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DIREITO ADMINISTRATIVO

Regente: Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva

ANO LECTIVO 2021-2022

Apontamentos

JOSÉ CARLOS ARAÚJO


1

ÍNDICE

DIREITO ADMINISTRATIVO I

I. Psicopatologia da vida quotidiana do Direito Administrativo


A infância difícil e os modernos traumas do Direito Administrativo 3

II. Os particulares como sujeitos das relações jurídicas administrativas


1. De súbdito a sujeito: o reconhecimento dos direitos subjectivos dos particulares perante a

Administração 5

1.1. Introdução 5

1.2. A transformação dos modelos de Estado 6

1.3. Os direitos subjectivos públicos e a teoria da norma de protecção 9

1.4. Crítica das concepções negacionistas e dualistas das posições subjectivas dos particulares 11

2. Concepções actuais 13

3. Direito Administrativo global: os casos Shrimp-Turtle e Tuna Dolphin I e II 16

III. Caracterização da Administração Pública Portuguesa


1. Administração estadual directa. O Governo 20

2. Administração estadual indirecta 23

3. Administração autónoma 26

DIREITO ADMINISTRATIVO II

I. O Direito Administrativo enquanto Direito Constitucional concretizado


1. Introdução 30

2. A legalidade no quadro do Direito Administrativo 30

2.1. O alargamento material do princípio da legalidade 33

2.2. Consequências da evolução do princípio da legalidade no quadro das fontes do Direito Público,

em particular na Teoria Geral do Direito Administrativo 35

2.3. Problemas de metodologia jurídica 40

3. O poder discricionário 44

3.1. Dimensões do controlo da discricionariedade administrativa 46

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2

3.2. Os princípios da actuação administrativa 48

II. Uma viagem ao centro do Direito Administrativo


1. Introdução 56

2. O primeiro centro: o acto administrativo 57

3. As concepções actocêntricas no direito português e sua evolução 59

4. Dimensões de actuação e procedimento no Direito Administrativo actual 61

III. Em busca do acto administrativo perdido


1. A crise do acto administrativo e a codificação do procedimento em Portugal 63

2. As funções do procedimento 66

3. O direito de audiência no quadro dos direitos fundamentais 71

3.1. Incumprimento formal do direito de audiência 72

3.2. Incumprimento material do direito de audiência 73

4. Características da actuação administrativa: definitividade e executoriedade 74

5. Validade e eficácia 78

5.1. Invalidade 80

5.2. Modalidades da invalidade 81

5.3. O regime da revogação e anulação dos actos administrativos 82

IV. Ver mais além: os regulamentos administrativos e as suas transformações actuais 86

V. O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam: a tendência para a esquizofrenia da contratação


pública 89

Bibliografia 93

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I. PSICOPATOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA


DO DIREITO ADMINISTRATIVO

A infância difícil e os modernos traumas do Direito Administrativo


No mundo actual, as relações jurídicas administrativas assumem uma grande

transversalidade, estendendo-se a todas as realidades sociais. O Direito Administrativo

moderno teve, contudo, uma infância traumática, e ainda hoje é marcado por várias

esquizofrenias ou dualidades (viz. no campo da contratação pública), com resquícios que

se manifestam quotidianamente. As realidades do passado moldaram-no indelevelmente,

pelo que se afigura essencial procurar identificá-las e compreendê-las, num esforço de

psicanálise cultural.1

O Direito e o Contencioso Administrativo autonomizaram-se com a Revolução

Francesa, através da criação de um corpo normativo que veio substituir a regulação

dispersa que existia anteriormente. Proclamavam-se pela primeira vez, num cenário de

liberalismo político, o princípio da separação de poderes, pilar fundamental do Estado

de Direito, e a garantia dos direitos individuais na sua concepção moderna, consagrados

na constituição e nas leis parlamentares.2 Aqui manifestou-se, todavia, o trauma inicial

do Contencioso Administrativo, com a proibição de os tribunais fiscalizarem a actividade

da Administração, o que configurava uma violação grave da separação de poderes e, no

fundo, uma contraditória continuidade entre o Ancien Régime e o Estado liberal. Neste

modelo tradicional, a Administração julgava-se a si própria, sendo o contencioso, antes

de mais, uma forma de introspecção administrativa onde vigorava uma promiscuidade

entre Administração e Justiça.

1
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaio sobre as Acções no Processo
Administrativo (2.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2009, pp. 9 e ss.
2
O princípio da separação de poderes, teorizado por Montesquieu, consiste num reconhecimento de forças
político-sociais diferentes que mutuamente se equilibram, constituindo as bases de um Estado moderado. Para
uma síntese da evolução deste princípio, vide LUÍSA NETO, “O Estado de Direito democrático e as leis de valor
reforçado”, in AAVV., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra, Coimbra
Editora, 2003, pp. 467-474.

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Esta confusão constitui o pecado original do Contencioso Administrativo, cujas

consequências são ainda visíveis nas concepções doutrinárias e legislativas deste ramo do

Direito; um trauma inicial que condicionou nos séculos seguintes a relação dos poderes

públicos com os cidadãos e se manifesta no entendimento da natureza estritamente

executiva da Administração Pública. Em Portugal, por exemplo, só com a Constituição

de 1976 foram os juízes administrativos integrados no poder judicial; antes, integravam-

se na competência do Conselho de Ministros. E não obstante, até à reforma da Justiça

Administrativa de 2005, pode afirmar-se que os tribunais administrativos não eram

verdadeiros tribunais, mas antes órgãos administrativos, como no modelo clássico

nascido da Revolução Francesa.

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II. OS PARTICULARES COMO SUJEITOS


DAS RELAÇÕES JURÍDICAS ADMINISTRATIVAS

1. De súbdito a sujeito: o reconhecimento dos direitos subjectivos dos particulares perante


a Administração

1.1. Introdução
A organização e a evolução dos modelos de exercício da função administrativa reflectem

historicamente a organização da própria sociedade. No quadro do Liberalismo clássico, a

Administração Pública, que não conhecia ainda o desenvolvimento que veio a imprimir-lhe

a realidade contemporânea, exercia uma actividade limitada às funções essenciais do Estado,

garantia da segurança e da liberdade.

Esta limitação funcional determinou um modelo de administração agressiva

(Eingriffsverwaltung), manifestado, desde logo, num entendimento restritivo dos direitos

subjectivos reconhecidos aos administrados; estes direitos subjectivos circunscreviam-se

àqueles que a lei expressamente conferia, sendo que também a lógica anti-intervencionista

do Estado liberal implicava uma relativa redução da produção legislativa. Ao indivíduo era,

então, reconhecido apenas um número limitado de direitos subjectivos, e entendia-se

também que esses direitos se integravam numa ligação indivíduo-Estado caracterizada

matricialmente como uma relação de poder. O modelo agressivo de administração

perdurou até ao final do século XIX e teve no acto de autoridade o seu instrumento

privilegiado de intervenção.

A tensão social e as crises cíclicas do capitalismo, que conhecem um apogeu entre os

finais do século XIX e o final da Primeira Guerra Mundial, vieram pôr novos desafios ao

poder político, chamando o Estado a desempenhar funções até então inéditas de natureza

económica e social.3 Com o estabelecimento do modelo do Estado social, que procura

3
Nesta evolução, que tem início com as políticas sociais de Bismarck, o Estado começa por intervir no domínio
do Direito do Trabalho e na regulação dos primeiros sistemas de segurança social; já numa fase posterior,
verifica-se a regulação centralizada da actividade económica. Hoje, identificamos nas funções do Estado uma
dimensão primordialmente prestadora, servida pela chamada Administração constitutiva. Para um
aprofundamento deste conceito, vide JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional – tomo V (Actividade
Constitucional do Estado), 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pp. 8-39.

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responder ao incremento exponencial das necessidades colectivas, também o âmbito da

actuação administrativa se alargou de forma radical. A consideração de novas necessidades

sociais vastas e transversais vem convocar o Estado a uma acção tendente, e.g., à correcção

de falhas do modelo económico e de disfunções do mercado, que se corporiza na actuação

administrativa.

1.2. A transformação dos modelos de Estado


As funções da Administração deixam, assim, de ser concebidas como meramente executivas

para assumirem uma natureza cada vez mais prestadora e constitutiva, desempenhando a

actual Administração prestadora um conjunto de tarefas que não se esgotam na aplicação da

lei ao caso concreto e na execução do direito, mas que implicam a ideia de uma capacidade

autónoma de concretização de objetivos estaduais amplos.4

A natureza da Administração Pública depende largamente dos modelos de Estado,

que são moldados pelas constituições. É, com efeito, na constituição que se evidencia se um

determinado Estado tem uma natureza mais liberal, onde a Administração Pública cumpre

sobretudo uma função associada à segurança, ou mais social, com uma intervenção

administrativa mais pronunciada nas realidades económicas e sociais. A partir da década de

70, começa a evidenciar-se uma progressiva crise do modelo do Estado-providência,

desencadeada por alterações de carácter político, económico e social, congregando factores

como o peso crescente da intervenção económica do Estado na sociedade, que implicou um

proporcional crescimento da burocracia e a conversão da Administração num aparelho

pesado e moroso. Daqui resultou um aumento desproporcional das contribuições dos

indivíduos para o Estado, acompanhado por uma desconfiança e insatisfação dos agentes

privados, com a crescente falta de legitimação dos poderes públicos e mesmo o alheamento

dos cidadãos em relação aos fenómenos políticos, sobretudo com a falência do modelo

comunista após a queda do Muro de Berlim.

4
Sobre esta nova dimensão constitutiva da Administração Pública, vide ROGÉRIO ERHARDT SOARES, “Princípio
da legalidade e administração constitutiva”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra LVII (1981), pp. 176-179.

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Consequentemente, verifica-se uma transformação do Estado-providência num

modelo que podemos designar como de Estado pós-social, em que, por um lado, se

reequaciona o problema dos limites ao crescimento do Estado (e mesmo do seu papel na

sociedade) e, por outro, se confere uma importância inédita à participação dos cidadãos na

formação das decisões públicas. Acompanhando esta transformação, e em contradição

aparente, perante um alargamento do núcleo dos direitos fundamentais, a Administração

Pública deixa de ser integralmente responsável pela satisfação das necessidades colectivas,

adaptando-se também o Direito Administrativo para corresponder a este novo paradigma.

Cabe sempre à Administração a tarefa de satisfazer necessidades colectivas assumidas

como tarefa fundamental do Estado, que a tanto destina recursos humanos e materiais. Neste

sentido, o Direito Administrativo é o ramo do Direito que se encarrega de regular o exercício

dos poderes estaduais. A Administração Pública pode conceber-se em sentido orgânico (ou

subjectivo) e material (ou objectivo). Em sentido orgânico, designa “o sistema de órgãos,

serviços e agentes do Estado, bem como as demais pessoas colectivas públicas que asseguram

em nome da colectividade a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de

segurança, cultura e bem-estar.”5 Em sentido material, designa “a actividade típica dos

serviços públicos e agentes administrativos desenvolvida no interesse geral da colectividade,

com vista à satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e

bem-estar, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as formas mais

convenientes.”6 Em suma, trata-se da actividade de administrar.7

Recordando a definição de Direito Administrativo proposta pelo Prof. Marcello

Caetano, este é “o sistema de normas jurídicas que regulam a organização e o processo

próprio de agir da Administração Pública e disciplinam as relações pelas quais ela prossiga

5
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo (4.ª ed.), vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 64
e ss.
6
IDEM, ibidem.
7
São muito numerosas as definições de Administração Pública propostas pelas doutrina. Salientamos ainda a
acepção tradicional, que entende a Administração em sentido estrito como o conjunto das pessoas colectivas
de direito público, reguladas pelo Direito Administrativo (formulação presente no art. 2.º, n.º 4, CPA), e a
dimensão privada, salientada pelas perspectivas mais recentes, que nela inclui as entidades administrativas
privadas, reguladas na sua estrutura pelo direito privado.

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8

interesses colectivos, podendo usar de iniciativa e do privilégio de execução prévia”.8 Esta

concepção, embora hoje desactualizada, ilustra a importância do Direito como regulação do

modo de exercício da função administrativa num determinado Estado e momento.

Na base desta definição encontramos um problema fundamental de caracterização:

trata-se da visão da Administração Pública como um poder. A administração agressiva

tradicional actua através de poderes de autoridade, o que correspondente a uma fase inicial

da organização estadual. Apesar de ainda seguida por alguns autores contemporâneos, esta é

uma visão largamente minoritária na doutrina, não encontrando correspondência na

realidade actual. A administração contemporânea, pelo contrário, assenta numa lógica de

cooperação e de interpenetração de regras de direito público e privado.

O Direito Administrativo é naturalmente direito público. O Prof. Marcello Caetano

distinguia o direito público e o direito privado através de uma ideia de finalidade, que deve

ser sempre pública ou privada. O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa retomou esta distinção para

explicar todo o Direito Administrativo: este consiste, na sua visão, num conjunto de

equações cuja finalidade é a satisfação primária do interesse público, cuja definição cabe ao

poder político, exercido pelos órgãos superiores do Estado.9 Observamos à partida como a

utilização do termo “primária” limita esta definição: é iniludível que existem hoje outras

actividades administrativas que prosseguem fins de interesses público, embora no âmbito

privado.

Embora a ideia de finalidade seja preferível à ideia inicial de autoridade, na

perspectiva do Prof. Vasco Pereira da Silva, o critério mais adequado para caracterizar o

Direito Administrativo é o critério da função, acompanhando os autores italianos actuais

que o concebem como “o direito da função”. A função administrativa consiste na actividade

de concretização e execução das leis e na satisfação permanente das necessidades colectivas

legalmente definidas, mediante actos, contratos e actuações materiais dimanados de órgãos

8
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I (10.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2016, p. 42.
9
Neste âmbito, podemos distinguir a dimensão criadora do poder político face à dimensão primordialmente
executiva da Administração Pública.

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9

e agentes dotados de iniciativa e parcialidade na prossecução do interesse público.10 Vemos,

assim, como opera a satisfação permanente de necessidades sociais através de meios de

natureza diferente, designadamente contratando com os particulares de acordo com regras

de direito privado.

1.3. Os direitos subjectivos públicos e a teoria da norma de protecção


A noção de direitos subjetivos públicos, construída por Ottmar Bühler,11 decorre do

exercício de um poder público de onde se considera resultarem benefícios para os

particulares. Podemos defini-los como a possibilidade conferida ao indivíduo de utilizar um

poder estadual em seu próprio benefício, o que mostra como esta concepção não deixa de

ser a de um poder próprio do Estado. Bühler define três pressupostos destes direitos: em

primeiro lugar, a existência de uma norma vinculativa; em segundo, que esta norma proteja

interesses individuais; por fim, uma efectiva tutela jurisdicional da posição individual.12

Esta construção é extremamente importante, pois permite uma distinção clara entre

os direitos subjectivos e o direito objectivo, que existe independentemente dos particulares.

Todavia, e ainda que tenha implicado uma importante transformação na dogmática do

Direito Administrativo, surgia ainda no contexto de um modelo liberal de Estado. Foi em

face do poder estadual global que surgiram os direitos dos súbditos, que lhes são concedidos,

atribuídos ou reconhecidos. Indivíduo e Estado não se encontram em posições equivalentes

que lhes permitam estabelecer verdadeiras relações jurídicas: as autoridades administrativas,

gozando de um estatuto privilegiado, exercem o poder estadual, enquanto o súbdito, numa

posição subalterna e funcional, é mais um objecto deste poder. De acordo com esta

concepção, os particulares não possuem, na esfera administrativa, senão os direitos que a lei

expressamente lhes reconheça.

10
cf. AFONSO R. QUEIRÓ, “A função administrativa”, Revista de Direito e Estudos Sociais XXIV (1977), pp. 1-31.
11
Apresentada em Die subjektiven öffentlichen Rechte und ihr Schutz in der deutschen Verwaltungsrechtsprechung
(Lípsia, 1913).
12
cf. VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 221 e
ss.

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A consideração da existência de direitos subjectivos públicos, pressuposto lógico da

existência de relações jurídicas com os órgãos do poder público, constitui, de certo modo,

uma novidade e uma transformação conceptual. Os particulares não são já objectos de direito

(aliás, objectos do poder público), mas sujeitos de direito, titulares de posições de vantagem

susceptíveis de oposição à Administração. Não é difícil observar como estas realidades estão

intrinsecamente ligadas. Por um lado, a afirmação da natureza dos particulares como sujeitos

de direitos é uma condição da existência de direitos subjectivos, mas, por outro, é uma

consequência dessa mesma atribuição: o mesmo é dizer que é, a um tempo, fundamento e

resultado da admissibilidade de relações jurídicas entre os particulares e o Estado. Este

reconhecimento da titularidade de direitos subjectivos perante as autoridades públicas

integra, naturalmente, quer posições de carácter activo, quer deveres, sujeições e outras

realidades correspondentes ao lado passivo da situação jurídica.

Hoje deve considerar-se, pelo contrário, que, numa extensão da ideia de direitos

subjectivos públicos, todos os direitos existentes no quadro privado existem também no

Direito Administrativo. Os indivíduos passaram a ter direitos e a poder estabelecer relações

jurídicas. A Constituição da República refere estas relações, concebendo particular e

Administração numa posição de igualdade estrutural, geradora de diferentes direitos e

deveres. O Prof. Vasco Pereira da Silva acentua esta lógica de igualdade entre os particulares

e a Administração: o interesse público não tem uma natureza incompatível com os direitos

dos particulares; pelo contrário, não se pode admitir uma realização unilateral do interesse

público que ponha em causa os direitos dos particulares e vice-versa, na medida em que os

vínculos agregadores da comunidade obrigam a esta conjugação.

Na mitigação deste desequilíbrio histórico, há que começar por estudar os

particulares como sujeitos de direito integrando uma relação jurídica com direitos

equivalentes. Por exemplo, no âmbito dos direitos subjectivos, integrando os direitos

absolutos e relativos, direitos de crédito ou potestativos, tanto os particulares quanto a

Administração podem, em certas circunstâncias, ser titulares de um direito potestativo

(embora o número de poderes administrativos que correspondem a direitos potestativos seja

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naturalmente maior). Há também que rejeitar definitivamente a ideia liberal de que a

Administração Pública tinha privilégios (chamados privilégios exorbitantes do direito comum)

que era inadmissível que os particulares tivessem em relação à Administração. Na nova

ordem jurídica, os poderes administrativos existem obrigatoriamente em equilíbrio com os

direitos protegidos dos particulares.13

1.4. Crítica das concepções negacionistas e dualistas das posições subjectivas dos particulares
Na ordem jurídica portuguesa, a protecção dos direitos dos particulares resulta não apenas

do texto original da Constituição da República, mas também, e sobretudo, das revisões

constitucionais de 1982 e 1997. A concepção constitucional das relações jurídicas

administrativas corresponde em regra ao texto do CPA. O art. 1.º CRP, tratando a

organização do poder como o escopo primordial das disposições constitucionais, refere que

na base da organização política está justamente o princípio da dignidade da pessoa humana.

Temos assim o reconhecimento de uma dimensão personalista dos particulares – o que não

pode deixar de ter repercussões no quadro do seu funcionamento –, e o norteamento do

interesse público a partir do respeito pelos interesses individuais, cuja consideração se

assume, assim, como essencial no âmbito de uma moderna organização administrativa.

No plano do funcionamento dos tribunais, em especial dos administrativos e fiscais,

o art. 212.º, n.º 3, CRP comete-lhes o julgamento das acções e recursos contenciosos que

tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e

fiscais. A Constituição fixa, assim, uma tutela jurisdicional efectiva dos particulares como

um direito fundamental – uma realidade que corresponde ao moderno Estado pós-social,

mas que contraria a realidade histórica do Direito Administrativo.

Podemos dividir as teorias comummente adoptadas pela Doutrina em duas famílias:

as teorias negacionistas, que acompanham a evolução histórica e rejeitam a possibilidade da

titularidade de direitos dos particulares face à Administração; e as teorias que consagram

13
Neste âmbito, saliente-se o novo papel dos tribunais administrativos, que no julgamento de litígios passaram
a conceber e a utilizar o Direito Administrativo não já como um direito especial e restrito à Administração,
mas também como um direito que pode ser utilizado pelos particulares em face dos poderes públicos.

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uma concepção dos particulares como titulares de posições subjectivas susceptíveis de serem

exercidas contra a Administração. Neste âmbito, existem as categorias trinitárias (que

distinguem direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos) e unitárias (que

admitem um único direito subjectivo, seja ele reactivo, seja o reconhecimento de um dever

de agir da Administração).

As doutrinas a que podemos chamar negacionistas acompanham uma realidade

comum às família francesa do Direito Administrativo, não reconhecendo quaisquer posições

de vantagem dos particulares face à Administração. Laferrière, Maurice Hauriou e os autores

entre ambos da escola francesa do Contencioso Administrativo consideram que os

particulares vão a tribunal apenas para colaborar com a Justiça e com a Administração, não

sendo partes em qualquer sentido processual. Esta parece, hoje em dia pelo menos, uma

concepção absurda: pois ninguém vai a tribunal se não for afectado num direito, i.e., se não

for ou vier a ser prejudicado pela Administração. A lógica tradicional de Laferrière entende

o Direito do Contencioso Administrativo como totalmente objectivo, sendo os titulares

beneficiados de facto, mas não lhes sendo possível exercer posições jurídicas de vantagem.

Por outras palavras, os particulares ganham alguma coisa com a actuação administrativa, mas

não têm qualquer direito a essa actuação.

Já na construção germânica, que remonta a Otto Mayer, aquilo que aparentemente

se assemelha a uma posição dos particulares funciona apenas como um reflexo do Direito.

Para esta escola, é inadmissível que os particulares tenham um poder de vontade em relação

à Administração Pública, sendo inconcebível ainda a existência de qualquer direito a exigir

o cumprimento da lei. Os indivíduos são, todavia, reflexamente beneficiados pelo

cumprimento da lei pelos poderes públicos: entende-se, assim, que em proveito dos

particulares opera apenas, na sua esfera jurídica, um reflexo do direito objectivo.

Ainda no quadro destas construções objectivistas (embora afirmando-se

paradoxalmente como subjectivistas) estão os trabalhos de Roger Bonnard e Marcel Laligant,

que exerceram grande influência em Portugal através da mediação do Prof. Marcello

Caetano. Entende-se que os particulares são titulares de um direito objectivo e abstracto –

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um direito à legalidade. Trata-se, porém, apenas de um direito a que o Direito e a ordem

funcionem adequadamente.14 Em nome deste direito geral e abstracto à legalidade, os

indivíduos poderiam, em determinados casos, ir a tribunal alegar a respectiva violação.

Nega-se, como vimos, a ideia de direito subjectivo – mais uma variante da construção

objectivista de Otto Mayer –, ainda que aparentemente no quadro da sua afirmação. Todavia,

aumenta-se o escopo da protecção, estabelecendo um direito à legalidade insusceptível de

apropriação.

2. Concepções actuais
As construções acima expostas são hoje inaplicáveis, na medida em que são incompatíveis

com quase todas as constituições; não é possível replicá-las em Portugal nem nos restantes

Estados europeus, que actualmente se pautam pelo princípio da prossecução do interesse

público no respeito pelos direitos dos particulares e consagram a tutela jurisdicional efectiva

como um direito fundamental.

Do Direito Administrativo italiano proveio uma lógica tripartida que considera a

existência de direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos. Esta trindade foi

amplamente adoptada em Portugal, por autores como os Profs. Freitas do Amaral, Rui

Machete ou Sérvulo Correia, e mesmo pelo Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que defende uma

distinção binária (direitos subjectivos/interesses legítimos) de base semelhante.

Anteriormente dominante, é uma concepção que tende hoje a ceder em face da evolução do

entendimento da posição jurídica dos particulares relativamente à Administração.

Segundo esta tripartição, existem diferentes modalidades de direitos, caracterizados

por diferentes graus relativos de protecção: direitos subjectivos (integralmente protegidos),

interesses legítimos (ou legalmente protegidos) e interesses difusos, ambos com protecções

proporcionalmente menores. Em Itália há mesmo tribunais administrativos cuja

competência assenta na distinção entre interesses legítimos (administrativos) e subjectivos

14
vide MARCEL LALIGANT, “La notion d’intérêt pour agir et le juge administratif”, Revue du Droit Public et de la
Science Politique en France et à l’Étranger LXXXVII (1971), pp. 43-82.

