerias público-privadas,ver ALFREDO JOSÉ DE SOUSA, As
parcerias público-privadas e o desenvolvimento: o papel do controlo financeiro externo, in «Revista do
Tribunal de Contas», 36 (2001), pp. 27-45; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Parcerias público-privadas: a
experiências portuguesa, in «Direito e Justiça», volume especial (2005), pp. 175-190; EDUARDA AZEVEDO,
As Parcerias Público-Privadas: Instrumento de uma Nova Governação Pública, Almedina, 2009; NAZARÉ
DA COSTA CABRAL, As Parcerias Público-Privadas, Almedina, 2009.
255
JOSÉ MOURAZ LOPES, O Espectro da Corrupção, Almedina, 2011, pp. 105-107; RUI JANUÁRIO/PAULO
CAETANO, A Corrupção e o Estado, Edições Vieira da Silva, Lisboa, 2018, pp. 306-320.
256
Através das “portas giratórias”, os membros de gabinetes governamentais, os dirigentes administrativos
e funcionários públicos que participaram nos procedimentos decisórios que beneficiam determinadas
empresas, acabam por ser recompensados, através da contratação por parte destas ou de formas mais
criativas, como a compra de participações sociais em empresas de familiares ou de empresários próximos.
Assim, ver RUI JANUÁRIO/PAULO CAETANO, A Corrupção e o Estado, cit., p. 306.
257
Assim, ver RUI JANUÁRIO/PAULO CAETANO, A Corrupção e o Estado, cit., pp. 304-305.

81
§ 63. O funcionamento em rede – Nos dias que correm, a administração pública
funciona em rede258. A evolução de um modelo de administração participativa para um
modelo de administração colaborativa implica que os diversos dirigentes e funcionários
públicos funcionem como verdadeiros pontos focais da modernização administrativa.
Cada um deles, na sua respetiva trincheira, é um soldado da boa governação. Isto significa
que cada órgão, serviço ou departamento deixou de ser uma ilha isolada, assegurando as
suas tarefas de costas voltadas para os demais. Partilha de informações, interoperabilidade
dos sistemas informáticos259, avaliação conjunta das situações a decidir, codecisão
informada. Tudo isto implica que os decisores políticos e os dirigentes públicos adquiram
novas e multifacetadas competências:
⎯ Negociação de medidas;
⎯ Auscultação de intervenientes;
⎯ Avaliação de expectativas;
⎯ Promoção da adesão voluntária.
Essas redes colaborativas não incluem apenas agentes públicos. Bem pelo
contrário, abrangem, também, os particulares que são tidos como partes interessadas; ou
na terminologia inglesa, já tão vulgarizada e por demais apropriada pelo discurso da
gestão de organizações: os “stakeholders”260. No fundo, aqueles que são detentores
(“holders”) de um interesse em jogo (“stake”). Ou, numa terminologia
jusadministrativista mais clássica, os interessados. Nunca confundir os “stakeholders”
com os “shareholders” (ou acionistas)261. A natureza colaborativa dos primeiros
prevalece sobre a natureza apropriativa dos segundos. Ainda que, em alguns setores
ideológicos, a noção de acionista (ou de “shareholder”) pudesse espelhar a ideia de que

258
Sobre o conceito, ver MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, Uma administração pública em rede, in
«Sociedade da Informação: O percurso português – Dez anos de socidade de informação: análise e
perspectivas», Edições Sílabo, 2007, Lisboa, pp. 643-649; PEDRO COSTA GONÇALVES, Ensaio sobre a boa
governação da administração pública a partir do mote da “new public governance”, in «O Governo da
Administração Pública», Almedina, 2013, pp. 20-23; MIGUEL RODRIGUES, Do conceito de governança a
uma conceptualização da governança em rede, in «Handbook da Administração Pública», INA, Lisboa,
2013.
259
Sobre o conceito, ver PEDRO DIAS VENÂNCIO, O princípio geral da livre interoperabilidade, in «Scientia
Ivridica», 341 (2017), pp. 241-258.
260
Esta terminologia começou a ser usada por força da influência da obra de EDWARD FREEMAN, Strategic
Management: a stakeholder approach, Pitman, Boston, 1984. Progressivamente, ela tem-se sedimentado
na ciência da gestão pública. Assim, ver TIMOTHY ROWLEY, Moving Beyond Dyadic Ties: A Network
Theory of Stakeholder Influences, in «Academy of Management Review», 4 (1997), pp. 887-910; RONALD
MITCHELL, Toward a theory of stakeholders identification and salience: Defining the principle of who and
what really counts, in «Academy of Management Review», 4 (1997), pp. 853-858.
261
Para uma distinção, ver MATHIAS SIEMS, Shareholders, stakeholders and the ordoliberalism, in
«European Business Law Review», 2 (2002), pp. 147-159.

82
o Estado e os poderes públicos são detidos (ou apropriados) por quem detém nele(s)
detém uma participação, por via da contribuição para o erário público – em regra, por via
dos impostos –, ela não se afigura operativa para traduzir esta ideia de que cada indivíduo
e empresa é detentor de um interesse nas decisões em jogo, independentemente do valor
económico da sua posição específica.
O funcionamento em rede tende a criar organismos ou estruturas “ad hoc”, mais
ou menos informais, tais como grupos de trabalho (interministeriais ou mistos), comités
técnicos ou de peritos, redes (nacionais e internacionais), conselhos de sábios, entre outras
nomenclaturas. Não raras vezes, elas surgem como entidades híbridas, de composição
simultaneamente pública e privada. No plano global, tem-se registado uma proliferação
destas entidades híbridas transnacionais262, que exigem um constante esforço de
governação em rede, articulando, em permanência os interesses e expectativas de cada
“stakeholder”.

§ 64. A escolha dos interlocutores - Para que haja uma verdadeira administração
colaborativa, forçoso é que a expressão da vontade dos cointeressados seja fidedigna e
espelhe, de modo efetivo, a opinião pluralista dos vários setores de certa comunidade. A
representatividade real dos cointeressados (ou “stakeholders”) é essencial para a boa
governação e para a tomada informada de decisões. Se não quisermos ser ingénuos,
facilmente se concluirá que, muitas vezes, a realidade dos decisores políticos é algo
distorcida, por se resumir àquela que outros lhes dão a ver263. Bem intui o saber popular,
quando afirma: “Olhos não veem, coração não sente”.
Há vários fatores que colocam em causa a representatividade dos que integram
redes e estruturas, mais ou menos informais. Desde logo, a intervenção direta dos partidos
políticos no próprio associativismo, infiltrando militantes seus nas associações de todo o
tipo e finalidade. Em segundo lugar, a crise da intervenção cívica, que provoca um
decréscimo do número dos membros das associações representativas e, assim, a sua

262
MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., p. 884, n.r. 2415.
263
Conforme já demonstrou LOCKE, o entendimento humano forma-se através da acumulação de
experiência, quer do próprio indivíduo, quer de terceiros que a partilham, de modo a permitir a formulação
de um juízo de probabilidade sobre a veracidade de determinado facto. Tal significa que as opiniões de
cada indivíduo variam consoante o respetivo grau de informação, que resulta das experiências acumuladas.
Assim, na medida em que o tempo é escasso para testar todas as variantes de todos os assuntos que carecem
de decisões coletivas, nenhuma crença possa ser liminarmente excluída, o que recomenda a tolerância face
a visões plurais do mundo. Nesse sentido, ver JOHN LOCKE, Ensaio acerca do Entendimento Humano
(traduzido por Anoar Aiex), Nova Cultural, 1988, Livro IV (“Conhecimento e Opinião”), Capítulo XV,
artigos 3º e 4º, pp. 92 e 97.

83
própria representatividade. Em terceiro lugar, a profissionalização de algumas dessas
associações, que conduzem a que grande parte dos seus fundos sejam usados para suportar
custos correntes e permanentes (ex: pagamento de salários; aquisição e manutenção de
viaturas dos dirigentes; aquisição e manutenção de sedes, instalações e outras
infraestruturas; etc.), o que potencia a defesa de interesses corporativos e não a
prossecução do seu próprio objeto social. Por fim, a própria desvirtuação daquelas
organizações pelos interesses individuais (e, muitas vezes, individualistas) dos seus
membros, que procuram usar associações e redes como trampolim para as suas atividades
privadas, sejam elas empresariais, clubísticas ou políticas264.
Dito isto, importa frisar que a escolha dos interlocutores pode condicionar o
próprio conteúdo daquilo que queremos ouvir. Um governante que esteja mais interessado
em implementar a sua agenda política (e, por vezes, até pessoal) facilmente manipula o
resultado desse processo colaborativo, através da escolha dos seus interlocutores. Por
conseguinte, para evitar o risco de desvirtuação e de manipulação destes métodos de
governação colaborativa, torna-se indispensável apostar na transparência acerca da
identidade dos interlocutores ou cointeressados que integram as redes colaborativas265,
bem como privilegiar a ausculação direta, sem intermediação prévia, concomitante ou
posterior, por parte do decisor político. Cresce, então, a importância de mecanismos

264
A mero título de exemplo, para um estudo sobre vários casos de desvios de dinheiros públicos para
ONG´s, no Brasil, ver RAFAEL MARQUES CARNEIRO, Improbidade Administrativa no Terceiro Setor – A
Legitimidade Passiva Autônoma dos Dirigentes de ONGs, Centro Universitário de Brasília, 2015.
265
Com efeito, quer a UE, através do Relatório «Transparency of Lobbying in Member States –
Comparative Analysis», do Parlamento Europeu, de Abril de 2016 (disponível in
http://www.europarl.europa.eu/EPRS/Transparency_of_lobbying_in_Member_States.pdf), quer a OCDE,
através do Relatório «Lobbying: Influencing Decision Making with Transparency and Integrity», de Julho
de 2012 (disponível in http://www.oecd.org/cleangovbiz/toolkit/50101671.pdf), têm vindo a recomendar
e a promover medidas de transparência da atividades de mediação e promoção de interesses (ou
“lobbying”). Entre tais medidas, figura, precisamente, o registo público e livremente acessível de interesses
das pessoas e entidades que os promovem. Em Portugal, foram já apresentados projetos leis (cfr. Projeto
Lei n.º 225/XIII, de Deputados do CDS, e Projetos Leis n.º 734/XIII e n.º 735/VIII, ambos de Deputados
do PS), cuja principal medida passa pela criação de um registo público de “lobistas”, de acesso público e
gratuito. Apesar de já discutidos na generalidade – à data de publicação do presente Manual –, os referidos
projetos aguardam discussão e votação na especialidade. Sobre as metodologias de limitação do
“lobbying”, ver MARIE-LAURE BASILIEN-GAINCHE, La régulation des stratégies politiques des acteurs
économiques – Comment promouvoir un lobbying responsable?, in «Revue des Affaires Européennes», 17
(2009/2010), pp. 535-553; VALTS KANINŠ, Transparency in Lobbying – Comparative Review of Existing
and Emerging Regulatory Regimes, in «Polish Legal Journal», 16 (2011), pp. 1-69; GREGORY HOULLION,
Le Lobbying en Droit Public, Bruylant, Bruxelles, passim.

84
tecnológicos e anónimos de colaboração, como os questionários eletrónicos, as respostas
de conteúdo aberto, os referendos266 e os orçamentos participativos267.

§ 65. O risco de inércia - Não há como iludir. Governar em rede, de modo


colaborativo, cansa. Exige empenho. Gasta energia e recursos. E, se não houver um foco
na obtenção de resultados, pode ser um processo que se eterniza no tempo. A proliferação
de redes e a multiplicação de mecanismos colaborativos pode, também, criar a imagem
de uma administração que não sabe o que quer. Ou que só pode decidir quando alcance
um consenso relativamente alargado entre os vários cointeressados (ou “stakeholders”).
Ora, um dos problemas dessa busca incessante de consenso radica no risco de inércia por
parte de quem governa268.
Sem qualquer dúvida, a governação colaborativa facilmente cai no erro de apenas
conseguir gerar consensos quanto a um mínimo denominador comum, que une todos os
participantes num desses processos negociais. Muitas vezes, isso implica que a decisão
política final não seja a mais adequada; isto é, a mais eficaz, eficiente e economizadora.
Entra-se, assim, num ciclo de pequenas decisões, que pouco alteram a realidade fáctica,
na esperança de que todos os intervenientes se revejam na mesma. Passam a imperar os
conceitos jurídicos indeterminados e as declarações meramente proclamatórias 269. O
dissenso não desaparece. Simplesmente, ele transfere-se para o momento da aplicação ou
execução da decisão. E, lá chegados, recrudescem os conflitos e a litigiosidade entre os
titulares de direitos e interesses contraditórios, o que aumenta o risco de litigância perante
os tribunais270. Feito este diagnóstico, há que procurar antídotos para a mais nefasta

266
DANIEL ESTY, Good Governance at the Supranational Scale: Globalizing Administrative Law, in «Yale
Law Journal», 115 (2006), pp. 1530-1532; MAGDALENA BEXELL/JONAS TALLBERG/ANDERS UHLIN,
Democracy in global governance: the promises and pitfalls of transnational actors, in «Global
Governance», 16 (2010), p. 84; PAULO MÁRCIO CRUZ/GABRIEL REAL FERRER, Os novos cenários
transnacionais e a democracia assimétrica, in «Direito da União Europeia e Transnacionalidade» (org.
Alessandra Silveira), Quid Iuris, 2010, pp. 359-362.
267
Em Portugal, essas experiências iniciaram-se no poder local – em especial, no Município de Lisboa (cfr.
https://www.lisboaparticipa.pt/), tendo-se estendido ao nível governamental, através do «OPP – Orçamento
Participativo Portugal» (cfr. https://opp.gov.pt/).
268
Ainda que referindo-se ao procedimento legislativo, já GIAFRANCO PASQUINO salientou as dificuldades
de, no mundo contemporâneo, se lograr obter consensos sobre soluções precisas e concretas, o que favorece
a mera adoção de atos legislativos repletos de conceitos jurídicos indeterminados e de meras proclamações
políticas – as leizinhas ou “leggine” (na esteira do que já havia defendido WALTER BAGEHOT, The English
Constitution, Oxford University Press, Oxford, p. 145). Na verdade, essa dificuldade de acordo quanto a
questões específicas, através de um diálogo transparente e democrático, favorece, assim, a inércia
governativa. Pois quanto menos se decidir, menos risco haverá de gerar oposição. Assim, ver GIAFRANCO
PASQUINO, Curso de Ciência Política (traduzido por Ana Sassetti da Mota), Principia, Cascais, 2005, pp.
194 e 211-212.
269
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 434-437.
270
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 449.

85
consequência do modelo colaborativo de governação: a incapacidade de decidir. Tal
dependerá da capacidade de fixar e cumprir prazos de encerramento dos processos
negociais, da avaliação racional das vantagens e desvantagens comparativas de cada uma
das posições conflituantes e, em grande medida, da própria autoridade ética e pessoal do
decisor para fazer valer o interesse público (ou, pelo menos, a visão que dele se tem).

§ 66. O risco de favorecimento setorial - A proliferação atual de intervenientes


(ou “stakeholders”) profissionais incrementa o risco de favorecimento governativo dos
setores sociais, económicos e culturais que mais facilmente se movimentam nestas redes
colaborativas. Informação é poder. E poder falar é influenciar. Assim sendo, o acesso a
estes redes colaborativas constitui um manifesto privilégio dos interlocutores privados (e
até públicos), devendo ser fixados, por lei ou regulamento, critérios claros e sindicáveis
que disciplinem esse mesmo acesso. Pode falar-se, então, de um neocorporativismo271.
Isto é da renovação do papel e da interferência dos grupos de interesses na formação da
decisão pública e governativa.
Em determinados setores, em que impera a especialização financeira, científica ou
tecnológica, pode tornar-se difícil evitar o perigo da criação de monopólios colaborativos.
Isto porque, para simplificar, os “stakeholders” são sempre os mesmos. Em países e
economias de menor dimensão ou mais fechados à inovação e à ascensão social, esse
perigo de monopolização torna-se ainda mais intenso. Sem prejuízo da obtenção de
colaboração especializada, há que reforçar, nesses casos, a transparência no processo de
escolha e no próprio funcionamento das redes colaborativas; por exemplo, reduzindo a
escrito as atas de reuniões, promovendo a divulgação de declarações de interesses pelos
intervenientes, explicitando sempre o grau de participação desses “stakeholders” na
formação da decisão pública (v.g., elaboração de projetos legislativos; elaboração de
programas de concursos e de cadernos de encargos; desenho das políticas públicas ou da
estrutura administrativa a implementar)272.

271
Para um diagnóstico sobre esse fenómeno, ver MARIA LÚCIA AMARAL, O problema da função política
dos grupos de interesse: do pluralismo ao neocorporativismo, in «O Direito», 119 (1987), pp. 147-224.
272
Esse foi o modelo instituído, por exemplo, através do Regimento do Conselho de Ministros do XIX
Governo Constitucional, alterado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 51/2013, de 8 de agosto,
que consagrou a seguinte norma: «27.1.5 - Participação de grupos de trabalho ou comissões integradas
por peritos, personalidades de reconhecido mérito, ou entidades académicas, nos trabalhos preparatórios
de iniciativas legislativas ou regulamentares, bem como o recurso a entidades terceiras à Administração
Pública, realizadas ou a realizar». Porém, não só esse mecanismo se circunscrevia ao procedimento
legislativo do Governo, como a sua implementação não foi a mais constante ou sequer eficaz.

86
SECÇÃO VII
O PRINCÍPIO DA MONITORIZAÇÃO

§ 67. A urgência da monitorização - Para avaliar, recompensar e corrigir as


virtudes e as ineficiências da ação governativa, é crucial que se consiga fazer uma
radiografia ou um “check up” do estado do doente. Isto é, do aparelho administrativo.
Infelizmente, tornou-se demasiado usual ouvir políticos, jornalistas, comentadores e
(pretensos) especialistas proceder a análises convictas e bem-falantes sobre o estado da
administração e dos serviços públicos, sem que as mesmas sejam acompanhadas de
qualquer estudo de dados ou de estatísticas oficiais. Para solucionar este problema, há que
apostar nos serviços de planeamento, de estatística e de gestão estratégica, de modo a
reunir um conjunto de informação indispensável à avaliação das políticas públicas273.
A cultura de avaliação permanente constitui um pressuposto do controlo
democrático do poder instituído, quer pelos órgãos formais (isto é, parlamentos,
provedores de justiça, partidos da oposição), quer pela própria opinião pública, seja
diretamente, através de movimentos sociais e de redes virtuais, seja de forma mediatizada,
através da comunicação social tradicional274. Para que isso possa acontecer, é forçoso que
haja instrumentos fiáveis, credíveis e objetivos de monitorização da atuação governativa.
No caso de os mesmos serem assegurados pelo Estado, há que garantir a sua (tendencial)
autonomia e, em especial, a sua objetividade. No caso da monitorização feita por
entidades privadas, há que lhes garantir o acesso à informação governativa.

§ 68. Os custos políticos da monitorização - Qualquer instituição, mesmo as


mais modernizadas e dinâmicas, é resistente à avaliação. E, curiosamente, é resistente
tanto à avaliação externa, por terceiros, como pela avaliação interna, feita entre pares.
Como tão bem ilustrou JOSÉ SARAMAGO, na sua obra Todos os Nomes, para o aparelho

273
Recentemente, através do Decreto-Lei n.º 149/2017, de 6 de dezembro, foi criado o primeiro centro de
competências da administração direta central, que pretende servil de modelo/padrão para futuros serviços
similares: o JurisAPP – Centro de Competências Jurídicas do Estado. Sobre a importância destas estruturas
e serviços, ver AAVV, Relatório sobre Gabinetes de Estudos e de Planeamento na Administração Pública
Portuguesa do Século XXI, Observatório Permanente da Administração Pública, ICJP/CIDP, Lisboa, 2018,
disponível in https://www.icjp.pt/sites/default/files/cidp/projectos/docs/relatorio_final_2018_0.pdf;
DOMINGOS SOARES FARINHO, Os centros de competências e estruturas partilhadas na administração
púbica portuguesa: uma primeira reflexão, in «Organização Administrativa: Novos Actores, Novos
Modelos», Volumes I, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, pp. 693-711.
274
Sobre estas formas de controlo político e de controlo social do exercício de poder, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, Lições de Ciência Política, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, §§ # a #.

87
burocrático tudo vai (sempre) bem275. Já que questionar o desempenho do nosso colega
de trabalho é abrir portas à nossa própria exposição. Não monitorizar é garantir que tudo
continua na mesma. E, numa estrutura administrativa, a permanência constitui um traço
de segurança para quem a integra. “Foi sempre assim” corresponde à fórmula mágica do
precedente administrativo276, que protege o funcionário público. Mas que promove a
inércia.
Monitorizar comporta custos. Custos financeiros e custos políticos. Dos primeiros
já curarei277. Quanto aos segundos, há que reconhecer que a implementação de
mecanismos de monitorização causa desagrado. Causa desagrado aos monitorizados, mas
também causa desagrado a quem beneficia da ação dos monitorizados. A avaliação de
determinado serviço administrativo tanto pode desagradar, portanto, aos respetivos
dirigentes, como aos cidadãos e empresas que beneficiam do seu funcionamento
ineficiente, ilegal ou mesmo pouco escrupuloso. Talvez por isso seja tão difícil
implementar o princípio da monitorização.
Ademais, a monitorização revela as insuficiências e carências dos serviços
públicos e, com elas, expõe, à luz do dia, a má governação. O que, por sua vez, penaliza
os dirigentes administrativos e os respetivos responsáveis políticos. Também por isso,
cresce a descrença na fiabilidade dos números e estatísticas fornecidos por governantes e
organismos públicos278. Crê-se (e, porventura, com algum fundo de verdade) que só são
divulgados os resultados favoráveis aos titulares conjunturais de cargos públicos.
Monitorizar implica, assim, aceitar o risco de revelação de dados (apenas) aparentemente
desfavoráveis a quem monitoriza. Porém, tal como qualquer doença, só um diagnóstico
sério constitui caminho para a cura.

275
Nessa obra, JOSÉ SARAMAGO relata-nos a vida entediante e monótona de um escriturário de um cartório
do registo civil, que começa por colecionar recortes de pessoas famosas, para depois, enfastiado, decidir
passar a colecionar informações sobre pessoas comuns, a partir das informações administrativas que recolhe
do registo civil. Retratando a vida burocrática do dito cartório, o autor traduz bem essa resistência do corpo
administrativo à monitorização: “Lá em baixo, a nenhum dos seus colegas de categoria, dos superiores
nem vale a pena falar, passava pela cabeça a ideia de levantar os olhos para ver se o trabalho lhe estava
a correr bem. Dar por entendido que sim era uma outra maneira de justificar a indiferença” (cfr. JOSÉ
SARAMAGO, Todos os Nomes, Caminho, 1997, pp. 20-21).
276
PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., pp. 113-118 e 172-174.
277
Cfr. § # do presente Manual.
278
É comum salientar-se a constatação de que os números, quando devidamente torturados, confessam tudo
o que o torturador pretenda que seja confessado. Por todos, sobre a possibilidade e os riscos de manipulação
de estatísticas, ver DARRELL HUFF, How to Lie with Statistics, Norto & Company, New York, 1954.

88
§ 69. O conceito de avaliação de impacto - O princípio da monitorização exige
a implementação de mecanismos, tão permanentes quanto possível, de avaliação do
impacto das decisões governativas. Essa avaliação tanto pode traduzir-se no estudo do
impacto legislativo – isto é, nas consequências de determinada decisão político-legislativa
–, como do impacto de políticas públicas – isto é, da orientação da própria atividade
governativa –, como ainda do impacto da execução de medidas administrativas concretas
– que tanto poderão ser atos administrativos, como contratos públicos ou atos reais. Por
outro lado, o impacto tanto pode ser financeiro (isto é, pecuniariamente mensurável),
como económico, em sentido amplo, abrangendo quer o impacto social (por exemplo,
criação de postos de trabalho; redução do tempo gasto em deslocações; favorecimento do
lazer e da fruição cultural pelos indivíduos), quer o impacto ambiental, quer o impacto
concorrencial.
A avaliação de impacto tem constituído uma das principais preocupações dos
países democráticos e das economias mais desenvolvidas. A medição dos custos da
intervenção pública favorece a eficiência da governação e promove o crescimento
económico e a atração de investimento privado, nacional e estrangeiro. Em particular, no
âmbito da OCDE, têm-se desenvolvido esforços assinaláveis para garantir a criação, a
manutenção e o aperfeiçoamento de mecanismos de avaliação de impacto (ou “RIA –
Regulatory Impact Assessment”)279.
No caso português, a implementação de medidas de monitorização tem sido
(demasiado) lenta e gradual280. Sem prejuízo de algumas iniciativas pontuais, ao longo
dos tempos281, o dever de monitorização apenas foi formalmente previsto através do
aditamento282, em 2014, de uma alínea d) ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 4/1997, que

279
Para maior desenvolvimento, sobre este mecanismo ver OCDE, Introductory Handbook for Undertaking
Regulatory Impact Analysis (RIA), October 2008, disponível in https://www.oecd.org/gov/regulatory-
policy/44789472.pdf; CLAUDIO M. RADAELLI/FABRIZIO DE FRANCESCO, Regulatory Impact Assessment, in
«Oxford Handbook of Regulation», Oxford University Press, 2010.
280
Para essa análise histórico-evolutiva, ver BAPTISTA DIAS, Estudo de avaliação do impacto das medidas
de modernização administrativa, in «Revista de Administração e Políticas Pública», 1 (2000), pp. 98-105;
CARLOS DA COSTA MORAIS, Sistema de avaliação do impacto das normas jurídicas, in «Cadernos de
Ciência de Legislação», 32 (2002), pp. 39-55; LUZIUS MADER, Avaliação prospectiva e análise do impacto
legislativo: tornam as leis melhores?, in «Cadernos de Ciência de Legislação», 42-43 (2006), pp. 177-191;
NUNO GAROUPA/GUILHERME VASCONCELOS VILAÇA, A prática e o discurso da avaliação legislativa em
Portugal, in «Cadernos de Ciência da Legislação», 44 (2006), pp. 5-29.
281
Veja-se, por exemplo, a instituição do «Teste Simplex», em 2010, que, contudo, não logrou obter adesão
dos agentes do procedimento legislativo, em virtude da sua elevada complexidade. Assim, ver OCDE,
Reviewing and Suporting Regulatory Impact Assessment in Portugal – Project Inception, 2017, disponível
in https://www.jurisapp.gov.pt/media/1020/ria-in-pt-final-draft.pdf. Sobre esses modelos anteriores, ver
CARLOS BLANCO DE MORAIS, Guia de Avaliação de Impacto Normativo, Almedina, 2010.
282
Essa alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 72/2014, de 13 de maio, que aditou a seguinte alínea
ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 4/1997: «d) Assegurar a realização da avaliação de impacto regulatório

89
criou a RIMA – Reunião Interministerial de Modernização Administrativa, sob enorme
pressão da “Troika”, durante o programa de assistência económico-financeira. Contudo
e ainda assim, essa consagração foi meramente formal – e, dir-se-ia, apenas para “troikês”
ver –, já que, em termos práticos, essa avaliação de impacto nunca foi efetivamente
implementada.
Apenas com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/2017, de 25 de março,
foi, pela primeira vez em Portugal, instituído e concretizado – e a título experimental,
durante o ano de 2017 – um sistema de avaliação prévia de impacto legislativo dos
decretos-leis aprovados pelo Governo que afetassem a vida das empresas: a medida
“Custa Quanto?”. A coordenação da avaliação prévia de impacto legislativa foi cometida
ao (então) CEJUR – Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros (hoje,
JurisAPP – Centro de Competências Jurídicas), tendo nele sido criada a UTAIL –
Unidade Técnica de Avaliação de Impacto Legislativo. Esta unidade foi encarregue de
intermediar e colaborar com os gabinetes governamentais e serviços setoriais sob a
direção dos membros de governo de cada área governativa, de modo a que a
monitorização dos encargos potenciais, para as empresas, de cada medida legislativa
proposta fosse feita, antes da apreciação da mesma pela Reunião de Secretárias e de
Secretários de Estado283 e, por maioria de razão, pelo Conselho de Ministros.
Posteriormente, após avaliação da fase experimental, foi aprovada a Resolução do
Conselho de Ministros n.º 74/2018, de 8 de junho, que tornou definitivo o mecanismo
“Custa Quanto?”, estendendo o seu âmbito de aplicação às propostas de lei apresentadas
pelo Governo e aos encargos potenciais criados para os cidadãos e demais indivíduos
residentes em território português. O sucesso na implementação do mecanismo “Custa
Quanto?” tem sido particularmente reconhecido e elogiado por instituições
internacionais, tais como a Comissão Europeia e a OCDE284.

dos diplomas legais e regulamentares que se enquadrem no âmbito das atribuições do respetivo ministério,
nos termos a definir em resolução do Conselho de Ministros».
283
Essa exigência de avaliação “ex ante” decorre, aliás, quer dos §§ 4 e 5 da Resolução de Conselho de
Ministros n.º 44/2017, de 24 de março, quer das alíneas k), l) e o) do artigo 26.º do Regimento do Conselho
de Ministros, segundo a redação introduzida por aquela resolução.
284
O Relatório «Reviewing and Suporting Regulatory Impact Assessment in Portugal – Project Inception»,
elaborado pela OCDE, com vista à avaliação do projeto-piloto implementado durante o ano de 2017,
salienta, como aspetos positivo deste novo mecanismos: a) forte apoio político à medida; b) adoção de
regimes normativos que regulam o procedimento; c) instituição de novos organismos; d) criação de uma
metodologia simples e uniforme; e) visão incrementalista, que almeja uma progressiva extensão do âmbito
das medidas a monitorizar; f) adesão muito forte e positiva de todos os atores no procedimento legislativo,
incluindo representantes de entidades privadas. Em suma, o Relatório conclui: “As provas e as reações
recolhidas pela OCDE sobre as primeiras experiências feitas pelo mecanismo «Custa Quanto?» são
generalizadamente positivas. Os desenvolvimentos ocorridos durante o ano piloto de 2017 tiveram o

90
§ 70. Avaliação prévia vs. avaliação subsequente – Do ponto de vista da
metodologia, a avaliação de impacto (ou “RIA – Regulatory Impact Assessment”) tanto
pode ser feita a título prévio, “ex ante”, como a título subsequente, “ex post”. No caso
da avaliação prévia285, aferem-se apenas os custos, encargos e ónus potenciais,
procurando estimar-se todas as vertentes da medida a implementar que podem
incrementá-los (ou reduzi-los, claro está). No caso da avaliação subsequente, torna-se
mais fácil proceder a uma medição rigorosa, assente já em dados concretos e estatísticas
oficiais. Quer num caso, quer noutro, pode ainda recorrer-se a outras metodologias de
monitorização de custos, encargos e ónus, tais como a realização de inquéritos aos
destinatários da medida ou a realização de testes-cegos, de acordo com o modelo de
cliente-mistério (ou “blind consumer”)286, através dos quais a entidade avaliadora envia
técnicos seus, sob anonimato, aos serviços públicos ou aos estabelecimentos privados,
com vista à recolha de informação.
A avaliação prévia pode assentar em metodologias estimativas287 como:
⎯ Aprovação de uma tabela de custos potenciais médios, elaborada após
análise de segmentos-tipo de destinatários;
⎯ Cálculo do tempo médio despendido em determinada atividade;
⎯ Cálculo do valor pecuniário da hora média trabalhada em cada setor de
atividade económica, com recurso às estatísticas oficiais;
⎯ Cálculo da repetição ou da natureza única do cumprimento de
encargos, diferindo-os (ou não) no tempo, por exemplo, através da
amortização de equipamentos adquiridos;
⎯ Diferenciação da repercussão das medidas em função da dimensão dos
destinatários, que oneram mais os indivíduos e as pequenas e médias

grande mérito de introduzir a prática de identificar e avaliar os impactos de propostas legislativas pelo
Governo, num contexto político e administrativo de registos anteriores muito limitados de tomada de
decisões baseadas em avaliação de impacto” (cfr. p. 13 do Relatório, disponível, em regime de consulta
livre, in https://www.jurisapp.gov.pt/media/1020/ria-in-pt-final-draft.pdf.
285
Para uma análise crítica, mas exaustiva, sobre o mecanismo de avaliação de impacto “ex ante”, ver
JONATHAN VERSCHUUREN, The Impact of Legislation – A Critical Analysis of Ex Ante Evaluation, Martinus
Nijhoff, 2009.
286
STEVE JACOB/NATHALIE SHCIFFINO/BENJAMIN BIARD, The mistery shopper: a tool to measure public
service delivery?, in «International Review of Administrative Sciences», 1 (2016), pp. 1-21.
287
Sobre esses vários métodos, ver UTAIL, Guia de Apoio à Estimação de Encargos para Cidadãos e
Empresas, Avaliação Qualitativa de Benefícios, Teste PME e Avaliação de Impacto Concorrencial, junho
de 2018, disponível https://www.jurisapp.gov.pt/media/1027/guia_ail_06_2018.pdf.

