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Evolução do controle da atividade

administrativa pelos Tribunais

José de Ribamar Barreiros Soares

Sumário
1. Aspectos gerais. 2. O controle da discri-
cionariedade administrativa. 3. O controle da
administração pública no Brasil-Colônia. 4. O
controle da administração pública no Brasil-
Império. 5. O controle da administração pública
no Brasil-República. 6. Definição da matéria
na Constituição de 88. 7. A visão da doutrina
clássica. 8. O conceito moderno de controle da
atividade administrativa. 9. Sistemas de controle
da atividade administrativa. 10. Conclusão.

1. Aspectos gerais
Desde o século XIX, aparece na França o
que se chamaria de recurso por excesso de
poder, momento esse em que se começa a
limitar a discricionariedade administrativa
do agente público, independentemente de
sua hierarquia administrativa.
O primeiro passo é o controle do ato ad-
ministrativo a partir do vício de incompe-
tência, que diz respeito à prática do ato por
quem não tem autoridade legal para tanto.
Sendo o órgão que dita o ato incompetente,
José de Ribamar Barreiros Soares, doutoran- anula-se tal ato. Este, o primeiro avanço no
do em Ciência Política pelo Instituto Universi- controle do ato administrativo.
tário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ e O segundo passo atine com a forma do
Diplôme d’Études Politiques Générales pela
ato administrativo. Não se encontrando
Université Paris I - Panthéon Sorbonne, é Con-
sultor Legislativo da Câmara dos Deputados,
dentro dos parâmetros legais quanto à
Advogado, ex-Professor Assistente de Direito forma de que se deve revestir o ato, faz-se
da Universidade de Brasília, ex-Assessor Jurí- presente a possibilidade de sua anulação.
dico da Procuradoria-Geral da República e do O terceiro passo é o controle do ato por
Tribunal Superior do Trabalho. meio da técnica do desvio de poder. Assim,

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a discricionariedade é controlada, perden- ro. Ao estabelecer, no Título I – Dos
do sua característica de insindicabilidade. O princípios constitucionais –, os fun-
poder discricionário passa a ser visto como damentos (art. 1o) e os objetivos (art.
liberdade conferida à administração para 3o) do Estado Democrático de Direito,
atingir o fim desejado pelo legislador. Se o privilegiando, tanto em um como em
administrador se descia dessa finalidade, outro, a dignidade da pessoa huma-
seu ato é anulado por desvio de poder. na, determinados princípios foram
Ao final do século, o recurso passa a positivamente incorporados à Cons-
ser utilizado para coibir qualquer viola- tituição. Como os princípios são con-
ção de lei, direta ou indireta. A violação siderados ‘mandamentos nucleares
de lei vem a ser entendida no sentido de de um sistema’ (cf. Mello, 1980:230)
violação não apenas da lei, mas também ou ‘ordenações que se irradiam e
dos princípios dessa finalidade, seu ato é imantam os sistemas de normas’ (f.
anulado por desvio de poder. Assim, um Silva, 1989:82), e neles se expressam
verdadeiro arsenal técnico foi colocado à os ‘valores constitucionais’, os nossos
disposição no combate à arbitrariedade constituintes criaram as chamadas
administrativa, tornando-se marcante o ‘normas-princípios’, que formam
papel desempenhado nesse sentido pelo os preceitos básicos da organização
Conselho de Estado francês. constitucional. Pela primeira vez na
história brasileira uma Constituição
definiu os objetivos fundamentais
2. O controle da discricionariedade
do Estado e, ao fazê-lo, orientou a
administrativa compreensão do sistema de direitos
No que tange ao tema da discriciona- fundamentais. Em outras palavras,
riedade, há de se mencionar, ainda, no a dignidade humana, traduzida no
Direito francês, a análise dos conceitos sistema de direitos constitucionais, é
indeterminados, em que a administração vista como o valor essencial que dá
dispõe de liberdade para adotar os crité- unidade de sentido à Constituição Fe-
rios de interpretação na prática dos atos deral. Espera-se, conseqüentemente,
administrativos. Em relação a esses temas, que o sistema de direitos constitucio-
o Conselho de Estado francês efetua o con- nais, visto como expressão de uma
trole máximo, a saber, o da adequação da ordem de valores, oriente a interpre-
decisão aos fatos. Assim, examina não ape- tação do ordenamento constitucional
nas a questão da legalidade, mas também em seu conjunto.
se a decisão tomada pela administração é A atuação da administração pública está
a mais adequada. limitada por preceitos jurídicos e morais,
Quando falamos em administração visando-se, desse modo, ao bem comum.
pública, logo pensamos em gestão de in- Os princípios constitucionais, os direitos e
teresses coletivos, interesses públicos. De garantias fundamentais e o Estado Demo-
fato, o atendimento ao interesse público é crático de Direito são bases inafastáveis
o objetivo maior, a razão de ser da admi- na formulação de políticas públicas e no
nistração pública. Nesse sentido, vale citar exercício da atividade administrativa no
o argumento de Gisele Cittadino (2002, p. Brasil.
25-26), que transcrevo, in verbis: Essa nova visão do Direito Constitucio-
“Parece não haver dúvida alguma de nal e do Direito Administrativo leva à ne-
que o sistema de direitos fundamen- cessidade de uma reformulação da prática
tais se converteu no núcleo básico do administrativa e a uma nova conceituação
ordenamento, constitucional brasilei- de discricionariedade administrativa, não