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(tribunais judiciais). Esta divisão encontra uma justificação histórica, mas nunca vigorou em

Portugal, onde os tribunais administrativos decidem tanto em matéria de direitos como em

matéria de interesses.15

Em certos casos, o legislador outorga directamente uma posição de vantagem, sendo

indubitável a criação de um direito subjectivo (e.g., o direito à reforma apos um determinado

número de anos de trabalho); mas pode apenas estabelecer um dever da Administração,

i.e., uma norma dirigida ao funcionamento da Administração, não aos direitos dos

particulares, que só protege indirectamente. Esta é uma construção de Guido Zanobini,

utilizada pelo Prof. Freitas do Amaral.16 Apesar de esta distinção se ter generalizado, em

Portugal o legislador nunca distingue direitos subjectivos de interesses legítimos, sendo

ambos tratados por igual e concebidos, do ponto de vista legislativo, como iguais.17

Porquê, então, distinguir estes tipos de direitos? Os Profs. Freitas do Amaral e

Marcelo Rebelo de Sousa justificam a distinção com o “amor à verdade”: de um lado, há uma

protecção directa (direitos subjectivos); doutro, uma protecção indirecta (a norma dirige-se

à Administração). Esta visão é criticada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva: como pode uma

norma pensada exclusivamente para a Administração proteger os particulares, ainda que de

forma indirecta? Estamos sempre perante protecções jurídicas, quer num caso, quer noutro

– pelo que a distinção carece de sentido: é a mesma coisa dizer que A. tem direito a uma coisa

e que B. tem o dever de fazer a mesma coisa em benefício de A.; este dever da Administração

legalmente estabelecido existe no interesse dos particulares, e tal como no Direito Civil, um

dever da Administração encontra um correlativo nos direitos dos particulares. Assim, a

única distinção entre direito subjectivo e interesse legítimo é o modo como uma norma

atribui posições de vantagem.

15
Desde os finais do séc. XX (1998), a legislação do contencioso administrativo e a própria lógica constitucional
criaram em Itália áreas de giurisdizione esclusiva dos tribunais administrativos (viz., Saúde, Urbanismo,
Ambiente, realidades sociais).
16
Da segunda situação emerge, não obstante, uma protecção dos particulares.
17
Deve rejeitar-se, por conseguinte, a tese de que vigoram regimes jurídicos distintos, proposta pelo Prof.
Marcelo Rebelo de Sousa.

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15

Ainda segundo esta teoria, os interesses difusos seriam, de certo modo, “direitos de

terceira ordem”. Em primeiro lugar, não são direitos criados pelo legislador ordinário, mas

resultam de previsões constitucionais. Pergunta-se, contudo: não são também criados pelo

legislador? Por exemplo, ao estabelecer direitos fundamentais, o legislador constituinte

chamou-lhes, não obstante, direitos. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, esta distinção

não tem arrimo no ordenamento actual, correspondendo antes à lógica do séc. XIX de um

Direito Administrativo imune à constituição, sintetizada por Otto Mayer: “Verfassungsrecht

vergeht, Verwaltungsrecht besteht.”18

Segundo o Prof. Freitas do Amaral, numa posição mais tarde retomada pela Prof.

Carla Amado Gomes, direitos como o direito ao ambiente ou à qualidade de vida

correspondem a realidades de protecção objectiva de um bem, que não é apropriável. Esta

característica inapropriável é evidente (no caso português, há princípios constitucionais que

transformaram os valores ambientais em valores jurídicos), mas a sua correspondência a

uma tutela objectiva de um bem não significa que não possa existir um aproveitamento

subjectivo desse mesmo bem. Encontramos uma permissão normativa de aproveitamento

de um bem no art. 66.º CRP, que estabelece o direito fundamental ao ambiente. Um bem,

pela sua natureza pública, não deixa de poder ser aproveitável individualmente: e.g.,

ninguém pode ser impedido de ir a uma praia: mas pode haver uma utilização concessionada

de espaços na praia para a colocação e exploração de sombras; os concessionários de postos

de gasolina numa auto-estrada exploram espaços comerciais inseridos num espaço público,

tal como uma esplanada comercial colocada na via pública. Observamos aqui sempre uma

lógica de conciliação do interesse público com o interesse privado.

Os argumentos de bipartição ou tripartição de direitos e interesses pecam, assim, por

uma confusão entre uma protecção objectiva conferida pela ordem jurídica e os interesses

subjectivos. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, não há qualquer justificação teórica,

nem tão-pouco razões jurídicas, para a distinção – atendendo à inexistência de regimes

18
OTTO MAYER, Deutsches Verwaltungsrecht, vol. I (6.ª ed.), Berlim, Duncker & Humblot, 1969, p. vi.

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jurídicos diferentes –, sendo tão-somente reflexos de um trauma do Direito Administrativo

inicial, ainda presente.

Consideremos ainda uma perspectiva ligeiramente diferente, a dos direitos

reactivos, teorizados por Eduardo García de Enterría. Esta construção concebe o poder de

ir a tribunal (i.e., o direito de reagir contenciosamente) como o único direito que está em

causa na perspectiva administrativa. O Prof. Vasco Pereira da Silva rejeita também esta visão:

ninguém põe em causa que o direito de ir a juízo seja um direito subjectivo, mas ele existe

para a tutela de outros direitos, o que não significa que os outros direitos de base não

existam.19

3. Direito Administrativo global: os casos Shrimp-Turtle e Tuna Dolphin I e II


O Direito Administrativo “sem fronteiras”, na designação do Prof. Vasco Pereira da Silva,

equivale a uma conformação com normas internacionais directamente aplicáveis às relações

jurídicas administrativas, num espírito de abertura material do princípio da legalidade, desde

logo o due process of law. Esta realidade contemporânea gera não apenas uma imediata

aplicação daquelas normas, mas também, em casos de litígio, o surgimento de tribunais

especializados ou tribunais ad hoc.20

Há duas sentenças na base da fundamentação teórica desta realidade de diluição de

fronteiras administrativas, ambas no domínio das pescas: o caso das “Gambas e Tartarugas”

(Shrimp-Turtle, de 1994) e o caso do “Atum azul” (Tuna-Dolphin I e II, de 1972 e 1992). Para

que estes casos se pudessem ter verificado, alterou-se, nas últimas cinco décadas, uma série

de pressupostos jurídico-administrativos. O primeiro destes, do ponto de vista do Direito

Internacional Público, é a ideia de que apenas os Estados são sujeitos de direito: hoje, pelo

contrário, os Estados são sujeitos coabitantes com outros sujeitos, por vezes designados

19
Alguns autores, como os Profs. Mário Aroso de Almeida e Rui Medeiros, desenvolvem ainda hoje uma
doutrina assente na noção de direito reactivo.
20
A designação “Direito Administrativo sem fronteiras” pretende agregar um conjunto de denominações
comummente utilizadas neste domínio (viz. Direito Administrativo transnacional, internacional ou direito
internacional administrativo).

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17

actores pela doutrina jus-internacionalista,21 entendendo-se a ordem internacional como

constituída por uma pluralidade de indivíduos e entidades, entre as quais as organizações

não-governamentais.22

Entende-se, assim, que as normas de Direito Internacional não são já aplicáveis

apenas aos Estados, que os próprios Estados respondem também perante outras entidades

e que essas normas são directamente aplicáveis, prescindindo de intermediação estatal. Por

outras palavras, o exercício da função administrativa transcende já as fronteiras do

Estado.23 Este entendimento surgiu em primeiro lugar no quadro dos direitos humanos,

que gozam de oponibilidade contra os próprios Estados, mas também em determinados

domínios económicos, no quadro de convenções internacionais, as normas jurídicas

podem ser directa e imediatamente aplicáveis e gerar, assim, relações administrativas em

diversos domínios. Naturalmente, desta aplicação resultam também litígios, a que não é

alheia a discussão sobre a prevalência das normas internacionais sobre as normas internas,

designadamente sobre o Direito Constitucional. No quadro administrativo, contudo, esta

prevalência é real.

O caso Shrimp-Turtle, de 1994, opôs os EUA a um conjunto de países asiáticos, no

quadro de um boicote norte-americano à importação de gambas que obedeceu ao

argumento de que os países exportadores não protegiam as tartarugas. Esta actuação

unilateral dos Estados Unidos violava, contudo, as regras internacionais do GATT (General

Agreement on Tariffs and Trade), um tratado em matéria comercial de 1947. Para a resolução

do litígio foi estabelecido um tribunal arbitral, composto por juízes norte-americanos, que

vieram a considerar ilegal a decisão administrativa do seu governo: em primeiro lugar,

porque fora tomada abruptamente e sem consideração pelo due process of law (na medida

em que não tinha havido audiência prévia dos exportadores, que eram os principais

21
Cf. MARIA LUÍSA DUARTE, “O Estado e os outros: quem é quem no Direito Internacional”, in M. L. Duarte,
R. Lanceiro e F. Abreu Duarte (edd.), Ordem Jurídica Global do século XXI: Sujeitos e Actores no Palco Internacional,
Lisboa, AAFDL, 2020, pp. 19-77.
22
e.g., a grande maioria das presenças na actual Assembleia Geral da ONU é de entidades não estaduais.
23
SABINO CASSESE, “Gamberetti, tartarughe e procedure. Standard globali per i Diritti Amministrativi
nazionali, in S. Cassese (ed.), Oltre lo Stato, Roma, Laterza, 2006, p. 73.

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18

afectados pela decisão); em segundo, refutando a argumentação de que não era possível

chamar a juízo os pescadores asiáticos (e ainda na medida em que pelo menos os cidadãos

e empresas norte-americanas com interesse na relação comercial deveriam ter sido

ouvidos). Além disso, entendeu o tribunal que as normas existentes para a protecção de

tartarugas não podiam ser utilizadas para o embargo à importação de gambas, uma vez que

não havia o mesmo fim.24 A decisão administrativa norte-americana foi, assim, entendida

pelo tribunal como “arbitrary and capriccious” e materialmente ilegal, pela violação do

princípio da proporcionalidade.

Este caso foi precedido pelos Tuna-Dolphin I e II, de 1972 e 1992, que envolveram

o Japão, a Austrália, os EUA e o Canadá. Na sequência do acordo das Nações Unidas sobre

o Direito do Mar, criou-se uma comissão mista, com o nome Expanded Commission,

composta por entidades administrativas dos Estados signatários e por pescadores, que

estavam em igualdade de posições. Entre as funções da comissão está a determinação das

quotas de pesca de todos os países que integram o tratado; já em caso de violação das

normas, a comissão converte-se em tribunal para julgar litígios. Um conflito nesta matéria

entre vários Estados seria, no quadro constitucional, irresolúvel. A área comercial – como,

de resto, os direitos humanos – constitui, todavia, um caso de eficácia do Direito

Internacional Público, em que a jurisdição de um Direito Administrativo Global,

funcionando em rede, vincula todos os sujeitos das relações administrativas.25

Uma realidade paralela deve ainda ser tida em conta: trata-se do Direito

Comparado,26 que, anteriormente apenas concebido na esfera privatística, desempenha

hoje um papel imprescindível na composição da realidade administrativa, tendo deixado

24
Trata-se de uma situação de desvio de poder (ou desvio de fim), que se verifica na discrepância entre o fim
legalmente estabelecido e o fim efectivamente protegido.
25
Estas relações são, hoje, particularmente visíveis no plano da protecção ambiental, em que a jurisdição
pública internacional assume um carácter largamente administrativo.
26
Se recuarmos aos primórdios do Direito Administrativo, vemos, por exemplo, como Otto Mayer, antes do
Deutsches Verwaltungsrecht (Lípsia, 1895), escreveu, durante duas décadas, uma Theorie des Französischen
Verwaltungsrecht (Estrasburgo, Trübner, 1886), reconhecendo largamente, também no prefácio ao manual
alemão, a relevância das perspectivas comparatistas. O próprio Laferrière foi muito influenciado pelo Direito
Comparado, como também a generalidade dos autores franceses que precederam Hauriou.

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19

de ser um recurso da doutrina ou uma fonte de inspiração legislativa “para passar a ser

simultaneamente um instrumento operativo nas tarefas de interpretação e de aplicação das

normas jurídicas e uma fonte autónoma de Direito Administrativo.”27 A perspectiva

clássica de Maurice Hauriou,28 que rejeitava os contributos do Direito Administrativo

Comparado atendendo à superioridade do sistema francês, encontra-se actualmente

ultrapassada; as noções de pessoa colectiva pública, acto administrativo ou contrato

administrativo, sendo embora noções de matriz francesa, contribuíram para a construção

de uma realidade administrativa europeia comum,29 do mesmo modo que a regulação

eurocomunitária estabeleceu um conjunto de directivas que contribuiu para a consolidação

de uma noção de contrato público e que designadamente em Portugal conduziu ao

estabelecimento de um regime comum para a realidade da contratação pública.

O Direito Comparado acabou, assim, por se converter em fonte do Direito,

contribuindo para o esclarecimento de casos dúbios de aplicabilidade das normas. Um

exemplo eloquente deste recurso comparatístico é o reconhecimento da autoridade do due

process of law. Esta realidade administrativa supra-estadual recebe hoje ainda os contributos

do Direito da União Europeia – na medida em que existe um direito comum, instituído no

quadro de tratados –, com a consagração do princípio da primazia (ou do primado) e com

a formação de um direito constitucional europeu em sentido material. Consequentemente,

assistimos a uma erosão da dimensão estadual do Direito Administrativo, característica

dos primórdios deste ramo do Direito, com uma nova realidade internacional de realização

da função administrativa e o conhecimento e utilização comparada de sistemas jurídicos

estrangeiros..

27
VASCO PEREIRA DA SILVA, “O impacto do Direito Administrativo sem fronteiras no Direito Administrativo
português”, in Direito Constitucional e Direito Administrativo sem Fronteiras, Coimbra, Almedina, 2019, p. 42.
28
M. HAURIOU, Précis de Droit Administratif et de Droit Public (12.ª ed.), Paris, Sirey, 1933.
29
Veja-se também, em Portugal, o contributo da perspectiva comparatística para a evolução da concepção
actual de contrato administrativo e a discussão levada a cabo, neste âmbito, pelos Profs. Maria João Estorninho,
Diogo Freitas do Amaral e João Caupers.

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20

III. Caracterização da Administração Pública Portuguesa

1. Administração estadual directa. O Governo

O Governo é simultaneamente um órgão político e o órgão máximo da Administração

Pública. Esta obedece a uma estrutura hierárquica – constituída por vínculos jurídicos de

onde resultam relações de supra e infraordenação entre órgãos ou entre órgãos e serviços –,

exercendo o Governo poderes de direcção sobre a administração directa do Estado, civil e

militar, poderes de superintendência e tutela sobre a administração indirecta e poderes de

tutela sobre a administração autónoma (art. 199.º, al. d), CRP).

Na estrutura piramidal da hierarquia administrativa, o poder de direcção consiste

na faculdade de um superior hierárquico emitir ordens, instruções e circulares dirigidas aos

seus subalternos em matéria de serviço. As ordens são comandos individuais e concretos,

impondo a observância de uma determinada conduta; as instruções são comandos gerais e

abstractos que impõem a adopção de uma determinada conduta em face de alguma situação

futura. Há que ter em conta ainda o poder de supervisão, que consiste na faculdade de o

superior hierárquico, por iniciativa própria ou na sequência da interposição de recurso

hierárquico, anular, revogar, suspender ou modificar os actos administrativos praticados por

um seu subalterno, e o poder disciplinar, de natureza punitiva. A estes três poderes

principais acresce um poder instrumental, o poder de inspecção (a faculdade de fiscalização

da actividade dos subalternos). Os subalternos estão adstritos a um dever de obediência às

ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, desde que estas ordens

respeitem a matérias de serviço e sejam dadas sob a forma legal.

O poder de superintendência consiste na faculdade de o Estado fixar os objectivos

da actuação das pessoas colectivas públicas que se encontram na sua dependência e

estabelece-se sempre em relação a entidades instrumentais, cuja função é prosseguir

atribuições originárias de outra entidade. Trata-se de um poder de orientação que opera

através da emissão de directivas (linhas de rumo com orientações genéricas obrigatórias) ou

recomendações (orientações não obrigatórias) sobre o modo de realização das atribuições da

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21

entidade dependente. Distingue-se assim do poder de direcção, que permite dar ordens ou

instruções aos subordinados hierárquicos; distingue-se também da tutela, que é um poder de

controlo da regularidade da actuação.

A tutela é o conjunto de poderes, ordenados à prossecução do interesse público, que

permitem a uma pessoa colectiva pública intervir na gestão de outra pessoa colectiva, nos

domínios da legalidade ou do mérito da actuação administrativa. A tutela distingue-se,

quanto aos fins, em tutela de legalidade e de mérito; quanto ao conteúdo, compreende cinco

modalidades: a tutela integrativa (o poder de autorizar ou aprovar actos do tutelado),

inspectiva (o poder de fiscalizar a orgânica e a actuação do tutelado), sancionatória (o poder

de aplicar sanções por irregularidades), revogatória e substitutiva (o poder de,

respectivamente, revogar actos praticados pelo tutelado e suprir as suas omissões).

O Governo reveste uma dimensão de órgão colegial (o Conselho de Ministros) e

também de órgão individual (os vários ministros e secretários de Estado). A organização

em ministérios corresponde a uma divisão da acção governativa em assuntos ou matérias

que não prejudica, contudo, o carácter unitário do Governo.30 Esta estrutura orgânica,

prevista no art. 183.º da Constituição, era tradicionalmente fixada pela Lei Orgânica do

Governo: esta era, todavia, uma lei em sentido impróprio, pois revestia a forma de decreto-

lei. A questão foi rectificada recentemente, com a aprovação do regime de organização e

funcionamento do Governo através de decreto-lei. A competência é exercida, em

princípio, a título individual e autónomo, como resulta da tradição portuguesa estabelecida

pela jurisprudência nas décadas de 50 e 60; a competência é, assim, de cada ministro, sem

prejuízo de o Conselho de Ministros ter competências e relevância real de coordenação.

Ao contrário dos ministros, os secretários de Estado não têm actualmente competências

30
De acordo com o Prof. Freitas do Amaral, os ministérios podem ser classificados em quatro grupos: os
ministérios de soberania, que correspondem às principais funções do Estado soberano (e.g., Negócios
Estrangeiros, Defesa Nacional), económicos, com funções de natureza económica, financeira e monetária (e.g.,
Finanças, Economia, Planeamento), sociais (e.g., Educação, Saúde, Cultura, Trabalho e Segurança Social) e
técnicos (e.g., Obras Públicas, Urbanismo, Ambiente ou Infraestruturas).

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22

próprias, tendo sido equiparados ao subsecretários de Estado (hoje ausentes da orgânica

do Governo).31

O primeiro-ministro tem tarefas, do ponto de vista jurídico, sobretudo de

coordenação e de controlo da actividade geral dos diferentes ministérios (art. 201.º, n.º 1,

CRP); já do ponto de vista político, nele reside a fonte principal da legitimidade democrática

do Governo. A tradição portuguesa da orgânica do Governo inclui sempre um ministério

associado ao primeiro-ministro, designado por Presidência do Conselho de Ministros.

Durante anos, pela sua importância política, a Presidência do Conselho teve o estatuto de

super-ministério, composto por numerosos secretários de Estado, numa lógica que ainda

subsiste com adaptações, como a atribuição ao primeiro-ministro de funções

primordialmente de coordenação, atribuindo a outros (incluindo ao ministro da presidência)

tarefas de gestão.

O art. 199.º da Constituição da República estabelece a competência administrativa

do Governo, realizada de forma directa (os ministros são distinguidos pelas suas diferentes

atribuições). As atribuições do Governo encontram-se, de forma resumida, na lei orgânica,

embora se possa dizer que o elenco das atribuições não se encontra exaustivamente

enumerado em qualquer lei – que, a existir, sofreria sempre de incompletude. Compete ao

Governo o planeamento a nível nacional, com base nas leis das grandes opções do plano, e

fazê-las executar, com funções de coordenação e exercício (art. 199.º, al. a), CRP); a Lei das

Grandes Opções do Plano é o instrumento essencial da actuação do Governo neste domínio,

que cada vez mais se desdobra em planos para os vários domínios de actividade (e.g., planos

para a Educação ou para a Saúde).

O Orçamento do Estado é outro dos grandes instrumentos de actuação governativa

(art. 199.º, al. b), CRP). A execução orçamental, em grande medida condicionada

actualmente pelo Direito da União Europeia, é missão exclusiva do Governo, tal como a

31
Os secretários de Estado podem substituir os ministros em caso de ausência ou impedimento (art. 185.º, n.º
2, CRP).

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23

eventual execução do orçamento do ano anterior, em regime de duodécimos, nos casos

excepcionais de rejeição da Lei do Orçamento do Estado.

Cabe ainda ao Governo fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis

(art. 199.º, al. c), CRP). Os regulamentos são actos normativos gerais e abstractos: neste caso,

trata-se de regulamentos executivos, que têm uma ligação filial a uma lei. A par destes,

existem regulamentos autónomos, ou independentes, que não complementam uma lei em

particular (regulados pela al. g) do art. 199.º CRP).32

A função principal do Governo é a prática de todos os actos e a tomada das

providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação

das necessidades colectivas (art. 199.º, al. g), CRP). Esta acção compreende sobretudo a

prática de actos administrativos – portanto, individualizáveis e concretos, como veremos

infra.33 Face à realidade tradicional da função administrativa, o art. 199.º CRP ampliou

substancialmente o seu conteúdo material, que de uma actividade meramente executiva

passou a um conjunto de actividades que excedem em muito a execução da lei.

2. Administração estadual indirecta


A administração directa e indirecta do Estado distinguem-se pela personalidade. Enquanto

a administração directa não se distingue do próprio Estado, à administração indirecta

corresponde o exercício, através de uma devolução de poderes, de uma actividade que,

extravasando embora a orgânica do Estado, é, ainda assim, materialmente estadual; por

outras palavras, podemos definir a administração indirecta como o exercício por entidades

públicas dotadas de personalidade jurídica própria e de autonomia administrativa e

financeira de funções compreendidas entre os fins do Estado. As características tradicionais

da administração indirecta foram teorizadas pelo Prof. Freitas do Amaral, num modelo que

tem, em geral, correspondência com a lógica clássica da Administração portuguesa, embora

actualmente pontuado por algumas fugas. A designação administração indirecta reflecte, aliás,

32
vide infra, Parte II, §IV.
33
Já os regulamentos são “gerais e abstractos”, segundo o CPA (mas rectius, “gerais ou abstractos”, segundo o
Prof. Vasco Pereira da Silva, de acordo com a natureza da ordem jurídica portuguesa).

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24

a proximidade deste modelo de organização administrativa relativamente ao Estado: são

entidades que gozam de autonomia, mas existem sempre para o cumprimento das funções

estaduais, com financiamento total ou parcialmente público.

Este modelo, correspondente em larga medida à realidade dos anos 80, é composto

pelos “entes personalizados do Estado”, na expressão do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa:

intimamente ligados ao Estado, funcionando como uma direcção-geral, mas com relativa

autonomia financeira.34 Estão aqui compreendidos três tipos de pessoas colectivas: os

institutos públicos (I.P.), as empresas públicas (E.P.E.) e as fundações públicas.

Na análise dos institutos públicos, aderimos à concepção do Prof. Marcelo Rebelo

de Sousa de serviços personalizados do Estado: trata-se de entidades de tipo institucional

(i.e., não associativo), criadas por acto legislativo (art. 9.º, n.º 1, LQIP), que desempenham

funções administrativas de carácter não empresarial (que lhes são cometidas por lei: arts.

3.º, n.º 3, e 8.º, n.º 3, LQIP) e que poderiam funcionar como direcções-gerais, mas que se

resolve autonomizar por razões de eficiência.35 Podem também ter um substrato

fundacional (arts. 3.º, n.º 1 e 2, e 51.º LQIP, art. 49.º, n.º 4, LQF): as fundações públicas

(de que é exemplo a ADSE) alocam um determinado património público, que lhes é

transferido, ao cumprimento de uma determinada missão estadual, obrigatoriamente de

interesse social. O modelo de fundação pública não é, todavia, aplicável a outras realidades

que não os activos financeiros, sendo, por conseguinte, descabido, no quadro da Lei das

34
Assim, por exemplo, se um ministério entende que, para certa actividade, seriam necessários meios
financeiros disponíveis de forma mais imediata, pode optar por criar um instituto em vez de uma direcção-
geral. Não deixa de haver alguns desvios a esta lógica de funcionamento: e.g., o Direito da União Europeia
obriga a que a agência do Ambiente seja responsável pelas avaliações de impacte ambiental; em Portugal,
porém, o Ministério do Ambiente libertou-se dos seus serviços de direcção-geral, delegando-os na Agência
Nacional do Ambiente, mas esta entidade funciona como uma direcção-geral, dependendo do Ministério, pelo
que, tendo embora poderes de autoridade máxima, não é autónoma nem independente.
35
Neste sentido, o Instituto da Juventude ou a Agência Nacional do Ambiente, por exemplo, poderiam ser
ambos direcções-gerais. Na distinção entre serviços e institutos públicos importa, assim, atender à
personalidade jurídica, que apenas os institutos têm; os serviços, por seu turno, constituem uma parte da
orgânica de uma pessoa colectiva pública.