91
empresas (PME´s), por não disporem de estruturas complexas (em
especial, de “compliance”) que lhes permitam cumprir, de modo
rápido e simples, os encargos criados.

Por sua vez, a avaliação subsequente tanto pode ser realizada através da análise
de dados reais (por exemplo, através de estudos de campo, junto dos destinatários), como
pode assentar na mera recolha de questionários e de informações fornecidas quer pelos
destinatários, quer pelas entidades públicas.

§ 71. Avaliação concentrada vs. avaliação desconcentrada - Em teoria, a


avaliação de impacto tanto pode ser assegurada por um organismo central – seja ele um
órgão, um serviço ou um organismo independente –, como pode antes ser prosseguida
por vários serviços ou departamentos dispersos pela administração pública. Porém,
nenhum modelo conhecido de avaliação de impacto dispensa, pelo menos, uma
colaboração entre quem concentra as tarefas de monitorização e os outros departamentos
administrativos que acompanham as várias áreas da atividade económica.
Em traços largos, a avaliação concentrada repousa no papel central de
coordenação e de recolha de informação, por parte de um órgão, serviço ou organismo
(mais ou menos) independente, cuja competência é fixada por lei ou por regulamento288.
É o que sucede com o mecanismo “Custa Quanto?”, que concentra essas funções no
JurisAPP – Centro de Competências Jurídicas, através de um departamento especialmente
criado para o efeito (a saber, a UTAIL). Essa entidade tanto pode ser criada na direta
dependência da/o Primeira/o-Ministra/o ou Chefe de Governo, como pode ser incluída
como departamento ministerial, sob a direção de um membro do Governo, a nível
ministerial ou mesmo infraministerial (por exemplo, junto da/o Ministra/o da

288
No caso português, a competência para proceder à avaliação de impacto começou por caber, de forma
desconcentrada, aos pontos focais de cada área governativa (que correspondiam a representantes de cada
membro do Governo, para efeitos de modernização administrativa), conforme decorria do artigo 4.º, alínea
d), do Decreto-Lei n.º 4/1997, de acordo com a redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 72/2014,
de 13 de maio. Posteriormente, as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 44/2017, de 24 de março, e n.º
74/2018, de 8 de junho, reequacionaram esta opção, instituindo um modelo assente na concentração de
funções no membro do Governo responsável pela Presidência do Conselho de Ministros e, em especial, de
uma unidade técnica (a UTAIL), inserida no JurisAPP – Centro de Competências Jurídicas do Estado. Com
efeito, a própria lei de organização e funcionamento do JurisAPP incumbe-o de “desempenhar funções (…)
de apoio técnico ao Governo na elaboração e avaliação da repercussão dos atos legislativos e outros atos
normativos” [cfr. artigo 2.º, n.º 2, alínea c)]. Para uma análise detalhada sobre o modelo de avaliação de
impacto instituído pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/2017, ver UTAIL, Relatório de
Atividade – Ano de 2017, disponível in https://www.jurisapp.gov.pt/media/1019/30012017-utail-relatorio-
atividades.pdf.

92
Modernização Administrativa, das Finanças ou da Economia). Isto implica que se
estabeleça uma rede interministerial que permita fluir a informação entre os vários
departamentos governativos. Torna-se mais difícil assegurar a troca de informação entre
a referida entidade encarregue da monitorização e os órgãos e serviços que estejam
integrados em outras pessoas coletivas públicas, em especial, no caso das autarquias
locais e das entidades administrativas independentes. Contudo, ainda assim, subsiste um
dever de fornecimento de informações, em cumprimento do princípio da colaboração289.
Um modelo distinto corresponde ao de avaliação desconcentrada, que é
assegurada e dispersa por vários serviços setoriais, em função do objeto de cada medida
alvo de avaliação. O exemplo clássico de desconcentração traduz-se na avaliação de
impacto por parte de gabinetes de avaliação, estratégia e planeamento setoriais290, que se
encontram na dependência de cada membro do Governo. As vantagens deste modelo
consistem numa maior proximidade entre quem procede a avaliação de impacto e os
“stakeholders” dos setores alvo de avaliação e ainda no maior conhecimento técnico
especializado destes departamentos. As desvantagens traduzem-se numa menor
consciencialização acerca da natureza transversal dos custos, encargos e ónus das
medidas adotadas ou a adotar e na falta de autoridade interna sobre outros serviços e
entidades, o que dificulta a obtenção de informação fidedigna e a diminuição do grau de
coordenação e de harmonização dos vários estudos de impacto.

§ 72. Avaliação quantitativa vs. avaliação qualitativa - A monitorização da


atividade administrativa tanto permite quantificar custos económico-financeiros, como o
tempo gasto pelos serviços, funcionários e particulares, como os índices de produtividade
e de satisfação dos utentes e beneficiários291, como ainda as próprias cifras da estrutura
interna (número de organismos e serviços; número e caraterização sociológica dos
dirigentes e funcionários; levantamento das infraestruturas existentes292). Aliás, esta

289
A esse propósito, ver o § ## deste Manual.
290
Sobre a sua importância, enquanto instrumento auxiliar das decisões governativas, ver AAVV, Relatório
sobre Gabinetes de Estudos e de Planeamento na Administração Pública Portuguesa do Século XXI,
Observatório Permanente da Administração Pública, ICJP/CIDP, Lisboa, 2018, disponível in
https://www.icjp.pt/sites/default/files/cidp/projectos/docs/relatorio_final_2018_0.pdf.
291
Começam a ser habituais os inquéritos de satisfação dos utentes de serviços públicos. Por exemplo, os
inquéritos eletrónicos de satisfação quanto a medidas do Programa Simplex, que se encontram em regime
de acesso livre e universal, disponíveis in https://www.simplex.gov.pt/mais.
292
Ciclicamente, em Portugal, são levados a cabo levantamentos oficiais de dados relativos à administração
pública. Disso são bom exemplo os programas PRACE e PREMAC. Assim, ver MIGUEL PRATA ROQUE, O
princípio da mutabilidade das estruturas administrativas: extinção, fusão e reestruturação orgânicas, cit.,
pp. 308-312.

93
avaliação quantitativa apresenta-se como a mais comum e frequente, visto que – apesar
da manifesta carência de meios e de saber especializado – tem sido inegavelmente mais
fácil proceder a este tipo de monitorização do que estimar a dimensão qualitativa da
governação.
No caso da avaliação qualitativa, ela já exige uma apreciação valorativa acerca
dos parâmetros da governação administrativa. Em regra, ela tende a prevalecer quando se
procede à avaliação dos benefícios extraídos de determinado ato governativo. Em
especial, no caso de benefícios sociais e culturais, como o incremento da compatibilidade
entre vida profissional e familiar, o estímulo de políticas de redução das desigualdades, a
preservação do ambiente e do património cultural, o alargamento do tempo de lazer e de
fruição de bens culturais.
Obviamente, ela encontra-se a paredes meias com a avaliação do mérito e da
oportunidade política da atuação administrativa e, por isso, envolve uma atividade de
enorme melindre. Bem entendido, se os resultados da avaliação quantitativa de impacto
podem ser tidos em consideração pelos tribunais – em especial, quando controlem
determinada decisão administrativa –, como pressuposto e critério de avaliação do
respeito de princípios como o da maximização da felicidade, do equilíbrio intergeracional
ou da boa administração, certo é que o mesmo dificilmente pode ocorrer com os
resultados da avaliação qualitativa de impacto. Através dela, valora-se o resultado da
atuação administrativa. Por exemplo, qualifica-se como satisfatória ou insatisfatória uma
decisão governativa que tenha substituído um procedimento de entrega de documentação
por outro, mais célere e simplificado. Ou afere-se se uma decisão de contratação
centralizada de manuais escolares, gratuitos para os particulares, estimulou ou antes
prejudicou a livre concorrência entre livreiros e donos de estabelecimentos de venda de
manuais. Por só caber à administração pública extrair consequências dessa avaliação
qualitativa, ela só deve ser objeto de controlo político, mas nunca jurisdicional293.

§ 73. Avaliação interna vs. avaliação externa - Um dos principais receios e uma
das críticas mais certeira aos modelos de monitorização reside na fraca credibilidade e até
fidedignidade da maior parte dos estudos de impacto. Na verdade, ainda que seja
promovida a intervenção de entidades externas, cabe, invariavelmente, ao próprio órgão

293
Com efeito, o controlo da discricionariedade administrativa – isto é, de juízos de mérito ou de
oportunidade – encontra-se subtraído aos tribunais administrativos, conforme decorre do artigo 3.º, n.º 1,
do CPTA.

94
ou serviço avaliado proceder a essa monitorização. Ora, em função dos ciclos eleitorais e
do desejo de renovação de mandatos, quer os decisores políticos, quer os dirigentes da
administração pública intuem o risco de submissão dos serviços que de si dependem a
uma avaliação externa, que seja independente, objetiva e rigorosa. Por isso mesmo,
costumam imperar os sistemas de mera avaliação interna294, seja através de avaliação
concentrada num órgão ou serviço público distinto do avaliado, mas sujeito a poder de
direção do Governo, seja através de avaliação desconcentrada, pelos próprios avaliados.
Em modelos mais avançados de monitorização, as tarefas de avaliação de impacto
são atribuídas a uma entidade administrativa independente295 ou mesmo a uma entidade
privada. Em alternativa, pode conceber-se a criação de um órgão independente, que pode
mesmo continuar integrado na administração central do Estado, mas que deve gozar de
suficiente autonomia política, administrativa, financeira e técnica. À partida, este modelo
de avaliação externa garante uma maior independência e, assim, assegura a credibilidade
dos resultados da monitorização. O que pode, aliás, evitar que esses resultados fiquem
livres de querela e controvérsia político-partidária, assim podendo funcionar como um
ponto de partida objetivo para a sã discussão democrática. Contudo, não pode deixar de
notar-se que a avaliação externa também encerra o risco de certas entidades externas (por
exemplo, consultoras, entidades do setor financeiro e fundos de investimento
transnacionais) procurem mobilizar-se, quer para formar (ou formatar) os técnicos que
procedem a essa avaliação e influenciar as metodologias e, pior, os resultados dessa
avaliação. Torna-se crucial, em suma, garantir a total transparência do procedimento de
monitorização296, incluindo através de um rigoroso sistema de verificação de conflitos de
interesses.

294
Aliás, deve notar-se que, mesmo na lógica clássica, o poder de avaliação interna constitui uma das
prerrogativas de quem exerce poder de supremacia hierárquica. Com efeito, o poder de controlo ou de
supervisão – que corresponde a uma das tipologias de faculdades integradas no poder hierárquico – engloba
o poder de fiscalizar e de avaliar o desempenho das funções e tarefas por parte dos subordinados. Assim,
ver PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório, cit., p. 246.
295
É o que sucede, por exemplo, no Reino Unido, em que essa função foi atribuída ao “Regulatory Policy
Committee”, que foi criado em 2009, e é composto por um elenco de peritos independentes que são
nomeados mediante concurso público, nos termos do “Ministerial Governance Code on Public
Appointments”. Sobre o modelo britânico, ver OLIVER FRITSCH/JONATHAN C. KAMKHAJI/CLAUDIO M.
RADAELLI, Explaining the content of impact assessment in the United Kingdom: Learning across time,
sectors, and departments, in «Regulation and Governance», 4 (December 2017), pp. 325-342.
296
A própria OCDE tem vindo a recomendar aos seus Estados membros a adoção de medidas promotoras
da transparência, no decurso dos procedimentos de monitorização, incluindo: a) obrigatoriedade de
consultas públicas abertas e diversificadas; b) uso de linguagem clara; c) utilização de novas tecnologias,
com vista à facilitação da participação. Assim, ver DELIA RODRIGO, Regulatory Impact Analysis in OECD
Countries – Challenges for developing countries, OCDE, Dhaka, Bangladesh, June 2005, pp. 11-13,
disponível in https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/35258511.pdf.

95
§ 74. A participação dos “stakeholders” - Uma das formas de garantir a
objetividade e a credibilidade dos resultados da monitorização é abrir o procedimento
avaliativo aos cointeressados297; ou, numa linguagem mais em voga, aos “stakeholders”.
Na verdade, é impossível negar que só a participação dos cointeressados na avaliação de
impacto evita que os órgãos e serviços públicos manipulem ou condicionem
excessivamente os resultados a obter. E, numa perspetiva mais positiva, permite
aproximar as métricas e critérios de avaliação da realidade prática. Pois assim se logra
identificar quais são os efetivos custos, encargos e ónus acrescidos que determinada
decisão governativa faz recair sobre os particulares.
A participação dos “stakeholders” tanto pode ser prévia, concomitante, como
subsequente ao procedimento avaliativo. Ela será prévia quando aqueles participam no
próprio processo de desenho das metodologias de avaliação de impacto, contribuindo,
designadamente, para a escolha dos critérios e parâmetros de monitorização. Por sua vez,
haverá participação concomitante sempre que os “stakeholders” sejam ouvidos durante
o procedimento avaliativo; por exemplo, através de inquéritos, de reuniões abertas ou
mesmo de votações eletrónicas. Por fim, essa participação externa poderá ocorrer apenas
numa fase final do procedimento de avaliação de impacto, enquanto mero instrumento de
validação dos métodos e dos resultados obtidos. Neste último caso, o órgão ou serviço
com competência para monitorização apresenta aos “stakeholders” o relatório avaliativo
e solicita sugestões e comentários, que permitam (ou não) melhorar e corrigi-lo.

§ 75. A carência de recursos para monitorização - Em países menos


desenvolvidos, é normal e compreensível que as prioridades dos sucessivos governos
sejam outras. Enquanto as necessidades básicas (fornecimento de água, de energia, de
cuidados de educação e de saúde essenciais, etc.) não estiverem garantidas, a canalização
de recursos públicos para a monitorização torna-se uma distante miragem. Contudo,
progressivamente, no espaço da OCDE, vários são os países que já dispõem de meios e
de sistemas para proceder a essa avaliação de impacto (ou “RIA – Regulatory Impact
Assessment”). No caso português, conforme já demonstrado298, a sua implementação foi
(demasiado) tardia e só ocorreu recentemente, em 25 de março de 2017, através do
mecanismo “Custa Quanto?”.

297
Sobre a importância dos mecanismos de participação, ver o § ## deste Manual.
298
Cfr. § ## deste Manual.

96
O que justifica este atraso? Essencialmente, cinco razões:
⎯ Primeira – A complexidade técnico-científica e prática da metodologia
de avaliação de impacto, que pressupõe sempre uma estimação de
custos, encargos e ónus potenciais;
⎯ Segunda – A falta de técnicos e especialistas em avaliação de impacto
e econometria, em especial relativamente ao setor público;
⎯ Terceira – A dificuldade de atrair e contratar esses especialistas, em
função de um estatuto público profissional e remuneratório que, em
setores altamente especializados, é extremamente desvantajoso, se
comparado com o do setor privado ou mesmo com o das entidades
administrativas independentes;
⎯ Quarta – A inexistência de uma cultura de autoavaliação pela
administração pública, que teme pela revelação das suas insuficiências;
⎯ Quinta – A incipiente consciência cívica dos indivíduos e das
empresas, que não exigem aos governantes e à administração pública
uma criteriosa utilização dos recursos públicos, que só pode ser
assegurada se houver transparência quanto aos custos e benefícios da
governação.

§ 76. Avaliação de custos, encargos e ónus – Importa começar por definir o


objeto da avaliação. Avalia-se tudo o que implique um custo, um encargo ou um ónus que
recaia sobre os particulares, sejam eles indivíduos ou empresas. Em linguagem universal,
tornou-se usual descrevê-los como “red tape”299; isto é, como uma carga burocrática, que
funciona como uma barreira que impede os indivíduos e as empresas de realizar certa
atividade ou de aceder a determinado bem ou serviço. O uso da expressão “red tape” (em
castelhano, “balduque”300) remonta ao reinado de Carlos V, Imperador Romano-

299
HERBERT KAUFMAN, Red Tape Its Origins, Uses and Abuse, Brookings Institution Press, Washington
D.C., 2015 (com 1ª edição de 1977); BARRY BOZEMAN, A theory of government “red tape”, in «Journal of
Public Administration Research and Theory», 3 (1993), pp. 273-303; BARRY BOZEMAN/MARY K. FEENEY,
Rules and Red Tape: A Prism for Public Administration Theory and Research, Routledge, London/New
York, 2011; DAVID SCHULZ, Enclyclopedia of Public Administration and Public Policy, Facts on File –
Library of American History, New York, 2004, p. 361; CHARLES T. GOODSELL, Red tape and a theory of
bureaucratica rules, in «Public Administration Review», Volume 60, 4 (2010), pp. 373-375; ANDERS
FREDRIKSSON, Bureaucracy intermediaries, corruption and red tape, in «Journal of Development
Economics», 108 (2014), pp. 256-273.
300
A título de curiosidade, a expressão castelhana “balduque” constitui uma derivação de “Bois-le-Duc”,
que correspondia à designação, em francês, da cidade holandesa de s-Hertogensbosch (ou, abreviadamente,
Den Bosch), onde as referidas fitas vermelhas eram manufaturadas. Sobre esta conceção e função do

97
Germânico e Rei de Espanha (aqui, denominado Carlos I), que, com vista a acelerar a
apreciação de determinados assuntos urgentes pelo seu Conselho Real, decidiu conceder-
lhes prioridade, através da imposição de uma fita vermelha em torno dos respetivos
documentos administrativos. A referida prática viria a ser seguida por vários outros reinos
e governos301, como prática de aceleração procedimental administrativa. Porém, por se
tratar de assuntos de máxima relevância, a expressão “red tape” passou a ser empregue
para designar procedimentos administrativos particularmente burocráticos e morosos, que
exigem a intervenção de vários serviços e entidades, bem como o preenchimento de
inúmeros requisitos e a realização de tarefas redundantes. Hoje, fala-se, então, de corte
de fitas vermelhas (“cutting red tape”) como sinónimo de redução de encargos e custos
administrativos.
Os custos gerados por determinada medida (legislativa ou administrativa) podem
ser:
⎯ Diretos – Os custos diretos corresponderão àqueles que decorram
diretamente do dever de cumprimento de normas legais ou de outras
imposições, designadamente de natureza regulamentar. Por exemplo,
quando esteja em causa o pagamento de uma taxa, contribuição
financeira ou emolumento, em contrapartida do uso de determinado
bem ou serviço público ou de remoção de uma barreira ao exercício de
uma atividade;
⎯ Indiretos – Por sua vez, os custos indiretos302 corresponderão ao valor
económico despendido no cumprimento de um dever legal ou
regulamentar. Envolvem todas as tarefas a cumprir pelos particulares,
seja a obtenção de informação e formação dos destinatários (incluindo
seus agentes e trabalhadores), seja a prestação, às entidades
administrativas, de informação relevante. Na medida em que implicam
o dispêndio de tempo e de recursos no cumprimento de tarefas (mais

“balduque” espanhol, ver SECRETARÍA DE ESTADO DE LAS ADMINISTRACIONES PÚBLICAS, Manual de


Simplificación Administrativa y Reducción de Cargas para la Administración General Del Estado,
Septiembre 2014, p. 11, n.r. 12; REAL ACADEMIA ESPAÑOLA, Balduque, in «Diccionario de la Lengua
Española».
301
De modo algo impreciso, há quem faça remontar essa prática de envolver a documentação administrativa
em fitas vermelhas aos “public servants” ingleses. Porém, sem razão, conforme demonstro na nota de
rodapé anterior. Assim, HERBERT KAUFMAN, Red Tape Its Origins, Uses and Abuse, cit., p. xv (Exordium);
DAVID SCHULZ, Enclyclopedia of Public Administration and Public Policy, cit., p. 361.
302
OCDE, Introductory Handbook for Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), Version 1.0,
October 2008, p. 6.

98
ou menos) burocráticas, elas representam sempre um custo de
oportunidade economicamente mensurável, pois os indivíduos e as
empresas são desviados quer da sua atividade produtiva, quer do seu
tempo de repouso e de lazer;
⎯ Financeiros – Por fim, os custos financeiros traduzem-se no
investimento de capital em ativos tangíveis ou intangíveis (por
exemplo, equipamento mecânico ou informático; veículos e outros
meios de deslocação; meios de comunicação; utensílios vários) que são
exigidos para cumprimento do dever legal ou administrativamente
imposto. Eles tanto podem ser específicos, quando se destinem apenas
ao cumprimento irrepetível de um determinado dever legal (por
exemplo, a aquisição de um programa informático de faturação), como
podem ser não específicos, quando possam ser reutilizados noutra
atividade prosseguida pelo indivíduo ou pela empresa onerados com o
custo (por exemplo, a aquisição de um computador portátil que pode
ser utilizado para diversas finalidades privadas).

Do ponto de vista da sua periodicidade, os custos, encargos ou ónus podem ainda


ser:
⎯ Contínuos (ou operacionais) – sempre que exijam uma repetição de
procedimentos perante a administração pública, com periodicidade
muito variável; por exemplo, diária, mensal, semestral, anual ou
plurianual;
⎯ De execução única (ou instantânea) – estes últimos, geralmente,
quando se trate de custos de conformidade ou de acesso a um
determinado bem, serviço ou atividade, em que é pago um valor
pecuniário para o efeito.

A medição dos custos, encargos e ónus – apesar de, invariavelmente, melindrosa


(pelo menos quando se trata de uma medição potencial ou “ex ante”) – revela-se,
contudo, mais fácil e rigorosa do que a estimação da relação entre os custos e os benefícios
de determinada medida governativa. A maior objetividade da medição de custos,

99
encargos e ónus decorre da sua mais fácil quantificação, mediante recurso a metodologias
e métricas desenvolvidas por equipas multidisciplinares de avaliação de impacto303.

§ 77. Avaliação de benefícios - Para que se implemente uma avaliação de impacto


objetiva, coerente e produtiva, não basta conseguir estimar-se os custos gerados304. É que,
não raras vezes, as vantagens económicas, sociais e culturais extraídas de determinada
medida governativa podem exceder – e, portanto, compensar – os seus custos venais. Não
deve, como tal, adotar-se uma mentalidade puramente contabilística, negligenciando-se
que o investimento pode ser gerador de riqueza futura. A médio e longo prazo, os custos
imediatamente impostos aos particulares podem ser geradores de emprego, de bem-estar
social, de melhoria da qualidade do ambiente e de desenvolvimento tecnológico e
científico. Assim sendo, uma efetiva monitorização da atividade governativa não pode
descurar esta dimensão de avaliação dos benefícios gerados.
Evidentemente – em especial, quando estejam em causa modelos centralizados (e
não independentes) de avaliação de impacto –, corre-se o risco de instrumentalização
desta medição dos benefícios, potenciais ou efetivos, de determinada medida ou política
pública. Essa avaliação de impacto deve fundar-se, tanto quanto possível, em dados e
estatísticas oficiais, elaboradas por entidades dotadas de prestígio social e de
independência a toda a prova305.

303
Recentemente, em Portugal, foi criada uma Unidade Técnica de Avaliação de Impacto Legislativo
(UTAIL), junto do Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP), que conta, presentemente, com
especialistas em várias áreas do saber (economia; econometria; direito; políticas públicas), bem como
consultores externos provenientes da OCDE. Entretanto, esta unidade técnica elaborou um texto orientador,
com elenco das várias metodologias a empregar. Assim, ver UTAIL, Avaliação Prévia de Impacto
Legislativo: Guia de apoio a Avaliação prévia de Impacto económico Legislativo: Estimação de encargos
para cidadãos e empresas, avaliação qualitativa de benefícios, teste PME e avaliação de impacto
concorrencial, JurisAPP, Lisboa, 2018, in https://www.jurisapp.gov.pt/media/1027/guia_ail_06_2018.pdf.
304
Esta é, aliás, uma das (raras) críticas tecidas pela OCDE, no seu Relatório de Avaliação à medida «Custa
Quanto». Com efeito, a apreciação feita pela OCDE é particularmente elogiosa do modelo de avaliação de
impacto recentemente implementado em Portugal, salientando a capacidade técnica da unidade criada, a
confiança recíproca gerada nos intervenientes no procedimento e a formação e capacitação conferidas aos
serviços e funcionários públicos para exercer essas tarefas. Contudo, a OCDE salienta que a falta de
medição da relação entre custo e benefício constitui, ainda, um dos aspetos a corrigir; ainda que reconheça
a natureza experimental e inicial da medida. Assim, ver OCDE, Reviewing and Supporting Regulatory
Impact Assessment in Portugal – Project Inception Report, December 2017, pp. 14-23, disponível in
https://www.jurisapp.gov.pt/media/1020/ria-in-pt-final-draft.pdf.
305
A este propósito, reputa-se de essencial o auxílio prestado pelo INE – Instituto Nacional de Estatística e
pelo Eurostat. Por exemplo, o INE disponibiliza informação relativamente detalhada, agregando 19
(dezanove) setores de atividade económica, com vista a identificar a produtividade média e remuneração
média de cada um desses setores. Desse modo, conhecendo-se o valor médio horário de cada setor de
atividade económico, torna-se relativamente fácil estimar o custo económico de cada encargo imposto às
empresas, bastando estimar o tempo gasto no cumprimento de deveres jurídicos ou ónus impostos por nova
legislação. A referida informação pode ser encontrada no sítio eletrónico do INE, na Área de Contas
Nacionais / A - Agregados Macroeconómicos / A.0 Principais Indicadores Económicos / Quadro A.0.3 -

100
Produtividade Média e Remuneração Média do Trabalho, que se encontra disponível in
https://ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=cn_quadros&boui=220636173.

101
CAPÍTULO III
OBJETO DA GOVERNAÇÃO

SECÇÃO I
TIPOS DE ATUAÇÃO

§ 78. Atuação política - Governar não é apenas executar. É, também, refletir,


ponderar, planear, conceber. A circunstância de o órgão Governo ser titular da função
executiva não o priva de participar, em conjunto com outros órgãos constitucionais, no
exercício da função política, em sentido próprio. Nesse sentido, é habitual que o Governo
conduza estudos preparatórios – que podem envolver a criação de grupos de trabalho, a
realização de conferências e colóquios, a auscultação dos destinatários ou a discussão
preliminar no espaço público – e que proceda a deliberações de conteúdo meramente
político ou proclamatório, que fixem as orientações gerais de determinada linha de ação
futura. Pense-se, por exemplo, nas resoluções do Conselho de Ministros que corporizam
uma manifestação de vontade ou um compromisso do Governo com determinado fim ou
objetivo306.
Pouco habitual no ordenamento jurídico-administrativo português, a planificação
de medidas executivas futuras constitui uma ponte-levadiça entre o domínio político e o
domínio administrativo. Quando essa planificação se encontre numa fase incipiente – por
exemplo, quando são constituídas comissões, grupos de trabalho ou iniciados estudos ou
ensaios técnicos –, ainda nos encontramos no domínio da mera atuação política. Porém,
quando seja adotado um plano – em especial, quando este seja calendarizado e sequencial
–, através da sua aprovação definitiva, colegial (por resolução do Conselho de Ministros)
ou por um membro do Governo (através de despacho), já entramos no domínio da atuação
administrativa. Tratar-se-á, por conseguinte, de um “plano administrativo”, seguindo a
tradição e terminologia germânica307, que ainda constitui, hoje, um parente pobre das
formas de atuação administrativa. Será o caso, a mero título de exemplo, de um Plano

306
São disso exemplo o Plano Nacional de Leitura, que foi criado pela Resolução de Ministros n.º 86/2006,
publicada no «Diário da República», Iª Série, de 12 de julho de 2006, ou a Estratégia Nacional e o Plano
de Ação de Combate ao Desperdício Alimentar, aprovados pela Resolução de Ministros n.º 46/2018,
publicada no «Diário da República», Iª Série, de 27 de abril de 2018.
307
Para maior desenvolvimento, sobre o conceito de “plano administrativo”, ver MARCELO REBELO DE
SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, Lisboa, 2006,
pp. 366-375.

102
Nacional de Educação e Saúde Alimentar, que elenque um conjunto de medidas futuras,
fixando um calendário cronológico de execução das mesmas.

§ 79. Atuação administrativa - O cerne da governação radica na prática de


atuações administrativas; isto é, de ações e omissões juridicamente relevantes308 que
visem a implementação de decisões político-legislativas paramétricas. A mais
caraterística dessas formas é o ato administrativo. Ele corresponde a uma decisão
individual e concreta, que visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e
concreta.
Ao contrário do que (algo irrefletidamente309) o CPA/2015 passou a indiciar, não
são atos administrativos apenas as decisões governativas com eficácia externa à própria
administração. A circunstância de a repercussão externa dos seus efeitos poder constituir
um critério de impugnabilidade310 não apaga a constatação de que qualquer governante
toma decisões unilaterais, geradoras de efeitos jurídicos visíveis, que se aplica,
predominantemente, no seio da própria organização administrativa. Uma decisão de
reestruturação orgânica, uma decisão de reformulação das metodologias internas, uma
decisão de gestão de recursos humanos, todas elas assumem um conteúdo decisório (e
vinculativo) inegável. São aquilo que se designa por “atos administrativos internos”311.
Não curando aqui da manifesta infelicidade de tal expressão, importa frisar que, ainda
que reflexa e indiretamente, tais decisões unilaterais produzem efeitos externos, para além
da própria administração pública. Desde logo, sobre os dirigentes intermédios,
funcionários e agentes públicos, cuja atuação quotidiana se vê modificada – pense-se, por
exemplo, na adoção de uma decisão sobre o local da prestação de trabalho ou o horário a
cumprir por funcionário público. Em segundo lugar, mesmo as decisões unilaterais

308
Apesar de algum silêncio doutrinário sobre o tema, não são só as ações (e as omissões) voluntárias que
são suscetíveis de produzir efeitos jurídico-administrativos. Com efeito, os factos jurídicos involuntários
ou naturais também são aptos a produzi-los – e, portanto, revelam-se de inegável relevância jurídico-
administrativa –, sempre que a lei ou outra fonte jurídica lhes confira esse valor. Pense-se, por exemplo, na
própria morte (não provocada) de determinada pessoa, que pode, nos termos da lei, determinar o fim do
pagamento de uma pensão de aposentação e, em simultâneo, gerar um direito dos herdeiros de recebimento
de nova prestação social. Sobre a relevância dos factos jurídicos em sentido estrito (ou involuntários), ver
MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 241-250.
309
Para uma crítica robusta e incontornável, ver PAULO OTERO, Problemas constitucionais no novo Código
do Procedimento Administrativo – uma introdução, in «Comentários ao Novo Código do Procedimento
Administrativo», 1ª edição, AAFDL Editora, Lisboa, 2015, pp. 17-21.
310
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, cit., pp. 232-234; PAULO OTERO,
Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., p. 312.
311
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo (revisto por Diogo Freitas do Amaral), Vol. I,
8ª reimpressão da 10ª edição, 2005, pp. 441-442.