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25

Universidades, chamar fundação a uma universidade, que é sempre forçosamente, pela sua

natureza, uma entidade da administração autónoma do Estado.36

As empresas públicas (entidades públicas empresariais, E.P.E.) são as entidades da

administração indirecta mais distanciadas do Estado. À semelhança dos institutos públicos,

são reguladas por uma lei própria, o Regime Jurídico do Sector Público Empresarial

(decreto-lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro). Aqui encontramos algumas empresas que o

Estado entende que estão mais ligadas ao exercício da respectiva função e que, dotadas de

capitais públicos, mantêm o estatuto de pessoas colectivas públicas (criadas por acto jurídico-

público, com direcção e capitais públicos), enquanto outras são sociedades comerciais

(pessoas colectivas privadas), embora subordinadas ao Estado (i.e., sociedades de capitais

públicos, em que o Estado tem um poder proporcional à respectiva actuação no quadro do

mercado e, apesar do exercício da função administrativa, procuram conciliar interesses

públicos com interesses privados, estando sujeitas à superintendência e tutela do Governo

ou integrando representantes do Estado com poderes especiais de controlo37).

No exercício das funções administrativas clássicas (viz. a defesa, a administração

interna) justifica-se a natureza de E.P.E.; já no caso de actividades de natureza puramente

económica, as razões do mercado apontam para a necessidade de seguir um modelo privado.

Todavia, todas são empresas de capitais públicos, geridas de forma pública e visando a

satisfação das necessidades colectivas, não obstante algumas se organizem e funcionem de

acordo com regras de direito privado. Discutia-se a admissibilidade de as empresas públicas

terem lucro, tendo natureza pública e fins de carácter público; todavia, são entidades de

natureza económica. Portanto, os encarregados da gestão das empresas ditas públicas, como

actuam no mercado e ali exercem funções de interesse público, devem garantir o lucro, sob

pena de essas tarefas deixarem de ser realizadas. Há aqui, portanto, uma lógica para que estas

36
Esta autonomia resulta de previsão constitucional que impõe a “autonomia estatutária, científica, pedagógica,
administrativa e financeira das universidades públicas” (art. 76.º, n.º 2, CRP).
37
cf. art. 9.º, n.º 1, RJSPE. Nos termos da mesma lei (art. 24.º, n.º 1), é aprovado por resolução do Conselho de
Ministros “o conjunto de medidas e directrizes relevantes para o equilíbrio económico e financeiro do sector
empresarial do Estado.”

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26

empresas sejam realidades de natureza parcialmente pública e parcialmente privada.

Regulam-se de acordo com os princípios do CPA, estão sujeitas à fiscalização do Tribunal de

Contas (art. 26.º RJSPE), mas têm uma quase total autonomia privada no exercício das suas

funções de natureza económica.

Existem órgãos desconcentrados do Estado dispersos pelo território, bem como

órgãos que funcionam noutros países desempenhando competências estaduais fora do

território português. Além de integrarem serviços correspondentes aos que existem no

território nacional, passaram a ter funções de representantes de alguns institutos públicos.

Estas entidades foram chamadas, na expressão do Prof. João Caupers depois generalizada,

administração periférica do Estado. Existem, todavia, entidades administrativas que actuam

junto das embaixadas e que devem ser consideradas dentro da administração indirecta do

Estado.38

3. Administração autónoma
Além da administração indirecta do Estado, há que considerar a administração autónoma,

que obedece a uma lógica de auto-regulação: trata-se de entidades auto-administradas, que

prosseguem fins próprios e são dirigidas por órgãos eleitos pela vontade dos respectivos

membros, subordinando-se apenas ao poder de tutela do Governo, nos termos do art.

199.º, n.º 4, al. d), da Constituição.39 O exemplo paradigmático são as autarquias locais,

que constituem entidades de natureza territorial auto-reguladas (art. 235.º CRP).

Tradicionalmente, aliás, a administração autónoma era composta apenas pelas autarquias,

mas desde a lição de agregação do Prof. Jorge Miranda, sobre as ordens profissionais, tem

sido genericamente aceite pela doutrina a tese então apresentada, segundo a qual estas

associações devem mais correctamente integrar a administração autónoma e não a

38
O Prof. João Caupers distingue também uma administração periférica interna, categoria que o Prof. Vasco
Pereira da Silva considera desnecessária.
39
A administração autónoma do Estado prossegue interesses públicos próprios das pessoas que a constituem,
sendo auto-regulada e definindo com total independência a orientação da sua acção, sem se sujeitar à hierarquia
ou à superintendência do Governo.

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27

administração indirecta, como defendiam os Profs. Marcello Caetano e Freitas do

Amaral.40

Entre as autarquias locais, que corporizam uma parte importante da descentralização

administrativa do Estado,41 a estrutura dominante é o município. Os municípios existem

antes dos próprios Estados, pois a organização e os fins de natureza local sempre precederam

os fins de natureza estadual (e.g., as cartas de alforria, os forais, etc.) e tiveram, na nossa

história, uma função primordial em matéria de organização territorial. Mais do que uma

circunscrição territorial do exercício das funções do Estado, os municípios, entendidos como

comunidades de pessoas agregadas por um vínculo territorial, com órgãos representativos

próprios, têm competências muito amplas, em certos casos rivalizando mesmo com as

competências estaduais.42 Ao nível da Educação, é habitual que as escolas dependam

integralmente dos municípios – embora este não seja o modelo adoptado em Portugal, que

é marcado por uma forte tradição centralista –, sendo também possível a opção por um

modelo cooperativo entre administração central43 e municipal. De igual modo, as estradas

locais são sempre da responsabilidade dos municípios.

40
As ordens profissionais, actualmente reguladas por lei-quadro própria (o Regime Jurídicos das Associações
Públicas Profissionais, lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro), são também associações que precedem o Estado; em
Portugal, com o corporativismo, as associações profissionais adquiriram o estatuto de organizações públicas. Têm
como função regular o exercício de determinada profissão, auto-organizada, com total autonomia e órgãos
próprios, obedecendo ainda a uma regra de unidade (i.e., não podem existir outras associações públicas com
objectivos e jurisdição semelhantes) e prevendo inscrição obrigação para o exercício da profissão. As ordens e as
câmaras profissionais distinguem-se de acordo com o grau académico exigido aos associados: as ordens agregam
profissões que exigem um curso superior, enquanto as câmaras profissionais regulam o exercício de profissões
que exigem apenas um curso intermédio (art. 11.º RJAPP).
Também as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira se integram na administração autónoma do Estado,
embora com especificidades de regime que as distinguem das autarquias e das associações públicas. As Regiões
Autónomas são pessoas colectivas de direito público, de base populacional e territorial, com fins específicos, um
estatuto político-administrativo próprio (que reveste a forma de lei reforçada) e órgãos de governo próprios (as
Assembleias Legislativas Regionais e os Governos Regionais). A defesa dos interesses regionais encontra-se
limitada pela integridade e soberania do Estado português e pela subordinação à Constituição da República.
41
Por descentralização, em sentido jurídico, entende-se o desempenho das funções do Estado por uma
pluralidade de pessoas colectivas, em vez de por uma só pessoa.
42
Identificam-se habitualmente quatro elementos indispensáveis no poder autárquico: um território, um
agregado populacional, interesses comuns e órgãos representativos.
43
A Administração Central do Estado compreende os órgãos e serviços cuja competência se estende a todo o
território nacional. Os principais órgãos centrais são o Presidente da República, a Assembleia da República, o
Governo e os tribunais.

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28

As competências das autarquias são exercidas através de órgãos próprios, com

funções deliberativas ou executivas. O Presidente da Câmara é um órgão de natureza

unipessoal, eleito directamente em conjunto com o restante executivo, cabendo-lhes a gestão

permanente dos assuntos municipais (art. 33.º da Lei das Autarquias Locais). A lógica de

exercício do poder autárquico é diferente da organização política da Assembleia da

República, pois o executivo municipal não depende politicamente da Assembleia Municipal.

O executivo, que funciona colegialmente, divide as tarefas administrativas pelos pelouros da

câmara, confiados aos vereadores (em número que varia de acordo com a dimensão do

município), e a atribuição dos pelouros às forças políticas é determinada, em Portugal, de

acordo com o sistema de Hondt.

Integradas dentro dos municípios, as freguesias têm personalidade jurídica, mas

têm apenas duas competências próprias: a conservação dos cemitérios e dos jardins

públicos (art. 7.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, lei n.º 75/2003, de 12 de

Setembro). Todavia, havendo delegação de poderes44 pelos órgãos municipais, as

freguesias podem assumir tarefas mais importantes, o que, no caso das grandes cidades, é

muito frequente. Deve salientar-se ainda a diferença política entre as freguesias urbanas e

rurais: neste último caso, sendo por vezes as únicas instituições públicas próximas dos

cidadãos, as freguesias adquirem maior relevância política e, sobretudo, administrativa.

Em Portugal, não existe um nível regional de administração pública, o que tem

consequências na falta de organização a nível regional, por um lado, e reflecte, por outro,

a dimensão regionalizada da União Europeia, que é representada pelas CCDR. Estas são

nomeadas pelo Governo e exercem funções estaduais a nível regional, sobretudo nos

sectores do urbanismo e do turismo. A Constituição da República prevê a existência de

regiões administrativas e pôs fim à organização por distritos (circunscrições

administrativas). Esta última opção determinou uma escassez de órgãos do Estado no

44
A delegação de poderes é um acto que permite a um órgão administrativo autorizar, dentro dos limites da lei
e desde que para tal exista uma lei de habilitação (art. 111.º, n.º 2, CRP), outro órgão ou agente a praticar actos
administrativos sobre matérias da competência do delegante. A delegação não é incompatível com os princípios
da irrenunciabilidade e da inalienabilidade da competência, como dispõe o art. 36.º CPA.

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quadro regional, cada ministério exercendo funções regionais de acordo com a sua própria

organização (o Ministério da Justiça usa as comarcas, o Ministério da Administração

Interna continua a usar os distritos, os ministérios económicos as regiões-plano), o que

cria dispersões e confusões a nível regional.

Se a Constituição, com efeito, criou regiões administrativas, estas acabam por não

existir, uma vez que o procedimento legislativo adoptado para a sua criação constituiu uma

espécie de lei-travão. Estão dependentes de uma lei geral, orgânica, que as crie em

simultâneo, mas posteriormente, cada uma das regiões criadas pela lei geral tem de ser

autonomizada por outra lei, que deve sujeitar-se a um referendo – prevendo-se, aliás, a

possibilidade de convocação de referendos para ambos os passos. O nível regional da

Administração Pública não é, assim, representado actualmente nem pelos tradicionais

distritos, nem pelas regiões administrativas.

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30

DIREITO ADMINISTRATIVO II

I. O DIREITO ADMINISTRATIVO ENQUANTO


DIREITO CONSTITUCIONAL CONCRETIZADO

1. Introdução
A protecção do meio ambiente, a transição digital e a Saúde constituem hoje, com a

prevalência da regulação eurocomunitária, vectores fundamentais da actuação dos poderes

públicos, em torno dos quais se articulam políticas públicas de conteúdo reformista, apoiadas

por fundos europeus que pretendem fomentar o crescimento e o desenvolvimento

económico dos Estados-membros da União Europeia. Esta nova realidade europeia obrigou,

por vezes, mesmo a revisões constitucionais em países cujas constituições são menos

adaptadas ao Direito Internacional (viz. a Itália), e também a lógica do exercício do poder

tem sofrido alterações politicamente motivadas (veja-se, ao nível dos vectores fundamentais

do seu exercício, o exemplo das Forças Armadas, que correspondem a um poder

administrativo especial).

2. A legalidade no quadro do Direito Administrativo


O princípio da legalidade nasce com o Estado liberal, como “a outorga duma garantia ao

cidadão contra o arbítrio do administrador”,45 compreendendo a dupla vertente dos

princípios de reserva e de preferência de lei, um entendimento hoje visto como

excessivamente limitado e devedor dos traumas inaugurais da Administração Pública.

Impõe-se assim um esforço de psicanálise cultural deste princípio, combinando-o com a

ideia de um Direito Administrativo concretizado em diferentes níveis, numa lógica sem

fronteiras que concebe a realidade jurídica em distintos níveis de operatividade.

45
ROGÉRIO ERHARDT SOARES, “Princípio da legalidade e administração constitutiva”, p. 169.

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A legalidade é decerto a contribuição principal dos teóricos liberais para o Direito

Administrativo. Não ainda a ideia de que a Administração se subordina a um tribunal,46 mas

tão-somente o princípio da legalidade enquanto princípio administrativo máximo. Concebia-

se então uma dimensão constitucional em que a lei, submetida formalmente às constituições,

é a fonte máxima do poder, impondo-se a todo o exercício dos poderes públicos. Todavia, a

concepção liberal do interesse público e a centralidade do Estado nas relações jurídicas

administrativas determinaram limitações severas aos objectivos de controlo da

discricionariedade e de circunscrição dos espaços de liberdade de actuação dos poderes

públicos, regidos por um droit inégalitaire que no interesse público fundava quaisquer

limitações ou derrogações, entendidas como necessárias, dos direitos dos administrados.47

No séc. XIX, surgem duas expressões fundamentais do princípio da legalidade, hoje

ainda aplicáveis com algumas transformações. A legalidade correspondia tanto a um

princípio de reserva de lei quanto a um princípio de preferência de lei: assim, a lei fixava

reservas que limitavam a actuação da Administração (uma reserva decorrente da própria

existência de lei), e nesse domínio reservado se impunham sempre à sua vontade. Este

desdobramento ainda hoje se aplica, ainda que deva reconhecer-se que corresponde a uma

visão principiológica algo limitada.

Em primeiro lugar, observe-se que a lógica positivista liberal é de natureza

acentuadamente formalista, entendendo a lei como apenas aquela elaborada pelos

parlamentos (leis, por norma, em matéria de liberdades fundamentais, que se resumiam a

constrangimentos menores da autoridade administrativa).48 No Liberalismo, a actuação

46
Embora modernamente decorra do princípio da legalidade um princípio da submissão da Administração
Pública aos tribunais, que apreciam a actividade administrativa. Para uma análise de um dos casos fundamentais
do Direito Administrativo inicial, o Caso Agnès Blanco (verdadeira “certidão de nascimento” do Direito
Administrativo), passado em Bordéus em 1873, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo
Perdido, pp. 36 e ss.
47
Neste sentido, observava JEAN RIVERO (“Existe-t-il un critère du droit administratif?”, Revue de Droit Public et
de la Science Politique en France et à l'étranger VII (1953), p. 279), que “[l]es règles de droit administratif se
caractérisent par les dérogations, au profit des personnes publiques, des droits reconnus aux particuliers dans
leurs relations, soit dans le sens d’une réduction de ces droits.”
48
Numa perspectiva moderna, salienta MANUEL AFONSO VAZ (Lei e Reserva da Lei, Porto, Universidade Católica
Portuguesa, 1992, p. 165), contrariando a ideia da legitimação através do processo, que há que encontrar “uma

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legislativa dos parlamentos era muito limitada, o que significava que as restrições legais à

Administração – então uma Eingriffsverwaltung – eram mínimas e externas, sendo lícito

aos poderes públicos tudo fazer em todos os domínios não regulados pela lei. O formalismo

da doutrina liberal das fontes do Direito explica o desenvolvimento de um controlo

efectivo, embora apenas exterior e formal, da actividade administrativa, onde assume

preponderância o critério da competência e onde a Administração Pública, limitada apenas

pela legalidade, “não nos aparece hoje em dia como uma forma típica da actividade do

Estado, mas antes como uma das maneiras por que se manifesta a sua autoridade (…),

deixa[ndo] de se caracterizar como função para se afirmar como poder.”49

A Administração actuava em grande medida na ausência de base legal, pois a visão

do princípio da legalidade como reportado a um conteúdo formal (i.e., para além dos

direitos fundamentais, o Código Civil e pouco mais) deixava uma margem de actuação

extremamente livre. Eram escassas as leis que limitavam a Administração e muitas vezes

não se referiam directamente à actuação administrativa. Os poderes públicos gozavam de

privilégios exorbitantes (na formulação de Léon Duguit, “des privilèges exorbitants du

droit commun”50), relacionados, por um lado, com a possibilidade de definir

autoritariamente as disposições aplicáveis aos particulares, e por outro, com a

executoriedade (que consiste no poder de autotutela efectiva das próprias decisões),51 que

posição sustentável para quem procure os fundamentos de validade das soluções ou decisões jurídicas, e não
apenas o saber como e quem pode decidir.”
49
M. CAETANO, Manual de Direito Administrativo (5.ª ed), Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 8. Para a
evolução do conceito de poder administrativo entre as funções do Estado, vide DIOGO FREITAS DO AMARAL,
Curso de Direito Administrativo, vol. II (4.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2018, pp. 9 e ss.
50
Sobre a construção dos “privilèges exorbitants du droit commun”, vide, por todos, JACQUES CHEVALLIER,
“Les fondements idéologiques du droit administratif français”, in J. Chevallier (ed.), Variations autour de
l’Idéologie de l’Intérêt Général, vol. 2, Paris, Presses Universitaires de France, 1979, pp. 38 e ss. Para uma síntese
do pensamento de Duguit sobre as funções do Estado, vide “Des fonctions de l'État moderne: étude de
sociologie juridique”, Revue Internationale de Sociologie (1894), pp 161-197.
51
Esta realidade era desconhecida, naturalmente, do Direito Inglês, que desde sempre previu um sistema
chamado de administração judiciária, consequência da rule of law, onde a Administração Pública se encontra
subordinada, como os particulares, ao direito comum, não existindo privilégios nem prerrogativas de
autoridade pública. Do mesmo modo, não existe a figura da executoriedade, tendo sempre os órgãos
administrativos – que carecem de autoridade própria – de recorrer ao poder judicial para executar as suas
decisões em casos de litígio.

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o Prof. Marcello Caetano transpôs para a doutrina portuguesa através da figura do

privilégio de execução prévia.52

Presumia-se, aliás, que as ordens emitidas pelos poderes públicos seriam necessária

e intrinsecamente conformes ao direito objectivo – e, por conseguinte, legítimas.53 Num

passo lógico adiante, a executoriedade converte-se mesmo em elemento caracterizador de

todo o Direito Administrativo.54 Ainda hoje em Portugal, muitos autores concebem o

poder discricionário como uma liberdade de actuação da Administração,55 o que é

inadmissível em face da evolução do sistema: a Administração e as instituições públicas

estão sempre determinadas pela lei na sua actuação e subordinam-se a regras e princípios

de Direito Público que restringem a sua actividade; só os particulares são livres, não a

Administração. O poder discricionário tem de ser sempre o poder de construir as opções

legais, nunca um poder caracterizado pela liberdade: a construção normativa destas

prerrogativas deve ter correspondência com o ordenamento jurídico no seu todo.

2.1. O alargamento material do princípio da legalidade


Estas duas concepções de Administração, que em Portugal originaram os privilégios na

construção da actuação administrativa, confundindo Administração e Justiça, deixaram de

fazer sentido. Nem faz sentido considerar o princípio da legalidade na sua dimensão

meramente formal (pois deve ser materialmente alargado, não se esgotando na lei, mas

abrangendo todo o Direito), nem existem os privilégios da Administração. Os termos em

52
“A este poder da Administração [sc. a tomada de resoluções obrigatórias para os particulares e que, havendo
inobservância, podem ser coercivamente impostas], que a coloca no mesmo plano da Justiça e em situação
privilegiada relativamente aos meros particulares para a prossecução dos interesses públicos, chamamos
privilégio da execução prévia.” (M. CAETANO, Manual de Direito Administrativo (5.ª ed), p. 227; realce nosso); cf.
ainda a justificação da executoriedade aduzida por ÉDOUARD LAFERRIÈRE, um dos autores que mais
influenciaram o pensamento do Prof. Marcello Caetano, no Traité de la Jurisdiction Administrative et des Recours
Contentieux, vol. I (2.ª ed.), Paris, Berger-Levrault, 1896, p. 647.
53
vide J. CHEVALLIER, loc. cit., p. 39, e a problematização actual da presunção de legalidade apresentada por MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo (9.ª ed.), Coimbra, Almedina, 2022, pp. 349-371.
54
Observa JEAN-MARC FÉVRIER (“L’administré face au procès administratif”, Les Petits Affiches XCIII (1998), p.
13): “Telle est la caractéristique même du droit administratif, un corps de règles conférant des prérogatives
exorbitantes en raison du but supérieur recherché par la puissance publique.”
55
Uma posição com origem em MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I (10.ª ed), pp. 506
e ss.

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que é entendido o princípio da legalidade devem ser amplos e abertos, e todos os princípios

da ordem jurídica são fonte do Direito, vinculando a Administração ao nível

supralegislativo como também infralegislativo. A Administração não goza de poderes

definitórios: a lei não lhe confere a prerrogativa de definir o direito aplicável ao caso

concreto, mas apensas a de usar o direito como meio de satisfazer as necessidades

colectivas. Em síntese, os actos da Administração nunca podem ser de definição do direito,

mas de utilização do direito.

Muito menos podem os actos administrativos gozar de executoriedade prévia, pois a

Administração, num Estado de direito, tem poderes e não privilégios – e apenas os poderes

que resultam de previsões legais. Como vimos, não é possível incluir entre as características

da Administração a execução prévia, nem tão-pouco a executoriedade é inerente aos actos

administrativos: só as ordens e os actos de polícia são executivos; os restantes actos são

insusceptíveis de execução contra a vontade dos particulares, em cujo interesse são

praticados.56 O legislador administrativo pode mesmo proibir certos poderes de execução, o

que faz designadamente quando estabelece que os actos correspondentes ao pagamento de

quantias monetárias não comportam actuação coerciva. Por conseguinte, os mitos em que

assentava a construção tradicional do Direito Administrativo não fazem hoje sentido, não

devendo a doutrina administrativa orientar-se de acordo com uma realidade do passado.

A própria terminologia deriva da lógica jurídica do Liberalismo. Quando se

considerava que o princípio da legalidade corresponde à reserva de lei, estabelecia-se uma

visão típica dos Direitos Reais, como uma propriedade limitada pelas suas extremas. Esta

visão é destituída de sentido em termos teóricos: a legalidade não determina nada que não

possa decorrer da sua própria eficácia, e o princípio da legalidade deixou hoje de ser

interpretado apenas como um recorte negativo do espaço de actuação da Administração (i.e.,

a obrigação de respeitar as leis existentes) para ser visto na sua dimensão positiva – tanto o

fundamento como o limite do exercício dos poderes públicos, abrangendo poderes

56
V. PEREIRA DA SILVA, “Do princípio da legalidade à juridicidade. O sentido actual das fontes de Direito Público”,
Osservatorio sulle Fonti X (2017), pp. 5 e ss. (publicação on-line, disponível em https://www.osservatoriosullefonti.it).

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discricionários e vinculados, o critério desse exercício e da harmonização das relações

administrativas com o ordenamento jurídico integralmente considerado.57

Por conseguinte, não é tecnicamente rigoroso falar em reservas, embora a expressão

esteja generalizada na doutrina (e.g., Sérvulo Correia). A definição da lei deve partir de ideias

de articulação funcional e de conexão, que é impossível determinar rigidamente, de forma

apriorística, como numa lógica de propriedade. Há que abandonar esta visão do princípio da

legalidade, entendendo-o não apenas em termos formais, mas materiais; há ainda que

considerar que abrange normas e princípios jurídicos no quadro de uma ordem jurídica em

diferentes níveis, a qual inclusivamente introduz uma efectiva limitação do princípio, de

maneira diversa da realidade meramente teórica afirmada nos manuais, mas destituída de

sentido concreto.

2.2. Consequências da evolução do princípio da legalidade no quadro das fontes do


Direito Público, em particular na Teoria Geral do Direito Administrativo
Esta nova ideia de legalidade que primeiro surge com o Estado social e a Administração

prestadora, e mais tarde com o Estado pós-social e a Administração estrutural, levou a que,

no direito alemão, se substituísse a ideia de legalidade pela de juridicidade, dotada de um

conteúdo mais amplo.

A defesa deste alargamento a uma lógica mais ampla na ordem jurídica portuguesa

foi feita pela primeira vez pelo Prof. Rogério Soares58 e, depois, pela Prof. Maria da Glória

Garcia.59 O legislador português resolveu a questão definindo e actualizando o conceito de

legalidade (sem abandonar a designação do princípio) como uma juridicidade. Na nova

redacção, estabeleceu o art. 3.º, n.º 1, CPA que “[o]s órgãos da Administração Pública devem

actuar em obediência à lei e ao direito.” É, pois, a todo o Direito que se submete a

57
Para uma perspectiva moderna da reserva de lei, vide JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional –
tomo V, pp. 196 e ss., 217-224; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7.ª ed.),
Coimbra, Almedina, 2003, pp. 671 e ss.
58
ROGÉRIO ERHARDT SOARES, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, Atlântida, 1955; “Princípio da
legalidade e Administração constitutiva”, pp. 161-191.
59
MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da Justiça Administrativa em Portugal: sua Origem e Evolução, Lisboa, Universidade
Católica Portuguesa, 1994.

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Administração. Simultaneamente, o n.º 2 do mesmo artigo introduziu nesta lógica quer os

poderes vinculados, quer os poderes discricionários, uma vez que a discricionariedade não

pode constituir uma excepção à legalidade (nas palavras do Prof. Rogério Soares, “a

actividade da Administração é uma parte integradora dum sistema mais subtil que o da

construção geométrica «criar direito – aplicar direito – verificar direito». Por isso, a

Administração está, ainda mesmo onde parece que lhe é reconhecida uma liberdade,

subordinada ao direito.”60).

Em 2015, manteve-se esta formulação, embora com uma alteração ao texto do n.º 2.

Estabeleceu-se um preceito sobre a validade dos actos praticados em estado de necessidade

com preterição das regras estabelecidas no n.º 1. Interpretado de maneira literal, a nova

formulação viola a própria Constituição (designadamente as regras sobre o estado de

necessidade, que devem ser fixadas pelo Parlamento em cada caso) e é meramente repetitiva

se interpretada à luz do disposto sobre o estado de excepção constitucional (art. 19.º CRP).

A subordinação da Administração Pública à lei e ao Direito significa, por um lado,

uma submissão formal às leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais, e por outro, uma

visão supralegal: i.e., compreende o princípio da constitucionalidade, a subordinação ao

Direito da União Europeia (que estabelece fontes directamente aplicáveis a toda a ordem

jurídica nacional e onde também se integra o direito dos Estados-membros, numa lógica de

miscigenação), a subordinação ao Direito Internacional e ainda ao Direito Global (viz. o

Direito Administrativo produzido à escala internacional, com grandes princípios e regras

construídos por via comparativa e directamente vinculativos para toda a Administração

Pública61). Lei, na nossa ordem jurídica actual, encerra todos estes significados.

O Direito da União Europeia goza de um primado sobre o direito estadual,

estabelecendo regras a que se devem os Estados-membros da União, em certos casos ainda

com um princípio de eficácia directa, mas ao mesmo tempo acrescendo ao direito interno.

60
R. E. SOARES, “Princípio da legalidade e Administração constitutiva”, pp. 190-191.
61
vide V. PEREIRA DA SILVA, “O impacto do Direito Administrativo sem fronteiras no Direito Administrativo
português”, pp. 45 e ss.

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Neste contexto, está em causa o exercício da função administrativa em comum, com regras

administrativas sobre assuntos como a circulação de refugiados, questões económicas,

ambientais, energéticas, agrícolas ou industriais. Esta é também uma realidade nova, distinta

da actuação de organizações internacionais apenas baseadas no modelo do Estado soberano

de base territorial, estabelecendo um direito comum directamente aplicável e capaz de

prevalecer sobre o direito estadual. Quando consideramos as fontes do Direito Público, há

que atender, assim, aos contributos do Direito da União Europeia. A Administração Pública

é uma realidade de nível europeu em todos os domínios, tendo sido afastada, por exemplo,

a distinção entre contratos privados e administrativos (ainda seguida, não obstante, por

alguma doutrina actual).

Na União Europeia, as normas essenciais sobre a divisão de poderes (entre as quais

o princípio da subsidiariedade) e direitos fundamentais lançam as bases para um direito de

natureza paraconstitucional (ou estabelecem parâmetros axiomáticos de interpretação

constitucional, como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de onde deriva

o direito fundamental à Boa Administração). Deve considerar-se assim também uma dupla

dependência entre o Direito Administrativo do Estado Português e o Direito Administrativo

Europeu: por um lado, a actuação administrativa interna depende do Direito da União

Europeia, pois realiza a nível nacional as suas grandes opções, mas também este depende

naturalmente da acção das administrações e dos tribunais internos.62

Se o princípio da legalidade opera numa dimensão supralegislativa, existe também

uma dimensão infralegislativa, onde cabem as normas regulamentares, os actos

administrativos e contratos celebrados pela Administração – i.e., todos os comportamentos

da Administração são fonte de Direito, obrigando-a também para o futuro. Um contrato,

seja de concessão ou de diferente natureza, também estabelece regras jurídicas vinculativas,

tendo a Administração de respeitar esse acto que anteriormente praticou e de salvaguardar,

tanto quanto possível, os direitos que antes garantira. A Administração está vinculada ao

62
IDEM, ibidem, pp. 57 e ss.

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acto, podendo alterá-lo apenas em termos limitados e com respeito pela ordem jurídica que

ela própria criou.

Na nossa ordem jurídica, legalidade e juridicidade são equivalentes, correspondendo

à legalidade o mais amplo sentido possível, formal e material. A ideia de que o Direito

Constitucional se impõe à Administração é uma construção moderna, que reflecte a

transformação das visões liberais de Administração Pública e de Constituição. Otto Mayer

considerava que o Direito Administrativo, enquanto direito estável, se sobrepunha ao

Direito Constitucional – que, na sua dimensão eminentemente política, era mutável.63 A

realidade política do séc. XIX estava sempre sujeita à possibilidade de mudança e de exercício

do poder constituinte originário. Por outro lado, esta realidade constitucional era, mesmo

do ponto de vista político – única dimensão em que era entendida –, de limitada eficácia, o

que decorria de alguma imunidade dos restantes ramos da ordem jurídica ao Direito

Constitucional e da falta de eficácia das normas constitucionais. Só quando o Direito

Constitucional passou a ter um papel central na ordem jurídico-política (cf. art. 18.º CRP,

em matéria de direitos fundamentais, mas aplicável a outras normas de aplicabilidade

imediata), estabelecendo regras e princípios válidos para todo o direito positivo e vinculando

directamente entidades públicas e privadas, puderam as disposições constitucionais ser

controladas através dos tribunais constitucionais.

Na actualidade, podemos dizer não apenas que mudou a relação entre o Direito

Administrativo e o Direito Constitucional, mas também que o Direito Administrativo deve

entender-se como Direito Constitucional concretizado. Na senda de Werner, devemos ainda

considerar a relação de dupla dependência entre ambos os ramos, na medida em que

concretizam regras, princípios e valores que regulam toda o exercício dos poderes públicos

na vida em sociedade.64

63
vide supra, Parte I, §II.1.2.
64
vide FRITZ WERNER, “Verwaltungsrecht als konkretiziertes Verfassungsrecht”, in Recht und Gericht unser Zeit,
Colónia, Carl Heymanns Verlag, 1971, pp. 212 e ss.; V. PEREIRA DA SILVA, “Do princípio da legalidade à
juridicidade. O sentido actual das fontes de Direito Público”, pp. 8 e ss.

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No Estado pós-social, passou-se assim da teoria da legalidade à teoria da juridicidade,

com uma transformação interna, material e ampla, do princípio da legalidade. Têm-se

encaminhado neste sentido que se têm encaminhado recentes orientações de diferentes

sistemas jurídicos, e é o que se adoptou em Portugal no novo Código do Procedimento

Administrativo, com a vinculação à lei e ao Direito no seu conjunto (cf. art. 3.º, n.º 1, CPA).

Do ponto de vista das fontes do Direito Público, integram assim a noção material de lei um

domínio supralegislativo e infralegislativo.

No plano supralegislativo, encontram-se normas, princípios e valores que, como

fonte directa de Direito, obrigam também a Administração. In primis, a normação

constitucional, o conjunto de normas e princípios no cume das regras estaduais que

regulam o funcionamento da Administração em todos os seus aspectos. O legislador

constituinte regula directamente a realidade administrativa, e a Administração Pública está

directamente ligada a essas leis – mas não no entendimento clássico de transposição

indirecta de directivas constitucionais: a Constituição estabelece vinculações directas (e.g.,

os direitos fundamentais (art. 18.º CRP) vinculam directamente a Administração em toda

a sua actuação).

Esta concepção do Direito Administrativo como Direito Constitucional concretizado

obriga-nos a enquadrá-los numa relação de interdependência, em rigor, de dupla dependência.

A realidade constitucional obriga, por exemplo, à própria existência da administração

autónoma (viz. universidades), regras que decorrem imediatamente da realidade

constitucional. Ao aplicar a lei, a Administração desempenha também um papel criador.

Para compreender este nível supralegal das fontes de Direito, Sabino Cassese65 aduz

os contributos dos casos internacionais sobre pescas para a criação de fontes de direito à

escala global. Esta abertura compreende em especial as regras procedimentais adequadas (due

process of law) relevantes para o direito interno, mas estabelecido em sede internacional, com

65
SABINO CASSESE, “Global standards for national administrative procedure”, Law and Contemporary Problems
LXVIII (2005), pp. 109-126, e “Gamberetti, tartarughe e procedure. Standard globali per i Diritti
Amministrativi nazionali, in S. Cassese (ed.), Oltre lo Stato, Roma, Laterza, 2006, pp. 72 e ss.

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40

a criação jurisdicional de parâmetros de decisão tanto substantivos como processuais.66 Este

direito global assume naturalmente maior significado para os Estados que ainda não

consagram regras procedimentais nos respectivos códigos administrativos, na medida em

que se impõe também a necessidade de uma interpretação jurisprudencial dessas normas que

vinculam os poderes públicos. Do mesmo modo, o recurso às regras e princípios de Direito

Internacional Público, nesta visão plural da ordem jurídica, permite um juízo valorativo

sobre os Estados que não adoptam aqueles princípios: não se trata de valores apenas éticos

(mesmo que tenham alguma ressonância ética), mas de valores eminentemente jurídicos,

que possibilitam juízos críticos sobre actuações concretas.

Há que introduzir, assim, no sistema de fontes do Direito Público, uma dimensão

translegal que reflicta as ordens jurídicas hodiernas, em que cada vez mais se podem

identificar normas aplicáveis ao caso concreto. Estas considerações são também válidas, na

nossa ordem jurídica, para a normação infralegislativa: pois mesmo realidades jurídicas com

força inferior à legal são susceptíveis de constituir fontes do Direito. Entre nós, o exemplo

mais comum são os planos e os regulamentos, manifestações do poder administrativo na

medida em que são emitidos pelos órgãos da Administração, mas que têm, não obstante,

força normativa.67

2.3. Problemas de metodologia jurídica68


O legislador português, como vimos, acolheu este alargamento do princípio da legalidade,

definindo-o como uma juridicidade, traduzida na actuação da Administração em obediência

“à lei e ao Direito” (art. 3.º, n.º 1, CPA), aí incluindo os poderes vinculados e discricionários.

A construção, porém, não é isenta de problemas. A subordinação da Administração Pública

à lei e ao Direito encerra, por um lado, uma submissão formal às fontes imediatas da lei – na

66
vide VASCO PEREIRA DA SILVA, “Do global ao particular. O princípio da legalidade sem fronteiras”, in Direito
Constitucional e Direito Administrativo sem Fronteiras, pp. 11-34.
67
O Direito do Urbanismo, por exemplo, resulta de planos feitos ao nível municipal (os Planos Directores
Municipais), regras que, não sendo leis em sentido formal nem material, obedecem a uma lógica de legalidade.
68
Esta secção distancia-se acentuadamente do ensino do Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva.

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ordem jurídica portuguesa, as leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais69 – e, por

outro, uma visão supralegal onde se enquadram o princípio da constitucionalidade, o Direito

da União Europeia, o Direito Internacional e ainda o conceito amplíssimo de Direito Global,

repositório de grandes princípios e regras que vinculam directamente a Administração.

Pergunta-se, todavia, se à luz do direito positivo será admissível a adopção de uma

noção material e ampla de lei onde caibam realidades supra e infralegislativas. Por outras

palavras, será tecnicamente correcta – ou mesmo legal – a subordinação da Administração à

lei e ao Direito? Subjaz decerto ao entendimento recente da juridicidade, por um lado, um

princípio geral de limitação da discricionariedade – com profundas raízes na história da

Ciência da Administração70 – e, por outro, a concretização da tutela jurisdicional efectiva

dos direitos dos particulares, garantida pelo art. 268.º, n.º 4, da Constituição (introduzido

pela revisão constitucional de 1997, após a aprovação do primeiro Código do Procedimento

Administrativo). Não obstante, esta perspectiva ampliativa, segundo cremos, extravasando

largamente o conjunto de princípios vinculativos de natureza orgânica definidos no art.

267.º,71 é susceptível de, in limine, questionar a primazia da lei sobre a actuação da

Administração, numa erosão quer da primazia legislativa da Assembleia da República, quer

da legalidade administrativa.72

A teoria da juridicidade convoca problemas complexos normalmente tratados pela

doutrina das fontes do direito, na sua acepção primordial, técnico-jurídica, de identificação

do direito vigente73 e, em particular, no que respeita à fronteira entre os tribunais e o

69
Art. 112.º CRP: cf. JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 173 e ss.
70
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo (5.ª ed.), Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2017, pp. 49-54.
71
Discordamos de ANTÓNIO AUGUSTO COSTA (“A erosão do princípio da legalidade e a discricionariedade
administrativa”, Revista CEDIPRE Online XII (2012), p. 8), quando considera que “o direito positivo fundamenta
claramente este entendimento” (sc., a subordinação da Administração a um princípio abstracto de juridicidade).
Não vemos, aliás, como pode extrair-se dos arts. 112.º, n.º 7, e 266.º, n.º 2, CRP senão os princípios clássicos
da legalidade e da competência.
72
Expressão do Prof. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública. O Sentido da Vinculação Administrativa à
Juridicidade, Coimbra, Almedina, 2003, p. 893.
73
vide ALF ROSS, Theorie der Rechtsquellen. Ein Beitrag zur Theorie des positiven Rechts auf Grundlage
dogmenhistorischer Untersuchungen, Berlim, F. Deuticke, 1929, pp. 290 e ss.

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legislador. Temos em mente a concepção constitucional do legislador negativo, apresentada

por Hans Kelsen em 1928,74 na sequência da publicação da Allgemeine Staatslehre. Esta

construção, embora pensada para responder aos problemas de controlo jurisdicional da

constitucionalidade das normas, não deixa de iluminar a percepção global do ordenamento

jurídico moderno,75 assente sobre uma noção normativista de constituição que estabelece

limites jurídicos ao exercício do poder e à cultura institucional das magistraturas no âmbito

da aplicação do Direito, ou a “ideologia normativa dos juízes”.76 O foco é, naturalmente, a

certeza e a segurança na aplicação do Direito debilitadas pelo constitucionalismo

principialista, com a primazia conferida a procedimentos de ponderação que, nas suas

consequências mais disruptivas, podem legitimar o activismo judicial – um “legislador

paralelo” no processo de concretização da constituição. As razões de segurança jurídica,

sempre reconduzíveis a problemas constitucionais, levam-nos à discussão sobre os limites

da jurisdição e da ponderação de princípios. O intérprete-aplicador pode, efectivamente,

ponderar princípios, aproximando-se do legislador?

Estes temas foram discutidos pela Assembleia Constituinte, em 1976, e discutidos

nas revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997. Não cabe ao intérprete ponderar princípios –

foi o veredicto invariável do legislador constituinte. Os princípios, com efeito, dirigem-se

ao legislador, não ao juiz; e se os mais importantes princípios são acolhidos pelo legislador,

não se lhe sobrepõem.77

Poderão, ainda assim, os princípios jurídicos constituir a matéria-prima da

normação? Cada jurista apresentará uma definição diferente de princípios jurídicos. A nosso

74
Em comunicação à Associação dos Professores Alemães de Direito Público.
75
Na sua base, a noção de constituição como o conjunto de regras disciplinadoras de normas jurídicas gerais e
que constituem o nível mais elevado do sistema jurídico estadual.
76
Expressão de ALF ROSS, op. cit. A visão kelseniana do legislador negativo colide com uma concepção
material-axiológica de constituição que admite a função jurisdicional como um legislador paralelo,
desenvolvida hoje sobretudo por Robert Alexy, na senda do constitucionalismo de matriz axiológica de Rudolf
Smend. Um dos contributos mais importantes de Alexy para o edifício das fontes do Direito é justamente a
defesa de uma visão principialista da concretização dos direitos fundamentais no Estado de direito democrático.
77
Neste âmbito, mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem é convertida em parâmetro axiomático
de interpretação constitucional (art. 16.º, n.º 2, CRP) não por força da sua conformidade com vectores
fundamentais do ordenamento jurídico, mas pela vontade do poder constituinte democraticamente exercido.

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ver, no direito moderno, os princípios devem constituir a expressão, construída a partir da

enunciação normativa, de vectores fundamentais implícita ou explicitamente presentes num

ordenamento jurídico globalmente considerado – o que significa que se extraem das normas

por um processo exegético e não que consagram aprioristicamente postulados

conformadores da normação, pois a validade das leis resulta da sua conformidade formal com

os processos legalmente admitidos da construção normativa e não da correspondência

material com postulados axiológicos prévios.78 Não cremos, pois, que as estruturas formais

do direito positivo permitam já ver nos princípios os fundamentos constitutivos de validade

da própria juridicidade,79 pois isso equivaleria a rejeitar (no mínimo, a relegar para um plano

secundário, formal) a vontade democrática como fundamento de validade das normas.

Discutiu-se ainda na elaboração do texto constitucional a subordinação ao paradigma

do Estado de direito – que, pese embora de difusão quase universal nas sociedades

contemporâneas, é de definição complexa80 –, aí compreendidos os princípios jurídicos

civilizacionais extra ou supralegais. A subordinação ao Direito foi, não obstante, aceite na

revisão de 1982, com uma importante ressalva: Portugal não é apenas um Estado de direito,

mas um Estado de direito democrático. A discussão centrava-se na vagueza axiológica da

palavra Direito e em torno do princípio da separação e interdependência de poderes que

estrutura a “ordenação de competências, órgãos e funções enquanto freios, balanços e

controlos.”81 Em síntese, e de acordo com o princípio da vinculação do juiz à lei (art. 203.º

78
Para a distinção entre princípios e normas, vide JOSÉ LAMEGO, Elementos de Metodologia Jurídica, Coimbra,
Almedina, 2016, pp. 57-63; IDEM, Filosofia do Direito, vol. I, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 90 e ss.
79
Entendimento de ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, “A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu
sentido (diálogo com Kelsen)”, in Digesta. Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e
outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, vol. II, pp. 140-145.
80
Sobre o Estado de Direito, vide BRIAN TAMANAHA, On the Rule of Law. History, Politics, Theory, Cambridge,
Cambridge University Press, 2004, e DANILO ZOLO, “The Rule of Law: a critical reappraisal”, in P. Costa &
D. Zolo (edd.), The Rule of Law: History, Theory and Criticism, Dordrecht, Springer, 2007, pp. 3-71. Na
doutrina portuguesa, cf. MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp.
139-150.
81
LUÍSA NETO, “O Estado de Direito: autonomia e heteronomia; consenso e determinação; espaço de retórica”,
VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, CES, 2014, p. 21. Assim se previnem
também os efeitos imprevisíveis da Rechtsfortbildung, o extravasamento dos limites da interpretação da lei para
criar o direito aplicável.

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CRP), não cabe ao intérprete (nem ao juiz) definir o que é o Direito; por outro lado, o Direito

democrático é, grosso modo, a lei.82

Em conclusão, partindo da dogmática geral das fontes do Direito e do cruzamento

das disposições iniciais do Código Civil com o art. 203.º da Constituição, a subordinação do

poder administrativo “à lei e ao Direito” não pode justificar um acréscimo potencialmente

arbitrário de normas ao ordenamento jurídico, aqui entendido como o conjunto das normas

legais, porquanto num Estado de Direito democrático apenas é possível admitir que, no

exercício de poderes de controlo jurisdicional da constitucionalidade, o juiz possa subtrair

normas desconformes, actuando como legislador negativo. A função legislativa, englobada na

função política, assume natureza primária, enquanto a função administrativa, subordinada à

constituição, é “essencialmente volitiva, de natureza jurídica e material, tendo por objecto

executar as leis e satisfazer necessidades colectivas, por prévia opção política consideradas de

responsabilidade estadual.”83

3. O poder discricionário
A aplicação da lei é uma actividade assente, em primeiro lugar, na interpretação. Law in the

books converte-se em law in action por via de uma tarefa de interpretação que implica

escolhas. Estas escolhas são delimitadas, no caso da Administração, pela ordem jurídica.

Interpretação, apreciação dos factos e decisão comportam sempre vínculos (regras

vinculadas) e também elementos discricionários, que implicam escolhas da responsabilidade

do aplicador do Direito.

Teoricamente, é possível destacar estes diferentes momentos, mas eles obedecem a

uma lógica de sucessão, em termos fácticos, e a uma interpenetração na realidade. De acordo

com as teses culturalistas, o Direito não é uma ciência social, mas antes uma ciência cultural

– pois a cultura é uma realidade imanente ao Direito e manifesta-se através da ordem

82
Tenhamos em mente que a Constituição de 1933 subordinava o Estado, no seu art. 4.º, “ao Direito e à moral”;
cf. também, neste quadro, o importante art. 97.º, n.º 1, da constituição alemã, que dispõe que “os tribunais
apenas estão sujeitos à lei”.
83
MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional, Braga, Livraria Cruz, 1979, p. 252.

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jurídica. Uma das explicações culturalistas recorre à imagem do tradutor (o jurista como

tradutor-(re)criador), partindo da ideia de que se transporta uma realidade do mundo do

Direito para o mundo dos factos, como quando se traduz.84 Outra comparação é a do Direito

com uma arte cénica: um jurista parte de uma norma (de um texto) e interpreta-a numa

tarefa criativa, recriando-a em público e sujeitando-se a um escrutínio.

Num tribunal, tal como num palco, há uma dimensão pública e várias interpretações

possíveis. A lei permite várias escolhas, com uma determinada margem conferida pela

vinculação, legitimando o exercício do poder discricionário pelo intérprete-aplicador. Cada

poder compreende simultaneamente aspectos discricionários (i.e., a possibilidade de optar

entre diferentes soluções legalmente possíveis que resultem de certa lei) e vinculados. O

poder discricionário deve entender-se, num Estado de direito, como o meio por que a

Administração pode manifestar a orientação do ordenamento jurídico nos casos concretos.

O jurista considera em primeiro lugar o texto da norma e interpreta-o, numa

operação com aspectos vinculados, mas que também implica escolhas (sendo as escolhas mais

difíceis as relativas ao preenchimento dos conceitos indeterminados). Ao contrário do que

defendiam os autores positivistas, interpretar a norma implica sempre escolhas – e as

interpretações são sempre legítimas, desde que encontrem correspondência no conteúdo da

norma. Interpretar é reconstituir a norma no mundo dos factos, atendendo a uma lógica de

juridicidade, de acordo com a qual interpretar a lei não é unicamente um poder vinculado

(como consideram os Profs. Sérvulo Correia e Marcello Caetano), mas admite também uma

dimensão discricionária, que não é uma realidade extrajurídica.85

Depois de interpretar a norma, há que apreciar os factos e o seu enquadramento na

previsão. Muitas vezes, a subsunção é insuficiente, pois pode haver necessidade de integrar

84
Proposta por JAMES B. WHITE, Justice as Translation: an Essay in Cultural and Legal Criticism, Chicago,
University of Chicago Press, 1990, e FRANÇOIS OST, Le Droit comme Traduction, Québec, Presses de l'Université
Laval, 2009.
85
A pluralidade de interpretações possíveis da norma explica-se pela existência de uma comunidade aberta dos
intérpretes-aplicadores do Direito, que vão criando a norma. Neste sentido, posições em certo momento
unânimes podem mais tarde ser alteradas (viz. de acordo com um voto vencido). É possível considerar
inclusivamente que um voto vencido é tão importante como o conteúdo da norma na construção moderna das
fontes do Direito.

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aspectos técnicos nesta apreciação. A apreciação não é livre, mas delimitada por margens que

podem obrigar a Administração a um esforço adicional para enquadrar os factos na norma e

reconduzi-los ao mundo do Direito.

A discricionariedade da decisão existe desde o início do Direito Administrativo;86

deve acrescentar-se, porém, a margem de apreciação dos factos e de interpretação da norma.