103
internas afetam, reflexamente, os utentes de serviços públicos e demais destinatários da
função administrativa. A mera reformulação de um determinado serviço ou método de
atuação implica uma afetação direta da esfera jurídica dos indivíduos e das empresas.
Assim, melhor se faria caso se empregasse, antes e ao invés, a expressão “atos
administrativos predominantemente internos”.
Curiosamente, no plano da governação administrativa, o tipo de atuação mais
frequente corresponde à prática de “atos reais”312 (ou “operações materiais”313). A cada
dia que passa, os governantes praticam atos reais – tais como a utilização de materiais de
escritório, o uso de meios de telecomunicação, a lecionação de uma aula, a realização de
uma intervenção cirúrgica, a confeção de refeições num estabelecimento escolar, a
expedição de um correio eletrónico, a demolição de uma ponte que ameaça ruir, etc. –,
sejam eles prévios ou subsequentes à decisão administrativa que aqueles visam,
respetivamente, preparar ou executar. Têm surgido algumas dúvidas quanto às fronteiras
entre atos administrativos e atos reais, em especial, no que diz respeito à distinção entre
atos verificativos e atos meramente certificativos. Os atos verificativos ainda envolvem a
realização de diligências tendentes à comprovação do preenchimento de requisitos
legalmente previstos314. Razão pela qual ainda são qualificáveis como atos
administrativos, por serem reveladores de uma vontade autónoma do seu autor. Pelo
contrário, os atos meramente certificativos limitam-se a expressar declarações de ciência,
por parte dos órgãos ou funcionários emitentes, mas não expressam uma vontade
autónoma e livremente conformável, pois cingem-se a comprovar uma realidade
fáctica315.
Pode ainda governar-se através da adoção de regulamentos administrativos. Aliás,
não raras vezes, quem governa procura fugir ao controlo democrático do parlamento316 (e

312
Adotando esta nomenclatura, que corresponde aos “realakte”, de matriz germânica, ver MASSIMO
SEVERO GIANNINI, Diritto Amministrativo, Volume II, A. Giuffrè, 1988, pp. 443-444; MARCELO REBELO
DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, cit., p. 375.
313
Esta tem sido, contudo, a expressão usualmente utilizada pela doutrina portuguesa. Assim, ver Rogério
Soares, Direito Administrativo – Lições (policopiado), Coimbra, 1978, p. 16; João Caupers, Introdução ao
Direito Administrativo, cit., p. 183; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II,
cit., pp. 659-669; PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, cit., pp. 368-378.
314
Veja-se, por exemplo, a emissão de uma carteira ou cédula profissional. Assim, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., p. 257.
315
Paradigmática deste tipo de atos reais, de cunho meramente certificativo, são as declarações de
inexistência de dívidas. Assim, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito
Administrativo, cit., p. 258.
316
Sobre o papel do parlamento como instrumento de controlo do poder executivo, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, Lições de Ciência Política, cit., § #.

104
do Presidente, que exerce a função promulgatória317), bem como ao escrutínio pela
opinião pública, abusando da (crónica) remissão legal para portarias e despachos
normativos. Ou seja, quem governa e beneficia de apoio parlamentar maioritário tende a
remeter as decisões mais delicadas ou a esconder os malefícios ou as insuficiências de
determinadas medidas legislativas, através da sua remissão para regulamentação futura.
Esta conduta não só corre sérios riscos de inconstitucionalidade, como incrementa
um poder excessivo dos executivos – pois permite-lhe concentrar poder executivo e poder
normativo paralegislativo – e uma perigosa opacidade do processo decisório. Constitui
um indício sólido de boa governação evitar a remissão das soluções centrais de
determinado regime jurídico para sede regulamentar. Assim como um bom governante se
revela pela capacidade de antecipar a exequibilidade das medidas legislativas propostas,
dispondo já de estudos de impacto e de projetos de regulamentação, que estejam em
condições de ser aprovados, logo que determinada inovação legislativa entre em vigor318.
O objeto da governação administrativa integra ainda as relações de direção, de
supervisão e de coordenação hierárquicas, bem como o exercício de poder tutelar e de
superintendência sobre pessoas coletivas públicas distintas. Como melhor se
demonstrará, infra319, governar nos dias que correm é, também, saber governar em rede.

317
Precisamente por isso, a Lei Fundamental faz depender a existência dos regulamentos independentes de
promulgação pelo Presidente da República [cfr. artigo 134.º, alínea b), da CRP], que, aliás, pode mesmo
exercer o respetivo poder de veto (cfr. artigo 136.º, n.º 4, da CRP). Tratando-se de regulamentos
administrativos de conteúdo inovador, impôs-se, precisamente, que os mesmos revestam a forma de
decretos regulamentares (cfr. artigo 112.º, n.º 6, da CRP) e que, como tal, fiquem sujeitos a promulgação
presidencial. Relacionando esta solução com o propósito de evitar que o Governo contorne a exigência de
lei, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, cit., p. 214.
318
Com efeito, o Regimento do Conselho de Ministros do XXI Governo Constitucional, aprovado pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 95-A/2015, de 17 de dezembro, constitui um marco assinalável do
combate à falta de antecipação dos riscos de inexequibilidade de decisões legislativas. Ali se exige que o
membro do Governo proponente de determinado projeto de decreto-lei ou de de proposta de lei não só
assegure que os projetos de regulamentos necessários à sua implementação já se encontram redigidos, como
se impõe uma estimativa sobre os custos e o grau de adaptabilidade do novo regime proposto aos sistemas
eletrónicos e informáticos já em funcionamento. Para maior facilidade de consulta, transcreve-se o teor do
artigo 27.º do referido Regulamento do Conselho de Ministros: «Artigo 27.º (Acompanhamento de
instrumentos de regulamentação) 1 - Para além dos elementos exigidos pelo artigo anterior, os projetos
de diplomas legislativos devem ser obrigatoriamente acompanhados de todos os projetos de
regulamentação necessários à sua implementação logo que entrem em vigor, designadamente e consoante
os casos, de: a) Projetos de decretos regulamentares; b) Projetos de portarias; c) Projetos de despachos
normativos. 2 - Os projetos de diplomas legislativos devem ser obrigatoriamente acompanhados de um
relatório sucinto sobre o grau e os custos de adaptabilidade ao novo regime jurídico proposto, de sistemas
e tecnologias de informação já instalados e em execução. 3 - Sem prejuízo da possibilidade de fixação de
um prazo razoável, para efeitos de cumprimento superveniente das condições constantes dos números
anteriores, a falta do seu cumprimento implica a possibilidade de recusa de envio para circulação ou de
inscrição em agenda de Reunião de Secretárias/os de Estado, pelo Secretário de Estado da Presidência do
Conselho de Ministros».
319
Cfr. § # do presente Manual.

105
§ 80. Atuação jurisdicional - Apesar do (apenas) aparente paradoxo, a
governação administrativa não se cinge aos órgãos tipicamente encarregues da função
administrativa. Desde logo, os próprios órgãos políticos – em especial, a Assembleia da
República320 e o Presidente da República – dispõem de uma, ainda que limitada,
autonomia administrativa e financeira, relativamente às suas próprias infraestruturas e
recursos humanos. Nessa aceção restrita, também aqueles órgãos políticos governam e,
sempre que o façam, devem respeito aos critérios de governação administrativa.
E o mesmo se diga quanto aos órgãos de governação dos magistrados, que visam,
precisamente, garantir e salvaguardar a sua independência e autonomia face ao poder
político. Refiro-me, obviamente, aos:
⎯ Conselho Superior da Magistratura;
⎯ Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais;
⎯ Conselho Superior do Ministério Público.

Estes órgãos de governação da magistratura agem, exclusivamente, ao abrigo de


poderes administrativos, quer quando determinam a transferência ou o movimento de
magistrados de um tribunal para outro, quer quando determinam a progressão concursal
na carreira, quer quando emitem recomendações ou quando exercem poder disciplinar.
Independentemente da existência de mecanismos especiais para a sua impugnação
jurisdicional321, tais atuações são configuráveis como materialmente administrativas e o
seu controlo jurisdicional obedece às normas próprias do processo administrativo.
Acresce ainda que também é governante quem toma decisões que afetam a gestão
dos recursos dos tribunais. Em especial, também exercem governação administrativa quer
os presidentes dos tribunais, quer os respetivos administradores. Quando agem, nessa
qualidade – e mesmo que sejam magistrados –, atuam enquanto titulares de um poder

320
Na verdade, a Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República (aprovada
pela Lei n.º 77/88, de 1 de julho), prevê expressamente um Conselho de Administração (cfr. artigo 14.º),
que dispõe de competências de natureza inegavelmente administrativa, como pronunciar-se sobre a política
geral de administração e os meios necessários à sua execução [cfr. artigo 15.º, n.º 1, alínea a)], fixar a
estrutura orgânica e quadros de pessoa [cfr. artigo 15.º, n.º 1, alínea e)] e assegurar a gestão financeira do
referido órgão de soberania [cfr. artigo 15.º, n.º 1, alínea f)].
321
Por exemplo, no caso de decisões do Conselho Superior de Magistratura, com natureza administrativa
ou disciplinar, o artigo 168.º, n.º 2, determina que cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, reunido em secção
especialmente criada para o efeito, conhecer da respetiva impugnação, sem que haja lugar a recurso. A falta
de previsão legal de um grau de recurso tem suscitado a invocação da sua inconstitucionalidade, por
violação das garantias de defesa (cfr. artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, ambos da CRP), mas o Tribunal
Constitucional tem vindo a pronunciar-se no sentido da sua não inconstitucionalidade. Assim, ver o
Acórdão n.º 277/2011 (João Cura Mariano) e o Acórdão n.º 345/2015 (Pedro Machete), ambos do Tribunal
Constitucional.

106
administrativo que lhes é conferido pela lei. Como tal, também eles beneficiam dos
ganhos e descobertas realizadas pela ciência da governação administrativa.
Mais polémica322 é a qualificação da atividade prosseguida pelo Tribunal de
Contas, que, apesar de jurisdicionalizada, surge direta e intimamente imbricada com o
procedimento de tomada de decisão administrativa. Em certa medida, o Tribunal de
Contas corresponde a um órgão auxiliar dos governantes, pois é ele o guardião da
legalidade financeira e da apreciação, prévia e subsequente, da adequação financeira das
medidas administrativas tomadas ou a tomar. Acresce ainda que o próprio processo de
nomeação do Presidente do Tribunal de Contas e, mesmo, de designação dos seus
membros – que assenta num procedimento administrativo concursal, ao qual podem
concorrer interessados que não exerçam funções de magistrada/o – contribui para essa
natureza híbrida daquele órgão. Entendo que o mesmo corresponde a um órgão de
natureza mista que, apesar de se encontrar formalmente integrado na categoria dos órgãos
do poder jurisdicional (cfr. artigo 214.º da CRP), assume uma função materialmente
administrativa323. De qualquer modo, independentemente da perspetiva e qualificação
que se adote, certo é que o Tribunal de Contas também exerce governação administrativa,
pelo menos, no que diz respeito à gestão dos seus recursos próprios.

§ 81. Atuação europeia - No plano europeu, os governos nacionais atuam


enquanto órgãos de aplicação do próprio Direito da União Europeia. Assim, a União
Europeia governa não só através dos órgãos instituídos pelos tratados, mas também
depende da atuação dos governos e administrações nacionais. Reitero o que já disse
noutra sede324: não se trata de uma administração indireta, mas antes de uma nova
configuração sobre a partilha de funções administrativas, que apelido de administração
heterogénea da União Europeia. Isto é, não deve confundir-se o conceito – já devidamente

322
Sobre a natureza do Tribunal de Contas, ver JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, Natureza das decisões do Tribunal
de Contas, in «Revista Forense», 296 (out-dez 1986), pp. 3-10; JOSÉ TAVARES, Extensão e limites dos
poderes do Tribunal de Contas, in «Cadernos de Justiça Administrativa», 71 (2008), pp. 38-44.
323
Sobre a amplitude de funções do Tribunal de Contas, ver CARLOS DE ALMEIDA SAMPAIO, O Tribunal de
Contas e a natureza dualista do controle financeiro externo, in «Estudos em Homenagem a Cunha
Rodrigues», Coimbra Editora, 2001, pp. 667-688; JOSÉ TAVARES, O Tribunal de Contas - do Visto, em
Especial, Almedina, Coimbra, 1998, passim; LÍDIO DE MAGALHÃES, O controlo da contratação pública
pelo Tribunal de Contas, in «Revista do Tribunal de Contas», 46 (2006), pp. 203-217; Tiago Duarte,
Tribunal de Contas, visto prévio e tutela jurisdicional efectiva?: yes, we can!, in «Cadernos de Justiça
Administrativa», 71 (2009), pp. 31-37; JOÃO FIGUEIREDO, Contributos para a determinação do âmbito da
fiscalização prévia do Tribunal de Contas, in «Revista do Tribunal de Contas», 51 (2009), pp. 69-93.
324
MIGUEL PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, Coimbra Editora, 2011, pp. 91-97;
IDEM, Direito Administrativo Europeu, in «Enciclopédia da União Europeia», Petrony, 2017, pp. 150-151.

107
consolidado na ciência jusadministrativista nacional – de administração indireta (que
assenta na criação de uma pessoa coletiva pública autónoma que, porém, prossegue
atribuições da pessoa instituidora, no interesse desta) com a implementação do princípio
da subsidiariedade, mediante constatação de que a administração europeia não dispõe da
capacidade e dos meios de que dispõem as administração nacionais.
A circunstância de as administrações nacionais serem forçadas a atuar para
garantir a efetividade do Direito da União Europeia implicou uma transformação
profunda da sua orgânica, implicando, designadamente, a criação de novas direções-
gerais e serviços, a formação e contratação de funcionários públicos especializados e o
estabelecimento de redes de partilha de informação e de orientações políticas325. E
implicou ainda uma profunda reformulação dos procedimentos administrativos, através
da partilha de competências instrutórias e decisórias, do intercâmbio de funcionários e de
peritos entre as administrações nacionais e europeia ou da gestão comum de fundos e de
programas de apoio. Como tal, face ao surgimento de novos mecanismos de cooperação
administrativa europeia, surge igualmente a necessidade de implementar métodos
inovadores de governação administrativa. Governar, no plano europeu, é também
governar em rede.
Evidentemente, esta mudança de paradigma (para uma administração voltada para
a cooperação externa e para a partilha de funções e de tarefas) conduziu, em simultâneo,
a um reforço inegável do papel e do poder fáctico dos executivos nacionais. Com efeito,
por via do processo de integração europeia, os governos nacionais fizeram pender a
balança a seu favor, em detrimento dos parlamentos nacionais326. Essa modificação
informal dos sistemas políticos afeta, inegavelmente, o próprio objeto da governação
administrativa, visto que maximiza o seu âmbito de atuação e convoca os governantes
para novos desafios. Que passam pela compatibilização entre uma atuação circunscrita
ao seu território e uma dimensão que ultrapassa essas fronteiras.

325
Nesse sentido, ver ÁNGEL MORENO MOLINA, La ejecución administrativa del Derecho Comunitario –
Régimen europeo y español, Marcial Pons, Madrid/Barcelona, 1998, pp. 224-226; PAULO OTERO, A
administração pública nacional como administração comunitária: os efeitos internos da execução
administrativa pelos Estados-Membros do Direito Comunitário, in «Estudos em Homenagem à Professora
Isabel de Magalhães Collaço», Volume I, Almedina, 2002, p. 821; MIGUEL PRATA ROQUE, Direito
Processual Administrativo Europeu, cit., pp. 104-105.
326
MIGUEL PRATA ROQUE, O Direito Administrativo Europeu – Um motor da convergência dinâmica dos
Direitos Administrativos nacionais, in «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia»,
Coimbra Editora, 2010, pp. 956-964.

108
§ 82. Atuação transnacional - A hipertrofia do objeto da governação (que assume
uma dimensão cada vez mais expansiva) reforça-se com a constatação de que governar
não é apenas cooperar com as administrações do espaço europeu. Bem pelo contrário, o
governante contemporâneo tem de compreender bem a importância das redes
transnacionais e das entidades híbridas transnacionais327. Isto é, de mecanismos
colaborativos, à escala planetária, que partilham e condicionam a prossecução das tarefas
administrativas. Desde a regulação administrativa da Internet (“lex digitalis”)328,
passando pelo mundo desportivo (“lex sportiva”)329, até ao comércio internacional (“lex
mercatoria”)330, todos esses domínios envolvem uma partilha de competências entre a
administração pública nacional e novos centros de poder administrativo.

327
Para uma caraterização deste tipo de entidades híbridas, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão
Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 883-884, n.r. 2415.
328
Sobre a governação da internet e o papel da ICANN – INTERNET CORPORATION FOR ASSIGNED NAMES
AND NUMBERS, ver DAVID JOHNSON/DAVID POST, Law and borders – The rise of Law in cyberspace, in
«SLR», 48 (1996), pp. 1367-1376; JOCHEN VON BERNSTORFF, IDEM, The structural limitations of network
governance: ICANN as a case in point, in «Transnational Governance and Constitutionalism», (org.
Christian Joerges/Inger-Johanne Sand/Gunther Teubner), Hart Publishing, Portland, 2004, pp. 257-282;
KARL-HEINZ LADEUR, ICANN and the illusion of a community-base internet: comments on Jochen von
Bernstorff, in «Transnational Governance and Constitutionalism», (org. Christian Joerges/Inger-Johanne
Sand/Gunther Teubner), Hart Publishing, Portland, 2004, pp. 283-286; BRUNO CAROTTI/LORENZO CASINI,
A hybrid public-private regime: The Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN) and
the governance of the internet, in «Global Administrative Law – Cases, Material, Issues» (org. Sabino
Cassese), 2ª edição, ILLJ, New York University School of Law, 2008, pp. 29-36; MIGUEL PRATA ROQUE,
A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 503, n.r. 1530 e 868-869, n.r. 2381.
329
Sobre a governação do desporto mundial e o papel da Associação Mundial Antidopagem, ver LORENZO
CASINI, Hybrid Public-Private Bodies within Global Private Regimes: The World Anti-Doping Agency
(WADA), in «Global Administrative Law – Cases, Material, Issues» (org. Sabino Cassese), 2ª edição, ILLJ,
New York University School of Law, 2008, pp. 37-44; IDEM, Global hybrid public-private bodies: The
World Anti-Doping Agency, Draft Paper, Global Administrative Law Conference, Genève, March 20-21,
2009, pp. 1-24; IDEM, Towards global administrative systems: the case of sport, in «Global Administrative
Law: an Italian perspective», RSCA Policy Paper 2012/04, Robert Schuman Centre for Advanced Studies,
2012, pp. 69-79; IDEM, Sports Law: a global legal order, in «Law & Society Forum», Honolulu, 2012, pp.
2-3; MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 915, n.r. 2471
e 1178-1180; FABIAN SIMMAK, Sports global law – Racing against the clock, competing for a
comprehensive understanding, in «E-Publica», volume 2, 2 (2015), pp. 185-208, disponível in
http://www.e-publica.pt/volumes/v2n2/pdf/Vol.2-N%C2%BA2-Art.15.pdf.
330
Sobre a governação do comércio internacional, a propósito da padronização dos produtos de consumo
(ISO – International Standardization Organization), ver BENEDICT KINGSBURY/NICO KRISCH/RICHARD
STEWART, The Emergence of Global Administrative Law, in «Law and Contemporary Problems», 68 (2004-
2005), pp. 22-23; HANS CHRISTIAN RÖHL, Internationale Standardsetzung, in «Internationales
Verwaltungsrecht» (org. Christoph Möllers/Andreas Vosskuhle/Christian Walter), Mohr Siebeck, 2007, pp.
322-329; SABINO CASSESE, What is Global Administrative Law and why study it?, in «Global
Administrative Law: an Italian perspective», RSCA Policy Paper 2012/04, Robert Schuman Centre for
Advanced Studies, 2012, p. 9; IDEM, The Global Polity, Université de Paris Ouest Nanterre La Defense,
17th June 2011, p. 7; MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit.,
pp. 869, n.r. 2381. E, em matéria de segurança alimentar (Comissão do “Codex Alimentarius”), ver HANS
CHRISTIAN RÖHL, Internationale Standardsetzung, in «Internationales Verwaltungsrecht» (org. Christoph
Möllers/Andreas Vosskuhle/Christian Walter), Mohr Siebeck, 2007, pp. 329-332; SABINO CASSESE, Il
Diritto Globale, – Giustizia e Democracia Oltre lo Stato, Einaudi, Torino, 2009, p. 23; RAVI AFONSO
PEREIRA, Why would international administrative activity be any less legitimate? – A study of the Codex
Alimentarius Commission, in «Global Law Journal», 9 (2008), pp. 1693-1718; COLAÇO ANTUNES, A

109
Em suma, com a globalização veio o fim do estatocentrismo331. A partir de então,
o governante estadual não decide sozinho. Colabora – e até depende – de peritos e
técnicos que formam redes transnacionais e que moldam os parâmetros normativos
aplicáveis: padrões técnicos globais332; códigos de boa conduta; e (numa visão
justinternacionalista mais clássica) a “soft law”. Surgem, então, fontes de normatividade
global que emergem de sujeitos privados. O que estilhaça a lógica tradicional de que cabe
apenas às instituições públicas estabelecer critérios normativos de conduta. Começa,
agora, a questionar-se sobre se determinadas entidades privadas, que atuam à escala
global, não deveriam ficar submetidas a princípios e regras constitucionais, que garantam
a subsistência de um modelo democrático e pluralista de Estado de Direito333.
Para enfrentar estas novas dinâmicas e melhor regular a atuação dos atores
globais, justifica-se que a governação administrativa saiba adaptar – e, quando necessário,
criar – estruturas e serviços capazes de garantir uma participação eficaz das
administrações nacionais no processo de governação global. O que demonstra, para que
dúvidas não restem, que o objeto da governação administrativa não se cinge à dimensão
paroquial dos limites territoriais de cada Estado. Ele expande-se até lá, onde e sempre que
haja necessidade de governar.

Ciência Jurídica Administrativa, Almedina, 2012, pp. 183-195; MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão
Transnacional do Direito Administrativo, cit., p. 912, n.r. 2468.
331
MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 200-202.
332
Para uma definição do conceito de padrões técnicos globais, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão
Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 918-924 e 1229-1233.
333
Mais desenvolvidamente, ver ALFRED AMAN (Jr), Proposals for Reforming the Administrative
Procedure Act: Globalization, Democracy and the Furtherance of a Global Public Interest, in
«International Journal of Global Legal Studies», 6 (1999), p. 403; IDEM, Globalization, democracy and the
need for a New Administrative Law, in «University of California Los Angeles Law Review», 49 (2002),
pp. 1701-1702; JOCHEN VON BERNSTORFF, Democratic global internet regulation? Governance networks,
International Law and the shadow of hegemony, in «European Law Journal», 4 (2003), pp. 517-526;
ROBERT KEOHANE, Governance in a partially globalized world, in «American Political Science», 1 (2001),
p. 2; SCOTTI CAMUZZI, Tesi, progetti e utopie di una globalizzazione della democrazia e dei valori liberali,
«Jus – Rivista di Scienze Giuridiche», 1 (2003), p. 41; GIUSEPPE FILIPPETTA, Governance plurale, controlo
parlamentare e rappresentanza politica al tempo della globalizzazione, in «Diritto Pubblico Comparato ed
Europeo», II (2005), pp. 796-798; GÜNTHER TEUBNER, Global private regimes: Neo-spontaneous law and
dual constitution of autonomous sectors?, in «Public Governance in the Age of Globalization» (org. Karl-
Heinz Ladeur), Ashgate, Aldershot, 2004, p. 71; IDEM, Self-constitutionalizing TNC´s? On the linkage of
«private» and «public» corporate codes of conduct¸ in «Indiana Journal of Global Legal Studies», 2 (2011),
pp. 621-623; GOMES CANOTILHO, «Brancosos» e Interconstitucionalidade – Itinerários sobre a
Historicidade Constitucional, Almedina, 2006, pp. 298-300; MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão
Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 924-948.

110
SECÇÃO II
MODOS DE ATUAÇÃO

§ 83. Desmaterialização - A governação moderna tem vindo a libertar-se,


progressivamente, do estigma de que só a intervenção física e corpórea logra alterar a
realidade fáctica quotidiana. Ao longo da História, a capacidade de intervir, em
determinado território – se necessário, por intermédio do emprego da força física –, foi
sempre vista como uma manifestação de poder político e de “auctoritas” pública334.
Dentro do meu território, mando eu.
Não se estranha, portanto, que o exercício de poderes administrativos se tenha
confundido com a suscetibilidade de implementar e executar medidas, nos limites de cada
espaço territorial. Significa isto que governar corresponderia a distribuir por um certo
território um aparelho administrativo, mais ou menos complexo (consoante os recursos
públicos de cada Estado), que garantiria a aplicação do Direito ali vigente. Nesse sentido,
o princípio da simplificação (na sua vertente de desburocratização) e o princípio da
aproximação dos serviços públicos às populações – expressamente consagrado, no caso
português, pelo artigo 267.º, n.º 1, da Constituição – exigiram uma presença física das
pessoas coletivas públicas encarregues da função administrativa. Nesse sentido,
proliferaram quer os serviços desconcentrados do Estado (e de outras pessoas coletivas
públicas de âmbito nacional), quer os serviços localmente prestados por outras pessoas
coletivas públicas; em especial, as autarquias locais.
Sucede que a revolução tecnológica – seja a Revolução Industrial dos finais do
século XVIII e do século XIX335, seja a Revolução Tecnológica e Eletrónica, dos finais
do século XX e do início do século XXI336 – veio permitir à administração pública

334
JEAN-BERNARD DUROSELLE, Les frontières. Vision historique, in «Relations Internationales», 63 (1990),
p. 229; JOËL BONNEMAISON/LUC CAMBREZY, Le lien territorial entre frontières et identités, in «Géographie
et Cultures», 20 (1996), 13-14; GÄEL ABLINE, Sur un nouveau principe général du droit international:
l’«uti possidetis», Université d´Angers, 2006, p. 10; MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional
do Direito Administrativo, cit., pp. 33-34.
335
Nesse período histórico, a Humanidade beneficiou, sucessivamente, das primeiras redes de iluminação
pública (1807), da construção de redes de esgotos e de canalizações públicas, da criação de matadouros
supervisionados, da abertura dos caminhos-de-ferro (1825) e das demais vias de comunicação rodoviária
(1803), do telégrafo (1844), do telefone (1856)335 e da distribuição generalizada de correio postal. Assim,
ver MIGUEL PRATA ROQUE, A Dimensão Transnacional do Direito Administrativo, cit., pp. 188-189.
336
Com efeito, a Internet – isto é, a “worldwideweb” (www.) – apenas foi inventada em 25 de março de
1989, por TIM BERNERS-LEE. Este inventor já havia iniciado, em 1980, durante a sua permanência na CERN
– Organização Europeia para a Investigação Nuclear, com sede em França, um aplicativo informático que
permitia a partilha de documentos digitais em rede: o “Enquire”. Sobre a sua origem, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, O nascimento da administração eletrónica num ambiente transnacional (Breves notas a propósito

111
multiplicar a sua presença digital, sem que tal implicasse uma presença física em cada
metro quadrado do respetivo território. Desmaterializar significa, assim, aproximar.
Tornar permanente aquilo que, antes, era apenas intermitente337. Tantas vezes,
dependente do horário de abertura dos serviços de atendimento ao público338. Nesse
sentido, a desmaterialização permite uma concretização plena (nunca antes alcançada) do
princípio da continuidade dos serviços públicos339. Desmaterializar corresponde, então, a
um processo, em curso, de migração das infraestruturas, dos serviços e dos suportes
documentais físicos para uma dimensão digital, eletrónica ou informática.
Não se diga, porém, que a desmaterialização corresponde – tão só e apenas – à
substituição dos suportes físicos (em papel, presenciais ou infraestruturais) por suportes
eletrónicos. Bem pelo contrário, a desmaterialização implica, necessariamente, uma
completa reconfiguração da própria teoria geral das atuações administrativas340. Um ato
administrativo eletrónico não significa, apenas, que aquele passe a ser praticado através
de um suporte eletrónico. O conteúdo, a causa e a metodologia inerentes ao respetivo
procedimento são profundamente afetados pela migração do suporte físico para o suporte
digital341. A automatização das tarefas administrativas coloca sérios problemas, não só

do projeto de revisão do CPA), in «E-pública», 1 (2014), pp. 309-310; IDEM, A Dimensão Transnacional
do Direito Administrativo, cit., pp. 199-200.
337
MIGUEL PRATA ROQUE, O nascimento da administração eletrónica num ambiente transnacional, cit., p.
6.
338
Com efeito, nos dias que correm, deixou de fazer qualquer sentido que – sempre que determinado ato
real procedimental seja praticado por via eletrónica – se continue a manter uma contagem de prazos assente
em dias úteis (?), com suspensão da mesma aos sábados, domingos e feriados [cfr. artigo 87.º, n.º 1, alínea
c), do CPA2015] ou que os particulares que residam fora da circunscrição territorial do órgão administrativo
competente gozem de prazos dilatórios (cfr. artigo 88.º, n.º 1, do CPA2015). Nesse sentido, ver MIGUEL
PRATA ROQUE, O procedimento administrativo eletrónico, cit., pp. 295-297
339
Demonstrando que o uso de meios eletrónicos favorece a continuidade da prestação de serviços públicos,
ver ÁLVARO SÁNCHEZ BRAVO, La administración electrónica en España, in «Imprenta», 28 (2007), p. 100;
DAVID BROWN, Electronic government and public administration, n «International Review of
Administrative Sciences», 71 (2005), 248; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I,
cit., p. 487; MIGUEL PRATA ROQUE, O procedimento administrativo eletrónico, cit., pp. 295. Sobre o
princípio da continuidade dos serviços públicos, ver LÉON DUGUIT, Law in the Modern State, (traduzido
por Frida e Harold Laski), George Allen & Unwin, London, 1921, pp. 39 e 54-67; CÂNDIDO DE OLIVEIRA,
A Administração Pública de Prestação e o Direito Administrativo, in «Scientia Ivridica», 259-161 (1994),
pp. 108-109; MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo Contrato Administrativo, Almedina, Coimbra, 2003
(reimpressão), p. 119; PAULO OTERO, O Poder de Substituição em Direito Administrativo – Enquadramento
Dogmático-Constitucional, Volume II, Lex, Lisboa, 1995, p. 470; MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ
SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral – Introdução e Princípios Fundamentais, Tomo I, 2ª
edição, Dom Quixote, Lisboa, 2006, p. 45.
340
Para um contributo sobre este tema, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Administração eletrónica e
automatização: Contributos para uma reformulação da teoria geral das atuações administrativas, cit., pp.
755-787.
341
CARLOS NOTARMUZI, Il procedimento amministrativo informatico, in «Astrid Resegna», 16 (2006), p.
2; ÁLVARO SÁNCHEZ BRAVO, La administración electrónica en España, cit., p. 99; ANA MARÍA DELGADO
GARCÍA/RAFAEL OLIVER CUELO, La actuación electrónica automatizada – algunas experiencias en el
âmbito tributário, in «Revista Catalana de Dret Public», 35 (2007), p. 2; ANTONIO MUÑOZ-

112
quanto à formação da vontade funcional do órgão que o adota342, mas também quanto às
próprias diligências necessárias à sua aprovação e à posterior execução. Essa mesma
desmaterialização pressupõe, também, uma nova forma de governar, que saiba integrar o
uso de meios automatizados no procedimento administrativo.
Não basta, portanto, transpor os raciocínios e metodologias que empregávamos,
antes, para as formas clássicas (e ortodoxas) de atuação administrativa. Forçoso é que se
adaptem as estruturas e os procedimentos às novidades resultantes dessa
automatização343.

§ 84. Desconcentração - A automatização administrativa fez da desconcentração


uma das suas principais vítimas. Em bom rigor, por força do princípio da boa
administração344, um governante criterioso e experimentado tende a optar por
desmaterializar os serviços que presta, ao invés de os desconcentrar, através do
estabelecimento presencial e físico de instalações e de infraestruturas locais. Até à
generalização dos meios eletrónicos – que permitem uma atuação à distância –,
imperavam os modelos desconcentrados. Isto é, a criação, abertura e disponibilização de
serviços administrativos perto das populações, que permitissem um atendimento
presencial. A partir da migração tecnológica dos suportes e infraestruturas físicas para
sucedâneos digitais e eletrónicos, o mecanismo da desconcentração perdeu grande parte
do seu relevo, no plano da governação administrativa. Hoje em dia, aproximar serviços
das populações pode não implicar (e, na maioria das vezes, não implica) a deslocalização
física daqueles serviços para junto das populações, assente num modelo – arcaico e já
ultrapassado – de atendimento presencial.
À partida, a desconcentração tanto pode implicar um exercício translativo (ou
mesmo transumante) de poderes, como um exercício delegativo de poderes345. De acordo

CAÑAVATE/PEDRO HÍPOLA, Electronic administration in Spain: From its beginning to the present, in
«Government Information Quarterly», 29 (2011), p. 76; PAULO OTERO, Manal de Direito Administrativo,
Volume I, cit., p. 485; MIGUEL PRATA ROQUE, Administração eletrónica e automatização: Contributos
para uma reformulação da teoria geral das atuações administrativas, cit., p. 756.
342
Sobre a relevância do erro-obstáculo e dos vícios da vontade, em matéria de formação de atuações
administrativas, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Administração eletrónica e automatização: Contributos para
uma reformulação da teoria geral das atuações administrativas, cit., pp. 763-771.
343
É isso, aliás, que se procurará fazer na Parte III do presente Manual; em especial, nos §§ ## e ##.
344
Sobre o princípio da boa administração, ver o § ## do presente Manual.
345
Em sentido aparentemente contrário, FREITAS DO AMARAL assume que a desconcentração apenas pode
ser originária – assentando numa transferência legal de competências – ou derivada – quando resulte de ato
delegativo. Esse entendimento resulta de o critério que utiliza para definir “desconcentração” se fundar no
exercício direto (ou concentrado) de poderes pelo órgão legalmente encarregue ou no exercício indireto (ou
desconcentrado) desses mesmos poderes, por subalternos daquele. Ao invés, entendo que a desconcentração

113
com o primeiro modelo, o próprio órgão (ou titular) competente para praticar atuações
administrativas desloca-se, pessoal e fisicamente, ao local onde os serviços
desconcentrados se encontram. Ou, então, exerce esses poderes, à distância; por exemplo,
por intermédio de meios eletrónicos. De acordo com o segundo modelo, o órgão (ou
titular) competente delega as suas competências num subordinado hierárquico ou num
órgão intermédio. Em suma, existem duas dimensões distintas:
⎯ Desconcentração subjetiva das competências – quando se opera um
alargamento do exercício de competências anteriormente concentradas
num só órgão, unipessoal ou coletivo; em regra, através de delegação;
⎯ Desconcentração espacial das competências” – sempre que o próprio
órgão, originária ou supervenientemente, titular dessas competências
opta por exercê-las, através de um suporte físico ou desmaterializado,
em espaço mais próximo dos destinatários da governação.