Mesmo perante uma norma que pareça integralmente vinculada, oferecem-se certas escolhas

ao jurista, entre as quais a do momento da decisão, por regra de natureza discricionária.

3.1. Dimensões do controlo da discricionariedade administrativa


A tarefa social do jurista, semelhante a outras em que há que passar de um texto à realidade

através de uma actuação criadora, nunca é inteiramente livre, por via do estabelecimento

de margens de controlo. Estas margens alargam-se em resultado de uma nova lógica de

enquadramento do Direito como sendo norma, mas ao mesmo tempo princípios –

elementos essenciais da ordem jurídica que carecem de aplicação; normas e princípios têm

uma relação entre si, mas os princípios valem com um peso autónomo que se concretiza

na fixação de parâmetros e de limites que recortam o poder discricionário e norteiam a

actividade do juiz.

Aqui, há que considerar que as transformações recentes aumentaram em grande

medida o número de vinculações genéricas. A escola de Lisboa,87 mesmo quando defendia

posições mais restritivas, já havia desempenhado um papel importante a salientar alguns

destes critérios (e.g., a caracterização do Prof. Marcello Caetano do poder discricionário

como um poder livre já comportava, todavia, algumas vinculações).

86
Nas palavras do Prof. Rogério Soares, “a ideia de equilíbrio e contrapeso da separação de poderes, que […]
exige o reconhecimento dum poder administrativo autónomo, não pedestremente executivo, implica também
que não se atribua a esse poder a liberdade de, em matérias essenciais, conformar a existência dos cidadãos.”
(“Princípio da legalidade e administração constitutiva”, p. 184)
87
A divisão dogmática ao nível do ensino do Direito Administrativo em Portugal foi especialmente vincada na
segunda metade do século XX, por via da influência francesa sobre a “escola de Lisboa” (representada pelos
Profs. Marcello Caetano, Freitas do Amaral e Sérvulo Correia), em contraste com a influência mais marcada
do direito alemão sobre a “escola de Coimbra” (representada pelos Profs. Afonso Queiró e Rogério Soares).

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O controlo do poder discricionário opera por via das limitações dos vínculos da

competência e do fim. O vínculo da competência implica que um órgão não pode actuar sem

uma norma habilitante, pois a competência decorre obrigatoriamente da norma, não sendo

admissíveis presunções de competência;88 aqui importa distinguir entre a competência

relativa, que se reporta a órgãos da mesma pessoa colectiva, e as atribuições.89 O vínculo de

fim traduz-se na ideia de que cada norma de atribuição de competências

(Ermächtigungsnormen, na designação tradicional) é emitida para produzir determinado fim.

Neste âmbito, o Prof. Marcello Caetano introduz a primeira importante

qualificação do vício de fim com o conceito de desvio de poder, distinguindo entre desvios

de poder por motivos de interesse público ou de interesse privado.90 O caso então objecto

de estudo foi o de uma enfermeira da Maternidade Alfredo da Costa, punida com a sanção

máxima (expulsão da Função Pública) num caso de troca de bebés. Pela primeira vez, na

sequência do ensino do Prof. Marcello Caetano na Faculdade de Direito de Lisboa, o

Supremo Tribunal Administrativo veio a dar razão à enfermeira, considerando que o fim

em causa na decisão era de interesse público (in casu, dar uma satisfação à opinião pública),

mas era ilegalmente prosseguido com aquele conteúdo, porquanto a conduta da enfermeira

apenas poderia conduzir a sanções disciplinares leves (i.e., o fim do acto de punir não

estava a ser prosseguido nos termos da sua dimensão real). Foi este em Portugal o primeiro

caso de ilegalidade por prossecução de um fim diferente do previsto na lei.

Mais grave é a situação de desvio de fim por razões de interesse privado: se o titular

de um poder público utilizar uma competência em proveito próprio, ou para beneficiar um

terceiro de quem é próximo, estamos perante um tipo de desvio de fim que o Prof. Freitas

do Amaral classifica como corrupção. Toda a actuação administrativa em causa é

obrigatoriamente nula. Visão diferente era a do Prof. Marcello Caetano, que considerava

que o desvio de poder era o único vício alegável no âmbito do exercício de poderes

88
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 57 e ss.
89
Distingue-se entre incompetência absoluta e incompetência por falta de atribuições.
90
Hoje transformou-se esta ideia para se considerar um desvio de fim.

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discricionários, uma vez que todos os outros vícios diriam respeito a actos vinculados. Esta

concepção hoje em dia não pode subsistir, uma vez que as vinculações decorrentes dos

princípios geram situações de ilegalidade material, já admitidas pelo Prof. Freitas do Amaral

e pelos seus continuadores. O desvio de poder não se limita hoje à discricionariedade: pode

sempre haver vícios de fim, no exercício de quaisquer poderes administrativos. Há, pois,

ilegalidades possíveis em qualquer realidade administrativa, não fazendo sentido distinguir

o desvio de poder de uma actuação ilegal.

3.2. Os princípios da actuação administrativa


Os princípios de Direito Administrativo constituem um elemento de limitação do poder

discricionário e são responsáveis pela sua juridicização, comportando uma abertura a

valores fundamentais da ordem jurídica que o legislador converteu em regras

fundamentais da actividade da Administração. O Prof. Freitas do Amaral introduziu na

doutrina portuguesa a ideia de que os princípios também fornecem parâmetros de decisão

obrigatórios; estes princípios podem ser múltiplos e resultam quer da ordem jurídica

global, quer da própria ordem constitucional. Pelo menos dois princípios da ordem jurídica

global aplicam-se directamente às realidades administrativas: o due process of law e o

princípio da proporcionalidade, considerado essencial em todos os domínios da ordem

jurídica.

A ordem jurídica eurocomunitária, designadamente através da Carta dos Direitos

Fundamentais da União Europeia, impõe o princípio da boa administração (apenas

concretizado com a versão de 2015 do CPA), directamente vinculativo para a actuação

administrativa. Também o legislador constituinte consagrou uma série de princípios

directamente aplicáveis, apoiado em construções da jurisprudência constitucional. Entre

estes, encontramos um conjunto de regras que funcionam como limites à actuação do

poder administrativo. Os arts. 266.º e 267.º da Constituição da República consagram

alguns destes princípios fundamentais, que têm sido alargados em cada revisão

constitucional, reflectindo uma consciência maior dos elementos da juridicidade: a

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prossecução do interesse público no respeito pelos direitos dos particulares (fundamento

do Estado de Direito democrático), o princípio da legalidade entendido na sua máxima

amplitude, a par dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da boa-fé

(art. 266.º, n.º 2, CRP).

O art. 267.º da Constituição apresenta um conjunto de princípios vinculativos de

natureza orgânica, que se encadeiam (arts. 268.º e ss.) com outros princípios e deveres de

natureza fundamental. O CPA, quer na versão de 1991, quer na versão actual, alargou

também o número destes princípios, não obstante subsistam algumas objecções.

O primeiro é o princípio da legalidade (art. 3.º CPA), prevendo a subordinação da

Administração Pública à lei e ao Direito. O n.º 2 deste artigo, entretanto acrescentado,

prevê a actuação em estado de necessidade, estabelecendo algumas diferenças quanto ao

regime geral do art. 19.º CRP. Os actos praticados ao abrigo desta previsão carecem de

razões urgentes que possam atender a determinada emergência. Pode, porém, perguntar-

se como é sindicável o preceito de que os resultados “não pudessem ser obtidos de outro

modo”: o Prof. Vasco Pereira da Silva considera este novo n.º 2 inconstitucional,

atendendo ao respeito pelo princípio da proporcionalidade, e tautológica a previsão de

indemnização aos particulares em caso de lesão de direitos; pois dizer, sem mais, que os

actos são válidos em qualquer circunstância, desde que haja indemnização, parece

contrariar frontalmente o princípio da proporcionalidade.

O legislador estabelece ainda o princípio da prossecução do interesse público (art.

5.º CPA), regulação essencial da actividade administrativa (através dos critérios de

eficiência, economicidade e celeridade), e, em estreita relação com este, limitando o critério

do interesse público, o princípio do respeito pelos direitos dos particulares (art. 4.º CPA),

que deve ser integrado com o art. 266.º, n.º 1, da Constituição. Numa lógica actual de

Direito Administrativo, a prossecução do interesse público não pode funcionar sem

respeitar os direitos e interesses legitimamente protegidos dos particulares (o direito de

petição e o direito de resistência funcionam como garantias deste princípio).

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Já o princípio da boa administração parece formulado em termos insuficientes: é

certo que a celeridade e a eficiência são elementos da boa administração (o Prof. Freitas do

Amaral critica a formulação do princípio, por confundir questões de mérito com questões

de legalidade), mas, para além destes aspectos – e de outros, regulados por outras normas

–, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que permite ampliar este

princípio, estabelece a necessidade de uma decisão equitativa e que corresponda à correcta

decisão do caso. O princípio provém do direito anglo-saxónico e comporta sobretudo uma

dimensão material.

Do ponto de vista legal, o princípio da boa administração é fixado pela primeira vez

com a reforma do procedimento administrativo de 2015, integrado no art. 5.º CPA, cujo n.º

1 prescreve que “[a] Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência,

economicidade e celeridade.” Este princípio, contudo, encontrando-se consagrado também

na CDFUE, integrava a ordem jurídica portuguesa já antes de 2015. Assim, antes do novo

código, já poderia haver actuações administrativas que, por violação do princípio da boa

administração, fossem sancionáveis em tribunal. Há que o interpretar à luz das regras e dos

princípios da CDFUE, alargando o conteúdo do princípio. Na óptica do legislador,

constituem o núcleo fundamental do princípio da boa administração os critérios da

eficiência, economicidade e celeridade; mas estes princípios já estavam também consagrados

na constituição portuguesa, expressa ou implicitamente.91

No quadro do Direito da União Europeia, o princípio da boa administração traduz

ainda outras regras que encontram autonomização em diferentes disposições

administrativas portuguesas. Ficou ausente do texto do artigo, porém – e deve integrá-lo –,

o princípio da participação dos interessados (art. 267.º, n.º 1, CRP), que implica o respeito

pelo direito de audiência, tornado genericamente obrigatório pelo CPA em todas as decisões

que respeitem aos particulares,92 o direito à informação (art. 37.º CRP) e o princípio da

91
Defendia o Prof. Sousa Franco que estes princípios eram implicitamente consagrados pela Constituição no
domínio das Finanças Públicas.
92
Cf. todavia os arts. 121.º, n.º 1 e 2, e 122.º CPA.

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fundamentação dos actos administrativos (art. 268.º, n.º 3, CRP), que obriga a

Administração Pública a fundamentar as razões que a levam a actuar em determinado

sentido. É através da fundamentação que, no exercício dos poderes discricionários, os

particulares podem avaliar a correspondência da actuação administrativa com os critérios

legais.

Outro princípio eurocomunitário está ausente da lei portuguesa: o princípio da

administração equitativa, correspondente ao due process of law. Trata-se fundamentalmente

da adequação do procedimento à decisão tomada, cujo desrespeito implica uma ilegalidade

material da actuação. A boa administração deve incluir, pois, a ideia do procedimento devido,

enquanto procedimento adequado à decisão.

O princípio da boa administração fixa ainda uma fronteira entre o entendimento

tradicional do poder discricionário como um poder legal e um entendimento mitigado desta

realidade. Não há nenhum princípio administrativo que não seja dotado de obrigatoriedade,

embora autores como o Prof. Sérvulo Correia não admitam a consagração da juridicidade da

boa administração nem, tão-pouco, a sua eficácia jurisdicional. A ideia-chave é o perigo de

os tribunais serem obrigados a decidir sobre questões de mérito, o que reflecte ainda uma

concepção oitocentista do princípio da legalidade.93 Porém, à medida que os princípios vêm

juridificando regras anteriormente entendidas apenas como regras de mérito, limita-se o

exercício dos poderes discricionários da Administração. Pode a isto obstar-se com o respeito

pelo princípio da proporcionalidade, cujo controlo opera precisamente no âmbito material

da actuação administrativa. Não obstante, a desconformidade com o princípio da boa

administração gera sempre uma actuação inválida.

O princípio da igualdade (art. 6.º CPA) impõe um dever de não discriminação à

Administração Pública nas suas relações com os particulares. A estes admitem-se, nas

relações pessoais, comportamentos discriminatórios que, desde que não violem valores

93
Neste sentido, o Prof. Marcello Caetano referia-se a um “controle de mera legalidade” da actuação
administrativa, o que subtraía à sindicabilidade judicial tudo o que fossem questões de mérito.

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fundamentais da ordem jurídica, não podem ser objecto de controlo jurisdicional; a

Administração, porém, não goza dessa margem de discriminação em quaisquer situações.

O princípio da proporcionalidade (art. 7.º CPA) constitui um princípio geral de

Direito e concretiza-se segundo critérios internos (de necessidade, adequação e ausência de

excesso, ou proporcionalidade stricto sensu). A violação de qualquer destes critérios implica a

ilegalidade de uma decisão administrativa. O legislador consagrou a ideia da adequação e do

excesso no n.º 2 do art. 7.º (“As decisões da Administração que colidam com direitos

subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas

posições na medida do necessário e em termos proporcionais aos objectivos a realizar.”),

deixando apenas implícita a necessidade no n.º 1 do mesmo preceito.

O princípio da racionalidade, que não tem consagração constitucional em Portugal,

é, não obstante, aplicável na ordem jurídica: o legislador administrativo desdobrou-o nos

princípios da justiça e da razoabilidade, consagrados no art. 8.º CPA (“A Administração

Pública deve tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as

soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito,

nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias

do exercício da função administrativa.”). O princípio da justiça comporta uma dimensão

ética, correspondente ao preceito de Ulpiano suum cuique tribuere. Convertido em princípio

jurídico transversal à actuação administrativa, estabelece que cabe aos órgãos competentes

dosear a aplicação da justiça, no âmbito do exercício dos poderes discricionários. A

complementaridade dos dois princípios justifica-se pela dificuldade de definição do conceito

de Justiça pelo legislador.

O princípio da imparcialidade (art. 9.º CPA), aplicável tanto à resolução de casos

concretos quanto à emissão de normas gerais e abstractas, proíbe à Administração a decisão

em casos em que o titular de um órgão tenha interesses directos ou indirectos no

procedimento, adoptando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à

preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção. A intervenção noutro

sentido viola a lei e pode determinar a anulação da decisão. Neste âmbito, o impedimento

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(arts. 69.º a 72.º CPA) e a suspeição (arts. 73.º a 75.º CPA) operam como garantias

preventivas para evitar a violação da imparcialidade; nas suspeições, que constituem casos

menos graves do que os impedimentos, há que atender ao caso concreto para verificar a

violação. Já a violação de impedimentos constitui sempre uma ilegalidade. Estes mecanismos

são importantes não apenas numa perspectiva jurídica, mas também enquanto

materialização dos princípios do Estado de Direito.

O princípio da imparcialidade destina-se a assegurar que nenhuma decisão é

contaminada por um interesse do decisor na matéria. Procura garantir-se que os titulares

dos órgãos públicos não decidam em causa própria, nem em causas em que se interponham

interesses de particulares próximos do titular. Além das garantias, o código formula

genericamente o princípio, considerando que há ilegalidade sempre que se decide em causa

própria. A prevenção da falta ao dever de imparcialidade assenta, em primeiro lugar, na

actuação do Ministério Público (que tem actuado mais no quadro do Direito Penal do que

do Direito Administrativo), mas opera também por iniciativa dos particulares. Não se trata

de mecanismos de ordem meramente moral, mas de verdadeiros princípios conformadores

da realidade jurídica, no quadro da actual realidade política.

O princípio da boa-fé (art. 10.º CPA) nasce no Direito Privado. Começou por se

considerar que a Administração deve actuar como uma pessoa de bem, tratando todos de

forma justa; mas para além desta ideia formativa do comportamento da Administração, a

dimensão essencial da boa-fé é a tutela da confiança: i.e., se um particular recebeu alguma

coisa através de uma actuação administrativa, confere-se-lhe o direito de confiar na prática

da Administração, com uma proibição de venire contra factum proprium. Só em casos de

ilegalidade que deva ser corrigida pode ser afectado este princípio, não podendo, e.g.,

mudanças de critérios de mérito afectar casos passados. Um dos primeiros estudiosos deste

princípio no quadro do Direito Administrativo foi o Prof. Menezes Cordeiro, que dedica

uma parte da sua tese sobre a Boa-fé à sua concretização no Direito Público.94 A

94
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984.

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Administração Pública deve actuar, assim, de acordo com a boa-fé, proteger a confiança dos

particulares (arts. 165.º e ss. CPA) e o objectivo a alcançar com a actuação pretendida.

O princípio da colaboração com os particulares (art. 11.º CPA) obriga a

Administração Pública a actuar numa lógica de cooperação no exercício da função

administrativa (viz., criando mecanismos que levem os particulares a cumprir a lei, com

estímulos à adopção de bons comportamentos). Também a Administração deve, neste

âmbito, actuar de boa-fé, prestando informações genuínas, pelas quais é responsável.

O princípio da participação (art. 12.º CPA) nasce do direito de participação, com

dignidade constitucional (arts. 267.º, n.º 1, e 268.º CRP), sendo um dos seus corolários a

consagração do direito de audiência. Os particulares têm de ser ouvidos pelos poderes

públicos antes da tomada de decisões que os possam afectar. A posição dominante nesta

matéria, defendida pelos Profs. Freitas do Amaral e Rui Machete, é que os actos praticados

sem audiência dos particulares geram apenas anulabilidade; todavia, de acordo com os Profs.

Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho e Vasco Pereira da Silva, o vício correspondente

a estas actuações é necessariamente a nulidade do acto.

O princípio da decisão (art. 13.º CPA) impõe à Administração Pública um dever de

se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados,

obrigando-a a dar resposta célere aos particulares e fixando as consequências da não-decisão

por inacção do órgão competente. O dever de decisão – entendida a decisão enquanto causa

de extinção do procedimento administrativo – não significa, porém, que haja que responder

reiteradamente ao mesmo pedido, com os mesmos fundamentos, de um particular. Nesta

situação encontramos a única excepção de desvinculação da Administração do dever de

decidir (art. 129.º CPA). O prazo actual para a abstenção de resposta a pedidos idênticos, sem

alteração de circunstâncias, é de dois anos (foi alargado o prazo inicial, que era de apenas um

ano).95

95
vide TIAGO ANTUNES, “A decisão no novo Código do Procedimento Administrativo”, in Carla Amado Gomes
et al. (edd.), Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, vol. II (4.ª ed.), Lisboa, AAFDL, 2018,
pp. 167-203.

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55

O art 14.º CPA estabelece os princípios aplicáveis à administração electrónica. O

objectivo primordial é promover a eficiência e a transparência administrativas e a

proximidade com os interessados, com a obrigação de garantir a disponibilidade, o acesso, a

integridade, a autenticidade, a confidencialidade, a conservação e a segurança da informação.

Os actos emitidos electronicamente são considerados actos administrativos, sendo

obrigatoriamente regidos por regulamentos. O Prof. Vasco Pereira da Silva critica a

formulação do artigo, em especial o n.º 1 e o n.º 3, pela sua vacuidade e mesmo pelo carácter

tautológico dos preceitos.

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56

II. UMA VIAGEM AO CENTRO


DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Introdução
Antes do estudo da teoria das formas de actuação administrativa – o acto administrativo, o

regulamento e o contrato –, é necessário fixar alguns conceitos operativos, em particular o

conceito de acto administrativo, que constituiu o primeiro e mais importante centro do

Direito Administrativo e originou a concepção actocêntrica do Estado liberal, mas também

o conceito de procedimento, realidade essencial nos nossos dias, e, por último, de relação

jurídica administrativa.

O título Viagem ao Centro do Direito Administrativo remete para Júlio Verne (1828-

1905). A ideia de centro é sempre de algum modo ficcional e, nesta matéria, em parte

desadequada. Quando surgiu o Direito Administrativo e a sua teorização pela doutrina

positivista, procurava-se uma noção-quadro capaz de resumir completamente uma

disciplina jurídica: um conceito dotado do valor simbólico da representação de todo o

Direito. Este conceito-chave foi, para o Direito Administrativo, o acto administrativo, e

para o Direito Civil o negócio jurídico. Todavia, nem o negócio jurídico esgota todo o

Direito Civil, nem o acto administrativo esgota todo o Direito Administrativo: a ideia de

que pode haver um conceito a que tudo se reconduz, um conceito-quadro, soçobra

necessariamente do ponto de vista teórico. Mesmo se as concepções actocêntricas de feição

autoritária forem substituídas por outras mais actuais – como o procedimento ou a relação

jurídica administrativa –, não é possível com um conceito apenas, e não obstante as

generalizações doutrinárias contemporâneas, explicar toda a realidade do moderno Direito

Administrativo. Neste sentido, o recurso à obra literária permite ilustrar a ideia de centro

como uma construção fictícia: estamos, com efeito, perante realidades policêntricas.

Surgiram recentemente outras justificações para o recurso à noção de centro, com

a procura de conceitos mais amplos e mais frequentes. Neste sentido, quer o procedimento,

quer a relação jurídica são, em si mesmos, mais amplos do que o acto administrativo; mas,

embora mais completos, não esgotam toda a realidade administrativa. Há que partir da

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57

evolução do conceito de acto administrativo para compreender a função do procedimento

e da relação jurídica administrativa.

2. O primeiro centro: o acto administrativo


As concepções clássicas foram marcadamente actocêntricas: o Direito Administrativo,

nascido com o Estado liberal, era o direito de uma administração agressiva

(Eingriffsverwaltung), parcamente limitada pela lei, e que, de acordo com a filosofia liberal,

actuava quase apenas para garantia da segurança pública. A lógica liberal era a da protecção

da segurança da propriedade e do Estado, pelo que os modelos de actuação da Administração

eram a polícia e o exército. O centro deste direito era, consequentemente, o acto de polícia,

sendo as primeiras noções de acto administrativo de acentuada feição autoritária, numa

época em que se procurava um equilíbrio entre a burguesia, representada nos parlamentos,

e a aristocracia que ocupava, em grande medida, os executivos.

Neste contexto de um positivismo que equiparava a Administração, com funções

secundárias, à Justiça, Otto Mayer (1846-1924), pai do Direito Administrativo alemão e um

dos pais do Direito Administrativo moderno, concebe o acto administrativo como uma

espécie de sentença, uma decisão de autoridade da Administração que define o direito dos

administrados no caso concreto. Nesta sua noção de acto administrativo, onde apenas cabem

os actos decisórios externos, discernimos duas componentes essenciais: em primeiro lugar,

a definição autoritária de uma posição jurídica dos particulares (significando que a

Administração define o direito aplicado aos particulares no caso concreto, à semelhança de

um tribunal), e em segundo, a coercibilidade desta “sentença”, susceptível de execução pelo

poder policial (i.e., uma decisão que admitia a execução coactiva contra a vontade dos

particulares). Estas duas características, definitividade e executoriedade, vão marcar toda

a teoria clássica do Direito Administrativo.

Mais tarde, Maurice Hauriou (1856-1929) vem contrapor ao positivismo científico

de Mayer um positivismo sociológico. Hauriou propõe uma construção diferente, com

uma dicotomia que propunha a comparação do acto administrativo ao negócio jurídico, de

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58

onde resultou a percepção de que no Direito Administrativo havia uma realidade

exorbitante. Na perspectiva de Hauriou, que salienta uma dimensão autoritária do poder da

vontade na formação do acto administrativo, havia dois privilégios exorbitantes

característicos da Administração Pública: o privilégio de definir o direito aplicável aos

particulares no caso concreto (definitividade) e o privilégio de executar coactivamente, e

por autoridade própria, as suas decisões, independentemente de previsão legal

(executoriedade).96

Estas noções adequavam-se a um modelo de Estado-polícia característico do

Liberalismo clássico. Todavia, na viragem para o século XX, a realidade política muda

acentuadamente, enquanto as construções teóricas dos poderes administrativos

permanecem iguais em quase toda a Europa. Podemos dizer que as fórmulas repetidas pela

doutrina administrativa nas primeiras décadas do séc. XX, e sobretudo no Pós-Guerra, já

não faziam sentido do ponto de vista jurídico-político. A evolução foi lenta, e foram

precisas décadas, sobretudo em Portugal, para que o Direito Administrativo se libertasse

desses traumas, porque as ideias de Otto Mayer e de Maurice Hauriou foram replicadas no

século XX pela doutrina dos países do Sul da Europa. Em Portugal, por exemplo, foi

preciso esperar pela revisão constitucional de 1989 para que a noção de acto definitivo e

executório saísse da Constituição, e ainda até 2004 continuava no Código de Processo,

mesmo quando já não tinha qualquer aplicabilidade jurídica.97

A insistência nestes conceitos de acto administrativo, mesmo perante uma

Administração prestadora e uma realidade jurídica e social completamente diferente, em que

nenhuma das características clássicas servia já para enquadrar o acto administrativo, é um

fenómeno estranho.98 Alguns autores clássicos contribuíram decisivamente para isto, como

Santi Romano, em Itália, e o Prof. Marcello Caetano, em Portugal, que aplica esta realidade

96
Considerava-se, assim, que as decisões administrativas possuíam força executória própria, um conceito
fundamental para toda a história do Direito Administrativo.
97
A este propósito, vide MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, “A eliminação do acto definitivo e executório na
revisão constitucional de 1989”, Direito e Justiça VI (1992), pp. 365-400, e VII (1993), pp. 191-234.
98
Um “fenómeno quase paranormal” de vida para além da morte, considerava o Prof. Vasco Pereira da Silva
em 1996, na tese Em Busca do Acto Administrativo Perdido.