Neste último sentido, a desconcentração consiste na dispersão territorial de órgãos


e de serviços da administração do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, através
da criação de serviços e de infraestruturas físicas e presenciais que permitem, localmente
e na periferia da administração central, disponibilizar atendimento, informação ou mesmo
prestação de serviços públicos às populações – conceito de “administração periférica”.
Enquadram-se neste conceito, as direções regionais e as inspeções regionais de cada área
governativa, bem como outros serviços desconcentrados, tais como os agrupamentos de
escolas346, as esquadras da polícia ou os quarteis militares.
Frise-se que, ao arrepio da abordagem tradicional, também se podem
desconcentrar serviços de pessoas coletivas públicas de natureza infraestadual, ainda que
estas prossigam funções administrativas de âmbito e alcance geográfico nacional. Com
efeito, quer os institutos públicos347, quer as empresas públicas, bem como as regiões

radica antes numa dispersão ou deslocalização dos serviços administrativos prestados às populações, pelo
que releva mais a sua repercussão externa do que intra-administrativa. Para uma análise da posição daquele
autor, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 657-659.
346
Ainda que disponham de um acentuado grau de autonomia – em especial, em matéria de administração
e gestão escolar (cfr. Lei n.º 75/2008, de 22 de abril, subsequentemente alterado até à redação que lhe foi
conferida pelo Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho) –, os agrupamentos de escolas de ensino pré-escolar,
básico e secundário são verdadeiros estabelecimentos públicos, que se encontram sujeitos ao poder
hierárquico do membro do Governo responsável pela respetiva área. No limite, mantendo este o poder de
dissolução dos órgãos de gestão, para garantia da boa prestação do serviço público (cfr. artigo 35.º).
347
A título de exemplo, pense-se nos 18 (dezoito) Centros Distritais do Instituto de Segurança Social, I.P.,
expressamente instituídos pelo n.º 3 do artigo 2.º da lei orgânica daquele instituto, aprovada pelo Decreto-
Lei n.º 83/2012 (e alterada pelo Decreto-Lei n.º 167/2013).

114
autónomas, as autarquias locais, as associações públicas e as entidades administrativas
independentes podem desconcentrar os respetivos serviços, dispersando-os pelo território
nacional348.
Um exemplo impressivo desta desconcentração, de tipo infraestadual, verifica-se
no setor administrativo da saúde349. Ao contrário do que sucede com a rede escolar, a rede
de centros de saúde e de hospitais públicos distribui-se pelo território nacional de uma
forma assaz particular. Ao invés de ser integrada, exclusivamente, nos serviços
desconcentrados do Estado (isto é, na administração direta periférica), esta rede de saúde
obedece a três modelos distintos:
⎯ Modelo desconcentrado estadual – alguns estabelecimentos de
prestação de cuidados de saúde, apesar de cada vez mais minoritários,
permanecem ainda integrados na administração direta periférica do
Estado, adstritos ao setor público administrativo. São disso exemplo o
Centro de Medicina Física de Reabilitação do Sul (São Brás de
Alportel), o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro –
Rovisco Pais (Tocha), o Hospital Arcebispo João Crisóstomo
(Cantanhede) e o Hospital Dr. Francisco Zagalo (Ovar);
⎯ Modelo desconcentrado personalizado – a esmagadora maioria dos
estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde consubstancia-se
em agrupamentos de centros de saúde que, por sua vez, se encontram
integrados em cada uma das 5 (cinco) administrações regionais de
saúde350 e, por conseguinte, sujeitos ao poder hierárquico dos
respetivos órgãos diretivos. As administrações regionais de saúde
organizam-se enquanto serviços públicos personalizados, estando
sujeitas ao regime dos institutos públicos351. Em suma, os

348
Nesse sentido, admitindo que quaisquer pessoas coletivas públicas podem desconcentrar os seus
serviços, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 657.
349
Sobre o tema, ver MARIA JOÃO ESTORNINHO, Organização Administrativa da Saúde – Relatório sobre
o Programa, os Conteúdos e os Métodos de Ensino, Almedina, 2009; MARIA JOÃO ESTORNINHO/TIAGO
MACEIRINHA, Direito da Saúde – Lições, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2014.
350
A saber: i) Norte; ii) Centro; iii) Lisboa e Vale do Tejo; iv) Alentejo; v) Algarve.
351
A transformação das administrações regionais de saúde em institutos públicos deu-se com o Decreto-
Lei n.º 222/2007, de 29 de maio, na sequência da aprovação do PRACE – Programa de Reforma da
Administração Central do Estado. Este modelo institucional manter-se-ia com a implementação do
PREMAC – Plano de Redução e Melhoria da Administração Central, pelo Decreto-Lei n.º 22/2012, de 30
de janeiro.

115
agrupamentos de saúde352 correspondem a serviços desconcentrados
de institutos públicos, corporizando, assim, uma administração
periférica infraestadual;
⎯ Modelo desconcentrado empresarial – curiosamente, vários outros
centros de saúde assumem uma natureza empresarial, encontrando-se
sujeitos ao regime jurídico das entidades públicas empresariais353;
encontram-se neste caso, as seguintes unidades locais de saúde, EPE´s:
Castelo Branco; Matosinhos; Alto Minho; Guarda; Baixo Alentejo;
Litoral Alentejano; Norte Alentejano; e Nordeste. Contudo, a
esmagadora maioria dessas entidades públicas empresariais
corresponde a antigos hospitais públicos e a centros hospitalares
universitários354. Em função da dimensão transterritorial de algumas
dessas entidades públicas empresariais – que integram serviços
transmunicipais; isto é, sedeados em vários municípios distintos –,
considero justificar-se, assim, que se fale, ainda, de serviços
desconcentrados empresariais. Com efeito, apesar de estarem em causa
entidades do setor empresarial do Estado (portanto, com personalidade
jurídica dele autónoma), certo é que os concretos serviços,
infraestruturas e estabelecimentos de saúde detidos por cada uma
daquelas são, eles próprios, serviços desconcentrados da própria

352
A mero título de exemplo, assumem esta natureza de serviços desconcentrados das administrações
regionais de saúde, I.P.´s, os seguintes agrupamentos de centros de saúde: Almada-Seixal; Amadora; Arco
Ribeirinho; Arrábida; Cascais; Estuário do Tejo; Lezíria; Baixo Alentejo; Baixo Vouga; Lisboa Central;
Lisboa Norte; Lisboa Ocidental e Oeiras.
353
Este modelo foi inaugurado, pelo Decreto-Lei n.º 207/99, de 9 de junho, a título experimental (cfr. artigo
38.º), permitindo a integração, simultânea, quer de centros de saúde, quer de hospitais e outros
estabelecimentos integrados no SNS – Serviço Nacional de Saúde. Desde então, cada nova unidade local
de saúde (EPE) é instituída por decreto-lei, tendo cada uma delas sido integrada no regime jurídico das
entidades públicas empresariais da saúde, que se encontram sujeitas ao regime do setor empresarial do
Estado (cfr. artigos 56.º a 61.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, de acordo com a redação que
lhe foi conferida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro). Nos termos do artigo 57.º, n.º 1, desse regime,
cada EPE é criada por decreto-lei, tendo as atuais sido instituídas pelo Decreto-Lei n.º 93/2005, de 7 de
junho (na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 30/2011, de 3 de fevereiro) e pelo Decreto-Lei
n.º 233/2005, de 29 de dezembro (na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 12/2015, de 26 de
janeiro).
354
Entre muitos outros, mencionem-se: Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil /
Centro Hospitalar Universitário do Porto, EPE / Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, EPE / Centro
Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, EPE / Hospital da Senhora da Oliveira Guimarães, EPE /
Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE / Centro Hospitalar Universitário de S. João, EPE / Centro Hospitalar
Póvoa de Varzim/Vila do Conde, EPE / Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, EPE / Centro Hospitalar de
Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE / Centro Hospitalar Tondela Viseu, EPE / Centro Hospitalar Leiria, EPE
/ Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE /Centro Hospitalar Universitário Cova da Beira, EPE.

116
pessoa coletiva pública (de tipo empresarial), que mantém a sede num
dos vários municípios onde aquela exerce funções.

§ 85. Delegação de competências - O exercício de poderes administrativos pelos


serviços e infraestruturas que tenham sido desconcentrados envolve, em regra, a
delegação de competências, por parte do órgão (ou titular) originariamente competente.
É certo que o órgão originariamente competente mantém sempre o poder de exercer
diretamente essas competências, incluindo através da deslocação presencial ao local onde
se encontram os serviços desconcentrados. Porém, a regra traduz-se no alargamento da
esfera de exercício desses poderes a outros órgãos ou subordinados hierárquicos que se
encontrem instalados nos locais onde a desconcentração opera. Como tal, a delegação não
configura um mecanismo de transferência de poderes, mas apenas de ampliação da esfera
de exercício, por parte sujeitos ativos legalmente habilitados para exercer determinadas
competências355. Ela alarga – mas não transfere – o âmbito subjetivo de um poder
juridicamente conferido.
A delegação de competências corresponde a uma subespécie do poder dispositivo
(de competência)356, de que gozam todos os órgãos dotados de supremacia hierárquica.
Assim sendo, o exercício delegativo de competências pressupõe, em regra357, essa relação
de hierarquia administrativa, que apenas subsiste entre órgãos, titulares e funcionários de
uma mesma pessoa coletiva pública. Nessa medida, a delegação de competências
apresenta-se como o principal instrumento ao dispor da desconcentração administrativa.

355
Partilho, assim, em traços largos, a visão de PAULO OTERO sobre a natureza jurídica da delegação de
competências, segundo o qual a delegação consiste numa permissão (ou alargamento) do exercício de
determinada competência, por parte do delegado a quem a lei habilitante já atribuiu a titularidade da mesma,
que apenas depende de ato administrativo do delegante. Sobre o conceito daquele autor, ver PAULO OTERO,
A Competência Delegada no Direito Administrativo Português, AAFDL, Lisboa, 1987, pp. 198-200; IDEM,
O Poder de Substituição em Direito Administrativo – Enquadramento Dogmático Constitucional, Volume
II, Lex, Lisboa, 1995, pp. 418-491.
356
Entre os poderes hierárquicos, devem distinguir-se: a) poder delimitativo – no qual se insere o poder de
planeamento e o poder de direção; b) poder sindicativo – que abrange os poderes fiscalização e de inspeção,
bem como o poder de supervisão; c) poder sancionatório – que corresponde ao poder disciplinar e ao poder
de avaliação de desempenho; d) poder dispositivo – no qual se compreendem o poder de fixação da
competência, de resolução de conflitos, de delegação e de avocação (ou de exercício substitutivo). Em
sentido próximo, ainda que não integralmente coincidente, ver PAULO OTERO, Direito Administrativo –
Relatório, Coimbra Editora, 2001, pp. 245-246.
357
Com efeito, nos casos de delegação imprópria (ou de descentralização específica, a título superveniente),
procede-se a uma habilitação, por via de ato administrativo delegativo, de órgãos de outra pessoa coletiva
pública para praticar atuações administrativas que, em condições normais, caberiam nas atribuições da
pessoa coletiva pública delegante. Exemplo disso sintomático é a possibilidade de delegação de poderes
das câmaras municipais nas juntas de freguesia, que pertencem a autarquias locais disitntas, conforme
resulta do artigo 33.º, n.º 1, alíneas l), m) e n), da Lei das Autarquias Locais (aprovada pela Lei n.º 75/2013,
de 12 de setembro, de acordo com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto).

117
Isto porque a deslocalização física dos serviços desconcentrados pressupõe sempre que
aqueles sejam empoderados com as ferramentas indispensáveis ao cumprimento da
missão da pessoa coletiva pública em que se inserem.
Mais discutível é saber se a delegação de competências também abrange a prática
de atuações administrativas automatizadas. Com efeito, a desmaterialização pode assentar
na prática por autómatos, por aplicações informáticas ou por outros meios eletrónicos (ou
mesmo mecânicos)358 de atuações administrativas que não são direta e pessoalmente
executadas pelos órgãos, titulares ou mesmo por subordinados hierárquicos disso
encarregues. De qualquer modo, não existe delegação sem sujeito. Isto é, não se afigura
admissível conceber, como delegação de competências, o mero uso de meios
automatizados, por parte do titular de órgão competente, mediante solicitação a terceiros
(programadores informáticos; engenheiros eletrotécnicos; engenheiros de robótica;
técnicos de infraestruturas várias; etc.) da operacionalização desses meios. A prática
automatizada de atuações administrativas não deixa de ser imputável ao órgão
competente, por via de um mecanismo de antecipação cognitiva e volitiva do titular do
mesmo359. Isto é, a vontade funcional que preside à atuação automatizada mantém-se no
domínio do titular do órgão competente e não do concreto agente que operacionaliza os
mecanismos automatizados.
Também não constituiu delegação de competências a mera “delegação de
assinatura”, que consiste apenas numa permissão concedida pelo órgão competente a um
subordinado hierárquico (ou a terceiro legalmente habilitado) para que assine, em vez e
em substituição do primeiro360. No caso da (impropriamente denominada) “delegação de
assinatura”, é o próprio autorizado que apõe a sua assinatura, assumindo, assim, a autoria
direta do ato real praticado361. Importa não confundir a “delegação de assinatura” com

358
Para uma distinção entre automatização mecânica, eletrónica e informática, ver MIGUEL PRATA ROQUE,
O procedimento administrativo eletrónico, cit., pp. 276-277.
359
Conforme já demonstrei, aliás, num outro estudo. Assim, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Administração
eletrónica e automatização: Contributos para uma reformulação da teoria geral das atuações
administrativas, cit., pp. 27
360
Em sentido muito amplo e talvez demasiado abrangente, há quem não distinga delegação de assinatura
de assinatura a rogo e de assinatura assistida, considerando, sempre, que a delegação de assinatura
pressupõe que a autoria do ato administrativo cabe ao órgão competente para decidir. Assim, ver MARCELO
REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Volume I, Lex, Lisboa, 1999, p. 195.
361
Em sentido contrário, MARCELO REBELO DE SOUSA (cfr. Lições de Direito Administrativo, Volume I,
cit., p. 195) afirma que o autor do ato seria sempre o órgão administrativo competente. Porém, o autor
aparenta esquecer a distinção entre autoria da decisão final (isto é, do ato administrativo) e autoria do ato
interlocutório tendente a preparar ou executar o ato administrativo (isto é, do ato real). Obviamente, a
autoria do ato real cabe, em sentido próprio e pessoal, ao subordinado que assina e não ao órgão titular da
competência para decidir, a final.

118
duas figuras afins: a “assinatura a rogo” e a “assinatura assistida”. No caso da
“assinatura a rogo”, o próprio delegante mantém-se como autor do ato real (ou do ato
administrativo362), sendo que a pessoa autorizada a assinar o faz, sob essa mesma
condição, expressamente mencionando que assina pelo e por conta do órgão competente.
No caso da “assinatura assistida”, apesar de não ser o titular do órgão competente que
assina, fisicamente, é a sua assinatura que é aposta em determinado documento, por um
terceiro, de modo lícito e consentido. Quando ocorra uma assinatura assistida, estará
apenas em causa a prática de um ato real automatizado, que tanto se pode traduzir na
aposição de um carimbo que contenha a referida assinatura ou do uso de assinatura digital,
por terceiro, incluindo através do uso de palavra-chave incriptadora.

§ 86. Transferência legal de competências - A delegação não pode ser


confundida com a “transferência legal de competências”, que alguns autores consideram
como uma forma de desconcentração originária363. Neste caso, a desconcentração opera,
automaticamente, por força de mera previsão legal. Por lei, deslocalizam-se serviços
concentrados, distribuindo-os territorialmente. Através dela, estas estruturas da
administração periférica (do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas) veem-lhes
atribuídas novas competências, com vista à prossecução mais eficaz do interesse público.
Nesse sentido, a referência a uma desconcentração originária não se afigura feliz.
Em bom rigor, apenas haveria desconcentração originária no momento zero da aprovação
de lei com conteúdo inovador. Ou seja, quando fosse criado determinado regime jurídico
ou serviço público e se optasse por conferir, logo à partida, competências aos órgãos ou
serviços que se encontrem geograficamente dispersos. Sucede, porém, que a
“transferência legal de competências”, pela sua própria natureza, tende a ocorrer entre
órgãos e serviços pré-existentes; isto é, já instituídos à luz de lei anterior. Razão pela qual
deveria preferir-se a terminologia “desconcentração legal de competências”, por
contraponto à já referida “desconcentração administrativa de competências”, que opera
por via da delegação.
Por fim, a transferência legal de competências tanto pode ser automática, quando
a lei confere a titularidade a um órgão e o seu exercício a um outro, como ser condicionada
à não avocação pelo titular. Neste último caso, tratar-se-ia daquilo que alguns denominam

362
Não deve esquecer-se, aliás, que a assinatura do ato administrativo constitui menção obrigatória do
mesmo, nos termos do artigo 151.º, n.º 1, alínea g), do Código do Procedimento Administrativo.
363
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 657-659.

119
por delegação tácita, apesar da sua imprecisão terminológica364. Em função da extensão
dessa transferência, ela também pode ser integral ou parcial. Neste último caso, torna-se
imprescindível que haja um reforço da colaboração intra-administrativa, entre o órgão
originariamente competente e os serviços desconcentrados, de modo a garantir a máxima
eficácia e eficiência da governação.

§ 87. Transferência contratual de competências - A governação administrativa


pode ainda ser exercida mediante uma opção estratégica entre prosseguir diretamente as
competências que são legalmente atribuídas a um órgão e permitir que seja outro órgão,
outra pessoa coletiva pública ou, até, uma pessoa coletiva privada365 a assegurar essas
funções e tarefas administrativas. Desde que, claro está, a lei habilite o órgão
originariamente competente a contratualizar esse exercício. Trata-se, portanto, de uma
transferência bilateral de competências, que pressupõe a aceitação ou a adesão da entidade
que as recebe; razão pela qual se distingue da delegação, que assenta numa decisão
unilateral do delegante.
Este modo de governação aproxima-se (e assim tem sido apelidado, por alguns366)
do conceito de delegação de serviços. Ou seja, por via de contrato público, transfere-se o
exercício de determinadas competências para órgãos geograficamente dispersos,
mantendo o órgão adjudicante a titularidade das mesmas. Esta transferência contratual
apresenta-se como, necessariamente, temporária. Ela permanece, assim, sujeita a um
“prazo de caducidade”, com termo certo ou incerto, ou uma “condição de reivindicação
futura” do exercício da competência, por parte do respetivo titular; em especial, quando
se verifica uma prestação deficiente ou defeituosa e, portanto, um incumprimento das
obrigações de serviço público constantes do contrato.
Este modo de governação tem imperado no domínio das relações entre o Estado e
as autarquias locais. Desde a entrada em vigor do novo regime jurídico das autarquias
locais (aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro), fixou-se que o modo adequado
para proceder a essa “transferência de exercício de competências” concretas se traduz na
adoção de contratos públicos, sejam eles:

364
Esta denominação não se afigura feliz, visto que qualquer declaração tácita pressupõe a verificação de
um comportamento concludente por parte do declaratário. Ora, o mero silêncio do órgão titular da
competência não se afigura suficiente para que se verifique essa concludência. Adotando a designação
“delegação tácita”, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp.
666-667; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 194-195.
365
Sobre a privatização de serviços públicos, ver o § 89 do presente Manual.
366
MARCELO REBELO DE SOUSA, cfr. Lições de Direito Administrativo, Volume I, cit., p. 196.

120
⎯ Entre o Estado e os municípios367;
⎯ Entre o Estado e as áreas metropolitanas ou as comunidades
intermunicipais368;
⎯ Entre os municípios e as áreas metropolitanas ou as comunidades
intermunicipais369;
⎯ Entre os municípios e as freguesias370.

A lei designa-os por “contratos de delegação de competências”. Imprópria e


erradamente, contudo. É certo que a lei procedimental administrativa admite, de modo
expresso, a delegação de poderes a órgãos de outras pessoas coletivas públicas (cfr. artigo
44.º, n.º 1, do CPA/2015). É certo, em especial, que a lei das autarquias locais trata, como
delegação, a transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as
entidades intermunicipais. Não é menos certo que a doutrina jusadministrativista tem
apelidado esses casos de “delegação imprópria”371; mas, ainda assim, de delegação.
Contudo, não aceito a completa desvirtuação do instituto jurídico da delegação. Ele
começou por corresponder a um poder dispositivo da competência, por parte do superior
hierárquico. E apenas derivou para a possibilidade de alargamento dessa competência a
um órgão de pessoa coletiva pública distinta porque permanecia fundado numa decisão
unilateral do órgão delegante, que podia, não só emitir instruções quanto ao modo da sua
execução, como podia avocar esses poderes, bem como revogar os atos delegados.
Ora, nada disto ocorre – ou poderia sequer equacionar-se –, em sede de
transferência de competências para as autarquias locais, em função do princípio da

367
Erradamente, o legislador refere-se a “contratos de delegação de competências entre a câmara
municipal e o Estado” (com sublinhado meu). Ora, como é evidente, os contratos públicos são celebrados
entre pessoas jurídicas – e não entre órgãos –, pelo que a câmara municipal não é contratante, mas antes
órgão administrativo que expressa a vontade funcional do município, desde que obtida a necessária
autorização pela respetiva assembleia municipal. Se assim não fosse, então, a contraparte seria o Governo
da República e não o Estado português. Habilitando os órgãos municipais para celebrar contratos de
delegação, ver os artigos 25.º, n.º 1, alínea k), 33.º, n.º 1, alíneas l) e m), 116.º a 123.º e 124.º a 127.º, todos
da Lei das Autarquias Locais (aprovada pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro).
368
Cfr. artigos 25.º, n.º 1, alínea k), 67.º, n.º 3, 71.º, n.º 1, alínea i), 76.º, n.º 1, alíneas dd), gg) e hh), 90.º,
n.º 1, alíneas k) e l), 116.º a 123.º e 124.º a 127.º, todos da Lei das Autarquias Locais (aprovada pela Lei n.º
75/2013, de 12 de setembro).
369
Cfr. artigos 25.º, n.º 1, alínea k), 67.º, n.º 3, 71.º, n.º 1, alínea i), 76.º, n.º 1, alíneas dd), gg) e hh), 90.º,
n.º 1, alíneas k) e l), 116.º a 123.º e 128.º a 130.º, todos da Lei das Autarquias Locais (aprovada pela Lei n.º
75/2013, de 12 de setembro).
370
Cfr. artigos 9.º, n.º 1, alínea g), 16.º, n.º 1, alíneas i) e j), 25.º, n.º 1, alínea k), 33.º, n.º 1, alíneas l) e m),
116.º a 123.º e 131.º a 136.º, todos da Lei das Autarquias Locais (aprovada pela Lei n.º 75/2013, de 12 de
setembro).
371
#

121
autonomia local (cfr. artigos 6.º, n.º 1, e 135.º, n.º 2, ambos da CRP)372 e do estrito poder
de tutela de legalidade, por parte do Estado, sobre aquelas (cfr. artigo 242.º, n.º 1, da
CRP). Com efeito, não se compreenderia – nem se aceita – um simulacro de delegação
de poderes, em que o delegante ficasse absolutamente impedido de proceder à
substituição primária, à avocação ou à revogação de atos do (pretenso) delegado. A
circunstância de – erradamente e por má técnica legislativa – o legislador insistir em
qualificar tais mecanismos como delegação (ainda que imprópria), não deve impressionar
o intérprete e o aplicador.
Em suma, a “transferência contratual de competências” corresponde a um modo
de governação bem distinto da delegação, que minimiza o poder unilateral do (pretenso)
delegante e reforça a capacidade negocial e governativa do (putativo) delegado. O órgão
para quem são transferidas tais competências nem se encontra sujeito a quaisquer
instruções do órgão transferente, nem tão pouco vê este concorrer consigo – através da
avocação ou do exercício concomitante de competências –, pelo que o órgão a quem são
conferidas tais competências exerce-as, pessoal, exclusiva e autonomamente.

§ 88. Descentralização - Governar é também saber interpretar o “duplo teste da


subsidiariedade”373, de modo a comprovar:
⎯ A insuficiência da intervenção de âmbito estadual;
⎯ A maior eficiência da intervenção de âmbito infraestadual, incluindo a
autonomia local.

Descentralizar pressupõe reconhecer que, à partida, a função administrativa será


melhor prosseguida por quem se encontrar mais perto dos destinatários dessa atuação374.

372
Sobre o princípio da autonomia local, ver ARTUR MAURÍCIO, A garantia constitucional da autonomia
local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, in «Estudos em homenagem ao Conselheiro José
Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 625-657; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direito
das Autarquias Locais, in «Tratado de Direito Administrativo Especial», Volume IV, Almedina, 2010, em
especial, pp. 111-112.
373
O duplo teste imposto pelo princípio da subsidiariedade encontra, aliás, expressão no modo como os
tratados europeus o têm vindo a conceber (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do TUE), sempre como instrumento de
delimitação de atribuições entre a União Europeia e os Estados-membros. Salientando esta dupla faceta,
ver FAUSTO DE QUADROS, O Princípio da Subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da
União Europeia, Coimbra Editora, 1995, pp. 18 e 42-45; IDEM, Direito da União Europeia, Almedina,
2004, pp. 202-203; ANA GUERRA MARTINS, Manual de Direito da União Europeia, Almedina, 2012, p.
284.
374
Reportando-se a um princípio de favorecimento da descentralização ou a uma presunção favorável ao
exercício das entidades localmente mais próximas, ver FAUSTO DE QUADROS, O Princípio da
Subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União Europeia, cit., p. 78. Razão pela qual a
prossecução de atribuições pelos Estados-Membros, por força do princípio da subsidiariedade, não pode

122
Neste sentido, a governação descentralizada busca a maximização quer da
“eficiência” – isto é, do uso racional dos recursos públicos –, quer da “eficácia” da
atuação administrativa – ou seja, do sucesso no alcance dos objetivos e metas da
governação. Razão pela qual se encontra paredes meias com o princípio da boa
administração375. O que não significa, porém, que a constatação da incapacidade das
estruturas infraestaduais, mais frágeis e menos dotadas de recursos públicos, não possa
gerar o efeito inverso; isto é, obrigar a uma centralização de tais atribuições376.
Descentralizar corresponde, assim, a um modo de governação assente não na
repartição de competências, mas antes na cisão e distribuição de atribuições por pessoas
coletivas públicas distintas do Estado. A partir desse movimento centrífugo, deixa de
haver uma só administração pública e passa a poder falar-se, antes – com toda a
propriedade – de várias administrações públicas377. A proliferação de várias pessoas
coletivas públicas (cada uma delas com as suas atribuições próprias) acentua, porém, o
risco de falta de harmonia da atuação administrativa. Coloca-se, então, em cheque o
princípio da igualdade e o princípio de aplicação uniforme do Direito378.
Para minorar essas desvantagens do modo descentralizado de governação, podem
ser adotados mecanismos de salvaguarda, tais como:
⎯ Concessão de poderes de controlo e de harmonização a uma entidade
central (é o que sucede com os poderes de tutela e de superintendência
do Governo);
⎯ Implementação de mecanismos colaborativos379, tais como troca de
informações, auxílio mútuo e execução conjunta;
⎯ Responsabilização financeira, incluindo em sede de transferências
orçamentais de âmbito estadual.

dispensar a descentralização infraestadual ou mesmo a desconcentração de competências, sob pena de uma


hipertrofia indesejável da administração estadual. Assim, ver FAUSTO DE QUADROS, O Princípio da
Subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União Europeia, cit., pp. 66-67.
375
Sobre o princípio da boa administração, ver o § ## do presente Manual.
376
Nesse sentido, porventura mais prudente, afirmando que a constatação da menor eficiência (ou mesmo
a incapacidade) das estruturas infraestaduais pode exigir um movimento, contrário e centrípeto, de
centralização, ver PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, cit., pp. 359 e 362.
377
A propósito deste pluralismo intra-administrativo, ver PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo,
Volume I, cit., pp. 417-418 e 421-424.
378
PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório, cit., § 14.1., p. 245.
379
Sobre o princípio colaborativo, ver o § ## do presente Manual.

123
O grau de intrusividade desses mecanismos de salvaguarda varia, em função do
maior ou menor grau de autonomia ou de independência dos entes descentralizados.
Evidentemente, ele é mais forte no caso de pessoas coletivas públicas que prossigam
finalidades do Estado (por exemplo, os institutos públicos e as empresas públicas) e bem
mais enfraquecido, no caso das entidades que integram a administração autónoma380 e a
administração independente do Estado, quer porque prosseguem finalidades próprias e
específicas do respetivo universo de indivíduos que as integram, quer porque essa
independência constitui condição fixada pelos próprios valores constitucionais que as
mesmas prosseguem381.

§ 89. Privatização de funções e de serviços - Em sistemas políticos pluralistas382,


a Constituição é sempre suficientemente flexível e aberta ao (natural) dissenso
democrático383 para permitir que cada governante determine o grau de intervencionismo
público ou de satisfação privada das necessidades coletivas. Em cada momento histórico,
em virtude das escolhas eleitorais, as tarefas administrativas podem ser mais ou menos
prosseguidas, alternativamente, por entidades públicas ou privadas. Deixando de lado
sistemas políticos – hoje, praticamente, ultrapassados384 – em que existe um monopólio
da atuação pública, sem coexistência e convivência, entre setor público, setor privado e
terceiro setor (cooperativo, voluntário e/ou não lucrativo), a maior parte deles admite
diferentes intensidades de privatização.
Essa privatização pode distinguir-se em:

380
Destaca-se, pela sua particular importância, a autonomia local expressa no amplo elenco de poderes
atribuídos aos entes autárquicos. Sobre a garantia constitucional da autonomia local, ver ARTUR MAURÍCIO,
A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, in
«Estudos em Homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2004, p. 635; JOSÉ DE
MELO ALEXANDRINO, Direito das Autarquias Locais, in «Tratado de Direito Administrativo Especial»,
Vol. IV, Almedina, 2010, p. 29.
381
É o que acontece quando a própria Constituição atribui funções específicas a certas entidades
reguladoras, garantindo-lhe plena independência face ao poder político (e, em especial, face ao Governo);
como faz, por exemplo, com a entidade reguladora para a comunicação social (cfr. artigo 39.º da CRP).
Sobre a natureza desta entidade independente, que assume, simultaneamente, funções de tradicional
regulação e supervisão administrativa, mas também de entidade de defesa de direitos fundamentais, ver
MIGUEL PRATA ROQUE, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação
Social, in «Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras», Coimbra Editora, 2009, pp. 367-442.
382
Sobre a influência dos sistemas políticos sobre os modelos de governação, ver o § ## do presente Manual.
383
A propósito das virtudes do dissenso democrático e do princípio do plurallimo, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, Sociedade Aberta e Dissenso – Contributo para a compreensão contemporânea do princípio do
pluralismo político, in «Estudos de Homenagem ao Professor André Gonçalves Pereira», Editora Coimbra,
Coimbra, 2006, pp. 355-405.
384
Ainda hoje, porém, esse modelo de monopólio público (ainda que, crescentemente, temperado)
corresponde ao modelo chinês de centralismo estatizante. Sobre este modelo, ver o § ## do presente Manual.