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ao quadro da Constituição de 1933, assumindo os pontos positivos da visão autoritária dos

poderes públicos propugnada pela filosofia liberal.

3. As concepções actocêntricas no direito português e sua evolução


Também segundo o Prof. Marcello Caetano, os actos administrativos têm como

características essenciais a definitividade (a ideia de definição do direito e do procedimento

por uma entidade de natureza superior) e a executoriedade (a susceptibilidade de execução

coactiva). Esta noção informa todo o direito português, pois não apenas era aceite pela

doutrina e pela jurisprudência como também constava da lei, com tradução nas normas do

Contencioso Administrativo, designadamente na ideia de que só os actos definitivos são

susceptíveis de apreciação pelos tribunais administrativos.99

Na sequência deste regime jurídico, o Prof. Freitas do Amaral propõe a teoria da

tripla definitividade. Não basta que o acto seja definitivo, mas tem de ser definitivo em três

vertentes distintas: por representar o fim do procedimento (i.e., o acto último do

procedimento administrativo, à semelhança de uma sentença), por ser praticado por um

órgão de topo (o que explica a preservação, durante muitos anos, da ideia do recurso

hierárquico necessário100) e, por último, pela ideia de definitividade material, que

corresponde à definição por um acto administrativo do direito aplicável aos particulares no

caso concreto.

Todavia, no quadro do novo modelo do Estado social, já nenhuma das

características clássicas essenciais do acto administrativo existia, pelo que tão-pouco a

99
No direito português, o primeiro autor a formular uma noção completa de acto administrativo foi Jacinto
António Perdigão, nos Apontamentos de Direito, Legislação e Jurisprudência Administrativa e Fiscal, de 1883.
Segundo este autor, são actos administrativos “todas as medidas, providências ou resoluções tomadas pelos
agentes directos da administração activa ou pelos corpos gerentes da administração local, seja qual for a
natureza que tiverem ou a forma que revestirem” (apud M. CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I
(10.ª ed.), p. 427). Só na geração seguinte os Profs. Fezas Vital e Magalhães Collaço viriam a identificar o acto
administrativo como uma expressão da vontade dos órgãos administrativos com efeitos na esfera jurídica dos
particulares. Sobre a relevância, no direito português, do conceito inovador de acto administrativo proposto
pelo Prof. Marcello Caetano nas décadas de 30 e 40 (não sem algumas flutuações ao longo das décadas
seguintes), vide MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, loc. cit., parte II, pp. 202 e ss.
100
A ideia de que antes de ir a tribunal, havia que recorrer ao superior hierárquico, não sendo o acto
impugnável antes do recurso.

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60

discussão em torno de noções delas directamente resultantes tinha sentido quer teórico,

quer prático. Consideremos, em primeiro lugar, a ideia de definição do direito. Um acto

administrativo não define o direito: pelo contrário, o acto produz efeitos jurídicos, mas a

produção de efeitos não implica até necessariamente que se trate de um acto jurídico. A

Administração utiliza a ordem jurídica como um fim para satisfazer necessidades

colectivas, no que é radicalmente diferente dos tribunais, que têm no Direito o fim da sua

própria actividade. O juiz define o direito aplicável no caso concreto; a Administração não,

e muito menos na realidade contemporânea, em que a generalidade dos actos da

Administração prestadora tem por objecto a atribuição de bens e serviços que não definem

qualquer posição jurídica.101

Não é possível dizer hoje, assim, que a definitividade seja uma característica essencial

do acto; e considerando-a na tripla dimensão defendida pelo Prof. Freitas do Amaral, ainda

menos a definitividade é admissível, na medida em que o direito é um meio para a

Administração actuar – poderá ser um resultado, efeito jurídico do acto, mas não um fim em

si mesmo. Deve afastar-se, por conseguinte, a ideia de definitividade material.

No que concerne ao fim do procedimento, a própria complexificação da actividade

administrativa faz com que haja um sucessão de procedimentos que se interpenetram e

formam uma lógica sequencial. Em todos esses procedimentos há actos administrativos, e

sempre que um deles produza efeitos lesivos de direitos, é susceptível de impugnação judicial.

Portanto, não é apenas o último acto – o acto que esgota o procedimento – que é relevante:

todos os actos procedimentais são juridicamente relevantes.102

101
Tomemos como exemplo um controlador aéreo que, no aeroporto, dá ordens aos aviões que lhes permitem
aterrar ou levantar voo: estas ordens não são determinadas por qualquer conhecimento jurídico, mas são dadas
com base na meteorologia e no tráfego aéreo do momento. O controlador não tem ideia de que está a praticar
um acto administrativo, nem tão-pouco o seu acto tem conteúdo especialmente jurídico. Para todos os efeitos,
a ordem dada pelo controlador tem de ser cumprida, mas este acto não define qualquer direito (não define o
direito do avião nem dos passageiros do avião).
102
Se, por exemplo, alguém pede uma autorização para o exercício de uma actividade industrial, inicia-se um
procedimento de avaliação do qual resultam actos, impugnáveis, que confirmam que não existem prejuízos
ambientais; segue-se um processo de licenciamento autónomo que origina outro acto, também este
impugnável, que afere das condições de exercício da actividade.

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61

Já a ideia do recurso hierárquico necessário é excepcional e não se aplica à maioria

das situações procedimentais. O acto produz efeitos jurídicos, o que é suficiente para

permitir a sua impugnação; a tese de que o acesso aos tribunais apenas seria possível na

sequência de um recurso hierárquico é manifestamente inconstitucional, desde logo por

desconsideração do direito à tutela jurisdicional efectiva, mas também por violação dos

princípios da separação de poderes e da desconcentração administrativa.103 Paralelamente, e

na medida em que a maior parte dos actos da Administração prestadora (actos favoráveis

que prestam bens e serviços) são insusceptíveis de execução contra a vontade dos

destinatários, tão-pouco é a executoriedade característica do acto administrativo, pois o

princípio da legalidade abrange também o poder executório, que não existe se não se fundar

numa lei.

4. Dimensões de actuação e procedimento no Direito Administrativo actual


Se em Portugal esta crise do actocentrismo surgiu tardiamente, noutros países europeus

sentia-se já nas décadas de 40 e 50, quando surgiu uma plêiade de figuras paralelas ao acto

administrativo clássico, designadamente o acto prestador e o acto multilateral.104 Na

década de 50, surgiu em Itália uma concepção procedimental, objectivista, partindo dos

valores e princípios do Direito Administrativo; embora já se esboçasse nos países anglo-

saxónicos, nomeadamente nos Estados Unidos, a verdadeira valorização do procedimento

enquanto novo centro deste ramo do Direito, com a complexificação da actividade

administrativa, foi feita pela doutrina italiana. Em cada uma das funções do Estado

encontramos realidades procedimentais: o procedimento legislativo, o procedimento

administrativo e o processo judicial. Se, por um lado, todos são procedimentos autónomos,

por outro, o procedimento é comum a todas as formas de actuação administrativa, o que

nos permite considerá-lo o elemento estruturante deste ramo do Direito.

103
Contudo, e apesar das dúvidas de constitucionalidade, o recurso hierárquico necessário manteve-se até à
reforma de 2004, previsto no art. 25.º da Lei de Processo. Em 2004, deixou de ser exigido, mantendo-se,
todavia, em casos extraordinários e quando houver previsão expressa em lei especial.
104
Cf., por todos, M. AROSO DE ALMEIDA, op. cit., pp. 273 e ss., e a bibliografia aí citada.

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Já na Alemanha surgiu uma construção paralela, baseada na ideia de relação

jurídica, integrada no procedimento. As relações jurídicas podem ser substantivas,

procedimentais e processuais. São substantivas aquelas que decorrem das normas de Direito

Administrativo que estabelecem os direitos e deveres dos diferentes sujeitos; são

procedimentais aquelas que interligam em relações jurídicas os sujeitos do procedimento

administrativo e que decorrem de previsões do próprio procedimento; por fim, são

processuais as relações criadas com o recurso aos tribunais de um sujeito para obter a tutela

jurisdicional dos seus direitos.

A ideia de relação jurídica tem vantagens sobre a de procedimento, permitindo uma

construção jurídica capaz de afastar os traumas iniciais do Direito Administrativo. Porém,

nos últimos tempos, o procedimento em sentido estrito e a relação jurídica conheceram

uma crise associada à multilateralidade. Esta é, com efeito, a característica essencial do

moderno procedimento, na medida em que uma decisão individual produz uma

multiplicidade de efeitos,105 e demonstra que, embora o conceito de relação jurídica seja o

mais adequado a explicar teoricamente a realidade administrativa actual, carece de algumas

adaptações. No caso português, a relação jurídica tem dignidade constitucional, sendo a

Constituição que estabelece as regras de funcionamento da Administração Pública e a

igualdade das partes do processo administrativo.

105
Mesmo os actos administrativos concretos produzem efeitos em relação a terceiros: e.g., todos os candidatos
de um concursos são afectados por uma decisão tomada no âmbito do procedimento concursal.

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III. EM BUSCA DO ACTO ADMINISTRATIVO PERDIDO

1. A crise do acto administrativo e a codificação do procedimento em Portugal


Na evolução do moderno Direito Administrativo, assistimos à transformação de um modelo

actocêntrico positivista, em que o acto, objecto de discussão e apreciação processual, assumia

uma posição hegemónica, num modelo assente sobretudo em valores materiais. Este

processo de crise do acto administrativo surge sobretudo no direito italiano e alemão,

acompanhando o surgimento dos modelos de Estado social e pós-social.

De acordo com esta lógica nova, podemos considerar que o legislador português

consagrou um modelo assente na realização jurídica, associando ao procedimento a ideia de

que as relações jurídicas são necessariamente multilaterais. O Procedimento Administrativo

constitui o instrumento de actuação dos órgãos decisores para a harmonização e composição

dos interesses de todos os sujeitos procedimentais, partindo sempre das normas

constitucionais que o prevêem e que nele encontram concretização: nesta medida, são

especialmente importantes as disposições introdutórias do CPA que consagram os princípios

jurídicos procedimentais.

É a própria Constituição que estabelece a necessidade de uma lei portuguesa do

Procedimento Administrativo. Esta exigência reflecte a preocupação do legislador

constituinte originário com a organização e o funcionamento da Administração Pública: o

conjunto de regras que então se previu trata não apenas da ideia de relação jurídica, como

também da estrutura administrativa do Estado, que deve ser desconcentrada e

descentralizada (art. 267.º CRP).106 Assim, no n.º 5 do art. 267.º, estabelece-se que o

processamento da actividade administrativa é objecto de lei especial (o Código do

Procedimento Administrativo), com o objectivo de assegurar a racionalização dos meios a

utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações

106
Por descentralização administrativa entende-se a criação de pessoas colectivas distintas (cf. supra, p. 27, n.
41); por desconcentração (de poderes), fundamento das relações de hierarquia administrativa, entende-se a
criação de poderes decisórios separados, ou, com maior pormenor, a distribuição de competências pelos
diferentes graus da hierarquia, por forma a que o superior hierárquico mais elevado não tenha de tomar todas
as decisões.

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que lhes disserem respeito. O legislador entendeu que o procedimento, enquanto realidade

autónoma que serve a tomada de decisões e a sua execução, constitui uma forma privilegiada

de organização da Administração, e uma garantia dos direitos dos particulares.

Encontramos assim uma concepção do procedimento com uma dimensão

simultaneamente objectiva e subjectiva nos arts. 267.º e 268.º CRP. O procedimento serve

para racionalizar a actuação dos poderes públicos, mas é também um instrumento que

assegura a participação dos cidadãos na tomada de decisões. Aqui encontramos as raízes do

direito de audiência dos interessados: os particulares têm um direito fundamental de

participação e um dos seus corolários é a consideração do direito de audiência entre os

direitos fundamentais. Isto traduz uma nova lógica democrática, própria do Estado social.

O legislador português aproximou-se da visão italiana, que regula o procedimento como

uma questão de organização democrática da Administração e o entende como um

instrumento com um dimensão objectiva e subjectiva, que corresponde à protecção dos

direitos dos particulares por via da participação. O legislador constituinte conjuga relação

jurídica e procedimento, prevendo os vectores substantivo, procedimental e processual das

relações jurídicas administrativas, com os direitos e deveres de cada uma das partes.

O procedimento é valorizado de maneira autónoma com a exigência constitucional

de uma lei específica. Se o CPA fosse revogado e não fosse substituído por outro diploma,

estaríamos perante uma inconstitucionalidade em matéria essencial da organização do

Estado. O problema pôs-se no passado, pois o primeiro Código do Procedimento

Administrativo surgiu apenas em 1991 – o que significa que entre 1976 e 1991, o legislador

foi incapaz de cumprir a exigência constitucional: um caso típico de inconstitucionalidade

por omissão. A doutrina apercebeu-se gradualmente, na vigência da nova constituição, de

vários problemas de défice constitucional no Direito Administrativo, e chamou a atenção

para a necessidade de estruturar constitucionalmente a realidade administrativa portuguesa.

O Direito Administrativo existente em Portugal nos anos 90 era infelizmente um

direito do passado. Tudo havia mudado – a constituição, a lógica do relacionamento dos

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65

particulares com a Administração, o funcionamento administrativo e judicial –, mas a lei

continuava a mesma, e também a prática mudara muito pouco.107

As discussões da década de 90 em Portugal, que versaram quase todos os aspectos das

relações jurídicas administrativas, mudaram efectivamente o rumo da doutrina e

introduziram instrumentos inovadores e adequados, uns imediatamente, outros mais tarde.

O primeiro destes foi o CPA, resultado do trabalho da Comissão Freitas do Amaral, onde

colaboraram os Profs. Vasco Pereira da Silva e João Caupers.108 Esta primeira lei do

Procedimento Administrativo em Portugal foi feita em condições amadoras, sem

secretariado, e foi alvo de críticas desde a primeira hora. Foi, todavia, o principal elemento

de democratização da Administração Pública na vigência da Constituição de 1976. Não se

limitou o legislador a regular o procedimento, enquanto modo de formação e execução das

decisões administrativas, mas regulou também aspectos essenciais da relação jurídica: de

certo modo, o CPA acabou por consolidar um verdadeiro código administrativo.

Em Portugal, havia uma tradição de diplomas de regulação administrativa desde o

séc. XIX (em que Mouzinho da Silveira teve grande importância), mas estes eram apenas

diplomas parcelares que dispunham sobre a administração local. O CPA é, em rigor, mais do

que um simples código de procedimento: na primeira parte (arts. 1.º a 19.º) encontram-se os

princípios gerais do Direito Administrativo; na segunda (arts. 20.º a 52.º), regras gerais sobre

os órgãos administrativos que extravasam o procedimento; na terceira (arts. 53.º a 134.º),

regras sobre o procedimento; na quarta (arts. 135.º a 202.º), regras sobre o regulamento, o

107
Neste sentido, considerava o Prof. RUI MACHETE (“Considerações sobre a dogmática administrativa no
moderno Estado social”, Separata do Boletim da Ordem dos Advogados (2.ª série), 1986, reed. in Estudos de Direito
Público e Ciência Política, Lisboa, Fundação Oliveira Martins, 1991) que a antiga expressão de Otto Mayer “O
Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo permanece” continuava, de alguma forma, a fazer
sentido em Portugal, pois a nossa realidade administrativa era, do ponto de vista legislativo, ainda a do passado.
108
A Comissão Freitas do Amaral foi constituída em 1988, por iniciativa do Ministro da Justiça, Mário Raposo,
com o propósito de reformar o contencioso administrativo, e de acordo com a convicção de que as leis de 1984
e 1985 (ETAF e LEPTA) tinham procedido a uma actualização insuficiente. A codificação do procedimento
encontrou, ainda na versão do anteprojecto, as reservas dos Profs. Rogério Soares e (mais restritamente)
Marcelo Rebelo de Sousa.

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acto administrativo e a contratação pública.109 Os modelos seguidos foram o alemão e o

espanhol; a escola de Coimbra criticou a opção, considerando que, não havendo um código

de procedimento, seria ambicioso partir para um código administrativo. O CPA representa,

porém, o máximo denominador comum entre posições doutrinárias diferentes.

2. As funções do procedimento
Em 2015, o CPA foi objecto de uma reforma profunda, sob a direcção do Prof. Fausto de

Quadros, e mais uma vez se levantaram divergências entre a continuidade e a alteração de

certas normas. Diplomas modernos são diplomas abertos à realidade histórica, e o código é

um produto da doutrina em construção nos anos 90.

Entre os problemas está a própria noção de procedimento administrativo do art.

1.º, que não foi alterada em 2015. Ainda que porventura desactualizada, o Prof. Vasco

Pereira da Silva considera a manutenção da formulação do artigo preferível a adoptar a

lógica monista de alternatividade entre procedimento e processo, que confunde

Administração e Justiça.110 Esta concepção estava já desactualizada ao tempo da Comissão

Freitas do Amaral (que, aliás, defendia a ideia de um Código do Processo Administrativo

e só cedeu perante a perspectiva de essa designação poder ser declarada inconstitucional,

atendendo a que a Constituição distingue processo de procedimento). Acabou por prevalecer,

na formulação do art. 1.º, a noção dos anos 70 de que o procedimento deve ter autonomia,

embora subalternizada, e alguma independência face ao resultado da actividade

administrativa.111 A visão está ultrapassada, pois é o procedimento que condiciona o

109
A existência de uma lei especial que disciplina a actividade administrativa está prevista no art. 267.º, n.º 5,
CRP. Apesar da sua importância, o CPA é uma lei ordinária, que pode ser substituída por outra lei mediante
aprovação por maioria simples. Entendeu o legislador que o procedimento para a alteração deveria ser
flexibilizado.
110
Não é demais salientar-se a distinção entre a natureza passiva do poder judicial, que se encontra acima de
todos os interesses e é exercido por juízes independentes e inamovíveis no seu cargo, e a natureza activa da
Administração, vinculada à prossecução do interesse público (e, nesse sentido, obrigada a uma actuação
interessada) e exercida por órgãos e agentes subordinados a uma cadeia hierárquica.
111
Trata-se da construção de Aldo Sandulli, alargada para a total autonomia do procedimento adoptada pelo
legislador administrativo português.

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resultado da actividade administrativa e não o inverso: a formulação mantida pelo

legislador em 2015 não tem hoje repercussão prática.

Para compreender estas opções, há que ter em conta a noção de procedimento. O

legislador de 2015 parece, mais do que o do primeiro código, ter descurado os aspectos

procedimentais, fugindo a uma lógica estritamente procedimental e regulando matérias

substantivas. Oferecem-se ao legislador, neste ponto, duas alternativas. A primeira é a

concepção clássica, actocêntrica, que desvaloriza o procedimento, considerando que, não

obstante certas formalidades devam ser seguidas no processo decisório, as regras que

regulam o modo de formação e afirmação da vontade da Administração são secundárias

relativamente aos seus fins – uma noção limitativa e mesmo de negação do procedimento

que põe em causa a autonomia procedimental.112

Entre os exemplos de como esta concepção influenciou o direito português está o art.

161.º, n.º 2, al. g), CPA, que refere que os actos que careçam absolutamente de forma legal

são ilegais: no quadro destas ilegalidades, a Doutrina inclui as formalidades essenciais e os

vícios do procedimento, contrariando patentemente o ordenamento actual. Procedimento e

forma não podem confundir-se, e são mesmo realidades opostas. Se no início se negou

qualquer relevância jurídica ao Procedimento Administrativo, num momento posterior,

ainda de estrito positivismo, surgiu uma concepção monista que integrava procedimento e

processo na mesma realidade, subalternizando ambos. Considerava-se então que o

procedimento e o processo eram idênticos, designando-os como processo administrativo

gracioso e contencioso (i.e., numa ideia de continuidade do processo gracioso para o

contencioso), e o processo tratado pela Administração menos relevante do que o controlo

contencioso final. Esta visão foi dominante em Portugal, por via do ensino do Prof. Marcello

112
As primeiras referências ao procedimento administrativo foram feitas por Laferrière, nos primórdios do
contencioso administrativo. Laferrière considerava que o procedimento era, quando muito, uma mera
formalidade correspondente à forma do acto administrativo. Esta confusão entre forma e formalidades (i.e.,
entre a forma do acto e o procedimento administrativo) ilustra bem a negação do procedimento: a forma, com
efeito, é a maneira como o acto se expressa, como foi organizado – a sua aparência –, o que é diferente da forma
como o acto foi produzido, que corresponde ao procedimento (o iter que explica o acto, com as regras que
determinaram o seu surgimento).

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68

Caetano e da sua continuidade nos trabalhos dos Profs. Freitas do Amaral, Jorge Miranda e

Sérvulo Correia, e teve uma influência mesmo para além da sua utilização noutros países.113

Tal como nos anos que se seguiram à Revolução Francesa, ainda na segunda metade

do séc. XIX se preconizava um sistema ministro-juiz, em que o ministro era a primeira

instância do Contencioso Administrativo e o juiz a segunda instância; a lógica da

continuidade entre Administração e Processo, como se juízes e ministros tivessem

autonomia e mesmo como se actuassem da mesma maneira. Esta visão clássica de

promiscuidade entre Administração e Justiça (designada por vezes como a “fase do juiz-

administrador”), não obstante destituída de sentido, correspondia à desvalorização do

procedimento também existente em Portugal, por via da recepção do modelo francês pela

escola de Lisboa.

Ainda hoje se discutem doutrinas processualistas do procedimento administrativo, o

que não tem admissibilidade jurídica. Impõe-se, pelo contrário, uma visão procedimental do

processo, pois é o procedimento a categoria geral de formação das actuações públicas: essas

actuações obedecem a um procedimento legislativo, administrativo e judicial, e é este último

que corresponde ao processo. Por outras palavras, deve adoptar-se uma visão procedimental

de todas as formas de actuação, conferindo autonomia ao procedimento administrativo.

Estas concepções desadequadas do procedimento tiveram consequências em soluções

normativas tomadas pelo legislador da reforma do Contencioso Administrativo que são

igualmente desadequadas: uma má teoria gera más normas.114

Hoje, pelo contrário, advoga-se uma visão procedimental do processo, enquanto

manifestação do procedimento ao nível da função judicial. A formulação do art. 1.º CPA é a

primeira que autonomiza o procedimento, concebendo-o como a sucessão ordenada de actos e

formalidades relativo à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da

113
Se o Prof. Freitas do Amaral defendeu sempre a ideia do processo administrativo gracioso, na obra dos
Profs. Jorge Miranda e Sérvulo Correia esta ideia preservou-se já não no nome, mas na visão processualista do
procedimento.
114
A este propósito, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, “Breve crónica de um legislador do procedimento que
parece não gostar muito de procedimento”, in AAVV., Nos 20 Anos dos C.J.A., Braga, CEJUR, 2017, pp. 367-372.

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Administração Pública – sejam actos, contratos, regulamentos ou actuações informais. Trata-se

de um iter procedimental cuja finalidade corresponde ao resultado da actuação administrativa.115

Pode criticar-se, todavia, que enquanto se dá relevância ao procedimento, também

se acaba por restringi-lo a uma formulação final, ao resultado. Com efeito, o predomínio do

resultado surge em várias normas do CPA: desde logo, no questionável art. 163.º, n.º 5, que

dispõe, em matéria de anulabilidade, que o procedimento é autónomo e relevante, mas pode

ser dispensado. em três situações diferentes: quando o conteúdo do acto anulável não possa

ser outro, quando o acto tiver conteúdo vinculado ou se a apreciação do caso concreto

permitir identificar apenas uma solução legalmente possível.116 Ora, o conteúdo do acto

determina-se pelo procedimento, que, nas suas diferentes fases, configura o conteúdo do

acto administrativo; prescindindo do procedimento, não é possível determinar que, sem o

vício, o resultado seria idêntico. O resultado depende do procedimento; se o objectivo do

procedimento não se realizou, não pode haver outra consequência senão a anulabilidade.