124
⎯ Privatização material – através da qual o governante determina ou
beneficia da aplicação do Direito Privado a tarefas prosseguidas pela
administração pública, que não envolvam o exercício, pelo menos
direto, de poderes de autoridade;
⎯ Privatização do exercício – em que a administração pública cede a um
operador privado, mediante compensação ou até gratuitamente, apenas
o desempenho de tarefas administrativas que podiam ser exercidas por
órgãos e serviços de pessoas coletivas públicas;
⎯ Privatização da titularidade com manutenção do controlo – neste
caso, a entidade pública cria ou adquire a titularidade (por via de
nacionalização ou de aquisição de participações sociais) de uma
sociedade comercial, com vista a transferir, para esta, a prossecução de
atribuições anteriormente públicas, mas mantendo uma influência
dominante sobre a mesma385;
⎯ Privatização da titularidade com perda do controlo – agora, não só
transfere atribuições para uma pessoa coletiva de Direito Privado,
como cede esse controlo, quer através da alienação de uma posição
societária maioritária, quer através da extinção de direitos especiais de
participação que pudesse manter386.

385
À partida, essa “influência dominante” é aferida por um critério quantitativo, que depende da detenção
da maioria do capital social de determinada sociedade comercial. Há, porém, situações em que, apesar de a
entidade pública se encontrar em minoria, ainda assim, consegue condicionar e dominar o processo de
tomada de decisão empresarial, através do exercício de direitos especiais que lhe cabem, na sua qualidade
de acionista. Particularmente delicados são os casos em que nem o Estado, nem os sócios privados detêm
a maioria do capital social, que se encontra dividido, em metade. Principalmente, quando subsistem normas
(nacionais, europeias ou internacionais) que associam determinadas consequências ao controlo público (em
especial, no plano da contabilidade público e da execução orçamental). É disso ilustrativo o caso da TAP
SGPS, SA, que foi, originariamente, privatizada em 61%, por força do Decreto-Lei n.º 181-A/2014, de 24
de dezembro. Mais tarde, com a assinatura de um Memorando de Entendimento com os acionistas privados,
em 19 de fevereiro de 2016, o Estado português procederia a uma recompra das ações por si vendidas, o
que lhe permitiu recuperar até uma posição de 50%. Os termos dessa recompra foram autorizados pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2016, de 23 de maio de 2016, e as alterações aos instrumentos
jurídicos necessárias à recompra, que se efetivou em 30 de junho de 2017, viriam a ser aprovadas pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 95/2017, de 29 de junho de 2017. Apesar de a Parpública, SGPS,
SA deter 50% do capital, esta não tem direito a designar metade dos membros dos órgãos sociais da empresa
(e das empresas por ela participadas), com exceção do Conselho de Administração, e o seu direito a
dividendos apenas corresponde a 5% dos lucros a distribuir. Ora, ainda que o Memorando de Entendimento
e o Acordo Parassocial conferir ao Estado português, através da Parpública, SGPS, SA, um reforço do seu
poder de intervenção nas decisões estratégicas da empresa, parece poder entender-se que o mesmo não
exerce, efetivamente, uma influência dominante daquela empresa.
386
Com efeito, ao instituir algumas empresas públicas (ou no momento da sua privatização), o Estado tem
vindo a incluir nos respetivos contratos de sociedade, pactos sociais ou estatutos cláusulas que consagram
direitos especiais a certos sócios. É o caso de: a) ações douradas (ou “golden shares”) – que conferem
direitos de veto a determinadas classes de ações; b) direitos especiais a dividendos – que reservam a certos

125
Daqui decorre que a privatização não implica, forçosamente, a criação de uma
mera entidade-veículo (isto é, uma empresa pública), de modo a fugir às vinculações
jurídico-administrativas, ou sequer a transferência integral da titularidade das atribuições
públicas para uma pessoa coletiva privada. Não raras vezes, o governante prefere manter
essa titularidade, no Estado ou noutra pessoa coletiva pública, apenas permitindo que o
exercício concreto desses poderes seja assegurado por privados.
O mais paradigmático exemplo desta modalidade de privatização do mero
exercício de tarefas é o “contrato de concessão administrativa”, através do qual a
entidade adjudicante alarga, a um particular, o círculo de poderes de supremacia que,
usualmente, lhe caberia. A boa gestão de recursos públicos implica, porém, que haja uma
estimação prévia das vantagens económicas – o que abrange não só as vantagens
financeiras, mas também as vantagens sociais, culturais, laborais, ambientais e
tecnológicas387 – decorrentes dessa concessão a privados. Não raras vezes, o propósito
lucrativo dos concessionários condu-los a degradar a qualidade da prestação dos serviços,
em detrimento dos utentes e do próprio interesse público388. Assim, é crucial que se
estabeleçam, nos respetivos cadernos de encargos, claras e inequívocas obrigações de
serviço público e que se prevejam meios efetivos e adequados para avaliação do seu
cumprimento, bem como sanções dissuasoras.
Quanto à privatização da própria titularidade, note-se que ela tanto pode ser
integral, quando ocorra uma transferência do controlo para entidades privadas, como pode
ser apenas formal ou parcial, sempre que a pessoa coletiva pública mantenha influência
dominante (isto é, controlo) sobre a empresa (que será, portanto, pública). Frise-se bem
que influência dominante não equivale a maioria do capital social. Em bom rigor, tanto
pode haver “controlo quantitativo” – quando haja detenção da totalidade ou da maioria
dessas participações sociais –, como pode haver “controlo qualitativo”. Neste último
caso, apesar de a entidade pública não dispor, formalmente, da maioria do capital,
consegue, ainda assim, exercer a sua influência dominante, determinando ou podendo

acionistas um direito a uma repartição privilegiada dos lucros da sociedade comercial em causa; c) direitos
especiais a nomear administradores – que concedem um poder de nomeação superior ao que resultaria da
mera percentagem no capital social.
387
Sobre esta natureza plúrima e multifacetada da estimação de benefícios, ver o § # do presente Manual.
388
Não é de hoje a constação de que a prossecução de atividades administrativas pelos particulares se
norteia costuma norterar-se mais por uma expetativa de lucro fácil, o que só é possível através de cortes
poupanças excessivas na qualidade da prestação dos serviços públicos que lhes está cometida. Assim, ver
JOÃO TELLO DE MAGALHÃES COLLAÇO, Concessões de Serviços Públicos – Sua Relevância Jurídica,
Coimbra Editora, 1928, pp. 35-37.

126
determinar (se assim o entendesse) a conduta da sociedade privada dominada. Essa
influência dominante pode ser aferida através de indícios concludentes desse controlo,
tais como:
⎯ Detenção de ações douradas (ou “golden shares”)389, que permitam o
exercício de direito de veto de determinadas deliberações sociais;
⎯ Gozo de direitos (estatutários ou por via de acordo parassocial) a uma
distribuição de dividendos que corresponda à maioria da quantia a
distribuir, a esse título;
⎯ Gozo de direitos de nomeação de membros dos órgãos executivos das
sociedades em causa;
⎯ Possibilidade do exercício de poderes de fixação de orientações
estratégicas ou diretivas, cujo não acatamento se reflita negativamente
na empresa controlada.

§ 90. Colaboração público-privada - Desde a década de 1990, têm-se


desenvolvido novos modelos de colaboração entre o setor público e o setor privado –
frequentemente, através de protocolos ou mesmo de contratos públicos colaborativos –,
de modo a colmatar as insuficiências do aparelho administrativo tradicional para fazer
face a todas as novas necessidades coletivas contemporâneas390; designadamente, às que
nasceram de mudanças sociais estruturais, tais como: a migração rural para ambiente
urbano; o envelhecimento populacional; o aumento da esperança média de vida; o ocaso
da família alargada e o surgimento das famílias nucleares e monoparentais; o alargamento
dos tempos de repouso e de lazer.
Surge, assim, o “terceiro setor”391. Isto é, um universo de entidades de natureza
jurídico-privada cujo fim principal não reside na obtenção de lucros, mas antes na

389
Sobre o tema, ver NUNO CUNHA RODRIGUES, “Golden-Shares” - As empresas Participadas e os
Privilégios do Estado enquanto Accionista Minoritário, Coimbra Editora; SÉRGIO TENREIRO
TOMÁS/DINARCO PIMENTEL, As Golden Shares no ordenamento jurídico português versus Troika e União
Europeia, in «Revista Jurídica Portucalense», 17 (2015), pp. 157-175.
390
Noutro estudo, já demonstrei que a satisfação das necessidades coletivas não se esgota nos modelos de
prestação pública direta, sendo até admissível que possa haver uma regressão na esfera de atuação do setor
público sem que tal implique, forçosamente, um retrocesso na proteção de direitos fundamentais sociais,
económicos e culturais. Desde que, claro está, essa proteção seja assegurada por entidades privadas, a título
gratuito (ou, pelo menos, tendencialmente gratuito), sem que isso implique a fixação de barreiras, em
função das condições concretas dos potenciais beneficiários. Assim, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Juízos
precários de constitucionalidade, cit., pp. 873-874.
391
Sobre o conceito de terceiro setor, ver SÍLVIA FERREIRA, O papel das organizações do Terceiro Sector
na reforma das políticas públicas de proteção social: Uma abordagem teórico-histórica, Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2000; ROGÉRIO FERNANDES FERREIRA, As instituições

127
prestação de serviços e no fornecimento de bens, com vista à satisfação de necessidades
coletivas que se revestem de interesse público392. Entre essas entidades, que integram o
“terceiro setor”, podemos distinguir:
⎯ Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS´s)393;
⎯ Misericórdias e outras associações de religiosos394;
⎯ Mutualidades;
⎯ Organizações de trabalhadores;
⎯ Bancos de tempo;
⎯ Cantinas sociais e bancos alimentares;
⎯ Associações de voluntariado.

Esta colaboração entre o setor público e o setor privado tanto pode ser implícita
(“colaboração informal”) como pode ser explícita (“colaboração formal”). Esta última
também costuma ser designada por “colaboração protocolada”, na medida em que
assenta na celebração de protocolos, convénios e outros instrumentos colaborativos entre
uma entidade pública (em regra, no plano nacional, o Estado e, no plano local, as
autarquias locais) e qualquer uma das supra citadas instituições do terceiro setor. Ainda
que tais instrumentos colaborativos não se revistam da forma de “contratos públicos”,
certo é que os mesmos devem obedecer aos princípios gerais de Direito Administrativo

do Terceiro Sector, in «Ciência e Técnica Fiscal» 415 (2005); VASCO ALMEIDA, As Instituições
Particulares de Solidariedade Social: Governação e Terceiro Sector, Almedina, Coimbra, 2011; SILVIE
RODRIGUES OLIVEIRA, O SNS e IPSS: Os (novos) acordos de gestão e de cooperação, Escola de Direito da
Universidade do Minho, Braga, 2016; DEOLINDA MEIRA, As cooperativas em Portugal – Breve
apresentação do seu regime jurídico, in «Organização Administrativa: Novos Actores, Novos Modelos»,
Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, pp. 808-810; GABRIELA SALES DE OLIVEIRA, A Relação de
Parceria entre Estado e Terceiro Setor, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2018; MIGUEL
PRATA ROQUE, Misericórdias e Conflitos de Jurisdições: A impugnação jurisdicional das associações de
religiosos, in «Revista da Ordem dos Advogados», III-IV (Jul-Dez 2018), pp. 841-842.
392
A Constituição da República Portuguesa assume esta tripartição de setores, ainda que circunscreva este
“terceiro setor” àquilo que designa por “setor cooperativo e social” (cfr. artigo 82.º, n.º 4, da CRP).
Contudo, a origem histórica do preceito não deve impressionar (nem condicionar) demasiado. A proteção
constitucional deve estender-se a todas as entidades, formalizadas ou informais, que se dediquem às
finalidades sociais ali visadas, independentemente da sua designação. Até porque a alínea d) do referido
preceito constitucional confere uma abertura assinalável à integração de novas realidades, desde que as
mesmas não tenham finalidade lucrativa e prossigam fins de solidariedade social. Assim, ver DEOLINDA
MEIRA, As cooperativas em Portugal – Breve apresentação do seu regime jurídico, cit., pp. 808-810;
MIGUEL PRATA ROQUE, Misericórdias e Conflitos de Jurisdições: A impugnação jurisdicional das
associações de religiosos, cit., nota de rodapé n.º 23, pp. 841, nota de rodapé n.º 23.
393
Por todos, ver LICÍNIO LOPES MARTINS, As Instituições Particulares de Solidariedade Social, Almedina,
Coimbra, 2009.
394
Sobre a natureza jurídica das associações de religiosos e, em especial, das misericórdias, ver PAULO DÁ
MESQUITA, A tutela das misericórdias e o âmbito das jurisdições eclesiástica e do Estado, in «Julgar», 23
(2004), pp. 107-139; MIGUEL PRATA ROQUE, Misericórdias e Conflitos de Jurisdições: A impugnação
jurisdicional das associações de religiosos, cit., pp.842-848.

128
(cfr. artigo 2.º, n.º 3, do CPA) e, em especial, aos princípios da imparcialidade, da
igualdade, da segurança jurídica e da boa administração. Em especial, quando envolvam
a subsidiação, através de “auxílios de Estado”, de natureza pecuniária.
Frequentemente, as entidades públicas funcionam como verdadeiros mecenas de
atividades de interesse público; em especial, nos domínios da cultura395, da educação396 e
do desporto397. Estes apoios que, em regra, são protocolados entre entidades públicas e
entidades privadas, podem distinguir-se em:
⎯ Subvenções públicas – quando assumam caráter pecuniário, seja ele
único, ocasional ou periódico. Neste caso, a concessão de tais
subvenções fica sujeita a um específico regime398 de transparência, de
publicidade399, de controlo e de fiscalização. Nos últimos anos, quer
por força da necessidade de cumprimento de obrigações jurídicas de
fonte europeia, quer por imperativo de rigor orçamental, quer ainda por
uma maior consciencialização do dever de boa administração de
recursos públicos, têm-se multiplicado regimes especiais, com vista à
regulação da concessão de apoios por parte de entidades públicas
setoriais400.

395
A área de governação onde mais se sente esta pressão para financiamento público de atividades privadas
com inegável interesse público é a da cultura. Por longa tradição, trata-se de um setor particularmente
dependente do apoio (financeiro) público, na medida em que o interesse público na promoção de práticas
culturais sustentadas, que combatam um nível baixo de consumo, justifica que os poderes públicos
intervenham para colmatar essas “falhas de mercado”. No domínio das artes visuais e performativas, rege
o Decreto-Lei n.º 103/2017, de 24 de agosto. A este sistema, de âmbito nacional, acrescem os múltiplos
apoios prestados pelas autarquias locais, que estimulam a criação artística e, assim, contribuem para que
novos públicos podem fruir dessas mesmas manifestações culturais.
396
Por exemplo, nos termos do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
152/2013, de 4 de novembro), torna-se possível a celebração de “contratos de associação” entre o Estado
e aquelas escolas privadas e cooperativas, de modo a que possa ser ministrado o ensino obrigatório a alunos
que se residam em zonas geográficas não cobertas pela rede pública escolar. Porém, estes “contratos de
associação” não esgotam todas as possibilidades de apoio público a escolas e outras organizações (v.g.,
centros de estudo, grupos de investigadores e de pedagogos, projetos de educação para a cidadania, etc.).
397
Neste caso, o legislador optou por um modelo exclusivamente assente numa lógica de “colaboração
formal”, mediante a expressa previsão da necessidade de de celebrar “contratos públicos”, que a lei
designa por “contratos-programa de desenvolvimento desportivo”. Podem ser parte nesses contratos, as
sociedades desportivas (com fins lucrativos), os clubes desportivos, as associações ou confederações de
praticantes, de treinadores e de árbitros, as federações desportivas, a Confederação Desporto de Portugal,
o Comité Olímpico e o Comité Paralímpico de Portugal. Assim, ver o regime especial previsto pela Lei n.º
273/99, de 1 de outubro.
398
Esse específico regime foi fixado pelo Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de agosto.
399
Um dos principais deveres que resulta do regime aplicável às subvenções públicas corresponde à sua
publicidade, nos termos e de acordo com os procedimentos fixados pela Lei n.º 64/2013, de 27 de agosto.
400
Por exemplo, na área governativa dos Negócios Estrangeiros, foi previsto um regime especial de apoio
e de subvencionamento às entidades privadas que integrem o movimento associativo das comunidades
portuguesas no estrangeiro, através do Decreto-Lei n.º 124/2017. Na área governativa da Justiça, foi
aprovado o Decreto-Lei n.º 61/2016, de 12 de setembro, que prevê um regime de subvencionamento e de
apoio às entidades do setor privado, cooperativo e social que prossigam fins de interesse público relevante,

129
⎯ Apoios não-pecuniários – que tanto podem assumir a natureza de
cedência de instalações e infraestruturas públicas, de disponibilização
de recursos humanos da administração pública ou de fornecimento de
bens e materiais necessários à prossecução dos fins daquelas entidades
privadas.
⎯ Publicidade comercial e institucional – uma forma indireta de apoio
às instituições do terceiro setor traduz-se no “patrocínio” de atividades
desenvolvidas por aquelas entidades, mediante aposição de logotipos
identificativos das entidades públicas patrocinadoras. Tal reforça a
credibilidade das atividades prosseguidas pelas entidades privadas,
mas não pode deixar de responsabilizar as entidades públicas pela
fiscalização das mesmas. Não raras vezes, esse patrocínio traduz-se na
publicitação, nos meios de comunicação institucional dessas entidades
públicas (ex: sítios eletrónicos, boletins informativos, revistas,
cartazes, “placards” eletrónicos e outros suportes de divulgação), das
atividades prosseguidas. No limite, podem mesmo traduzir-se na
contratação de serviços de “publicidade comercial” que, no entanto,
fixam sujeitos a um especial regime de controlo (pela competente
entidade reguladora)401, para garantia da imparcialidade, da igualdade
e da transparência do uso de dinheiros públicos402.

na área da Justiça, tais como as associações de apoio às vítimas, de apoio a crianças e jovens, ou a projetos
de intervenção comunitária ou de investigação científica.
401
Ainda que dela exclua as entidades da administração autónoma (incluindo as autarquias locais), a Lei
n.º 95/2015, de 17 de agosto, estabelece as regras e os deveres de transparência a que fica sujeita a realização
de campanhas de publicidade institucional do Estado, bem como as regras aplicáveis à sua distribuição em
território nacional, através dos órgãos de comunicação social locais e regionais.
402
Com efeito, o financiamento dos meios de comunicação social, através de publicidade paga, constitui
um inegável fator de influência e de condicionamento da liberdade de imprensa, quer essas receitas
publicitárias resultem da cobrança a empresas privadas ou a entidades públicas. Frequentemente, tem-se
estabelecido uma relação entre a proveniência dessas receitas publicitárias e o risco de influência do
conteúdo informativo (e de entretenimento) transmitido pelos meios de comunicação social. Tal foi já
notado pelo “Relatório Lancelot”, de dezembro de 2005 [cfr. ALAIN LANCELOT (E OUTROS), Les Problèmes
de Concentration dans le Domaine des Medias, Paris, 2005, in
http://www.ddm.gouv.fr/IMG/pdf/rapport_lancelot.pdf#search=%22rapport%20lancelot%22]. Aliás, nos
termos do artigo 5.º da Lei de Transparência da Titularidade, da Gestão e dos Meios de Financiamento da
Comunicação Social (aprovada pela Lei n.º 78/2015, de 29 de julho), impõe-se um dever de comunicação
à ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, dos fluxos das receitas publicitárias auferidas
por cada órgão de comunicação social. Sobre a importância da transparência nos órgãos de comunicação
social e, em particular, quanto às suas receitas publicitárias, ver MIGUEL PRATA ROQUE, A união faz a
fraqueza (da democracia) – Ecos do «Relatório Lancelot» sobre o Direito da Concentração da
Comunicação Social, in «Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Marcello Caetano», Volume #, Coimbra
Editora, 2006, pp. #.

130
Por fim, uma das mais conhecidas (e discutidas) modalidades de colaboração
público-privada traduz-se na possibilidade de celebração de “parcerias público-privadas
(PPP´s)”403. Estas correspondem a verdadeiros “contratos públicos”, através dos quais
o Estado ou outras entidades públicas procedem a uma verdadeira “privatização do
exercício” da função administrativa, através da colaboração de uma entidade privada, de
natureza empresarial, que emprega o seu saber-fazer em prol de uma gestão (privada) de
serviços ou de funções de natureza pública404. As modalidades mais conhecidas dizem
respeito à colaboração público-privada nas áreas dos transportes e das infraestruturas de
comunicação (rodoviárias, ferroviárias, portuárias e aeronáuticas) e da saúde.
Através destas “parcerias públicos-privadas”, a entidade pública concorre com a
disponibilização de funcionários e outros trabalhadores públicos, bem como, em alguns
casos, de infraestruturas e de equipamentos, enquanto as entidades privadas emprestam o
seu saber em matéria de gestão empresarial, incluindo em matéria financeira, logística e
de recursos humanos. Do ponto de vista da governação pública, impõe-se que seja obtido
um ponto ótimo entre a (incontornável) pretensão privada de extração de rendibilidade
do equipamento público a explorar e a (impreterível) necessidade de garantir a integral
prossecução do interesse público, através de uma gestão criteriosa dos recursos públicos
e da manutenção de elevados níveis de qualidade dos serviços prestados405. Para que tal
seja possível, impõe-se que o governante garante, em simultâneo:
⎯ Negociação criteriosa do contrato de parceria – com efeito, não raras
vezes, os clausulados contratuais assinados revelam-se demasiado
leoninos (curiosamente, sempre em favor do operado privado), o que

403
O atual regime de criação e de execução das parcerias público-privadas encontra-se fixado pelo Decreto-
Lei n.º 111/2012, de 23 de maio (na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 84/2019, de 28 de
junho), nos termos do qual se reforçaram os mecanismos de garantia da posição contratual das entidades
públicas e se criou a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos. Refira-se que o referido regime
jurídico foi ainda alterado pelo Decreto-Lei n.º 170/2019, de 04 de dezembro, que pretendeu introduzir um
reforço dos poderes de controlo e de decisão do Conselho de Ministros (por exemplo, ver as alterações aos
artigos 6.º e 14.º), o que suscitou uma discussão pública sobre uma eventual politização desse controlo e
sobre a perda de poderes de controlo técnico-financeiro pela/o Ministra/o das Finanças. Perante esse
ambiente de contestação pública, a Assembleia da República viria a revogar o Decreto-Lei n.º 170/2019,
através da Resolução n.º 16/2020, de 19 de março.
404
ALFREDO JOSÉ DE SOUSA, As parcerias público-privadas e o desenvolvimento: o papel do controlo
financeiro externo, cit., pp. 27-45; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Parcerias público-privadas: a experiências
portuguesa, cit., pp. 175-190; EDUARDA AZEVEDO, As Parcerias Público-Privadas: Instrumento de uma
Nova Governação Pública, cit., passim; NAZARÉ DA COSTA CABRAL, As Parcerias Público-Privadas, cit.,
passim.
405
Atualmente, a alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 111/2012 impõe mesmo uma
transferência do principal risco do negócio para o contraente privado, mediante uma identificação clara dos
riscos que oneram cada um dos contraentes.

131
suscita dúvidas sobre a diligente negociação do mesmo, por parte dos
governantes e dos demais negociadores públicos. Tal deve-se a
múltiplos fatores. Porém, há que destacar:
(a) Fragilização dos quadros técnicos da administração pública
(“in house”), em virtude dos sucessivos cortes orçamentais e
da degradação do estatuto dos colaboradores públicos e, em
especial, dos técnicos superiores (ex: falta de progressão na
carreira; acumulação de tarefas; ausência de formação
contínua; perda de poder de compra);
(b) Contratação externa de negociadores públicos (“outsourcing”)
que não garantem a imparcialidade no desempenho das suas
funções e que, na prática, não cumprem a sua adstrição à defesa
do interesse público;
(c) Promiscuidade entre quem delineia (quadros intermédios e
técnicos), quem decide (governantes) e quem beneficia da
contratação; em especial, quando impera uma política laxista
de controlo da falta de imparcialidade, por via das ligações
entre atores públicos e privados, e quando não se enfrenta o
problema das “portas giratórias” (isto é, da usual circulação
de decisores e de técnicos entre a administração pública e os
grupos económicos que com ela lidam)406.
⎯ Fixação de mecanismos eficazes de monitorização – o que implica a
fixação de deveres de comunicação de informações por parte do
parceiro privado e a dotação de equipas e de serviços técnicos aptos a
proceder a essa recolha e tratamento de informação, por parte do
parceiro público407.
⎯ Fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais – mais do
que monitorizar, há ainda que garantir a efetiva análise da informação
prestada pelo parceiro privado e o constante acompanhamento da
execução do acordo de parceria. Para que tal seja possível, aconselha-
se a criação de estruturas administrativas dotadas dos meios e das

406
Para maior desenvolvimento, ver o § # do presente Manual.
407
Nesse sentido, o artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 111/2012 estabelece um expresso dever de informação,
à Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, por parte do parceiro privado.

132
capacidades técnicas necessárias, que tanto podem ser o próprio
Tribunal de Contas como uma unidade técnica especializada408.
⎯ Aplicação de sanções pelo incumprimento – entre essas medidas,
impõem quer uma aplicação efetiva e verdadeiramente dissuasora de
“sanções contratuais”409, evitando-se repetidas decisões de
clemência, quer, no limite, a cessação ou não renovação dessas
parcerias.

§ 91. Incorporação orgânica de particulares - Na medida em que a governação


almeja transformar a realidade sócio-económica sobre a qual atua, importa angariar a
adesão dos grupos sociais mais representativos às políticas públicas. E, mais do que isso,
tornar essas políticas públicas um verdadeiro “indirizzo” comum, no qual todos (ou, pelo
menos, uma esmagadora maioria) se reveem. Torna-se, assim, habitual convocar “peritos
privados”410 e “representantes do setor privado”411 para participarem no processo de
elaboração das políticas públicas, de modo a que as visões desses grupos representativos
contagiem e impregnem as próprias medidas governativas. Essa colaboração pode ocorrer
através de várias metodologias:
⎯ Colaboração prévia – em regra, visa habilitar os governantes com
informação indispensável à compreensão dos fenómenos sociais a
regular e à preparação das políticas públicas a adotar, mediante:
(a) Trabalhos preparatórios em sede de procedimento legislativo;

408
No caso português, optou-se pela criação de uma Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos
(cfr. artigos 26.º a 30.º do Decreto-Lei n.º 111/2012), que dispõe das competências e dos meios
indispensáveis a esse controlo, ainda que se registe a exiguidade dos recursos de que a mesma (ainda)
dispõe. Esta unidade técnica assume uma vocação permanente e não pode ser confundida com estruturas
temporárias, tais como as “estruturas de missão”. Sobre as “estruturas de missão”, ver o § # do presente
Manual.
409
Sobre este conceito de “sanções contratuais”, ver PEDRO MATIAS PEREIRA, Gestão do contrato
administrativo: a aplicação de sanções, in «Revista de Contratos Públicos», 10 (2014), pp. 69-100.
410
Este mecanismo evidencia a confissão, pela própria administração pública, de que não dispõe de
especialistas suficientemente dotados de conhecimentos técnicos e científicos atualizados, pelo que carece
de recorrer a peritos privados. No plano da governação (e da soberania) administrativa, tal implica uma
reflexão sobre a necessidade de garantir a autossuficiência da administração pública e de garantir que uma
gestão financeira criteriosa não prejudica a qualidade dos recursos humanos de que aquela dispõe. Nesse
sentido, nos últimos anos, tem-se registado uma preocupação em voltar a dotar a administração pública de
quadros técnicos de excelência, através da criação de “centros de competências partilhadas”, transversais
aos vários departamentos governamentais. Sobre esta incorporação de peritos privados, ver PEDRO COSTA
GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, cit., pp. 449-450. Sobre os “centros de
competências” e os “serviços partilhados”, ver DOMINGOS FARINHO, Os centros de competências e
estruturas partilhadas na Administração Pública portuguesa: uma primeira reflexão, in «Organização
Administrativa – Novos Actores, Novos Modelos», AAFDL Editora, Lisboa 2018, pp. 693-711.
411
PEDRO COSTA GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, cit., pp. 443-448.

133
(b) Consultas públicas;
(c) Inquéritos e sondagens;
(d) Grupos focais (ou “focus groups”);
(e) Comissões científicas e técnicas.
⎯ Colaboração concomitante – mesmo após a elaboração das políticas
públicas, há que promover a colaboração do setor privado no
acompanhamento da sua execução, de modo a garantir a qualidade das
prestações públicas e a detetar as insuficiências do sistema que foi
implementado; isto é, dos “pontos de estrangulamento” (ou “bottle
necks”)412. É usual estabelecer-se as seguintes metodologias:
(a) Conselhos consultivos;
(b) Comissões avaliadoras;
(c) Inquéritos de satisfação;
(d) Mecanismos de elogio e de queixa.
⎯ Colaboração póstuma – de modo a permitir uma revisão periódica das
políticas públicas – em especial, quando as mesmas assentam em
“regimes experimentais” ou preveem “regimes de duração limitada”
(com aposição de “sunset clauses”) –, a administração pública cria,
também, mecanismos de colaboração público-privada, através dos
quais os grupos sociais podem expressar a sua apreciação acerca da
implementação de medidas governativas concretas.

Em todos os casos supra referidos, deparamo-nos com uma posição híbrida dos
concretos indivíduos que exercem essas funções representativas; muitas vezes, em órgãos

412
Usualmente, em linguagem de “governação pública” (ou “public governance”), emprega-se o termo
“bottlenecks” para designar os pontos de estrangulamento ou os entraves a uma reforma/mudança de
políticas públicas ou de procedimentos administrativos. Ele convoca a imagem de um afunilamento – quer
seja de pessoas, de burocracias, de tarefas ou de ausência de recursos –, que faz convergir várias
dificuldades de superação até a um ponto em que é preciso uma intervenção criativa (e, por vezes, até
disruptiva), com vista ao desbloqueio desse mesmo entrave. Sobre o conceito, ver, entre muitos outros,
HERBERT WERLIN, Understanding administrative bottlenecks, in «Public Administration and
Development», 3 (May-June 1991), pp. 193-206; THOMAS P. LYON/STEVEN C. HACKETT, Bottlenecks and
Governance Structures: Open Access and Long-Term Contracting in Natural Gas, in «Journal of Law
Economics and Organization», 2 (1993), pp. 380-398. A terminologia “bottlenecks” tem sido, também,
difundida pela própria OCDE, nos seus vários estudos e acompanhamentos a programas nacionais de
modernização administrativa e de reforma económica. A título de exemplo, ver OCDE, Overcoming Border
Bottlenecks: The Costs and Benefits of Trade Facilitation, OECD Publishing, 2009; OCDE, Cutting
Administrative Burdens on Citizens: Implementation Challenges and Opportunities, Budapest, Hungary,
10 May 2012, disponível in https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/50444905.pdf, pp. 6-7 e 14;
OCDE.

134
administrativos expressamente criados para o efeito (como os “júris”413, as “comissões
avaliativas”, os “conselhos consultivos” e os “grupos de trabalho”). Este fenómeno
corresponde a uma verdadeira “incorporação orgânica de particulares”414 que,
evidentemente, extravasa o indispensável exercício de cargos por titulares de cargos
políticos, respetivo pessoal político de apoio, dirigentes, funcionários ou agentes415. Neste
caso, os membros daquele tipo de órgãos são verdadeiros estranhos à administração, ainda
que contribuam para a formação da “vontade funcional” daquela. Nesse sentido, a
“incorporação orgânica de particulares” não se confunde com a “privatização de
funções e de serviços”416, visto que não se trata de uma transferência do exercício da
função administrativa para particulares, mas antes da assimilação da vontade desses
particulares por órgãos institucionalizados da própria administração pública.

413
A propósito dos júris, ver ANA FERNANDA NEVES, Os júris, in «Organização Administrativa – Novos
Actores, Novos Modelos», AAFDL Editora, Lisboa 2018, pp. 221-248.
414
Sobre este conceito, ver PEDRO COSTA GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, cit., pp.
438-453.
415
Com efeito, na medida em que a atividade governativa assenta em centros institucionalizados de poder
público, opera-se um fenómeno de ficção jurídica da sua vontade. Isto é, a vontade desses órgãos apenas é
expressa por determinados indivíduos concretos que, sendo titulares desses cargos, emprestam a sua
“vontade subjetiva”, de modo a que esta passe a corresponder à “vontade funcional” da respetiva pessoa
coletiva pública. Aliás, nesse sentido, eventuais “vícios da vontade”, que afetem a formação da vontade
livre desses titulares, podem mesmo afetar a validade e a eficácia das atuações administrativas. Para mais
desenvolvimento sobre o tema, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Administração eletrónica e automatização:
Contributos para uma reformulação da teoria geral das atuações administrativas, cit., pp. 764-771.
416
PEDRO COSTA GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, cit., pp. 442 e 654-656.