Por outro lado, o artigo prevê também que o conteúdo do acto não possa ser outro

por o acto ser de conteúdo vinculado. Esta ideia é insustentável na nossa ordem jurídica, em

que os actos são simultaneamente vinculados e discricionários, e estes dois aspectos

correspondem a duas dimensões da legalidade. E também a ideia final, de que o fim visado

com a exigência procedimental pode ser conseguido por outra via – outra via não

procedimental e, por conseguinte, contrária à lei – é claramente inconstitucional. Em todos

estes casos previstos pelo preceito há necessariamente uma ilegalidade procedimental.

Esta norma, copiada do código de procedimento administrativo alemão, faz com que

se considere, em Portugal tal como na Alemanha, a previsão inconstitucional em razão dos

direitos fundamentais procedimentais, através de interpretação conforme à Constituição. Os

115
A formação é o procedimento, a manifestação o acto, a execução a materialização da decisão administrativa.
Aqui se distinguem a justiça formal e a justiça material, pois não basta uma decisão formalmente válida: é
necessário que seja válida também no plano material.
116
Em rigor, o art. 163.º, n.º 5, CPA vem afastar o efeito anulatório sobre um determinado acto para (sem o
validar) lhe atribuir efeitos enquanto acto meramente irregular. Não apenas a aplicação do n.º 5 deste artigo
(“sem margem para dúvidas”) se pode considerar uma probatio diabolica, como o Prof. Vasco Pereira da Silva o
considera inconstitucional, por violação do art. 267.º CRP, que estabelece a necessidade de um código de
procedimento e os seus objectivos, designadamente a participação.

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direitos procedimentais gozam de dignidade constitucional e não podem ser postos em

causa, uma vez que a Constituição obriga a que haja sempre um direito à notificação, à

audiência e à fundamentação das decisões – todos os direitos consagrados nos arts. 267.º e

268.º CRP. Temos aqui um claro limite à aplicabilidade do art. 163.º, n.º 5, CPA.

Outra objecção tem a ver com a própria existência dos direitos fundamentais. Um

direito fundamental implica um regime jurídico de tutela, que é estabelecido na constituição

portuguesa pelo art. 18.º; desse regime resulta implicitamente que qualquer decisão no

quadro do exercício de um direito fundamental tem de ser tomada no procedimento

administrativo, o que configura uma das garantias mínimas constitucionais para que o

conteúdo desse direito fundamental não seja violado. Por outras palavras, e numa conclusão

da jurisprudência constitucional alemã e portuguesa, o conteúdo de um direito fundamental

não pode ser afectado por qualquer decisão administrativa se não houver um procedimento

que, nos termos estabelecidos na constituição, o permita. Isto significa, na prática, que o

preceito do CPA se dirige a uma situação inaplicável.

Em suma, o procedimento não está ao serviço do resultado final da acção da

Administração, mas, pelo contrário, representa um valor em si mesmo – um valor entendido

hoje como absolutamente essencial, sem o qual toda a actuação dos poderes públicos é ilegal.

Tal como nas leis de Processo, não basta que a Administração tome as decisões correctas:

tem de as tomar de maneira correcta, pois é isso o que caracteriza uma administração

democrática num Estado Social, em que não importa apenas a legalidade material.

Encontramos aqui uma expressão da multifuncionalidade do Procedimento

Administrativo, que significa que o procedimento desempenha várias funções que não é

possível prosseguir de nenhuma outra forma. Em primeiro lugar, a racionalização da

tomada de decisões públicas. Em segundo, a legitimação da actuação administrativa: a

maior parte dos órgãos administrativos goza apenas da legitimidade do Estado de Direito

(a que Max Weber chamava uma legitimidade legal-burocrática), não de legitimidade

direta. A sua legitimidade funda-se no cumprimento das regras do Estado de Direito

(regras de competência, procedimento e forma), o que implica que os particulares

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71

participem nas decisões. Acresce, assim, uma legitimidade procedimental à legitimidade

legal-burocrática.

Por último, o procedimento serve para harmonizar os interesses antagónicos que

existem em qualquer decisão administrativa, em particular nas sociedades modernas, em que

a realidade administrativa é cada vez mais complexa e sujeita a grupos de pressão, públicos e

privados. O procedimento é a única possibilidade de conciliação destes interesses, como se

observa, e.g., em qualquer grande obra pública.

3. O direito de audiência no quadro dos direitos fundamentais


O Procedimento Administrativo actual é uma realidade que podemos definir como

quadrifásica (na expressão do Prof. Freitas do Amaral), atendendo à transformação

introduzida com o código de 1991, que acrescentou à estrutura procedimental tradicional

(abertura – investigação (inquisitório) – decisão) a fase da audiência, colocada antes da decisão.

Nesta nova ordenação introduziu-se assim a necessidade de a Administração ouvir sempre

os particulares interessados, sem prejuízo de poderem ter sido ouvidos já na fase instrutória.

A audiência pode ser dispensada, sempre com fundamentação. De outro modo, cria-se uma

situação de desrespeito pelo direito fundamental de audiência prévia.

Em primeiro lugar, a qualificação do direito de audiência como um direito

fundamental tem enquadramento diferente consoante a perspectiva que se adopte sobre os

próprios direitos fundamentais. O Prof. Vasco Pereira da Silva defende uma concepção

evolutiva, distinguindo entre os direitos primeira geração (no quadro do Estado liberal do

séc. XIX), os de segunda geração (direitos económicos, sociais e culturais, que instituem os

direitos a uma intervenção específica do Estado em certas áreas) e, finalmente, os de terceira

geração (os direitos relativos ao Ambiente, ao uso de meios tecnológicos e informáticos, a

par dos direitos procedimentais ou processuais, cuja função é, antes de mais, de prevenção

dos outros direitos de carácter material).

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3.1. Incumprimento formal do direito de audiência


Em matéria de organização administrativa, a Constituição consagra o direito de participação

no art. 267.º, n.º 3. O direito de participação, entendido como um direito fundamental, tem

consequências como a interpretação de questões de desconsideração de invalidades (que não

podem ter lugar nos casos de exercício de um direito fundamental material) ou a ilegalidade

dos actos praticados em desrespeito genérico por um direito fundamental, que ocupa sempre

uma posição superior no ordenamento jurídico.

Por conseguinte, a violação do direito de audiência deve determinar a nulidade da

actuação administrativa em causa. Esta é a posição defendida pela doutrina constitucional

(em particular pelos Profs. Jorge Miranda, Gomes Canotilho e Vital Moreira), não sendo

embora a posição dominante da doutrina nem a genericamente aceite pela jurisprudência

administrativa, que tem preferido, na generalidade dos casos, considerar que a violação do

direito de audiência conduz a uma mera irregularidade.

Neste domínio, considera o Prof. Freitas do Amaral que se devem restringir os

direitos fundamentais aos direitos da primeira geração. Esta posição, embora muito

influente, equivaleria, contudo, a dizer que estes direitos pararam no tempo, não sendo

possível integrar na previsão normativa, por via deles, quaisquer novas ameaças à dignidade

da pessoa humana. Os argumentos principais são, todavia, de outra ordem. Antes de mais, a

lógica da compatibilidade entre normas vista de forma acrítica (viz. o Prof. Pedro Machete):

a nossa ordem jurídica, tratando do procedimento disciplinar – sanção mais grave entre

todas –, impõe, como indispensável, que um arguido se pronuncie antes de ser punido. Neste

caso, a lei sanciona a falta do direito de audiência com a anulabilidade: consequentemente,

se o legislador prevê para os casos mais graves a simples anulabilidade, os casos menos graves

não poderiam comportar a nulidade. Estamos, todavia, perante o exercício de um poder

sancionatório, que implica necessariamente que se confira aos interessados o direito de

serem ouvidos.

O caso está qualificado, hoje, de maneira inconstitucional, e por uma lei emitida no

quadro da Constituição de 1933. Com efeito, tratando-se de um direito fundamental,

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73

subordinado ao regime geral do art. 20.º CRP, a sua violação não pode senão comportar uma

situação de nulidade da actuação administrativa. Esta questão doutrinária acabou por não ter

a relevância que se antecipava, pois os tribunais vieram a agir, em todos os casos de falta da

audiência de interessados, anulando as decisões viciadas e estabelecendo como inequívoca a

obrigatoriedade da audiência no quadro das relações jurídicas administrativas.

3.2. Incumprimento material do direito de audiência


O problema qualifica-se diferentemente nos casos de audiência dos interessados em que, no

quadro do procedimento decisório, se não atenda aos interesses manifestados influenciando

a decisão final.

No direito alemão, atribui-se à administração um dever de ponderação, inerente ao

exercício dos poderes administrativos. Quando a Administração Pública o viola, ouvindo

mas não considerando os interesses manifestados, comete uma ilegalidade em sentido

material. Em Itália, considera-se que estes casos configuram apenas uma violação do

princípio da imparcialidade, pois a Administração não pode ignorar interesses manifestados

pelos particulares no âmbito procedimental. Outra explicação conducente ao mesmo

resultado, assente numa lógica monista, é a norte-americana: a prática do push back, em que

um juiz pode obrigar a Administração a reconsiderar uma posição que tomou anteriormente.

Todavia, os tribunais nos sistemas europeus julgam a Administração depois de esta ter

cometido eventuais ilegalidades, não reenviando decisões para nova ponderação pelos

poderes administrativos.

Em Portugal, acresce ainda um argumento suplementar: têm consagração

constitucional dois princípios que não podem existir em contradição – a prossecução do

interesse público e o respeito pelos interesses dos particulares. Estes princípios não podem

concretizar-se unilateralmente, pois deve observar-se entre ambos uma relação obrigatória

de complementaridade e interdependência. Se a Administração ouviu os particulares e

recolheu elementos com perspectivas diferentes sobre a realidade tratada, mas os

desconsiderou, cometeu uma ilegalidade no desrespeito por ambos estes princípios.

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74

Por conseguinte, o mesmo rigor que observa na anulação dos casos de preclusão do

direito de audiência deve ser aplicado no julgamento dos casos em que as posições

expressadas pelos interessados tenham sido ignoradas. O cumprimento do direito de

audiência não pode revestir uma lógica meramente formal, mas deve encontrar uma

correspondência material na tomada de decisões, em cuja qualidade desempenha um papel

essencial, bem como para a harmonização de interesses antagónicos. Trata-se, em suma, de

acrescentar à verificação da legalidade procedimental a consideração de valores materiais.

Ter em conta as posições expressas pelos particulares não implica, naturalmente,

decidir de acordo com elas, mas tão-somente considerar, numa lógica actualista, a posição que

foi manifestada em sede procedimental à Administração.

4. Características da actuação administrativa: definitividade e executoriedade


O art. 148.º CPA, ponto de partida para todas as considerações sobre a natureza do acto

administrativo, apresenta uma noção que convoca o problema da centralidade do acto entre

as realidades jurídicas administrativas. Segundo este preceito, são “actos administrativos as

decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos

jurídicos externos numa situação individual e concreta.” São quatro os pressupostos

obrigatórios do acto administrativo, como ensina o Prof. Freitas do Amaral: (1) uma decisão,

(2) tomada no âmbito do exercício de poderes jurídico-administrativos, (3) destinada a uma

situação individual e concreta (no que se distingue dos regulamentos), (4) e que produza

efeitos externos. Os actos primários versam pela primeira vez sobre uma determinada

matéria, sendo actos secundários os que reflectem a vontade da Administração sobre

assuntos que tenham já sido objecto de uma decisão anterior.117

O acto esgotava tradicionalmente todo o universo do Direito Administrativo, com

a característica da executoriedade que correspondia à visão positivista da Administração:

recordamos como este era um elemento fundamental na definição do Prof. Marcello

117
Isto corresponde ao procedimento administrativo decisório de primeiro grau (que termina com uma
primeira decisão sobre determinado assunto). Em caso de recusa, pode desencadear-se, mediante reclamação
ou recurso hierárquico. um procedimento de 2.º grau, regulado pelos arts. 184.º a 199.º CPA.

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Caetano do acto administrativo como “a decisão que regula o caso concreto com força

executória própria.” É, todavia, importante, como salienta o Prof. Vieira de Andrade,

distinguir entre imperatividade (a obrigatoriedade dos efeitos constituídos unilateralmente

na esfera jurídica dos particulares pelo poder administrativo, característica de todos os

actos), a que a doutrina chama poder de autotutela declarativa, e a executoriedade (o poder

de executar coactivamente por meios próprios, ergo sem necessidade de mandato judicial,

as decisões administrativas).118

Esta realidade entra em crise ao oporem-se ao acto administrativo formas cada vez

mais abundantes e diversificadas de actuação: o acto deixou de ser a forma de actuação

administrativa por excelência para passar a ser uma entre muitas. Por outro lado,

desapareceram as características de acto de polícia, correspondentes à noção autoritária de

acto administrativo definitivo e executório, o que só ocorreu em Portugal com a revisão

constitucional de 1989.119

Estas duas características, na verdade, não existem na maior parte dos actos da

Administração. A primeira, a definitividade, consiste na definição material do direito, que

dita a última palavra no caso concreto, como numa sentença, traduzindo-se num acto de

cúpula (i.e., o último acto de um determinado procedimento). A definitividade já não é

aplicável a actuações gerais da Administração (i.e., actos que, não tendo conteúdo jurídico,

produzem efeitos jurídicos, sendo unilaterais e obrigatórios), pois os actos administrativos

estão geralmente integrados em cadeias procedimentais que não se esgotam na prática de um

acto isolado, mas antes fazem parte de uma sucessão intrincada de procedimentos que geram

diversos actos.

Já a ideia de executoriedade, na verdade, só teve existência em situações limitadas,

pois nem a Administração Pública tem um poder autoritário que lhe permita executar

qualquer tipo de decisões, nem a lei estabelece que todos os actos administrativos são

susceptíveis de execução coactiva contra os particulares (e.g., na atribuição de uma bolsa de

118
J. C. VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 199.
119
cf. MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO, loc. cit.

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estudo, tal é inconcebível). Os únicos actos ainda dotado de executoriedade – e apenas nas

situações previstas na lei – são os actos de polícia.

Este conceito de acto definitivo e executório era, ainda assim, acolhido pela

Constituição, pela lei e mesmo pela doutrina administrativista, com a admissibilidade do

privilégio da execução prévia. A questão coloca-se hoje no direito português de acordo com

dois pressupostos fundamentais, devidos a Maurice Hauriou e a Otto Mayer. Para Hauriou,

que parte de uma concepção de acto administrativo como acto produtor de efeitos, têm

relevância apenas os actos de carácter definitivo e executório. A produção de efeitos jurídicos

numa direcção unilateral – à semelhança de um direito potestativo –, por vontade da

Administração e numa realidade individual e concreta seria, pois, o único sentido útil do acto

administrativo.

Já para Otto Mayer, o acto administrativo tem natureza reguladora, significando isto

a susceptibilidade de “definir o direito aplicável”, na perspectiva da produção de efeitos

novos, que não podem decorrer exclusivamente da lei ou existir previamente na ordem

jurídica. Desta concepção provém a distinção entre actos administrativos (que no direito

alemão estão sujeitos a tipicidade) e quase-actos, ou actuações informais.

No contexto da moderna Administração Prestadora, é insustentável o modelo do

acto administrativo definitivo e executório: o acto não define o direito, apenas o utiliza para

satisfazer necessidades colectivas. Consiste, pois, num meio, e raras são hoje as situações,

entre a multiplicidade das que os actos têm por objecto, que admitem natureza definitória.

Do mesmo modo, decorre do aprofundamento do princípio da legalidade o afastamento da

executoriedade de entre as caraterísticas do acto administrativo. Por um lado, nenhum acto

favorável aos interesses dos particulares é susceptível de coacção; por outro, a Administração

não tem senão os poderes que lei expressamente lhe atribui.

Impõe-se, por conseguinte, a necessidade de um novo conceito que explique

adequadamente a moderna actuação dos poderes públicos. O legislador administrativo partiu

de uma noção ampla que compreende características comuns a todos os actos

administrativos: assim, o art. 148.º CPA estabelece que o acto administrativo é unilateral e

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produz efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, reflectindo a vontade da

Administração. Os actos de hoje são, em regra, resultado de um procedimento no quadro de

relações jurídicas administrativas que disciplina o modo de relacionamento entre os

particulares e a Administração. É correcto dizer-se que a actuação administrativa é

legitimada pelo procedimento, e à definição do acto administrativo não é alheia aquela

relação, nem a realidade procedimental.

No contexto das alterações da revisão do CPA em 2015, encontramos as duas grandes

concepções de acto (i.e., o acto definitivo e executório), ainda subsidiárias do conceito

formulado por Otto Mayer. Os actos administrativos estão tipificados no CPA, não sendo de

admitir quaisquer realidades paralelas. Todavia, o código regulou apenas os actos produtores

de efeitos jurídicos novos (e.g., para o acto constitutivo não basta a produção de efeitos: é

necessário que sejam efeitos novos e constituídos directamente por esse acto). O legislador

alemão, todavia, por entre a mesma lógica tipificada, encontrou realidades divergentes, não

tipificadas, mas em que se produziam idênticos efeitos jurídicos. Para enquadrar estas formas

de actuação, criou a figura dos “quase-actos administrativos”, ou actos administrativos

informais, que compreende actuações jurídicas que, não sendo contratos nem regulamentos,

podem reconduzir-se mais proximamente ao modelo do acto administrativo.

A transposição para a realidade nacional da noção alemã de acto administrativo

(regulador ou constitutivo) é proposta pela escola de Coimbra desde o Prof. Rogério Soares:

um acto constitutivo não executório, ou a ideia mais ampla de acto regulador (i.e., qualquer

acto produtor de efeitos jurídicos novos). Todavia, esta proposta de distinção não é adequada

nem legítima, uma vez que está em causa uma característica (a produção unilateral de efeitos

jurídicos) comum a todos os actos administrativos: um direito não tem de ser inovador para

ser um direito e tão-pouco tem de ser constituído integralmente. A constituição desse direito

na esfera dos particulares depende da lei, de eventuais regulamentos ou mesmo de outras

formas de actuação.120

120
Um dos argumentos invocados, designadamente pelo Prof. Freitas do Amaral, é a expressão legal “decisão”.
Todavia, decisões são tanto os actos quanto as sentenças, significando apenas uma actuação de vontade de um

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Com a revisão de 2015 surge um novo argumento: a nova formulação do art. 148.º,

“produzindo efeitos jurídicos externos” permitiria considerar que a simples produção de

efeitos internos não gera um acto administrativo, mas outra actuação, um quase-acto

administrativo.121 Seriam exemplos destes quase-actos as aprovações de projectos que

apenas determinam uma actuação administrativa posterior, não produzindo imediatamente

efeitos na esfera jurídica dos particulares.122 Todavia, esta distinção, que também existia no

Direito italiano, deixa de fazer sentido com o aperfeiçoamento do Estado de Direito, em que

todos os actos da Administração são simultaneamente internos e externos, produzindo

efeitos internos num dado procedimento, mas que são simultaneamente externos

relativamente a outros órgãos, a funcionários, aos particulares aos destinatários do acto.

5. Validade e eficácia
No quadro operativo do Direito Administrativo, distinto do Direito Privado (onde as regras

de validade e eficácia andam a par), um acto inválido pode, ainda assim, produzir efeitos

jurídicos, da mesma forma que um acto pode ser praticado segundo os requisitos legais e não

produzir efeitos. A lei estabelece requisitos diferentes de legalidade (i.e., para que um acto

seja válido) e de eficácia (para que um acto produza efeitos jurídicos): e.g., uma decisão já

tomada e publicitada não produz efeitos enquanto não for notificada, na medida em que a

notificação dos actos administrativos é uma condição de eficácia.

Em reflexo dos traumas iniciais do Direito Administrativo, também os actos

administrativos inválidos, e mesmo os contrários à lei, podem ter eficácia jurídica. A nossa

ordem jurídica distingue nulidade de anulabilidade. Um acto nulo – sanção mais grave – não

produz quaisquer efeitos ab initio, todos os que se tenham eventualmente verificado tendo-

ente público, não um alargamento do efeito útil da norma. “Decisão” deve, pois, ser interpretado como um acto
voluntário da Administração que visa produzir efeitos jurídicos.
121
vide JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Algumas reflexões a propósito da sobrevivência do conceito de acto
administrativo no nosso tempo”, in AAVV., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra,
Coimbra Editora, 2001, pp. 1189-1220.
122
São actos internos, e.g., as delegações de poderes, como também os pareceres (arts. 91.º e 92.º CPA), o que
ilustra bem a relevância procedimental da figura.

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se como inexistentes. Já um acto anulável produz efeitos até ser anulado. Esta anulação tem

efeitos ex tunc (retroactivos), afastando quaisquer efeitos produzidos desde a prática do acto

(eventualmente com necessidade de recompor a ordem jurídica em resultado do efeito

anulatório), e pode ser feita pela própria Administração ou pelos tribunais.

Assim, apesar de um acto administrativo ser contrário à lei, se à invalidade

corresponder o regime da anulabilidade, produz efeitos jurídicos enquanto se não der a

anulação; e se nunca vier a ser anulado – quer porque a Administração não tomou a

iniciativa, quer porque os particulares nunca recorreram ao tribunal –, permanece na ordem

jurídica, consolidando-se. A explicação desta realidade reside na história: trata-se de uma

reminiscência do poder autoritário, justificada pela natureza da função administrativa e pela

garantia da segurança jurídica. Todavia, desde a reforma do Contencioso Administrativo de

2004, os actos podem ser já inimpugnáveis pelos particulares e, ainda assim, nos casos em

que a lei substantiva o admita (viz. no domínio da responsabilidade civil da Administração

por actos administrativos ilegais), os tribunais podem conhecer, a título incidental, da

ilegalidade de um acto e anular uma decisão viciada, nos termos do art. 38.º CPTA.123

Temos, assim, duas realidades diferentes: por um lado, um acto válido pode não

produzir efeitos; por outro, um acto inválido pode ser eficaz enquanto não houver anulação

pela própria Administração124 ou pelos tribunais, numa existência tolerada pelos sujeitos das

relações jurídicas administrativas.125 Subsiste, não obstante, uma divergência entre a letra da

lei e a prática jurídica, na medida em que o cumprimento das previsões legais obriga a uma

actuação das partes com legitimidade processual.

123
Neste âmbito, o Prof. Vasco Pereira da Silva propõe uma interpretação extensiva do regime da anulação
administrativa (arts. 165.º e 168.º CPA), considerando que a Administração pode (rectius, deve) a todo o tempo
anular os actos viciados, atendendo a que sobre os poderes públicos impende um dever de correcção de
situações de ilegalidade.
124
O procedimento de anulação de um acto anterior constitui um procedimento novo, cujo fim é um acto
administrativo secundário que observa as regras dos arts. 110.º e ss. e 148.º e ss. (em particular 152.º, n.º 1, al.
e)), CPA, no concernente ao conceito e forma do acto. O acto anterior é o objecto do novo procedimento, e ao
acto que o anula dá-se o nome de acto desintegrativo.
125
Por outras palavras, certas deficiências ou irregularidades do procedimento, insusceptíveis de implicar
nulidade, podem não inviabilizar a subsistência de um acto administrativo (embora inválido) na ordem jurídica
e a produção dos respectivos efeitos.

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5.1. Invalidade
O desvalor jurídico da invalidade, mais restrito do que a ilegalidade,126 pode definir-se como

a sanção resultante da desconformidade de um acto administrativo com os princípios e as

normas jurídicas aplicáveis. A invalidade do acto está hoje estreitamente relacionada com a

progressiva valorização e autonomização do Procedimento Administrativo, bem como com

a consideração da prevalência da validade material da decisão administrativa, e integra os

regimes da nulidade e da anulabilidade.

Aqui, há que atender a dois aspectos essenciais: um de ordem mais teórica, a fonte, e

outro relacionado com os elementos do acto administrativo, a espécie. São elementos

essenciais da actuação administrativa a competência, o procedimento, a forma e os requisitos

materiais. A violação de qualquer um destes requisitos de validade gera uma ilegalidade.

Todavia, em Portugal esta leitura é largamente complicada pela teoria dos vícios do acto

administrativo, explicada pela evolução histórica da figura do acto, a cujas características

originárias diferentes leis foram acrescentando elementos novos, sobretudo no direito

francês e português.

No nosso ordenamento jurídico, e na sequência das orientações doutrinárias das

décadas de 70 e 80, o legislador chegou a uma enumeração de vícios do acto administrativo:

a usurpação de poderes, a incompetência, o vício de forma, o desvio de poder e a violação de

lei. Esta enumeração, na perspectiva do Prof. André Gonçalves Pereira, é ilógica e, no quadro

actual, incompleta. Actualmente, nenhuma lei contém esta enumeração, e, acrescenta o Prof.