135
SECÇÃO III
INSTRUMENTOS DE ATUAÇÃO

§ 92. Departamentos ministeriais – A nível estadual, a governação cabe aos


órgãos executivos, sejam eles unipessoais ou colegiais, gozem eles de legitimidade
democrática, autocrática ou tecnocrática. O exercício da governação é, assim,
prosseguido por indivíduos concretos – designados de acordo com múltiplos métodos de
escolha417 –, cuja vontade pessoal é imputada à respetiva pessoa coletiva pública. A isto,
chama-se vontade funcional. Porém, mesmo nos regimes políticos teocráticos, nem a
(pretensa) legitimação divina – que apenas ungiria os escolhidos – logra tornar
omnipotente o governante. Para desempenhar a sua função, ele carece de um corpo de
funcionários, de serviços e de infraestruturas que o auxiliem.
Assim, os “departamentos ministeriais” correspondem justamente a centros
organizados, tendencialmente estáveis, que agregam funcionários, serviços,
infraestruturas e recursos financeiros, a quem é incumbida a prossecução de tarefas
relativas a uma específica área governativa. Como tal, eles são instrumentos auxiliares da
governação. E, em especial, do específico membro do Governo que sobre eles exerce
poder hierárquico.
Para que dúvidas não restem, eles não são pessoas jurídicas autónomas418. Porque
não dispõem de personalidade jurídica pública419, nem prosseguem atribuições ou fins

417
A “designação” de titulares de órgãos administrativos pode traduzir-se em qualquer um dos seguintes
métodos: a) “eleição direta” – através de sufrágio, que tanto pode ser “universal” (quando o universo
eleitoral inclua todos os cidadãos eleitores recenseados em determinada circunscrição, nacional, regional
ou local); b) “nomeação” – quando decorra de decisão política de outro titular ou órgão com competência
para o efeito, seja ele o Chefe de Estado, o Governo (individual ou colegialmente), seja qualquer outro
órgão dotado desses poderes; c) “cooptação” – quando a Constituição ou a lei atribua(m) aos próprios
membros de um órgão colegial o poder de escolha dos restantes membros daquele órgão; d) “sorteio” – no
caso de os titulares de um órgão serem escolhidos aleatoriamente, de entre determinado universo de
indivíduos; e) “sucessão hereditária” (ou “dinástica”) – em especial, nas formas de governo monárquicas,
quando o sucessor do titular de órgão corresponde ao herdeiro (em regra, o primogénito) do falecido titular.
Sobre os modos de designação de titulares de cargos políticos, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Lições de
Ciência Política, cit., § #.
418
Assim, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, p. 278.
419
De modo algo surpreendente, não deixa de ser verdade que, na prática governativa, se verifica uma certa
personalização dos “ministérios” – ainda que com intuitos meramente utilitários; em especial, para efeitos
de contabilidade pública e de execução orçamental –, designadamente através da concessão de números de
identificação fiscal aos referidos departamentos governamentais e da celebração de inúmeros protocolos,
memorandos de entendimento e até (!) de contratos públicos, em nome de cada “ministério” setorial (e não
em nome do Estado português). Acresce que as próprias leis de organização administrativa e funcionamento
dos “ministérios”, apesar de os qualificarem como meros “departamentos governamentais” – pelo menos,
desde o início da década de 1990 –, não deixam de se referir, abundamente, às (pretensas) “atribuições”
desses “ministérios”. Conforme melhor demonstrarei, na nota de rodapé seguinte, a referência às
“atribuições” não pode senão reportar-se, porém, às “atribuições” do Estado português, ainda que, em

136
próprios420, que não os do próprio Estado e da comunidade política. Eles também não são
serviços personalizados típicos, visto que constituem, antes, uma forma organizativa de
agregação de vários outros serviços, que se integram na administração direta, central e
periférica, do Estado. E, por fim, eles também não são órgãos administrativos421, visto
que não dispõem de competências próprias, antes correspondendo a um modelo agregador
de órgãos infragovernativos, de mera direção administrativa (mas não política), superior
e intermédia.
É bem conhecida, por todos, a iconografia ministerial. Ancestral e transmitida de
geração em geração. «– O Ministério da Educação contratou 5.000 novos professores.»,

função da estrutura colegial e complexa do Governo, estas sejam prosseguidas por membros específicos
desse mesmo órgão. A mero título de exemplo, ver: a) artigo 2.º da Lei Orgânica da Presidência do
Conselho de Ministros, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 126-A/2011, de 29 de dezembro; b) artigo 2.º da Lei
Orgânica do Ministério das Finanças, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 117/2011, de 15 de dezembro; c) artigo
2.º da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro.
420
Nesse sentido, é importante notar que os ministérios não dispõem de atribuições. As atribuições de
âmbito nacional apenas são detidas pelo Estado, enquanto pessoa coletiva pública. A circunstância de o
artigo 161.º, n.º 2, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo (CPA), se referir – errada e
impropriamente – às “atribuições dos ministérios” significa apenas que o Governo, enquanto órgão
colegial que dirige a administração direta do Estado, pode (e fá-lo, invariavelmente) distribuir o exercício
concreto de determinadas competências a cada um dos seus membros individuais, sendo que essa partilha
assenta em áreas de atuação que correspondem áreas governativas que abrangem atribuições setoriais do
Estado. Nesse sentido, as atribuições nunca seriam dos ministérios. Quanto muito dos concretos membros
do Governo que delas estivessem encarregues. Porém, mesmo assim, o uso da expressão “atribuições dos
ministérios” [cfr. artigo 161.º, n.º 2, alínea b), do CPA] é manifestamente impróprio. Deveria, aliás, ser
substituídos por “competências exercidas por membros do Governo responsáveis por determinada área
governativa ou respetivos órgãos, serviços, dirigentes ou funcionários de apoio”. Dito isto, entendo que o
vício identificado naquele trecho do referido preceito legal não corresponde, em bom rigor juscientífico, a
qualquer forma de incompetência absoluta, mas, bem pelo contrário, a um evidente caso de incompetência
relativa. Com efeito, se um órgão que se encontra sob o poder hierárquico de um membro do Governo
pratica um ato que cabia a um órgão dependente de outro membro do Governo, em razão da matéria, não
se verifica qualquer ausência de atribuição, por parte da pessoa coletiva pública em causa: o Estado.
Sucederá apenas que o órgão (dirigente ou funcionário) que o praticou não dispunha de competência, em
função da repartição de poderes que cada Governo determinou, através do seu decreto-lei de organização e
funcionamento, aprovado ao abrigo do artigo 198.º, n.º 2, da CRP. Trata-se, portanto, de um evidente caso
de incompetência relativa geradora de nulidade, por via de expressa previsão legal. Não deve, portanto,
adotar-se a visão, simplista e dicotómica, de que a incompetência relativa gera sempre mera anulabilidade
e que a incompetência absoluta implica sempre nulidade. Contudo, a doutrina tem persistido em manter
esta dicotomia, a meu ver, sem ponderar as especificidades da prossecução multifacetada de atribuições
pelos departamentos ministeriais.
421
A circunstância de os “ministérios” (ou de as “secretarias regionais”) gozarem de “personalidade
judiciária” e, em especial, de “legitimidade processual passiva” não desmente tal conclusão. Com efeito,
o próprio n.º 2 do artigo 10.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redação do Decreto-
Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, determina que: “Nos processos intentados contra entidades públicas,
parte demandada é a pessoa coletiva de direito público, salvo nos processos contra o Estado ou as Regiões
Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios ou
secretarias regionais, em que parte demandada é o ministério ou ministérios, ou a secretaria ou secretarias
regionais, a cujos órgãos sejam imputáveis os atos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de
praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos” (com sublinhado meu). Ou seja, a
concessão de “legitimidade processual passiva” àqueles apenas ocorre por uma questão meramente
utilitária, de concentração da posição processual do próprio Estado num centro agregador de órgãos e de
serviços, mas não implica – de modo algum – o reconhecimento de que os “ministérios jurídicos” seriam
estruturas personalizadas; isto é, “pessoas jurídicas públicas”.

137
«– O Ministério da Saúde vai construir um novo hospital.», «– O Ministério da Cultura
homenageou o Prémio Nobel»; afirma-se, não raras vezes, sem qualquer relutância ou
inquietação. Acontece que os ministérios não são mais do que uma placa identificativa
nobre (e dispendiosa, decerto), afixada à entrada de um edifício governamental.
Em boa verdade, a designação “ministério” é bem mais operativa do que jurídica.
Ela permite a identificação da universalidade de facto que compõe os departamentos
administrativos auxiliares de determinada área governativa. Ela personifica (mas não
personaliza) as estruturas operativas e burocráticas do Estado, humanizando a
administração e – no plano da Sociologia das Organizações – permitindo ao particular
identificar um interlocutor mirífico e imaginado. Porém, no plano da vinculação jurídico-
administrativa, os ministérios não existem422. Quem vincula o Estado são as/os
ministras/os. Isto é, os titulares do órgão colegial Governo. Os ministérios não são mais
do que a institucionalização de uma universalidade agregada de funcionários, serviços,
infraestruturas e recursos financeiros que os auxiliam na atividade governativa.
A lógica da apropriação pessoal (ainda que política) do ministério pelo governante
– ou, numa perspetiva mais benévola, do ministério pelo cargo que aquele titular ocupa –
constitui uma constante da governação de tipo ministerial. Isto é, cada ministra/o reclama
o seu ministério423. De acordo com a lógica de silos (ou de pequenas quintas), já supra

422
O regime jurídico da organização e funcionamento do XXI Governo Constitucional (vulgo, lei orgânica
do Governo) constitui uma manifestação evidente deste posicionamento político e juscientífico, ao recusar,
de modo notório, o uso da terminologia “ministério” e ao centrar a divisão de tarefas governativas no
critério de “área governativa”. Assim, passou a empregar-se a designação “membro do governo
responsável pela área de”, passando a distinguir-se áreas governativas concretas, em função do seu objeto;
ex: negócios estrangeiros; modernização administrativa; finanças; justiça; administração interna; saúde;
educação. Esta opção terminológica estendeu-se ao domínio político-legislativo, visto que, desde então,
cada novo decreto-lei emprega a designação “membro do governo responsável pela área de”, em
detrimento da denominação do ministério respetivo ou mesmo concreto membro do Governo – por
exemplo, Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa. Esta opção é de louvar, no plano
legístico, visto que permite uma maior resistência ao tempo, por parte das leis que fixam competências.
Com efeito, as constantes mudanças da nomenclatura de ministras/os e dos respetivos ministérios – muitas
vezes, durante o mandato de um mesmo Governo – conduz à desatualização de leis antigas e à necessidade
de complexas operações interpretativas, com vista a determinar qual é o novo membro do Governo titular
de competências anteriormente fixadas. O abandono da referência expressa a ministérios ou à designação
concreta de cada membro do Governo, periodicamente fixada, nos termos do artigo 198.º, n.º 2, da CRP,
promove a previsibilidade e, assim, o princípio da segurança jurídica. Note-se que o regime orgânico do
XXII Governo Constitucional mantém esta mesma orientação.
423
Curiosamente, o regime de organização e funcionamento do XXI Governo Constitucional, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 251-A/2015, de 17 de dezembro (e sucessivamente alterado, até à redação que lhe foi
conferida pelo Decreto-Lei n.º 31/2019, de 1 de março), optou, de modo intencional e manifesto, por deixar
algumas/uns ministras/os sem ministério próprio. Foi o caso – aliás habitual – dos membros do Governo
que integram a Presidência do Conselho de Ministros: para além do Primeiro-Ministro, a Ministra da
Presidência e da Modernização Administrativa e o Ministro Adjunto (até à alteração orgânica introduzida
pelo DL n.º 90/2018, de 9 de novembro). Foi o caso do Ministro do Planeamento e das Infraestruturas e da
Ministra da Cultura, que não dispõem de ministério próprio e que beneficiaram dos serviços partilhados
prestados pela Presidência do Conselho de Ministros. Foi também o caso da Ministra do Mar, que era

138
rejeitada424, o governante terá tanto mais poder quanto a grandeza e magnitude do
ministério que dirige. Comparam-se serviços, orçamentos, funcionários. E até a opulência
dos edifícios e gabinetes que por eles são ocupados.
A boa governação recomenda, porém, a gestão criteriosa dos recursos públicos e
a ponderação acerca dos custos da consecutiva e vertiginosa mudança da nomenclatura
de cargos e ministérios. Ela gera despesas de funcionamento, que constituem verdadeiros
custos de oportunidade, pois impedem o investimento público nas tarefas essenciais do
Estado. Entre tais custos, contabilizam-se:
⎯ Readaptação de edifícios e infraestruturas;
⎯ Mudança e necessidade de adaptação de funcionários transferidos;
⎯ Substituição de material de escritório e estacionário (ex: papel
timbrado; envelopes timbrados; minutas; cartões de visita; endereços
eletrónicos; sítios eletrónicos institucionais; etc.).

Porém, há que compatibilizar essa busca pela eficiência governativa com a


legitimidade democrática que envolve, sempre, o poder de mudança da orientação política
de cada governo. Cabe a cada governante, em cada momento histórico, imprimir às
estruturas administrativas o seu cunho político e ideológico. Por exemplo, valorizando
determinadas áreas de intervenção ou até a própria simbologia e iconografia que apenas
as palavras emprestam. O que essas opções não podem é desvirtuar o princípio da boa
administração425. Nem tão pouco podem colonizar a administração pública, sujeitando-a
a constantes e profundas alterações orgânicas. O método ideal para evitar tais tentações
passaria pela estabilização orgânica de um modelo matricial de ministérios426; isto é, de
serviços de apoio ao Governo.

auxiliada por órgãos e serviços não expressamente integrados em qualquer ministério; por exemplo, a
Direção-Geral de Política do Mar ou a Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços
Marítimos (cfr. artigo 28.º, n.º 3, da Lei Orgânica do Governo) ou por órgãos ou serviços integrados noutros
ministérios [por exemplo, a Autoridade Marítima Nacional, integrada no Ministério da Defesa Nacional –
cfr. artigo 28.º, n.º 14, idem –, ou o Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral do Ministério
da Agricultura – cfr. artigo 28.º, n.º 4, alínea a), idem]. E esse movimento de libertação dos membros do
Governo face a serviços administrativos próprios foi ainda mais acentuado pelo novo regime orgânico do
XXII Governo Constitucional, Desta feita, há ainda mais membros do Governo que não dispõem de
ministério próprio. A saber, Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Ministro do
Planeamento, Ministra da Cultura, Ministro das Infraestuturas e da Habitação, Ministra da Coesão
Territorial e Ministro do Mar.
424
Cfr. § # do presente Manual.
425
Sobre o princípio da boa administração, ver o § # do presente Manual.
426
No plano do Direito Comparado, o modelo de organização governamental austríaco corresponde àquele
que maior estabilidade tem assegurado, em matéria de permanência dos “departamentos ministeriais” (e
respetiva nomenclatura). Desde 1986, vigora a “Gesamte Rechtsvorschrift für Bundesministeriengesetz”

139
Em traços muito largos, a definição e organização dos departamentos ministeriais
pode dividir-se em dois principais métodos:
⎯ Proliferação de ministérios individualizados – No primeiro modelo,
existirão tantos ministérios quanto o número de ministras/os. Isto
significa que cada mudança de Governo (ou cada mudança no
Governo, com reflexos orgânicos) implica, forçosamente, a
readaptação da estrutura interna dos ministérios. E conduz, igualmente,
à multiplicação de serviços setoriais, que prosseguem funções
idênticas, em cada departamento ministerial, sem que se logre ganhar
escala ou promover a colaboração interdepartamental.
⎯ Agregação de ministérios em função de áreas governativas setoriais –
No segundo modelo, fixar-se-á um modelo matricial, em que impera a
estabilidade dos departamentos ministeriais. Essa estabilidade
orgânica é mantida através do sacrifício da especificidade de cada área
governativa, agregando-se órgãos, serviços e funcionários por grandes
áreas temáticas; a título de exemplo:
(a) Coordenação e Modernização Administrativa;
(b) Assuntos de Soberania;
(c) Assuntos Sociais;
(d) Assuntos Económicos;
(e) Assuntos Financeiros;
(f) Assuntos Culturais e de Cidadania.

Através desta agregação promover-se-iam os serviços partilhados427 e o exercício


conjunto ou partilhado de poderes hierárquicos por parte de vários membros do
Governo428.

(Regime Geral para os Ministérios Federais) que enumera o elenco de ministérios, institucionalizando-os
desse modo, num plano legal, e garantindo a sua tendencial permanência, a cada mudança governamental.
Na verdade, apesar da mudança de governos (e até das respetivas orientações partidárias), o elenco
ministerial mantém-se intocado, desde o ano de 2000, apesar de sucessivas alterações da referida lei. Nesse
sentido, ver ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO/FRANCISCO ABREU DUARTE/GONÇALO CARRILHO, Estudo de
Análise de uma Possível Reorganização da Administração Central do Estado (inédito), CEJUR, Lisboa,
29 de julho de 2016, pp. 24-27, que corresponde a Relatório elaborado na sequência do Despacho Conjunto
da Secretária de Estado da Administração e Emprego Público e do Secretário de Estado da Presidência do
Conselho de Ministros, de 2 de maio de 2016.
427
Sobre este tema, ver o § 93 do presente Manual.
428
De certo modo, a orgânica do XXI Governo Constitucional foi bem disso ilustrativa, pois constituiu um
primeiro passo no sentido da agregação de departamentos ministeriais e da promoção de serviços

140
§ 93. Serviços partilhados - Uma governação colaborativa implica, também, que
os “departamentos ministeriais” não se fechem sobre si próprios, numa lógica de
replicação (e de absurda multiplicação) de serviços administrativos com idênticas
funções. A proliferação de serviços jurídicos, financeiros, de recursos humanos, de
aquisições e compras, de relações públicas, de relações internacionais, de informática –
tantos quanto ministérios ou ministras/os – implicaria não só um grave desrespeito pelo
“princípio colaborativo”429, mas também pelo próprio “princípio da boa
administração”430.
Surgem, assim, os “serviços partilhados”, através dos quais se buscam poupanças
e economias de escala, mas também uma harmonização dos procedimentos e das decisões
administrativas, o que contribui para incutir nos cidadãos e nas empresas um sentido de
justiça equitativa e de previsibilidade. Através desses “serviços partilhados”, o
governante concentra recursos humanos, financeiros, técnicos, científicos e infraestrurais,
com vista a promover a racionalização do uso de recursos públicos. Por sua vez, este
modo partilhado de governar pode assumir várias feições:
⎯ Serviços partilhados ocasionais – em modelos mais embrionários (em
que ainda não se procedeu à criação formal de tais serviços ou em que
ainda não se dispõem dos recursos indispensáveis à sua implementação
efetiva e corrente), é usual ceder-se os meios de determinado serviço
pré-existente a um outro membro do governo ou órgão administrativo.
É o que sucede, por exemplo, quando determinada Secretaria-Geral de
um departamento ministerial assegura o apoio administrativo de um/a

partilhados. À data de publicação do presente Manual, o regime orgânico do XXII Governo Constitucional,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 169-B/2019, de 03 de dezembro, manteve esta lógica agregadora. Conforme
já supra se demonstrou (cfr. n.r. #), ele determina que certos departamentos ministeriais prestem serviços
de apoio, em simultâneo, a vários membros do Governo. E, mais do que isso, determina que os poderes de
direção, de superintendência e de tutela, sobre certos órgãos e serviços, sejam exercidos, em simultâneo,
por várias/os ministras/os. Esse exercício tanto pode ser conjunto, quanto cada um dos membros do
Governo disponha de poder decisório paritário, como pode ser coordenado, quanto esse poder decisório
caiba a apenas um dos membros do Governo, ainda que este deva consultar e coordenar previamente a sua
atuação com outro membro do Governo. Exemplo do exercício conjunto de poderes é o poder de direção
que pode ser exercido sobre a Secretaria-Geral da Educação e da Ciência, a Inspeção-Geral da Educação e
Ciência e a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, quer pelo Ministro da Educação, quer pelo
Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (cfr. artigos 24.º, n.º 5, e 25.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º
169-B/2019). Quanto ao exercício coordenado, destaca-se o exercício de poder de definir as orientações
estratégicas para o Instituto Hidrográfico, bem como fixar objetivos e acompanhar a sua execução, que é
exercido pelo Ministro da Defesa Nacional, em coordenação com o Ministro da Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior e com a Ministra do Mar.
429
Cfr. § # do presente Manual.
430
Cfr. § # do presente Manual.

141
titular de uma nova pasta governamental431. Essa partilha pode
decorrer de qualquer uma das seguintes fontes:
(a) Estipulação legal ou regulamentar;
(b) Protocolo interinstitucional;
(c) Contrato interadministrativo
(d) Decisão do titular do poder de direção;
⎯ Serviços partilhados permanentes – em estádios mais desenvolvidos
de colaboração interadministrativa, procede-se à criação, “ex novo” e
de raíz, de novos serviços administrativos que visam substituir as
anteriores estruturas setoriais, que tanto podem ser alvo de extinção,
fusão ou reestruturação432. Por sua vez, tais serviços partilhados podem
assumir uma de três modalidades:
(a) Integrados na administração direta do Estado – neste caso,
os serviços partilhados ficam sujeitos ao poder de direção
do próprio Chefe de Governo ou de um/a dos seus
membros;
(b) Dotados de personalidade jurídica autónoma – muitas
vezes, com vista a beneficiar de um regime mais flexível
que decorre do Direito Privado, os governantes optam por
revestir os serviços a partilhar de uma natureza empresarial.
É o que sucede, a mero título de exemplo, com as principais
centrais de compras públicas433;

431
É o que determina, na data em que este Manual é publicado, o n.º 6 do artigo 13.º da Lei Orgânica do
XXII Governo Constitucional, relativamente à prestação de serviços de apoio administrativo, logístico e
financeiro pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, a 7 (sete) membros do governo,
de nível ministerial; isto é, à Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, ao Ministro
do Planeamento, à Ministra da Cultura, Ministro das Infraestuturas e da Habitação e da Ministra da Coesão
Territorial (para além do próprio Primeiro-Ministro e da Ministra da Presidência).
432
Sobre estes métodos de adaptação da estrutura orgânica da administração pública, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, O princípio da mutabilidade das estruturas administrativas: extinção, fusão e reestruturação
orgânicas, cit., pp. 302-307.
433
Em Portugal, através do artigo 3.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 117-A/2012, de 14 de junho, optou-se por
centralizar na ESPAP – Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública várias tarefas, entre as
quais a coordenação do Serviço Nacional de Compras Públicas (SNCP), através da qual aquela entidade
pública empresarial acompanha e apoia as Unidades Ministeriais de Compras (UMC´s). Para além dessas
funções, em matéria de compras públicas, a ESPAP ainda prossegue atribuições relevantíssimas, em
matéria de serviços partilhados de gestão de recursos humanos, de gestão orçamental e de recursos
financeiros, de gestão do Parque de Veículos do Estado (PVE) e das Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC), conforme se comprova pelos artigo 1.º, n.º 3, e 3.º, n.ºs 2, 3, 5 e 6 do referido diploma
legal.

142
(c) Dotados de independência – em certas situações, pode até
conceber-se que determinadas funções sejam cometidas a
serviços partilhados que não dependam diretamente do
Governo ou do órgão com poderes executivos. É o que
sucede, por exemplo, com serviços destinados a fiscalizar a
própria atividade governativa, tais como:
i. Serviços de monitorização e de avaliação de
impacto legislativo e económico434;
ii. Serviços de auditoria jurídica;
iii. Serviços de auditoria financeira;
iv. Serviços inspetivos.
⎯ Serviços partilhados genéricos – quanto ao seu âmbito de atuação,
estes serviços podem destinar-se a ser utilizados por todos os membros
do Governo ou por todos os órgãos integrados numa mesma pessoa
coletiva pública, assumindo uma vocação tendencialmente universal.
É o que sucede com:
(a) Serviços de informações e de “intelligence” – num
mundo em permanente mudança e em que o acesso a
informação rigorosa, atualizada e fidedigna constitui
um pressuposto decisivo para a tomada criteriosa de
decisão governativa, têm sido criados serviços
concentrados435 que, quando julgado conveniente,

434
É o que sucede, por exemplo, com o “Regulatory Policy Committee” britânico, que foi criado em 2009
e que se tornou independente dos demais departamentos ministeriais (apesar de ser financiado pelo
Departamento para os Negócios, Energia e Estratégia Industrial, do governo do Reino Unido). O referido
comité procede a uma avaliação independente do impacto das medidas legislativas em preparação, que lhe
são apresentadas pelo departamento ministerial encarregue dessa avaliação e da coordenação das políticas
públicas do Governo britânico: o “Better Regulation Executive”. Estes procedimentos são fixados pelo
“Better Regulation Framework – Guidance”, de agosto de 2018, que pode ser consultado in
https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/735587
/better-regulation-framework-guidance-2018.pdf.
435
No caso português, o modelo de serviços partilhados assenta numa lógica de direta dependência dos
SIRP – Sistema de Informações da República Portuguesa do próprio Primeiro-Ministro, com possibilidade
de delegação num membro do Governo que integre a Presidência do Conselho de Ministros, conforme
comprova o artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa
(aprovado pela Lei n.º 30/84, de 5 de setembro, sucessivamente alterada até à Lei Orgânica n.º 4/2014, de
13 de agosto). Sobre a natureza jurídica e as funções destes serviços, ver ARMÉNIO MARQUES FERREIRA, O
Sistema de Informações da República Portuguesa, in «Estudos de Direito e Segurança», Almedina, 2007,
pp. 67-93; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os Serviços de Informações de Portugal: Organização e
Fiscalização, in «Estudos de Direito e Segurança», Almedina, 2007, pp. 171-192; SÓNIA REIS/MANUEL
BOTELHO DA SILVA, O Sistema de Informações da República Portuguesa, in «Revista da Ordem dos
Advogados», Ano 67, III (2007), pp. 1251-1304.

143
partilham esse conhecimento obtido, entre os vários
governantes interessados. Ao invés de o tratamento de
informação ser assegurado por organismos setoriais,
tem imperado uma dinâmica de concentração dessas
tarefas, com posterior partilha dos seus resultados436
(ainda que tal informação possa ser classificada e
filtrada, em função do círculo de acesso à mesma437);
(b) Serviços de cibersegurança – a governação pública em
ambiente digital implica, igualmente, inúmeros riscos,
do ponto de vista do sigilo e confidencialidade da
informação detida pela administração pública438, bem
como da prevenção de ataques informáticos externos,
em especial, às infraestruturas críticas439 (públicas e

436
Em especial, beneficiam dessa partilha os membros do Governo, a nível ministerial, que asseguram as
áreas governativas da Presidência do Conselho de Ministros, dos Negócios Estrangeiros, da Defesa
Nacional, da Justiça, da Administração Interna e das Finanças (por serem aqueles que mais diretamente
carecem de lhes aceder, para cumprimento das suas tarefas), que, aliás, dispõem de assento no Conselho
Superior de Informações, nos termos das alínea b) e c) do n.º 2 do artigo 18.º da Lei Quadro do Sistema de
Informações da República Portuguesa. Aliás, em especial, em matéria de Defesa, o próprio SIRP prevê a
inclusão, naquele, do SIED – Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, o que reforça a importância
das informações em matéria militar [cfr. artigo 7.º, alínea e)]. Deve mesmo notar-se que a referida lei
garante que o SIRP “não prejudica as actividades de informações levadas a cabo pelas Forças Armadas e
necessárias ao cumprimento das suas missões específicas e à garantia da segurança militar” (cfr. artigo
34.º, n.º 1).
437
Com efeito, a informação recolhida pelo SIRP apenas é diretamente comunicada ao Primeiro-Ministro,
enquanto órgão competente para o exercício de poderes de direção, cabendo-lhe a determinação de quais
são os demais membros do Governo que devem aceder à referida informação, bem como determinar a sua
sujeição a (eventual) segredo de Estado, podendo a mesma ser desclassificada ou mantida em segredo, nos
termos dos artigos 32.º e 32.º-A da Lei Orgânica do Sistema de Informações da República Portuguesa.
438
A propósito deste conceito contemporâneo de “cibersegurança”, ver, entre muitos outros, DANIELA
GUERREIRO SANTOS, A Cibersegurança em Portugal: A Ação Política Nacional em matéria de
Cibersegurança (tese de mestrado), ISCTE, Lisboa, 2014; PAULO VIEGAS NUNES, Sociedade em Rede,
Ciberespaço e Guerra de Informação: Contributos para o Enquadramento e Construção de uma Estratégia
Nacional de Informação, 2ª edição, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, 2016; CLÁUDIA SOARES DE
ALMEIDA, A Problemática da Cibersegurança: o Caso da Estratégia Nacional de Segurança no Ciberespaço,
in «Cadernos do Instituto da Defesa Nacional», 30 (2018), pp. 271-288.
439
Só em pleno século XXI é que se constatou – até por força de influência europeia – a necessidade de
identificação das infraestruturas críticas, de modo a monitorizar e prevenir eventuais ataques cibernéticos
a equipamentos como centrais de produção de energia, hospitais, aeroportos, portos marítimos e outras
redes de comunicação (cfr. Decreto-Lei n.º 62/2011, de 9 de maio). Conforme alertou o Secretário-Geral
da ONU, no seu discurso solene, no decurso do seu Doutoramento “Honoris Causa”, pela Universidade
de Lisboa: “Estou absolutamente convencido de que, de forma diferente das grandes batalhas do passado,
que abriram com uma barragem de artilharia ou bombardeio aéreo, a próxima guerra começará com um
ataque cibernético maciço para destruir a capacidade militar e paralisar a infra-estrutura básica, como
as redes elétricas”. Sobre a importância da cibersegurança nessas infraestruturas críticas, essenciais à
soberania dos Estados, ver MARIANA BRANCO DE OLIVEIRA, A Segurança das Infraestruturas Críticas em
Portugal (tese de mestrado), Faculda de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2015; JOÃO PAULO DOS
SANTOS MARTINHO, As Infraestruturas Críticas em Portugal: Um Modelo de Abordagem, Instituto
Universitário Militar, Lisboa, 2017.

144
privadas). Numa administração moderna, tendem a ser
criados serviços concentrados que permitem a partilha
de saber técnico, para que essa cibersegurança seja
adequadamente garantida;
(c) Serviços informáticos – do mesmo modo, a garantia de
interoperabilidade entre os sistemas tecnológicos das
várias entidades da administração pública e a promoção
de regras e procedimentos de segurança informática e
de confidencialidade têm conduzido à dotação de
serviços informáticos partilhados. No entanto, não é
possível evitar a crítica a uma excessiva dependência da
administração pública face a fornecedores privados de
equipamentos e de serviços de apoio, que fragiliza a
soberania tecnológica440.
(d) Serviços de recursos humanos – sem prejuízo da
manutenção, em maior ou menor grau, de serviços
setoriais, é usual a criação de uma macroestrutura (por
exemplo, uma direção-geral), que permita a fixação de
regras comuns e a harmonização de procedimentos em
matéria de gestão de pessoal441;
(e) Serviços de modernização administrativa – que visam
difundir as boas práticas administrativas e a assegurar a
modernização das infraestruturas, dos meios e dos
procedimentos da administração pública, através da
concentração, num só serviço, dessas funções de
planeamento e de coordenação442;

440
Sobre o problema da excessiva contratação externa (“outsourcing”) de serviços informáticos, bem como
para defesa de um modelo assente em “tecnologia aberta” (“open-source technology”), ver o § # do
presente Manual.
441
São essas as funções da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAE), que,
precisamente por se tratar de uma estrutura transversal a toda a administração direta do Estado, que se rege
pelo Decreto Regulamentar n.º 27/2012, de 29 de fevereiro, se encontra, hoje, sujeita à direção da Ministra
da Modernização do Estado e da Administração Pública, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, alínea a), da Lei
Orgânica do XXII Governo Constitucional. Porém, desde há largos anos, aquela direção-geral esteve
integrada no Ministério das Finanças, replicando uma lógica de reforço do controlo orçamental sobre os
gastos com pessoal público, que contrariava essa sua vocação transversal.
442
No caso português, destaque-se a criação da AMA – Agência para a Modernização Administrativa, I.P.,
que foi criada em 2007, no âmbito do PRACE – Programa de Reestruturação da Administração Central do

145
(f) Centros de competências – com vista a reformar a
capacidade operacional, a reduzir a dependência da
administração pública face à consultoria externa
(“outsourcing”) e a concentrar um grupo altamente
especializado de técnicos superiores, pode optar-se pela
criação de “centros de competências”, cujos serviços
são partilhados por vários membros do Governo443;
(g) Centrais de compras generalistas – outro dos principais
mecanismos de partilha interadministrativa assenta na
organização de centrais de compras, que visam gerar
poupanças e ganhos, através da negociação agregada de
volumes acentuados de bens e de serviços, o que
permite obter bónus e descontos de quantidade. Quando
não se circunscrevam a determinados produtos ou
setores de atividade governativa, constituem um serviço
partilhado universal ou generalista444.
⎯ Serviços partilhados específicos – por vezes, em função das
especificidades de cada tarefa prosseguida e de usos administrativos
vigentes em certas estruturas e organismos, pode suceder que apenas
alguns membros do Governo ou outros órgãos administrativos possam
beneficiar de certos serviços partilhados, que se destinam à realização
de tarefas específicas:
(a) Serviços de apoio multiministeriais445;

Estado, por força da extinção, por fusão, do Instituto de Gestão das Lojas do Cidadão, I.P., da transferência
de atribuições do IAPMEI – Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas, I.P., relativamente às Lojas
de Empresa, e da transferência de atribuições da UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento, I.P.,
relativamente ao domínio da administração eletrónica, designadamente em matéria de gestão do Portal do
Cidadão e do Portal da Empresa, do Cartão de Cidadão e da Plataforma de Interoperabilidade.
443
Disso são exemplos: a) o JurisAPP – Centro de Competências Jurídicas do Estado, criado pelo Decreto-
Lei n.º 149/2017, de 6 de dezembro; b) o TicAPP – Centro de Competências Digitais da Administração
Pública, criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 22/2018, de 7 de março de 2018. Sobre a
natureza e organização destes centros de competências, ver DOMINGOS SOARES FARINHO, Os centros de
competências e estruturas partilhadas na administração púbica portuguesa: uma primeira reflexão, cit,
pp. 693-711.
444
Exemplo disso são as centrais de compras geridas pela ESPAP – Entidade de Serviços Partilhados da
Administração Pública (cfr. artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, do Decreto-Lei n.º 117-A/2012, de 14 de julho), através
do Sistema Nacional de Compras Públicas, que foi criado pelo Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de fevereiro
(cfr., em especial, artigos 3.º a 9.º).
445
Face a alguma flutuação entre a estrutura orgânica dos sucessivos governos (e dos seus “departamentos
ministeriais”), pode suceder que determinado serviço de apoio administrativo auxilie, em simultâneo,
vários membros do Governo. É o que sucede, atualmente, com a partilha de poderes de direção entre o

146
(b) Serviços de gestão de fundos multiministeriais446;
(c) Centrais de compras especializadas447;
(d) Serviços de utilização comum especializados448;

A decisão sobre a criação destes serviços partilhados depende, em regra, do grau


de desenvolvimento de metodologias colaborativas intra-administrativas, e pode assumir
uma de duas feições:
⎯ Criação vertical – quando esta decorre de um impulso político
centralizado, seja por via de decisão legislativa, seja por via de mera
decisão administrativa, podendo ainda distinguir-se em:
(a) Criação “ex novo” – em que se procede à constituição de um
novo serviço público;
(b) Criação por fusão, cisão ou reestruturação – através da qual se
aproveitam estruturas administrativas já existentes;

Ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior e o Ministro da Educação [cfr. artigos 24.º, n.º 5,
e 25.º, n.º 5, ambos da Lei Orgânica do XXII Governo Constitucional), relativamente aos seguintes serviços
partilhados: a) Secretaria-Geral da Educação e Ciência; b) Inspeção-Geral da Educação e Ciência; c)
Direção-Geral de Estatística da Educação e Ciência.
446
Em matéria de incentivos do Estado à comunicação social regional e local, existe uma colaboração intra-
administrativa, entre vários departamentos ministeriais, na medida em que cabe às Comissões de
Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR´s), inseridas na administração direta periférica do
Estado, sob a alçada do departamento ministerial do planeamento, atribuir esses mesmos incentivos [cfr.
artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 98/2007, de 2 de abril, e artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 23/2015,
de 6 de fevereiro, conforme alterados pelo Decreto-Lei n.º 27/2017, de 10 de março], ainda que caiba à ao
Gabinete de Estratégia e de Planeamento Culturais (GEPAC) suportar o pagamento desses incentivos à
comunicação social regional e local, mediante os correspondentes inscrição e cabimentos orçamentais [cfr.
artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 98/2007, de 2 de abril, e artigos 14.º, n.º 2, e 15.º, n.º 1, ambos do
Decreto-Lei n.º 23/2015, de 6 de fevereiro, conforme alterados pelo Decreto-Lei n.º 27/2017, de 10 de
março]. Assim sendo, o GEPAC funciona, para efeitos de atribuição de incentivos à comunicação social
regional e local, como um verdadeiro “serviço partilhado específico”, que apenas abrange as áreas
governativas da cultura e do planeamento. Para além disso, a própria Lei Orgânica do XXII Governo
Constitucional salvaguarda os poderes de direção da Ministra da Cultura sobre a Secretaria-Geral da
Presidência do Conselho de Ministros, relativos à área da comunicação social [cfr. artigo 16.º, n.º 3, alínea
a), e 23.º, n.º 6].
447
A especificidade de determinados mercados de aquisição de produtos pode conduzir à criação de
“centrais de compras especializadas”, cujos conhecimentos técnicos e científicos especializados se
afiguram indispensáveis à boa prossecução do interesse público. O exemplo português mais impressivo
corresponde à “central de compras da saúde”, que é gerida pelos Serviços Partilhados do Ministério da
Saúde (SPMS), E.P.E., que foram criados pelo Decreto-Lei n.º 19/2010, de 22 de março.
448
Este tipo de serviços partilhados surge quando haja uma necessidade quotidiana de partilha de tarefas,
de informação e de infraestruturas que beneficiam várias entidades encarregues de determinado setor da
atividade governativa. Desde há muito (pelo menos, desde a Portaria n.º 19221, de 5 de junho de 1962),
que se reconhece essa necessidade de garantir um funcionamento articulado e eficaz do sistema de
transporte e dos demais serviços de utilização comum pelos hospitais portugueses. Tal conduziu à criação
do Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH) que, hoje, é regido pelo Decreto-Lei n.º 2009/2015,
de 25 de setembro. Sobre o tema, ver DOMINGOS SOARES FARINHO, Os centros de competências e
estruturas partilhadas na administração púbica portuguesa: uma primeira reflexão, cit, pp. 704-705.

147
⎯ Criação horizontal – quando esta decorre de uma iniciativa de vários
serviços, organismos ou mesmos de pessoas coletivas públicas
distintas, através de mecanismos colaborativos, tais como “contratos
interadministrativos”, “protocolos”, “memorandos de entendimento”
ou apenas “práticas administrativas”.

Evidentemente, a proliferação crescente de “serviços partilhados” revela uma


governação administrativa cada vez mais comprometida com o “princípio colaborativo”
e com o “princípio da boa administração” que se estima não ter, ainda, atingido o seu
nível máximo. Porém, não pode esquecer-se que estes serviços não podem eximir-se das
responsabilidades que oneram cada um dos departamentos ministeriais (ou outros
serviços) que integram aquele mecanismo cooperativo, não podendo a finalidade de
poupança financeira sobrepor-se ao interesse público e, em especial, à obediência a todos
os princípios gerais de Direito Administrativo.

§ 94. Estruturas de missão – Em regra, até por força do “princípio da


continuidade dos serviços públicos”449, a organização administrativa assenta numa lógica
de (tendencial) perenidade das suas estruturas450. Porém, uma governação racional e
criteriosa nem sempre necessita de estruturas administrativas permanentes. Aliás, essa
permanência implica sempre um conjunto de desvantagens, entre as quais se destacam:
⎯ Custos financeiros de manutenção em funcionamento contínuo;
⎯ Criação de quadros permanentes de pessoal;
⎯ Falta de flexibilidade na gestão quotidiana das tarefas administrativas;
⎯ Necessidade de dotação de edifícios e outras infraestruturas próprias;
⎯ Prejuízo das reformas decorrentes da mudança política imposta pelo
princípio democrático.

449
LÉON DUGUIT, Law in the Modern State, (trad. Frida e Harold Laski), George Allen & Unwin, London,
1921, pp. 39 e 54-67; CÂNDIDO DE OLIVEIRA, A Administração Pública de Prestação e o Direito
Administrativo, in «Scientia Ivridica», XLV (1996), pp. 108-109; MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo
Contrato Administrativo, Almedina, 2003 (reimpressão), p. 119; PAULO OTERO, O Poder de Substituição
em Direito Administrativo – Enquadramento Dogmático-Constitucional, Volume II, Lex, 1995, p. 470;
MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral – Introdução e
Princípios Fundamentais, Tomo I, 2ª edição, Dom Quixote, 2006, p. 45.
450
Com mais profundidade, demonstrando esta tensão o “princípio democrático”, que pressupõe a
mutabilidade das estruturas administrativas, e o “princípio da segurança jurídica”, que impõe a proibição
de mudanças improdutivas ou desrazoáveis face às vantagens delas advenientes, ver MIGUEL PRATA
ROQUE, O princípio da mutabilidade das estruturas administrativas: extinção, fusão e reestruturação
orgânicas, cit., pp. 296-299.

148
Como tal, as “estruturas de missão” constituem um mecanismo de flexibilização
orgânica, que visa combater a ineficiência resultante da manutenção em funcionamento
de estruturas administrativas permanentes. A sua caraterística distintiva passa pela
“natureza temporária” do seu objeto de atuação451; isto é, as “estruturas de missão”
visam a prossecução de tarefas especificamente relacionadas com um específico
projeto452, para as quais a administração pública não dispõe, habitualmente e numa lógica
de permanência, de recursos públicos necessários à sua concretização. De onde resulta
outra das suas caraterísticas intrínsecas: a “insuficiência das estruturas administrativas
permanentes” 453.
A lei reconhece, aliás, estes traços distintivos das “estruturas de missão”, pois
impõe que as mesmas assumam uma duração limitada no tempo – determinando, aliás, a
sua imediata extinção, após o decurso do prazo fixado por resolução do Conselho de
Ministros [cfr. artigo 28.º, n.º 2, n.º 3, alínea c), e n.º 6, da Lei n.º 4/2004]454 – e impede
que sejam celebrados contratos de trabalho a tempo indeterminado (cfr. artigo 28.º, n.º 4,
da Lei n.º 4/2004). Assim sendo, pelo menos em teoria, as “estruturas de missão” visam
impedir a criação de um aparelho burocrático adicional e autónomo aos “departamentos
ministeriais”, antes pretendendo-se que aquelas beneficiem do apoio administrativo das
secretarias-gerais daqueles (e dos demais serviços partilhados). Do mesmo modo, admite-
se ainda a criação de outras equipas temporárias – que nem sequer assumem a natureza
de estruturas –, mas que ficam sujeitas, com as devidas adaptações, ao mesmo regime das
“estruturas de missão”455 tais como:

451
Destacando a sua natureza temporária, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito
Administrativo, cit., p. 629; RICARDO PEDRO, As estruturas de missão, em particular as autoridades de
gestão, in «Organização Administrativa: Novos Actores, Novos Modelos», Volume I, AAFDL Editora,
Lisboa, 2018, p. 865.
452
PIETRO VIRGA, Diritto Amministrativo, Volume I, 4ª edição, Giuffrè, Milano, 1995-1996, p. 38;
RICARDO PEDRO, As estruturas de missão, em particular as autoridades de gestão, cit., p. 866.
453
Com efeito, a lei que regula as “estruturas de missão” impõe que as resoluções de Conselho de Ministros
fundamentem a razão pela qual as tarefas atribuídas àquelas não podem ser prosseguidas por estruturas
permanentes da administração pública. Assim, ver o artigo 28.º, n.º 1, da Lei da Organização da
Administração Direta do Estado, aprovada pela Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro.
454
Frisando que estas estruturas temporárias já se encontravam previstas – ainda que sob a designação de
“equipas de projeto” – pelo artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de fevereiro, ver RICARDO PEDRO,
As estruturas de missão, em particular as autoridades de gestão, cit., p. 868.
455
Salientando a necessidade de aplicação subsidiária, com as devidas adaptações do regime das estruturas
de missão a estas outras estruturas temporárias, ver RICARDO PEDRO, As estruturas de missão, em particular
as autoridades de gestão, cit., pp. 869 e 872-873.

149
⎯ Comissões técnicas – que visam agregar saber técnico, que tanto pode
provir da própria administração pública, como de especialistas e de
peritos do setor privado, sob qualquer uma das seguintes modalidades:
(a) Interministeriais – que incluem apenas membros de gabinetes
governamentais ou técnicos superiores da administração
pública nomeados pelo membro do Governo responsável;
(b) Mistas – que associam pessoas nomeadas pelos membros do
Governo e membros designados por entidades representativas
dos vários setores sociais;
(c) Independentes – que apenas acolhem especialistas e peritos
independentes; em regra, designados por entidades
representativas dos vários setores sociais;
⎯ Grupos de trabalho – em regra, são utilizados para levar a cabo
trabalhos preparatórios de decisões futuras, sejam esses trabalhos do
foro legislativo ou do foro exclusivamente administrativo;
⎯ Equipas de projeto – distinguem-se dos “grupos de trabalho” por se
dirigirem, mais especificamente, à execução concreta de determinadas
tarefas relacionadas com um específico projeto, que já foi alvo de
validação e decisão política.

Deve notar-se, porém, que o mecanismo de criação de “estruturas de missão” tem


sido, frequentemente, alvo de abusos, pois sucessivos governos recorrem a este regime
para contornar as exigências aplicáveis às “estruturas permanentes” da administração
direta do Estado; em especial, em matéria de regras de controlo da execução orçamental,
de nomeação e contratação e de estatuto, incluindo remuneratório, dos seus membros e
colaboradores456. Nos últimos anos, multiplicaram-se, assim, as (putativas) “estruturas
de missão”, como instrumento de “fuga ao Direito Administrativo”. Frise-se, mais uma
vez, que se trata de meras “estruturas de missão fictícias”, às quais se deve aplicar, por

456
Com efeito, nos últimos anos várias resoluções de Conselho de Ministros têm vindo a equiparar o
estatuto das estruturas de missão ao dos gabinetes governamentais, permitindo que os dirigentes daquelas
estruturas beneficiem não só do estatuto remuneratório, mas também do quadro de pessoal (ainda que de
nomeação política e precária) que é previsto para aqueles gabinetes. A título de exemplo, ver o § 6 da
Resolução do Conselho de Ministros n.º 42/2016, de 18 de agosto, que alterou a Resolução do Conselho de
Ministros n.º 100/2015, de 23 de dezembro (posteriormente alterada pela Resolução de Conselho de
Ministros n.º 48-B/2017, de 31 de março), que criou a estrutura de missão para capitalização das empresas,
e o § 4, alínea d), da Resolução do Conselho de Ministros n.º 52/2017, de 19 de abril, que criou a estrutura
de missão “Portugal In” (cuja missão reside na atração de investimento estrangeiro decorrente do Brexit).

150
via de um mecanismo de “desconsideração da qualificação jurídica”, o regime do setor
público administrativo (e, em particular, da administração direta do Estado),
designadamente, para efeitos de controlo orçamental.
Curiosamente, o surgimento destas “estruturas de missão fictícias” tende a
prosperar no domínio em que menos se esperaria: o da gestão (ou aplicação) de fundos
europeus457. Em boa verdade, não raras vezes, invoca-se a natureza plurianual e periódica
dos programas financeiros europeus – isto é, das Perspetivas Financeiras (ou anteriores
Quadros Comunitários de Apoio) – para se procurar justificar a “natureza temporária”
dessas estruturas458. No fundo, em função da natureza plurianual dos orçamentos da
União Europeia, criarar-se-iam tantas estruturas (apenas teoricamente) temporárias
quantas as necessárias à gestão (ou aplicação) dos respetivos fundos.
Não pode aceitar-se, contudo, este expediente. Como é óbvio – apesar da (sempre)
potencial possibilidade de saída da União Europeia –, certo é que a um quadro orçamental
europeu se sucederá, sempre, outro. Ora, a circunstância de se estar a aplicar,
sucessivamente, as “Perspetivas Financeiras 2007-2014”, o “Portugal 2020” ou o
“Portugal 2027” não invalida que exista uma evidente continuidade de políticas públicas
e que a competência dos Estados-membros para gerir e aplicar fundos europeus seja
permanente e (pelo menos, tendencialmente) perene. Nesse sentido, a administração
pública deve estar preparada para o fazer, de modo permanente, através da dotação de
estruturas permanentes de gestão de fundos, sejam elas concentradas numa só unidade
nacional ou em várias entidades encarregues da gestão de cada programa operacional.

457
Salientando esta ligação das estruturas de missão à gestão de fundos europeus, ver RICARDO PEDRO, As
estruturas de missão, em particular as autoridades de gestão, cit., p. 867. Por exemplo, tal sucede em
matérias de gestão dos “Euro-grants”, que correspondem a um mecanismo de compensação instituído no
âmbito do Espaço Económico Europeu (EEE), através do qual Islândia, Liechenstein e Noruega conferem
apoios financeiros aos Estados-membros da União Europeia cujo PIB se desvie mais da média europeia,
como forma de compensá-los pelo acesso daqueles três países da EFTA -European Free Trade Association
ao mercado interno europeu. Por força da Resolução do Conselho de Ministros n.º 39/2017, de 10 de março,
foi criada a Unidade Nacional de Gestão do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu
(atualmente MFEEE 2014-2021, que vigora até 2025), a quem compete proceder à gestão desses mesmo
fundos (“Euro-grants”). Ora, a referida resolução foi aprovada ao abrigo do artigo 28.º da Lei sobre
Organização da Administração Direta do Estado (aprovada pela Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro, e
sucessivamente alterada), que regula, precisamente, as estruturas de missão.
458
Não sem alguma perplexidade, o legislador entendeu que as autoridades de gestão de fundos europeus
deveriam ter uma natureza temporária, visto que o n.º 8 do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 137/2014, de 12
de setembro, que estabeleceu o modelo de governação dos fundos europeus e de investimento para o período
2014-2020, determina que as mesmas devam assumir a forma de estrutura de missão, nos termos e para os
efeitos previstos no artigo 28.º da Lei n.º 4/2004. A mero título de exemplo, veja-se a Autoridade de Gestão
do Plano de Desenvolvimento Rural para o Continente (PDR 2020), que assume essa natureza de estrutura
de missão, nos termos do § 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 59/2014, de 30 de outubro.

151
O que não pode tolerar-se é a desvirtuação do regime jurídico das “estruturas de
missão” como mero expediente para atrair técnicos de excelência e de, assim, compensar
a incapacidade de remunerar adequadamente os membros dessas estruturas de gestão de
fundos europeus, através do recurso aos mecanismos próprios da administração pública.
Se há áreas de atuação administrativa em que se justifica um regime excepcional –
incluindo, em matéria de estatuto remuneratório –, então, enfrente-se o problema, através
da reformulação das carreiras dos técnicos superiores. Mas não se recorra a uma
verdadeira fraude à lei para obter, de modo pouco transparente, aquilo que não se logra
alcançar pela via da aplicação do regime geral da função pública.

§ 95. Entidades de gestão de fundos - O modelo de gestão e execução de fundos


europeus ilustra, de modo deveras impressivo, a partilha de funções entre a administração
homogénea da União Europeia (composta pelas suas instituições, serviços e funcionários)
e a administração dos Estados-membros – conceito de “administração mista” ou de
“coexecução”459. Através dessa cooperação, as administrações nacionais funcionam
como verdadeiras “administrações comuns”460 da União Europeia, gerindo a concessão
e fiscalização da aplicação dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI),
enquanto a administração europeia se limita a programar e a fixar as orientações
estratégicas (presentemente, através da “Estratégia Europa 2020”), em cumprimento do
Quadro Estratégico Comum461, e a fiscalizar o seu cumprimento pelas administrações
nacionais462. Ao abrigo do princípio da autonomia procedimental administrativa463, cabe
a cada Estado-membro, no plano organizativo, adaptar as suas estruturas nacionais às
necessidades de implementação do Direito da União Europeia.
No caso português, optou-se por atribuir a função concreta de gestão dos fundos
europeus às (assim apelidadas) autoridades de gestão; que não são mais do que estruturas
de missão, ainda que – conforme já supra464 alertado – possa colocar-se em causa a sua

459
CLAUDIO FRANCHINI, Amministrazione italiana e amministrazione comunitária: la coamministrazione
nei settori di interesse comunitario, 2ª edição, CEDAM, Padova, 1993, p. 174; MIGUEL PRATA ROQUE,
Direito Processual Administrativo Europeu, cit., pp. 99-101.
460
MIGUEL PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, cit., p. 92
461
Trata-se do instrumento de fixação da estratégia comum em matéria de desenvolvimento harmonioso do
espaço europeu (para o qual os fundos contribuem, enquanto ferramenta imprescindível), que foi aprovado
como Anexo I ao Regulamento (UE) n.º 1303/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de
dezembro de 2013. Sobre o papel estratégico dos fundos, ver MAURO CAPPELLO, Guida ai fondi strutturali
europei 2014-2020, Maggioli Editore, Roma, 2014, pp. 22-23.
462
RICARDO PEDRO, As estruturas de missão, em particular as autoridades de gestão, cit., p. 877.
463
MIGUEL PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, cit., pp. #.
464
Cfr. § # do presente Manual.

152
natureza meramente temporária. Em tese, poder-se-ia adotar um de três possíveis modelos
de execução dos fundos europeus:
⎯ Centralização com aproveitamento de estruturas pré-existentes –
assentaria numa entidade central, integrada ou não na administração
direta do Estado, que concentraria as tarefas de gestão dos fundos;
⎯ Centralização com criação de novas estruturas – pressuporia a criação
de novos órgãos ou estruturas dentro do próprio Estado (ou, no limite,
um serviço personalizado integrado na administração indireta, mas
com capacidade de concentração dos poderes de gestão dos fundos, no
plano nacional), que garantissem uma uniformidade na sua aplicação;
⎯ Dispersão por várias estruturas autónomas – mais do que a criação de
autoridades de gestão específicas, implicaria uma autonomização
jurídica das mesmas, através de um modelo próximo das agências
norteamericanas ou das “Quangos” britânicas. Tal garantiria uma
maior independência política das decisões de atribuição de fundos
europeus, mas correria o risco de falta de uniformidade e de prejuízo
de uma política nacional de desenvolvimento harmonioso.

O modelo português atual assenta num modelo centralizado, em que a gestão dos
fundos europeus não escapa à órbita da administração direta do Estado, ainda que através
de estruturas de missão especificamente criadas para gerir cada Programa Operacional
(PO); isto é, os programas de execução setoriais (por exemplo, em matéria de agricultura,
mar, competitividade e inovação, inclusão social e emprego; capital humano;
sustentabilidade e eficiência no uso de recursos). A par destas autoridades de gestão de
PO´s setoriais, coexiste a Comissão Interministerial de Coordenação do Acordo de
Parceria Portugal 2020, com funções de coordenação e de dinamização política465, e a
Agência para o Desenvolvimento e Coesão, I.P., com funções de coordenação técnica,
em matéria de fundos de coesão466.

465
A referida comissão interministerial foi criada por força dos §§ 2 a 4 da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 39/2013, de 14 de junho. Sobre as funções desta comissão, ver ainda RICARDO PEDRO, As
estruturas de missão, em particular as autoridades de gestão, cit., pp. 881-882.
466
A Agência para o Desenvolvimento e Coesão, I.P., foi especificamente criada, através do Decreto-Lei
n.º 140/2013, de 18 de outubro, para acompanhar o Acordo de Parceria Portugal 2020, ainda que assuma
uma natureza de estrutura permanente, integrada na administração indireta do Estado. Antes disso, as suas
funções de coordenação técnica dos fundos de coesão já tinham sido explicitadas pelos §§ 6 e 7 da
Resolução do Conselho de Ministros n.º 39/2013, de 14 de junho.

153
§ 96. Entidades administrativas independentes – O triunfo generalizado do
modelo democrata-liberal de tipo ocidental467, fundado numa economia (social) de
mercado – também denominado por capitalismo –, conduziu à consciencialização, pelo
poder político e pelos cidadãos, que o reconhecimento da livre iniciativa económica não
podia subsistir sem a garantia de que os poderes económicos respeitavam o Direito
vigente e se moviam num ambiente de concorrência sã e leal. Surgiu assim a necessidade
de regular e supervisionar as várias atividades económicas prosseguidas num ambiente
de economia livre. Nasce, portanto, a noção de Estado-Estratega468. Aquele que se
encarrega de planear, de ordenar e de supervisionar. Tudo com vista a assegurar condições
de igual oportunidade de acesso ao mercado e às utilidades económicas.
Essa supervisão ordenadora poderia traduzir-se em qualquer um dos seguintes
modelos:
⎯ Heterorregulação direta – através da qual o próprio Estado, através
dos seus serviços não personalizados (em especial, as direções-
gerais469) prosseguiria funções de regulação e de supervisão do
cumprimento das exigências legais e regulamentares, pelos operadores
privados;
⎯ Heterorregulação indireta – que se traduziria na criação de outras
pessoas coletivas públicas, com vista à ordenação política e social da
atividade económica, podendo dividir-se em:

467
Preconizando – de modo, quiçá, demasiado precipitado – esse triunfo do modelo capitalista ocidental
sobre outros modelos económico-sociais, mais autoritários (e, em especial, dos modelos socialistas ou
socializadores de tipo revolucionário), ver FRANCIS FUKUYAMA, The End of History and the Last Man, Free
Press, New York, 1992. Porém, recentemente, o autor viria a publicar novo obra de fôlego, através da qual
coloca em cheque as suas próprias posições anteriores, revendo-as. Entre outros aspetos, nota e regista
preocupação com o recente evoluir de modelos autoritários e populistas, de intervenção política sobre a
sociedade, bem como com a radicalização (religiosa e doutrinária) do discurso no espaço público. Para essa
revisão das posições originárias do autor, ver FRANCIS FUKUYAMA, Identity: The Demand for Dignity and
the Politics of Resentment, Farrar, Straus and Giroux, New York, 2018.
468
Sobre este conceito de Estado-Estratega – isto é, de um Estado que se limita a delinear as orientações
estratégicas a prosseguir, no plano económico e social –, ver PEDRO GONÇALVES, Direito Administrativo
da Regulação, in «Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano», FDUL, 2006, pp. 535-539;
MIGUEL PRATA ROQUE, Regulação Administrativa e Sanção – O poder sancionatório da ERC na
encruzilhada entre o Direito Administrativo e o Direito Penal, in «Media, Direito e Democracia»,
Almedina, 2014, pp. 125-126.
469
Era o que sucedia, por exemplo, em matéria de defesa da concorrência – antes da criação da Autoridade
da Concorrência, pelo artigo 14.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho –, quando essas funções eram
asseguradas pela Direção-Geral da Concorrência e Preços (cfr. artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 371/93, de 29
de outubro), que funcionava na órbita do membro do governo responsável pela área da economia.

154
(a) De tipo institucional – através da criação de serviços
personalizados (em especial, institutos públicos) que
garantissem uma especialização470 só atingível através da
flexibilização do seu regime estatutário e orgânico, de modo a
poder atrair profissionais de excelência, cujos conhecimentos
possam ser aproveitados para essa função regulatória;
(b) De tipo empresarial – através da criação e da gestão de
empresas públicas de referência (por exemplo, um banco
público, uma empresa de telecomunicações, uma empresa de
distribuição de energia elétrico ou de combustível), o Estado
procuraria influenciar o próprio mercado, através de boas
práticas empresariais, que produziriam um “efeito de arrasto”
das demais empresas daquele setor;
⎯ Heterorregulação independente – consistiria no reconhecimento de
que há exigências de imparcialidade que imporiam uma regulação e
supervisão exclusivamente assegurada por entidades independentes do
governo (e, ainda mais lato, do poder político)471, constituídas por
peritos de cada setor económico-social e sujeitos a um rigoroso estatuto
de transparência, de independência e de incompatibilidades;
⎯ Autorregulação – pressuporia a capacidade de os próprios agentes
económicos se auto-organizarem, de modo a estabelecer regras de
conduta e padrões técnicos uniformes, que garantissem a lisura e a
lealdade concorrencial e a observância de valores essenciais, tais como
a sustentabilidade ambiental, a conciciliação entre a vida profissional
e a vida pessoal, familiar, o lazer e o repouso, bem como a saúde, a
higiene e a segurança no trabalho e na comercialização de bens de
consumo e serviços.

470
MARIA FERNANDA MAÇÃS, O controlo jurisdicional das autoridades reguladoras independentes, in
«Cadernos de Justiça Administrativa», 58 (2006), p. 48; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo,
Volume I, cit., pp. 417-419; MIGUEL PRATA ROQUE, Regulação Administrativa e Sanção, cit., p. 126.
471
Demonstrando que a criação de entidades administrativas independentes visou evitar a politização da
administração pública, que veio sendo criticada e rejeitada pela opinião pública, ver PAULA COSTA E SILVA,
As autoridades administrativas independentes. Alguns aspectos da regulação económica numa perspectiva
jurídica, in «O Direito», 138 (2006 - III), p. 545; PAULO OTERO, Legalidade e Administração – O sentido
da vinculação administrativa à juridicidade, 2003, Almedina, § 9.3.7.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, As
autoridades administrativas independentes na ordem jurídica portuguesa, in «Revista da Ordem dos
Advogados», 61 (2001), pp. 102.

155
O modelo de heterorregulação independente inspira-se no sistema norteamericano
de “agências federais”, em que imperam estruturas federais independentes do poder
executivo (in casu, da/o Presidente norteamericana/o)472, e no sistema inglês de
“Quangos” (ou “Quasi Non Governamental Organizations”)473, que correspondem a
estruturas híbridas, de génese associativo-privada e não governamental, a quem a Coroa
devolveu poderes governativos, ainda que mantenha um controlo difuso das mesmas,
através do seu financiamento. Entre nós, as entidades administrativas independentes
correspondem a pessoas coletivas públicas, dotadas de completa autonomia face ao
Estado e, em especial, dotadas de um estatuto de independência face ao Governo (e até
face ao parlamento)474, sem prejuízo da possibilidade de destituição dos seus membros
em caso de falta grave, previamente tificada por lei475. Por sua vez, elas distinguem-se,
em função da predominância dos objetivos que prosseguem, entre:
⎯ Entidades de regulação e de supervisão económica – correspondem à
maioria das entidades independentes e visam garantir o funcionamento
leal e lícito dos mecanismos de competição em mercado livre, com
obediência às normas legais e aos padrões técnicos aplicáveis a cada
setor da atividade económica. Por sua vez, podem ainda distinguir-se
em:
(a) Entidades de espectro transversal – quando regulam todas as
entidades privadas, indistintamente das especificidades de cada

472
Sobre o modelo norteamericano de “federal agencies”, ver VITAL MOREIRA/FERNANDA MAÇÃS,
Autoridades Reguladoras Independentes, cit., pp. 17-20; JOSÉ LUCAS CARDOSO, Autoridades
Administrativas Independentes e Constituição, Coimbra Editora, 2002, pp. 39-67; MIGUEL PRATA ROQUE,
Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cit., pp. 376-377.
473
Por todos, ver BRIAN W. HOGWOOD, The “growth” of Quangos: evidence and explanations, in
«Parliamentary Affairs», 48 (April 1995), pp.207-225; MATTHEW V. FLINDERS/MARTIN J. SMITH,
Quangos, Accountability and Reform – The Politics of Quasi-Government, Palgrave Macmillan, London,
1999; R.A.J. VAN GESTEL/PH. EIJLANDER/J.A.F. PETERS, The Regulatory Powers of Quangos in the
Netherlands: Are Trojan Horses Invading Our Democracy?, in «Electronic Journal of Comparative Law»,
11 (May 2007), pp. 1-24.
474
Devo notar que nem todas as funções de regulação e de supervisão são prosseguidas por entidades
administrativas independentes. Por vezes, alguns ordenamentos jurídicos consagram poderes deste tipo a
entidades com personalidade jurídica distinta do Estado, mas que se encontram sujeitos a um poder de
controlo mais intenso (superintendência ou tutela), por parte do governo. No caso português, é o que sucede,
a mero título de exemplo, com o INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde,
I.P., que assume a natureza jurídica de instituto público (portanto, pertencendo à administração indireta do
Estado) e que se encontra sujeito ao poder de superintendência e de tutlar do membro do Governo
responsável pela área da saúde (cfr. artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, da respetiva Lei Orgânica, aprovada pelo Decreto-
Lei n.º 46/2012, de 24 de fevereiro).
475
MIGUEL PRATA ROQUE, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, cit., pp. 381 e 384-385.