Vasco Pereira da Silva, deve mesmo ser considerada ilegal, pois nem na Constituição nem

na lei existe qualquer enumeração dos vícios.

Os dois primeiros, a usurpação de poderes e a incompetência, correspondem a um

único elemento do acto, a competência. A usurpação de poderes corresponde a uma

incompetência, que pode ser absoluta e relativa. É dificilmente sustentável a distinção do

126
A desconformidade de um acto administrativo com o Direito pode, com efeito, resultar tanto da sua
contrariedade à lei como de outras formas de invalidade: daqui que sejam por vezes consideradas entre as fontes
de invalidade do acto não só a ilegalidade stricto sensu (traduzida nos vícios do acto administrativo), mas também
a ilicitude e os vícios na formação da vontade.

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vicio de incompetência, que corresponde a uma violação dentro da esfera do poder

administrativo. O vício de forma corresponde a duas situações distintas: o vício de forma

stricto sensu e o vício procedimental, que estava ausente da enumeração tradicional. Aqui,

num único vício encontramos também dois elementos materiais do acto administrativo.

Também a consideração do desvio de poder como diferente da violação da lei

distinguem o poder discricionário do poder vinculado, o que (como vimos supra) não é

juridicamente possível. Desta lógica está ausente o procedimento: todos os vícios da vontade

– relativos a requisitos de validade material de qualquer actuação –, como o erro, o dolo, a

coacção, devem ser integrados numa noção mais ampla de violação da lei.

No art. 161.º, n.º 2, CPA, encontramos a única referência legal aos vícios na nossa lei

– e são apenas dois, a usurpação de poderes e o desvio de poder para fins de interesse privado.

Todos os outros estão ausentes, bem como a necessidade qualificar as ilegalidades segundo a

teoria dos vícios. Deve, pois considerar-se que a actuação administrativa é válida ou não,

conforme viole as regras da competência, procedimento e forma, bem como os requisitos

materiais de validade. Todas estas situações configuram causas de pedir a anulação da

actuação viciada.

5.2. Modalidades da invalidade


Para que um acto administrativo tenha existência jurídica deve reunir um conjunto de

elementos essenciais: identificação do autor, destinatário, objecto e conteúdo (art. 155.º, n.º

2, CPA). Todos os actos a que falte qualquer um destes elementos são juridicamente

inexistentes. Todavia, nem todos os actos existentes são válidos, pelo que importa distinguir

as condições de existência dos requisitos de validade.

Na previsão das modalidades da invalidade do acto, o CPA adoptou deliberadamente

uma lógica simplificadora, distinguindo duas modalidades, a anulabilidade e a nulidade,

sendo esta última a invalidade mais grave e considerada excepcional. Os arts. 161.º e 162.º

CPA estabelecem as condições e o regime da nulidade, prevendo que “o acto nulo não produz

quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade” (art. 162.º, n.º 1),

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salvaguardando embora a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto

decorrentes de actos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da protecção da

confiança e da proporcionalidade, ou outros princípios jurídicos constitucionais,

designadamente associados ao decurso do tempo (art. 162.º, n.º 3).

A todos os restantes casos corresponde o regime da anulabilidade. Os actos anuláveis

produzem efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroactiva se vierem a

ser anulados por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria

Administração (art. 163.º, n.º 2). Pode pôr-se a questão da tipicidade dos actos nulos: a versão

de 2015 do CPA alterou o n.º 1 do art. 168.º no sentido da tipificação (segundo os autores da

reforma, como o Prof. Sérvulo Correia), o que se repercutiria na interpretação do art. 161.º,

n.º 1. Por outras palavras, o regime da nulidade seria restrito, e a sanção-regra da ordem

jurídica para os actos administrativos seria a anulabilidade.

A visão do Prof. Vasco Pereira da Silva é diferente. Dispõe o art. 161.º, n.º 1, CPA

que “São nulos os actos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.”

Esta formulação, todavia, não implica uma técnica de tipificação, na medida em que no n.º 2

do mesmo artigo se diz que “são, designadamente, nulos” certos actos a seguir enumerados.

São, portanto, exemplos, dados nas alíneas a) a l), definidos por conceitos gerais amplos. Não

é, pois, correcto dizer que existe tipificação, mantendo-se uma cláusula aberta. O legislador

refere todos os requisitos de validade, estabelecendo apenas a distinção entre anulabilidade

e nulidade através de um juízo de intensidade. Não existe, pois, no Código uma regra geral

de anulabilidade ou de nulidade; o desvalor jurídico depende da intensidade do vício.

5.3. O regime da revogação e anulação dos actos administrativos


A distinção entre revogação e anulação administrativa foi introduzida na revisão do Código

do Procedimento Administrativo de 2015. Estava então em causa uma mera questão

terminológica (introduzida inclusivamente na descrição de motivos apresentada no código),

que, de acordo com a escola de Lisboa, se centra na definição dos efeitos de um acto sobre

outro acto anterior. A doutrina distinguia tradicionalmente duas modalidades de revogação:

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a revogação anulatória, que corrigia a invalidade de um acto com efeitos ex tunc, e a

revogação ab-rogatória ou extintiva, que correspondia a uma alteração motivada por juízos

de mérito, conveniência ou oportunidade127 e apenas susceptível de produzir efeitos in

futurum (ou ex nunc).

A versão actual do código adopta para a revogação anulatória a designação de

anulação e para a revogação ab-rogatória a de revogação. O propósito da alteração

terminológica foi a clarificação das figuras. Isto não significa, porém, e ao contrário do que

sustenta a escola de Coimbra, que haja uma distinção completa de regimes jurídicos: de resto,

os arts. 165.º e ss. CPA estabelecem um regime de aplicação único para ambas (com o art.

167.º dedicado especificamente à revogação e o 168.º à anulação). Com efeito, estamos

sempre perante actos derivados que eliminam os efeitos de um acto anterior.128

Independentemente de a alteração terminológica não ter sido levada até às últimas

consequências em 2015, a questão material subjacente nasce de um entendimento dos

autores de Coimbra (in primis o Prof. Vieira de Andrade) de que as regras da revogação e da

anulação, como existiam em Portugal, eram excessivamente rígidas, havendo que introduzir

flexibilidade na ponderação dos valores em causa. O regime anterior previa que apenas fosse

possível praticar um acto sobre outro acto quando não tivesse ainda decorrido um prazo-

limite de um ano, o decurso desse prazo implicando sempre uma estabilização pelos efeitos

do caso decidido. A flexibilização do sistema prende-se com uma consideração de valores: na

discussão de actos sobre actos, há que ter em conta valores constitucionais – desde logo o

princípio da legalidade, que obriga a uma ponderação flexível da anulação, mas também a

ponderação do interesse público, que implica que, encontrando a Administração formas

preferíveis de actuar, deve fazê-lo, limitada embora naturalmente pelos princípios da boa-fé

e da tutela da confiança.

127
Definidas com base no interesse público (art. 266.º, n.º 1, CRP).
128
À anulação subjaz sempre um vício, uma desconformidade do acto administrativo com a lei, enquanto à
revogação subjaz apenas um vício de oportunidade.

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Estes princípios conflituantes encontram duas formas possíveis de regulação. A

forma alemã comete a resolução ao juiz, enquanto a forma francesa determina que seja

sempre o legislador a resolver os conflitos. O caso decidido, em rigor, não tem lugar numa

concepção moderna do Direito Administrativo: os actos administrativos são sempre

necessariamente susceptíveis de anulação ou de revogação, atendendo, antes de mais, à

interpretação conforme da legislação administrativa com a Constituição, que impõe a

flexibilidade das normas sobre anulação e revogação administrativas.129 Nesta matéria, o

sistema actual do código flexibiliza as possibilidades de determinação destes actos, embora

não se compreenda que o legislador tenha optado por manter os prazos como critério último,

determinando sempre alguma rigidez do sistema.130

Os actos administrativos podem ser revogados desde que com a sua revogação se não

afecte a estabilidade jurídica, não haja uma vinculação legal impeditiva ou não estejam em

causa direitos irrenunciáveis. Assim, em princípio, um acto constitutivo de direitos não pode

ser revogado sem mais, pois há uma eficácia inelutável desta actuação administrativa; só pode

dar-se a revogação em certos casos, operando a constituição de direitos como um limite à

revogação. Já nos casos de actos constitutivos de direitos que incluam também decisões

desfavoráveis, admite-se a revogação parcial (cf. art. 167.º, n.º 2, al. c), CPA); por último,

também quando haja uma reserva de revogação, o acto praticado admita precarização e se

verifiquem circunstâncias previstas na própria cláusula, sendo aqui a flexibilidade condição

da eficácia do direito (art. 167.º, n.º 2, al. d), CPA).

O art. 168.º CPA, relativo à anulação, não comporta, como vimos, a mesma

flexibilidade, por via de uma manutenção de prazos que podemos mesmo considerar, como

o Prof. Vasco Pereira da Silva, injustificável e contrária à lei substantiva e à legislação

129
Assim, VASCO PEREIRA DA SILVA, “Revisitando a questão do pretenso caso decidido no Direito Constitucional
e no Direito Administrativo português”, in M. Rebelo de Sousa, Fausto de Quadros e P. Otero (edd.), Estudos
de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda. Volume III (Direito Constitucional e Justiça Constitucional), Coimbra,
Coimbra Editora, 2012, pp. 797 e ss.
130
Apesar da previsão destes prazos pelo legislador, o Prof. Vasco Pereira da Silva entende que há que
interpretar a lei à luz do princípio da legalidade (que obriga a revogar os actos ilegais), da tutela da confiança e
da prossecução do interesse público. Nesta óptica, qualquer decisão que ponha em causa estes limites
constitucionais é ilegal, justificando uma actuação conforme da Administração Pública.

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processual.131 Deve entender-se, por interpretação conforme à Constituição, que os

particulares podem sempre ver apreciada a legalidade de determinados actos. É forçoso

admitir-se que, para além do prazo, seja sempre possível anular um acto administrativo

quando isso for essencial à prossecução do interesse público. Do mesmo modo, o Prof. Vasco

Pereira da Silva considera o n.º 7 do art. 168.º tanto inconstitucional quanto ilegal, por

violação do princípio da separação de poderes, na medida em que a violação do Direito da

União Europeia acarreta consequências equivalentes à violação do direito interno.

O art. 169.º CPA aborda as questões da iniciativa e da competência revogatória. Nesta

sede, encontramos dois entendimentos tradicionais: o do Prof. Freitas do Amaral, segundo

o qual a iniciativa e competência para a revogação deveriam estar no mesmo órgão que

praticou certo acto viciado, e o do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que considera caber a

iniciativa apenas aos órgãos competentes. O Prof. Vasco Pereira da Silva entende, pelo

contrário, que devem caber a ambos, solução actualmente consagrada no código.

Por último, temos a execução, em cujo âmbito a reforma de 2015 operou uma

mudança importante, designadamente através do expurgo de qualquer referência à

executoriedade ou ao privilégio da execução prévia, numa consagração do princípio da

legalidade aplicado aos actos administrativos, com a tipificação das respectivas formas de

execução. Nesta matéria, o art. 179.º CPA proíbe a execução coactiva de dívidas pecuniárias,

remetendo sempre a executoriedade para os tribunais. A este propósito, o Prof. Vasco

Pereira da Silva critica quer a opção, quer a formulação do art. 176.º CPA (legalidade da

execução), que vem considerar que o garante da legalidade tem tradução no acto executivo

prévio: num entendimento actual do Direito Administrativo, este garante deve ser antes a

aplicação da proporcionalidade do uso da força. Não se trata, pois, de praticar ou não praticar

o acto, mas de garantir a respectiva proporcionalidade.132

131
Com efeito, prescreve o art. 38.º CPTA que, em certas circunstâncias, os tribunais devem conhecer da
ilegalidade dos actos administrativos em qualquer prazo e em qualquer tempo.
132
vide VASCO PEREIRA DA SILVA, “Acto administrativo e reforma do Processo Administrativo”, in A. DE
ATHAYDE et al. (edd.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010,
pp. 81 e ss.

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IV. VER MAIS ALÉM:


OS REGULAMENTOS ADMINISTRATIVOS
E AS SUAS TRANSFORMAÇÕES ACTUAIS

Actuando unilateralmente, a Administração Pública pode praticar actos individuais e

concretos (actos administrativos) e actos normativos (regulamentos). No regulamento, um

conjunto de normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por uma

entidade legalmente habilitada,133 manifesta-se uma realidade típica da Administração

Pública, embora certas correntes doutrinárias considerem o poder regulamentar da

Administração uma reminiscência do poder legislativo susceptível de violar mesmo a

separação de poderes (viz. o Prof. Freitas do Amaral, segundo o qual os regulamentos são

“leis em sentido material”). Isto reflecte o problema da caracterização da função

administrativa em confronto com a função legislativa. Não há dúvida de que a

Administração Pública se encontra subordinada à lei em todos os aspectos da sua actuação

– pois a lei é, a um tempo, o fundamento e o limite de toda a actividade administrativa –,

mas há planos em que se cruzam legislação e administração, como se observa no caso de

leis que compreendem decisões materialmente administrativas, ou actos da Administração

de conteúdo materialmente legislativo, a que faltam, não obstante, os elementos de forma

e eficácia das leis (e.g., os regulamentos autónomos).

Para o Prof. Vasco Pereira da Silva, não faz sentido pôr a questão nestes termos:

está em causa o exercício de competências administrativas (por natureza secundárias), não

podendo, em caso algum, o regulamento ter conteúdo de lei nem substituir-se à lei. Já os

regulamentos independentes devem não apenas respeitar o princípio da separação de

poderes, como também, quando emitidos pelo Governo, revestem obrigatoriamente a

forma de decreto regulamentar (art. 112.º CRP), sujeitando-se, por conseguinte, ao

controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional e ao controlo de legalidade dos

tribunais administrativos.

133
Todas as entidades administrativas têm poder regulamentar.

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O regulamento não pode, assim, ter conteúdo legal; a inovação regulamentar tem

de estar compreendida no exercício da função administrativa, incorrendo a Administração

em ilegalidade nos casos em que a extravase. Mas também os actos administrativos, ao

contrário do que previa a lógica positivista, integram um conteúdo criador diferente da lei.

São cada vez mais frequentes os regulamentos, por via da nova realidade

introduzida pelos planos, que são uma forma regulamentar do exercício da função

administrativa (viz. os planos em matéria económica, fiscal ou ambiental). Nos planos,

estabelecem-se fins genéricos a atingir e os respectivos meios, deixando-se à entidade

administrativa no caso concreto a aplicação das directrizes neles previstas. A expressão do

legislador foi, contudo, infeliz, na contraposição do regulamento (geral e abstracto) ao acto

(individual e concreto).

A formulação geral e abstracto é tecnicamente criticável, pois o regulamento deve

ser apenas geral ou abstracto, não se verificando qualquer necessidade de acumular ambos

os critérios para a definição de um regulamento. Os actos gerais podem definir os

destinatários através de um critério lógico ou de uma cláusula geral (e.g., “todos os

cidadãos, comerciantes, ou habitantes de Lisboa”) que configura uma indeterminação,

enquanto o acto individual e concreto não deixa também de produzir efeitos relativamente

a terceiros. Afigura-se, assim, mais correcto afirmar que a generalidade é suficiente para

definir um acto administrativo.

Quanto à generalidade e abstracção, há que considerar que, se se repetir uma

circunstância determinada, se aplica sempre a mesma norma. Nestes casos, estamos

perante uma situação que corresponde à realidade abstractamente prevista; mesmo que o

acto seja individual (e.g., a norma que estabelece as regras dos apoios dados pelo Estado no

exercício da actividade do Presidente da República), com um destinatário que não é geral,

aplica-se a todos os casos futuros (i.e., “todos os presidentes da República”).

Os regulamentos podem ser autónomos (independentes) ou dependentes, estando

estes últimos sempre subordinados a um diploma normativo. Nos termos do art. 112.º

CRP, os regulamentos dependentes ou de execução estão directamente relacionados com

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uma lei concreta e determinada, à qual se subordinam na respectiva execução, sendo

necessário determinar formal e procedimentalmente a lei que um regulamento em

particular regula.134

Caso diferente é o dos regulamentos autónomos (ou independentes), que, tendo

embora uma relação mais ténue com a lei, devem sempre indicar também a competência

de regulação, tanto a nível subjectivo quanto objectivo. Esta ligação umbilical à lei resulta

sempre de uma lei de habilitação, na medida em que os regulamentos estão sempre,

naturalmente, subordinados ao princípio da legalidade,135 enquanto actos normativos

inovadores dentro da sua esfera própria de actuação, que é a esfera do poder legislativo que

lhes subjaz.

134
vide JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 207-215.
135
Na concepção do Prof. Marcello Caetano, o regulamento não pode ter conteúdo inovador, contrariamente
à lei. Os regulamentos são necessários e adequados à boa execução das leis, estando-lhes subordinados numa
dimensão secundária.

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V. O JARDIM DOS CAMINHOS QUE SE BIFURCAM: 136


A TENDÊNCIA PARA A ESQUIZOFRENIA DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA

A regulação do direito dos contratos públicos surgiu por via eurocomunitária, superando

uma esquizofrenia do direito português, que distinguia os contratos administrativos dos

contratos ditos privados da Administração, estes últimos regulados pelo direito civil e no

âmbito da competência de regulação dos tribunais civis. Ambos são, como a Prof. Maria

João Estorninho apontou pela primeira vez na sua tese de mestrado,137 regulados no

quadro da lei, não havendo razão para preservar esta dicotomia. A favor da unificação do

regime da contratação pública estiveram os Profs. Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado

de Matos e João Caupers, mas a maioria da doutrina não abandonou a concepção

tradicional, defendida pelos Profs. Freitas do Amaral, Pedro da Costa Gonçalves, Vieira de

Andrade e Sérvulo Correia.

Na década de 90, o legislador eurocomunitário alterou profundamente os dados do

problema, unificando, através de directivas, o regime dos contratos administrativos e dos

contratos ditos privados à luz das regras da circulação comum de pessoas, bens e capitais.

Os contratos públicos obedecem, pois, no quadro do Direito da União Europeia, a regras

comuns.

Em primeiro lugar, a origem destes contratos não remonta aos momentos iniciais

do Direito Administrativo, mas ocorre pouco depois. Na lógica actocêntrica do direito

liberal do séc. XIX, foi preponderante na jurisprudência e na doutrina o acto

administrativo autoritário; quando, porém, na segunda metade do séc. XX, as autoridades

administrativas procuraram tornar mais eficientes as funções estaduais por via da

colaboração com os particulares, os contratos administrativos generalizaram-se.138

Nasceram então duas modalidades de contratos públicos: o contrato de empreitada de

136
O título é de Jorge Luis Borges, incluído nos contos reunidos pela primeira vez em Ficciones (Buenos Aires,
Editorial Sur, 1944).
137
MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo Contrato Administrativo, Coimbra, Almedina, 1990.
138
Um dos problemas mais determinantes desta tendência foi a iluminação pública, tarefa que implicava
montar estruturas, obter e distribuir energia.

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obras públicas, em que o Estado encomendava uma obra a um particular e se

responsabilizava-se pelo preço, e o contrato de concessão de serviços públicos, por via do

qual se cedia um bem público à exploração dos particulares; duas figuras que podiam ser

utilizadas cumulativamente.

Estes contratos, chamados administrativos, eram considerados figuras essenciais,

por estarem em causa bens públicos, e importantes na concretização da função

administrativa, por corresponderem ao exercício de funções públicas que o Estado

realizava indirectamente. Impunham-se, no seu funcionamento, cuidados especiais, que

em França começaram por ser de cunho jurisprudencial. A noção francesa de contrato

administrativo seguia um regime de direito público e situava-se na competência dos

tribunais administrativos, o que servia propósitos de protecção da Administração.

O que começou como uma realidade processual tornou-se, em França e nos países

de maior influência francesa que adoptavam o sistema de administração executiva, uma

noção teórica, procurando-se identificar características de diferenciação e unificação.

Primeiro, o conceito da executoriedade, à semelhança dos actos: a noção é problemática,

pois, se as cláusulas executórias podem indiscutivelmente ter lugar nestes contratos,

dependem sempre, não obstante, de contrato ou da lei, como sucede em qualquer outro

contrato privado. Em seguida, a ideia de contratos exorbitantes do direito comum, que é

também inaplicável, porquanto tudo o que há de especial nestes contratos está sujeito a um

princípio contratual (e.g., as empreitadas de obras públicas e privadas são reguladas por

poderes iguais, designadamente no que concerne aos institutos da alteração das

circunstâncias ou da resolução).

Esta esquizofrenia era localizada: existia apenas em França, em Itália, em Espanha e

em Portugal, sendo ignorada nos países anglo-saxónicos. A ideia de um contrato

exorbitante, com correspondência nos poderes autoritários da Administração, era

impossível, na medida em que não estamos perante uma relação unilateral, mas um

contrato. Se os contratos são idênticos, a solução passou acertadamente por criar um

regime jurídico unificado em matéria de contratação pública. A União Europeia propôs

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então um regime comum, alterando os dados da questão através de uma expressão oriunda

do direito alemão. Otto Mayer entendia, com efeito, que o Estado nunca poderia contratar

com os particulares, mas quando começam a surgir contratos entre entidades públicas,

chamados contratos públicos, esta designação prevaleceu.

Contratos públicos são hoje, antes de mais, todos os contratos celebrados no

âmbito do exercício da função administrativa; em segundo lugar, todos os contratos

possíveis no âmbito privado (viz. compra e venda, empreitada, prestação de serviços, etc.);

em terceiro, a aplicação a sectores cuja importância obriga a considerá-los matérias

públicas, ainda que realizadas por particulares (definidos nos arts. 7.º e ss. CCP). No

contrato, manifesta-se uma importante dimensão da actuação administrativa de hoje: a

igualdade entre as partes. Não se considera já que os meios de autoridade sejam

característica da intervenção dos poderes públicos, podendo impor-se aos particulares sem

o seu consentimento; o contrato é, nesta medida, o instrumento jurídico típico de uma

relação entre sujeitos no mesmo plano hierárquico.

A União Europeia procurou estabelecer regimes substantivos, processuais e

procedimentais para os contratos públicos. Isto gerou, em Portugal, grandes resistências,

que perduram até hoje, no âmbito da transposição integral destas directivas. O Código dos

Contratos Públicos, se, por um lado, uniformizou todo o regime processual, continua a

reservar para uma categoria residual destes contratos o nome contratos administrativos. A

primeira mudança foi de índole processual: a reforma de 2004 estabeleceu que todos os

contratos – quer públicos, quer ditos administrativos, quer ditos privados – eram objecto

do contencioso administrativo. O legislador, na última grande reforma (2015), alterou as

expressões, mas manteve o mesmo regime contencioso para todos os contratos; regulou

todos os contratos em que intervém a Administração Pública (arts. 1.º a 4.º e 7.º CCP). Na

parte segunda do Código dos Contratos Públicos, estabelece-se um regime geral para todos

os contratos públicos, independentemente da sua qualificação; na parte terceira, regulam-

se, com especificidades, os contratos ditos administrativos.

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A par deste novo regime da contratação pública, a União Europeia introduziu uma

modalidade hoje de grande importância: os chamados contratos verdes, que respeitam a

áreas de actuação ambiental. A primeira manifestação desta figura deu-se no Ac. Concordia

Bus (2002), seguida pelo Livro Verde, de 2011, e por um conjunto de directivas de 2014,

que converteram um regime facultativo em obrigatório para todos os contratos públicos.

Os contratos de exercício da função administrativos estão, assim, sujeitos a regras comuns:

o Estado poderia incluir cláusulas ambientais nos contratos, devendo dar preferência, e.g.,

a particulares que utilizem produtos ambientalmente sustentáveis.

A versão da directiva de 2014 é mais abrangente, estabelecendo-se de forma clara

que entre os princípios administrativos de contratação pública está inserido um princípio

de sustentabilidade ambiental, responsabilidade, concorrência, publicidade, transparência,

igualdade de tratamento e não-discriminação. O princípio do desenvolvimento ambiental

obriga à fundamentação ecológica das decisões e à ponderação dos riscos e vantagens

económicas, sociais e ambientais. Esta reforma estabeleceu ainda o rótulo ecológico e a

etiquetagem como critérios preferenciais no processo de contratação, bem como a

presença de regras verdes em todos os momentos da contratação como critérios

vinculativos aplicáveis a todos os contratos públicos (arts. 74.º e 75.º CCP) e, bem assim,

como factores de impugnação judicial.

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