156
setor económico (por exemplo, a Autoridade da Concorrência
ou a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários);
(b) Entidades de espectro setorial – sempre que se destinam a
regular um setor económico específico, relativamente ao qual
aplicam e definem normas e regras de conduta próprias, em
função das particularidades de cada setor (por exemplo, o
Banco de Portugal, a Entidade Reguladora da Saúde ou a
Entidade Reguladora do Setor Energético);
⎯ Entidades de defesa de direitos fundamentais – é o que sucede com as
entidades independentes de proteção de dados pessoais, de defesa do
pluralismo nos meios de comunicação social476 e, em certa medida, das
que prosseguem fins de defesa do ambiente e de combate às alterações
climáticas (em que impera uma dimensão de defesa das posições
subjetivas dos membros da comunidade, ao invés de um interesse
fundado exclusivamente no regular funcionamento de um determinado
mercado).

Do ponto de vista da governação, as entidades administrativas correspondem a um


instrumento mais flexível de ordenação dos setores económico-sociais, visto que
permitem o recurso a regras de Direito Privado e à celebração de contratos individuais de
trabalho, de modo a recrutar especialistas de renome e excelência, dotados das aptidões e
dos conhecimentos necessários a uma correta compreensão e regulação de setores muitas
vezes demasiado técnicos, herméticos e macilentos477. Têm a vantagem de (pelo menos,
teoricamente) reforçar o grau de independência de quem intervém em mercado livre478,

476
Assim, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, cit., pp. 387-389. Em sentido idêntico, qualificando a ERC como uma entidade
“predominantemente vocacionada para a defesa dos direitos e liberdades fundamentais”, ver o Acórdão
n.º 613/2008, do Tribunal Constitucional.
477
Salientando que a legitimidade destas entidades radica, precisamente, na sua capacidade técnica e
científica (e menos na sua legitimação democrática), ver VITAL MOREIRA / FERNANDA MAÇÃS, Autoridades
Reguladoras Independentes – Estudo e Projecto de Lei Quadro, Coimbra Editora, 2003, p. 29; PEDRO
GONÇALVES, Direito Administrativo da Regulação, cit., p. 550; FERNANDO DOS REIS CONDESSO, Direito
da Comunicação Social (Lições), Almedina, 2007, p. 424; MIGUEL PRATA ROQUE, Os poderes
sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cit., p. 375; IDEM, Regulação
Administrativa e Sanção, cit., pp. 126-127.
478
Entre esses instrumentos de reforço, costumam identificar-se: a) duração longa e não coincidente do
mandato; b) irrenovabilidade do mandato; c) regime de impedimentos; d) regime de incompatibilidades
concomitantes e subsequente; e) possibilidade restrita de destituição. Assim, para um maior
desenvolvimento, ver MIGUEL PRATA ROQUE, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora
para a Comunicação Social, cit., pp. 379-381.

157
evitando que os governos sejam acusados de privilegiar ou prejudicar específicas
empresas ou atores económicos. Porém, no reverso da medalha, tem-se vindo a verificar
uma perigosa captura dos reguladores pelos regulados, por força da dificuldade de
recrutamento de diretores e especialistas e de um inegável (mas preocupante) fenómeno
de “portas giratórias”479, que tanto afeta os órgãos do Estado, como estas entidades
independentes.
Desejavelmente, o estatuto ímpar destas entidades deveria contribuir para um
melhor funcionamento dos mercados. Porém, tem-se antes verificado:
⎯ Demissão de tomada de decisões estruturais – com efeito, a lógica da
sua criação passou pela tentativa de evitar a paralisação da atividade
governativa face à necessidade de tomada de decisões (políticas)
concretas, que poderiam afetar o equilíbrio entre os vários agentes
económicos. Sucede porém que, não raras vezes, estas entidades
independentes acabam por não invervir, de modo corajoso, em certos
setores protegidos da economia (em especial, no setor bancário, no
setor segurador ou no setor dos combustíveis ou da distribuição e da
comercialização de outros recursos energéticos)480; em grande medida,
por força do elevado grau de litigância e dos recursos que as empresas
reguladas dispõem para impugnar as decisões que lhes são
desfavoráveis;
⎯ Desresponsabilização recíproca – nada melhor para um governo que
poder responder: “Isso não é comigo. Pergunte ao regulador”. Em
contrapartida, também não é raro escutar os reguladores a responder
que, face às leis vigentes, nada mais podem fazer. Em suma, a criação
de entidades independentes incrementa o risco de que nenhum dos
poderes (executivo e regulador) se apresente (ou sequer sinta) como
responsável pelas medidas tomadas ou omitidas;

479
Sobre este fenómeno, ver RUI JANUÁRIO/PAULO CAETANO, A Corrupção e o Estado, cit., p. 306. Ver
ainda o § # do presente Manual.
480
O que demonstra que, afinal, a tecnocracia não consegue fazer aquilo que os políticos são acusados de
não querer fazer; isto é, tomar decisões difíceis, que infligem desconforto aos setores económicos e sociais
detentores de poder e que encarnam o “status quo”. Identificando a crescente desconfiança dos cidadãos
face à imparcialidade da administração (tradicional), por esta se encontrar infiltrada por interesses
partidários e pessoais, como fator justificador da transferência de poderes para as entidades reguladoras,
ver VITAL MOREIRA / FERNANDA MAÇÃS, Autoridades Reguladoras Independentes – Estudo e Projecto de
Lei Quadro, cit., pp. 49, 51 e 52.

158
⎯ Hipertrofia de sistemas de controlo (ou de “compliance”) – o abuso
do seu poder regulamentar481 – a par da proliferação de
recomendações, diretivas, orientações e códigos de boas práticas –,
transforma a atividade quotidiana das empresas (em especial, das
PME´s) num verdadeiro inferno na terra. Para fazer face à perda
progressiva de recursos internos – visto que a crise orçamental pública
também as afetou, em muito –, as entidades independentes procuram
transferir para os regulados o dever de manter intrincados e kafkianos
sistemas de auditoria e de controlo interno. Não só os seus custos são
exorbitantes, como desviam o setor produtivo da sua atividade social
primordial: criar bem-estar. E, curiosamente, sem resultados práticos;
⎯ Aumento dos custos económicos para os regulados – não só os
regulados são forçados a suportar o funcionamento operacional destas
entidades (por exemplo, através de contribuições especiais ou taxas de
regulação/supervisão; de taxas imputadas a operações ou serviços
específicos; e de coimas pagas, muitas vezes, em manifesto “desvio de
poder”, por servirem, na verdade, para financiar o funcionamento
daquelas entidades482), como os deveres legais de reporte, de auditoria
e controlo originam uma estrutura corporativa complexíssima, que só
é possível de manejar por empresas de grande dimensão e porte. Tal
contribui, também, para a criação de monopólios e para a limitação de
acesso aos incumbentes (ou “new comers”).

A preponderância das entidades administrativas independentes é, hoje, enorme,


em algumas das mais importantes áreas de atuação económica. Corre-se, aliás, o risco de

481
Sobre a importância (e, por vezes, o abuso) desse poder regulamentar pelas entidades reguladoras, ver
PEDRO GONÇALVES, Direito Administrativo da Regulação, cit., pp. 535-536; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,
Teoria Geral do Direito Administrativo: Temas Nucleares, Almedina, 2012, pp. 104-105.
482
Com efeito, a aplicação de sanção administrativas ou contraordenacionais que tenham por verdadeiro
objetivo arrecadar receita – e não proteger outros bens jurídicos constitucionalmente valiosos – constitui
um exemplo acabado de “desvio de poder para prossecução de outros fins públicos”, que conduz à
invalidade da decisão adotada. Para maior detalhe, ver MICHEL ROUGEVIN-BAVILLE, La sanction en
matiêre administrative dans le droit francais, in «Troisième Colloque des Conseils d´État et des Tribunaux
Administratifs Suprêmes des Pays Membres des Communautés Européennes», Bruxelles, 1972, pp. 291-
292; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, cit., p. 433; MIGUEL PRATA
ROQUE, O Direito Sancionatório Público enquanto bissetriz (imperfeita) entre o Direito Penal e o Direito
Administrativo – A pretexto de alguma jurisprudência constitucional, in «C&R – Revista de Concorrência
e Regulação», 14/15 (2013), pp. 151-152.

159
nelas concentrar, para além do poder executivo, em simultâneo, poderes que – quando
reportados ao Estado – há muito se encontram daquele apartados483:
⎯ Poder legislativo/normativo – com efeito, não se trata apenas do abuso
reiterado do poder regulamentar para disciplinar matérias que
deveriam, antes, encontrar-se sob “reserva de lei” (cfr. artigo 18.º, n.º
3, da Constituição), por implicarem uma restrição de direitos
fundamentais. Com efeito, é bem sabido que estas entidades tendem a
multiplicar regulamentos com eficácia externa, mesmo quando se
limitam a apelidá-los de meras recomendações, orientações, diretivas
ou códigos de boa conduta484. Mas, mais do que isso, em função do
acentuado grau de complexidade das matérias a legislar e da inegável
especialização que os respetivos recursos humanos (em particular, os
especialistas de renome que ali desempenham funções) detêm, tem-se
tornado habitual que os sucessivos governos (e até os parlamentos)
tendam a encomendar os trabalhos preparatórios de legislação mais
técnica, que afeta cada setor a cada uma das respetivas entidades de
regulação e de supervisão. Como tal, estas entidades não só exercem
um robustíssimo poder regulamentar, como intervêm – de modo
decisivo – no próprio procedimento legislativo, assim influenciando e
determinando as próprias soluções normativas a adotar;
⎯ Poder jurisdicional – não basta alegar que as entidades independentes
se limitam a prosseguir a função administrativa, encontrando-se as
suas atuações sujeitas ao controlo dos tribunais administrativos (ou, em
alguns casos, até dos tribunais judiciais485). Em boa verdade, aquelas

483
RAMÓN PARADA, Derecho Administrativo – Parte General, Vol. I, 16ª edição, Marcial Pons, 2007, p.
408; MIGUEL PRATA ROQUE, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, cit., pp. 389-390.
484
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., pp. 104-105.
485
É o que sucede, por exemplo, com o Tribunal da Concorrência, da Regulação e Supervisão, instalado
em Santarém, que foi criado pelo artigo 1.º da Lei n.º 46/2011, de 24 de junho, que introduziu uma nova
alínea g) ao artigo 78.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada
pela Lei n.º 3/99. Porém, só mais tarde, através do Decreto-Lei n.º 67/2012, de 20 de março, é que se
instituiu em concreto aquele tribunal, ainda que o mesmo só tenha entrado em funcionamento efetivo com
a publicação da Portaria n.º 84/2012, de 29 de março. Hoje, encontra-se previsto no artigo 112.º da Lei de
Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. Para maior detalhe, ver
MIGUEL PRATA ROQUE, O Direito Sancionatório Público enquanto bissetriz (imperfeita) entre o Direito
Penal e o Direito Administrativo, cit., pp. 140-141.

160
entidades exercem poderes materialmente jurisdicionais – e, portanto,
parajurisdicionais –, tais como:
(a) Aferição de ilícitos e aplicação de sanções – sem
prejuízo da querela acerca da natureza das sanções
administrativas não penais486, certo é que o poder
sancionatório público que estas entidades exercem as
aproximam da função jurisdicional, na medida em que
as sanções aplicadas não só obedecem,
subsidiariamente, às regras próprias do processo penal,
como a sua intensidade e o seu grau de lesividade são
de tal forma elevados rompem as barreiras entre as
sanções penais e as sanções administrativas;
(b) Adoção de medidas restritivas – mesmo que não sejam
expressamente qualificadas como “sanções”, certo é
que várias medidas adotadas pelas entidades
independentes assumem essa natureza punitiva. Pense-
se, por exemplo, nas decisões de “perda de idoneidade”
de dirigentes de entidades reguladas487 ou de “privação
do exercício de direitos”.
(c) Arbitramento e resolução de litígios – por vezes, a
própria lei confere às entidades independentes poderes
para dirimir controvérsias e para arbitrar soluções de
imposição coerciva, mediante adesão dos sujeitos a tal
mecanismo arbitral.

Esta cumulação de poderes, de distintas naturezas488, é deveras perigosa e


exacerba o risco de abuso de poder e de restrição desproporcionada dos direitos subjetivos
das pessoas sujeitas a regulação e a supervisão. Como tal, há que evitar a proliferação de

486
Para maior desenvolvimento, ver MIGUEL PRATA ROQUE, O Direito Sancionatório Público enquanto
bissetriz (imperfeita) entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, cit., passim e, em especial, pp. 106-
124.
487
MIGUEL PRATA ROQUE, A sanção de perda de idoneidade dos dirigentes de sociedades reguladas, in
«Direito das Sociedades Comerciais», 1 (2019), passim e, em especial, pp. 69-75.
488
Sobre a proibição de “(idem) bis in idem”, demonstrando que existem vários tipos de ilícitos distintos e
outras tantas manifestações de poder sancionatório, ver INÊS FERREIRA LEITE, “Ne (Idem) Bis in Idem” –
Proibição de Dupla Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo
Público, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2016, pp. 342-414.

161
normas infralegais restritivas e a antecipação de poderes punitivos, de tipo jurisdicional,
sem que haja um escrupuloso respeito pelas garantias de defesa. Bem como é exigido que
estas entidades independentes garantam a existência de mecanismos de controlo interno
– isto é, de freios e contrafreios – que garantam o respeito pelos deveres de
imparcialidade, designadamente, através da criação de barreiras entre os departamentos
de cada entidade reguladora (“chinese walls”), bem como da segmentação entre aqueles
que procedem à instrução/investigação e aqueles que, a final, exercem a competência para
decidir489.

489
Para uma defesa desta cisão entre a fase de instrução e a fase de decisão, bem como sobre as possíveis
metodologias a adotar, ver MIGUEL PRATA ROQUE, O Direito Sancionatório Público enquanto bissetriz
(imperfeita) entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, cit.,

162
PARTE II
MODELOS DE GOVERNAÇÃO ADMINISTRATIVA

CAPÍTULO I
PERSPETIVA COMPARADA

§ 93. A influência dos sistemas políticos - Qualquer modelo de governação


administrativa deve ser compreendido à luz do sistema político, social e económico em
que se insere, sendo profundamente influenciado por ele. Em traços largos, os sistemas
políticos autoritários e/ou teocráticos, bem como de partido único (ou de partido
dominante) tendem a gerar modelos de governação centralista e autossuficiente, com
prejuízo da abertura e transparência administrativas, enquanto os sistemas políticos
democráticos e multipartidaristas costumam promover modelos de governação
descentralizada e colaborativa. Por sua vez, em regra, um sistema parlamentarista – em
especial, no caso de parlamentos multipartidários – mais facilmente garante um maior
controlo político da atividade governativa, de tipo executivo, do que um sistema de tipo
presidencialista. Isto porque, num sistema presidencialista, um dos poucos instrumentos
de controlo parlamentar radica no poder de aprovar as leis que condicionam o executivo
e, no limite, de fixar limites à despesa pública, através da lei orçamental. Não se
estranhará, portanto, que os modelos de descentralização imperem nos sistemas
parlamentaristas, enquanto os modelos de desconcentração prevaleçam nos sistemas
presidencialistas.
Este raciocínio deve ser, porém, temperado, em função da forma de Estado
adotado. O grau de descentralização da governação administrativa varia muito, em função
de estarmos perante um Estado unitário, um Estado regionalizado ou um Estado federal.
Como se afigura óbvio, no caso de Estados regionalizados ou de Estados federais, mesmo
que o respetivo sistema político estadual seja presidencialista (como é o caso dos Estados
Unidos da América ou do Brasil), a fragmentação do poder de governação, política e
administrativa, constitui uma caraterística intrínseca dos mesmos.
De qualquer modo,

§ 94. O modelo francês de administração executiva de pendor objetivista

163
§ 95. O modelo alemão de administração executiva de pendor subjetivista

§ 96. O modelo de administração judiciária

§ 97. O modelo norteamericano de presidencialismo fundado em agências independentes

§ 98. O modelo chinês de centralismo estatizante

O estudo dos vários modelos de governação administrativa não pode cingir-se aos
modelos ocidentais, de acordo com uma visão eurocêntrica do mundo. Infelizmente, não
raras vezes, confunde-se modernização administrativa com ocidentalização. E tem-se a
pretensão de que uma administração pública contemporânea deve obedecer a um modelo
ocidental (mais tarde, ocidentalizado), de matriz eurocêntrica, em que imperam padrões
e pressupostos concebidos para sistemas de governo democráticos e pluralistas, que se
regem pelo princípio do Estado de Direito.
Não quero menosprezar a importância que esses princípios constitucionais
estruturantes exercerm (e devem exercer) sobre os modelos de governação administrativa.
Idealmente, os modelos de governação devem respeitar a prossecução legítima – que só
a Democracia empresta – do interesse público, bem como assegurar elevados padrões de
garantia dos direitos e interesses dos particulares. Porém, não deve adotar-se uma
conceção distorcida e sobranceira de modelos administrativos alternativos, cuja história
e consolidação nada devem aos modelos ocidentais490.
Em particular, há que ter presente a influência do confucionismo no modo sino-oriental
de exercício de poder público, pois aquele serviu de ideologia de Estado, durante toda a
dinastia Han (séculos III a.c. a III d.c.), ressurgindo como neoconfuncionismo, durante o
século X. O confucionismo assenta na ideia de “Ren” (ou de humanidade), que pressupõe
uma ética de reciprocidade, expressa na regra de ouro, de acordo com a qual não devemos
fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem. O bom governante é, assim,
aquele que respeita e prossegue a “Ren”, recusando-se a agir desumanamente face aos

490
Cidtar referências à cultura chinesa.

164
seus súbditos, ainda que no exercício de um poder autocrático. É essa benevolência que
legitimaria o seu mandato divino e, consequentemente, o dever de obediência, pelos seus
súbditos.
Aliás, se nos apartarmos de uma conceção eurocêntrica do Direito, pode mesmo
afirmar-se que o conceito de Estado moderno – assente na ideia weberiana de uma
estrutura, estável e institucionalizada, de exercício de poder político, assente numa
burocracia dispersa (mas dominante) por um território –, nasceu na China491, durante a
dinastia Qing (ou manchu) e, em especial, do seu Imperador Qualong, que reinou entre
1735 e 1796 e ficou conhecido como o como o governante-ideal492.

- ideia de exame de acesso para funcionários públicos: mandarins

- Wang Anshi (1021–1086), well-known as one of the greatest statesmen of classical China, with
his 1058 Wan Yan Shu (Memorandum of a Myriad Words; 1935)

- estátua de Confúcio na Praça de Tiannamen: às vezes, está no centro da praça, em frente


ao Novo Museu, outras vezes, dentro de um pátio, escondido, dependendo de cada
Governo

- Conflito entre confucionismo e o comunismo de Estado da velha guarda

- Constituição da República Popular da China (4 de dezembro de 1982)

Artigo 1.º
A República Popular da China é um Estado socialista subordinado à ditadura
democrático-popular da classe operária e assente na aliança dos operários e
camponeses.
O sistema socialista é o sistema básico da República Popular da china. É
proibida a sabotagem do sistema socialista por qualquer organização ou
indivíduo.

491
Citar Fukuyama.
492
Seguindo os ensinamentos confucionistas, o Imperador Qualong era conhecido por governar durante a
manhã, dedicando-se às artes e ao conhecimento, durante a tarde, tendo escrito mais de 40.000 poemas.
Assim, ver ###.

165
Artigo 2.º
Na República Popular da China todo o poder pertence ao povo.
(…)
Artigo 3.º
Os órgãos do Estado da República Popular da China aplicam o princípio do
centralismo democrático.

Artigo 6.º
A base do sistema económico socialista da República Popular da China é a
propriedade pública socialista dos meios de produção, designadamente a
propriedade de todo o povo e a propriedade colectiva do povo trabalhador.
O sistema de propriedade pública socialista substitui o sistema de exploração
do homem pelo homem e aplica o princípio <<de cada um conforme as suas
capacidades, a cada um segundo o seu trabalho>>.

Artigo 12.º
A propriedade pública socialista é sagrada e inviolável.
O Estado protege a propriedade pública socialista. Toda e qualquer forma de
apropriação ou de dano da propriedade o Estado ou das unidades colectivas
por qualquer organização ou indivíduo é proibida.

Artigo 30.º
A divisão administrativa da República Popular da China é a seguinte:
1.º O país divide-se em províncias, regiões autónomas e municipalidades
directamente dependentes do Governo Central;
2.º As províncias e as regiões autónomas dividem-se em prefeituras
autónomas, distritos, distritos autónomos e cidades;
3.º Os distritos e os distritos autónomos dividem-se em cantões, cantões de
nacionalidades e vilas.
As municipalidades directamente dependentes do Governo Central e outras
grandes cidades dividem-se em distritos e bairros.
166
As prefeituras autónomas dividem-se em distritos, distritos autónomos e
cidades.
Todas as regiões autónomas dividem-se em distritos, distritos autónomos e
cidades.
Todas as regiões autónomas, prefeituras autónomas e condados autónomos
são zonas autónomas nacionais.
Artigo 31.º
O Estado pode criar regiões administrativas especiais sempre que necessário.
Os regimes a instituir nas regiões administrativas especiais deverão ser
definidos por lei a decretar pelo Congresso Nacional Popular à luz das
condições específicas existentes.

Conselho de Estado
Artigo 85.º
O Conselho de Estado é o Governo Central Popular da República Popular da
China, o corpo executivo do órgão supremo do poder político e o órgão
supremo da administração pública.
Artigo 89.º
Compete ao Conselho de Estado:
1.º Adoptar medidas administrativas, fazer regulamentos, tomar decisões e dar
instruções em conformidade com a Constituição e com a lei;
2.º Apresentar propostas ao Congresso Nacional Popular ou à sua Comissão
Permanente;
3.º Definir as tarefas e responsabilidades dos Ministros e das Comissões do
Conselho de Estado; superintender nas actividades dos ministérios e das
comissões; e orientar as demais tarefas administrativas de âmbito nacional que
não recaiam na jurisdição dos Ministros ou das comissões;
4.º Superintender na actividade dos órgãos locais da administração pública aos
vários níveis e em todo o país e definir pormenorizadamente a repartição de
poderes e funções entre o Governo Central e os órgãos de administração

167
pública das províncias, regiões autónomas e municipalidades directamente
dependentes do Governo Central;
5.º Elaborar e fazer executar o Plano de desenvolvimento económico e social e
o Orçamento do Estado;
6.º Dirigir e executar a política económica e o desenvolvimento urbano e
rural;
7.º Dirigir e executar as políticas educativa, científica, cultural, de saúde
pública, desportiva e de planeamento familiar;
8.º Dirigir e desenvolver as actividades respeitantes aos negócios públicos, à
segurança pública, à administração judicial, à fiscalização e actividades afins;
9.º Conduzir a política externa e assinar tratados e acordos internacionais;
10.º Dirigir e executar a política de defesa nacional;
11.º Dirigir e desenvolver as actividades respeitantes às diversas
nacionalidades chinesas e proteger os direitos das minorias nacionais e o
direito à autonomia das zonas nacionais autónomas;
12.º Proteger os legítimos direitos e interesses dos cidadãos chineses
residentes no estrangeiro;
13.º Alterar ou anular instruções, directivas e regulamentos inadequados
emanados de ministérios ou comissões;
14.º Alterar ou anular decisões e ordens inadequadas emanadas de órgãos
locais da administração pública de diferentes níveis;
15.º Aprovar a divisão administrativa das províncias, regiões autónomas e
municipalidades directamente dependentes do Governo Central e aprovar a
criação e divisão administrativa de prefeituras autónomas, distritos, distritos
autónomos e cidades;
16º Deliberar sobre a aplicação da lei marcial em determinadas áreas de
províncias, regiões autónomas e municipalidades na dependência directa do
Governo Central;
17º Apreciar e deliberar sobre a composição dos órgãos da administração e,
nos termos da lei, nomear, exonerar e formar os funcionários da

168
administração, proceder à avaliação do seu trabalho, recompensá-los e puni-
los;
18º Exercer as demais funções e competências que lhe sejam cometidas pelo
Congresso Nacional Popular ou pela sua Comissão Permanente.

https://www.jstor.org/stable/3110414?seq=1#page_scan_tab_contents

https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/02185377.2013.793557

§ 99. O modelo islâmico de Estado confessional

For instance, the Nizam al-Mulk (1018-1092) and his Siyāsatnāma (The Book of State – Art of
Governance) (1960) present us with a specific,

- Corão não fixava regras sobre organização política: sultanatos e califados concretizaram
regras de governação

- Proibição da delegalibilidade de competências e responsabilidades por parte do


governante

- Nomeação de não muçulmanos (cristãos) como funcionários públicos: reconhecimento


do mérito no exercício de funções públicas

- Tradição da Antiguidade Clássica: Mesopotâmia e Egipto

- Criação de estruturas burocratizadas


Ex: Uruku (Mesopotâmia – 3.200 a.c.) – criação de estrutura central de governo
que geria a produção agrícola, as colheitas e o fabrico de têxteis

- Império Otomano (Turco) como paradigma – início do séc. XIII (1299 a 1923)

169
1354: expedições para a europa e conquista dos Balcãs – conceção transcontinental do
Império
1453: conquista de Constantinopla e fim do Império Bizantino
1299-1453: ascensão
1453-1633: crescimento e apogeu – até Argélia / Pérsia (Irão) / Golfo Pérsico
Nota: Marrocos continuou independente
1699-1822: estagnação e reforma
1822-1908: declínio
1908-1923: dissolução

- Caraterísticas:

1. Al-Ubudiyyah, an organizing principle based in devotion to Allah


2. Al-Syura, that decisions are logical and informed and made through
consultation with those who are knowledgeable, experienced and skilled
3. Al-Hurriyah, principles of human rights and freedom
4. Al-Musawah, principles of equality and equity
5. Al-Adalah, that thoughts and actions are grounded in justice
(truthfulness, honesty, trustworthiness)

(2) (PDF) The Islamic Public Administration Tradition: Historical, Theoretical and Practical
Dimensions. Available from:
https://www.researchgate.net/publication/318531973_The_Islamic_Public_Administration_Tr
adition_Historical_Theoretical_and_Practical_Dimensions [accessed Nov 30 2018].

CAPÍTULO II
TIPOLOGIA DE MODELOS

§ 100. Modelo libertária – “A mão invisível”

170
O modelo passivo prepondera sempre que a governação seja de tipo (neo)liberal,
repousando na velha tradição do “laissez faire, laissez passer”. O governante passivo
acredita na existência de uma mão invisível493, que dirigirá a economia e as relações
sociais, sendo função do (bom) governante não entorpecer o curso natural das coisas. O
modelo de mão invisível está intimamente associado ao liberalismo económico e à defesa
da abstenção do Estado e dos demais poderes públicos relativamente às relações
económicas e comerciais.
No plano organizativo, o modelo de mão invisível preconiza a redução das pessoas
coletivas públicas, dos órgãos, das infraestruturas e dos serviços públicos a um mínimo
essencial. A governação deveria, assim, cingir-se às funções de soberania (Justiça,
Segurança, Defesa Nacional e Relações Externas). As demais tarefas prosseguidas pelo
Estado deveriam ser privatizadas ou alvo de concessão a particulares. A implementação
de um modelo passivo de governação tem por consequência, invariável, a extinção e fusão
de pessoas coletivas públicas, organismos e serviços públicos, bem como a redução do
número de trabalhadores públicos, através do despedimento, da aposentação antecipada
ou da sua reconversão.
Conforme se demonstrou anteriormente494, o modelo passivo encontrou particular
difusão durante o período de implementação da “New Public Management” – durante a
década de 1980 e o início da década de 1990 –, mas fracassou, por não ter logrado
demonstrar que permitiria alcançar uma diminuição significativa dos custos públicos, ao
contrário do que havia prometido.
Num ambiente de crescente globalização e de urgência em garantir a soberania
tecnológica dos Estados (e dos seus Povos), o modelo passivo também se revela incapaz
de promover o investimento público em investigação científica e tecnologia, de modo a
libertar os poderes públicos do monopólio de conhecimento e de saber-fazer que, sobre
si, exercem algumas empresas multinacionais. Quer para fazer face a falhas de mercado,
quer para assegurar a soberania tecnológica do Estado, pode tornar-se indispensável
promover esse tipo de investimento público495 que, manifestamente, excede o domínio
restrito de intervenção do modelo passivo de governação.

493
Adam Smith.
494
Cfr. § ## do presente Manual.
495
Assim, ver Mariana Mazzucatto.

171
§ 101. Modelo totalitário – “O punho de ferro”

Com a industrialização, a generalização dos meios de comunicação em massa e o


consequente surgimento de partidos de massas, na primeira metade do séc. XX,
emergiram os modelos políticos totalitários496: nazismo, fascismos vários, comunismos
de Estado e, em geral, regimes de partido único. Como é evidente, esse ambiente político
condicionou, sobremaneira, os modelos de governação administrativa então vigentes.
O aparato administrativo confundia-se com a militância do partido (único). Acima do
interesse geral, sobrepunha-se a ideologia da fação dominante. Os funcionários públicos
eram conduzidos segundo uma lógica paramilitar ou militarizada, que excedia em muito
a relação própria da hierarquia administrativa. O dever de obediência ao líder – fosse ele
o líder do partido e/ou da Nação, fosse ele o burocrata de serviço – prevalecia sobre uma
gestão democrática e respeitadora das garantias individuais.

Falar nos regimes autoritários atuais: China – com autoritarismo de partido único; EUA /
Rússia – com autoritarismo pessoalizado em líder providencial

Falar, abstratamente, sobre este modelo.

§ 102. Modelo participativo – “O aceno de mão”

§ 103. Modelo colaborativo – “O aperto de mão”

CAPÍTULO III
A EMERGÊNCIA DA GOVERNAÇÃO GLOBAL

§ 40. A globalização enquanto fenómeno social, económico e cultural


§ 41. Deslocalização, desregulação e “race-to-the-bottom”
§ 42. Os paraísos administrativos: fraude à lei e fuga à regulação administrativa
§ 43. A inadequação dos modelos de governação de âmbito estadual

496
Paulo Otero, Democracia totalitária.

172
§ 44. O défice democrático da governação global
§ 45. A reforma do modelo de governação global
§ 46. Pressupostos de governação global (I): participação
§ 47. Pressupostos de governação global (II): prestação de contas (“accountability”)
§ 48. Pressupostos de governação global (III): impugnabilidade

PARTE III
MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, AUTOMAÇÃO E TECNOLOGIA

CAPÍTULO I
MODALIDADES DE MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

§ 49. Modernização substantiva


§ 50. Modernização orgânica
§ 51. Modernização funcional
§ 52. Modernização procedimental
§ 53. Modernização processual

CAPÍTULO II
INSTRUMENTOS E MODELOS DE REORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

§ 54. Racionalização de recursos humanos


§ 55. Racionalização de infraestruturas e de serviços públicos
§ 56. Racionalização de recursos financeiros
§ 57. Modelos de reorganização administrativa
§ 58. Extinção e fusão de serviços
§ 59. Estruturas de tipo hierarquizado
§ 60. Estruturas de tipo colaborativo
§ 59. Estruturas nucleares
§ 60. Estruturas multidisciplinares

CAPÍTULO III
TECNOLOGIA, AUTOMATIZAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO ELETRÓNICA

173
§ 60. O uso de meios tecnológicos e científicos como instrumento de modernização
§ 61. Tecnocracia e discricionariedade técnica: controlo político e jurisdicional
§ 62. Contratação pública e ponderação de objetivos de modernização tecnológica e
científica
§ 63. Readaptação tecnológica dos serviços públicos
§ 63. Readaptação tecnológica do procedimento
§ 64. Readaptação tecnológica dos métodos de diálogo e da participação dos particulares
§ 65. A automatização e a formação da vontade administrativa
§ 66. A automatização e a comunicação da vontade administrativa
§ 67. A Reforma do CPA/2015 e a administração eletrónica
§ 68. O regime especial de notificações eletrónicas associadas à morada digital única: o
Decreto-Lei n.º 93/2017

174

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