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mais se admitindo a existência de um cam- meio do Decreto de 16 de fevereiro de 1822,
po de atuação administrativa insindicável e de Dom Pedro I, sendo esse órgão extinto
isenta de apreciação judicial. Não é, pois, de em 20 de outubro de 1823. Após isso, cria-
se estranhar que a atividade judicial tenha se o Conselho de Estado, pelo Decreto de
sofrido uma evolução considerável, ao lon- 13 de novembro de 1823. A Constituição
go dos anos, e que a ingerência do juiz na do Império, de 1824, do Capítulo VII, dis-
atuação do administrador público tenha-se ciplinava a estrutura e funcionamento do
expandido, ao ponto de abranger a conveni- Conselho de Estado.
ência e oportunidade do ato administrativo,
o chamado mérito administrativo. 5. O controle da administração
Enquanto, no passado, se defendia, com
pública no Brasil-República
tanta veemência, o isolamento do mérito
administrativo da apreciação e do controle Com a Constituição de 1891, ficou abo-
judicial, na modernidade, não mais se sus- lido o pretenso contencioso administrativo
tenta essa solução, uma vez que a soberania do Brasil-Império. Em seu art. 60, instituiu
do povo deve sobrepor-se à liberdade do a competência dos Juízos ou Tribunais
príncipe, do administrador, pois, de outro Federais para processar e julgar:
modo, o poder não emanaria do povo, mas a) as causas em que alguma das partes
do soberano. O interesse privado deve-se funda a ação, ou a defesa, em disposição da
submeter ao interesse da coletividade e o Constituição Federal;
interesse privado do soberano nem mes- b) todas as causas propostas contra o
mo pode ser admitido, uma vez que a sua Governo da União ou Fazenda Nacional,
função precípua é a satisfação do interesse fundadas em disposições da Constituição,
coletivo, como lhe impõe o regime demo- leis e regulamentos do Poder Executivo,
crático. ou em contratos celebrados com o mesmo
governo;
c) as causas provenientes de compen-
3. O controle da administração
sações, reivindicações, indenização de
pública no Brasil-Colônia
prejuízos ou quaisquer outras propostas
Nessa época, encontram-se todos os pelo Governo da União contra particulares,
poderes concentrados no monarca, a ma- ou vice-versa.
gistratura revela-se submissa às decisões Assim, as causas envolvendo a adminis-
do governo, acatando aquilo que o onipo- tração pública passarem à competência da
tente rei decidisse como sendo o interesse Justiça Federal, confirmando-se a unidade
público, já que este era, em última análise, de jurisdição, em que o Judiciário é o único
fruto da reflexão do próprio rei e, assim, Poder competente para julgar os conflitos,
suas decisões eram sempre consoantes ao tanto os comuns como os de natureza ad-
interesse público. ministrativa. Esse sistema foi preservado
pelas Constituições posteriores, cabendo
4. O controle da administração ao Poder Judiciário examinar todas as
causas em que se alegue lesão ou ameaça
pública no Brasil-Império
a direitos.
Nessa época, funcionava o Conselho de
Estado como órgão superior do contencioso
6. Definição da matéria na
administrativo, criado pelo Decreto de 18
Constituição de 88
de fevereiro de 1821, do Rei Dom João VI.
A seguir, instituiu-se o Conselho de Procu- O princípio do controle da adminis-
radores-Gerais das Províncias do Brasil, por tração pública pelo Judiciário encontra-se

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explicitado no art. 5o, XXX, da Constituição ato administrativo, a fim de decidir quanto
de 1988, que reza: “A lei não excluirá da a sua nulidade ou não.
apreciação do Poder Judiciário lesão ou A legalidade do ato administrativo sub
ameaça a direito”. exame pelo Judiciário abrange não apenas
Dessa forma, observa-se que o sistema a competência para a prática do ato e de
de controle da administração pública, no suas formalidades extrínsecas, mas ainda
Brasil, é o de uma jurisdição, em que os os requisitos substanciais do ato, bem como
litígios envolvendo a administração são os pressupostos de fato e de direito, quan-
de competência dos tribunais comuns, do esses aspectos estejam previstos em lei
e não de um Conselho de Estado. Toda- como vinculados ao ato administrativo. As
via, com a expansão do controle dos atos restrições impostas ao controle jurisdicional
administrativos, atingindo-se o mérito do ato administrativo teriam por objetivo
do ato administrativo, com a análise da subtrair a administração pública à predo-
moralidade e da eficiência administrativa minância do Judiciário, ameaçadora da
pelo Poder Judiciário, o sistema brasileiro atuação da administração e de sua ativida-
aproximou-se da justiça administrativa, de peculiar. Assim, controle judicial do ato
com uma abrangência característica daque- administrativo estaria restrito ao aspecto da
le, o que representa um avanço do Estado legalidade, sendo vedado ao Poder Judiciá-
Democrático de Direito. rio apreciar o mérito administrativo, isto é,
sua conveniência e oportunidade.
A Constituição de 1934 dispunha, no art.
7. A visão da doutrina clássica
68: “É vedado ao Poder Judiciário conhecer
De acordo com a doutrina clássica, o de questões exclusivamente políticas”. A
controle judicial do ato administrativo está Carta de 1937, em seu art. 94, trazia a mes-
limitado, nos casos concretos, à questão da mo vedação. A respeito de tais atos e sua
legalidade, não podendo o Poder Judiciário origem histórica, assim nos relata Garcia
adentrar o mérito do ato administrativo. de Enterria (1990, p. 497-498):
Desse modo, não aceita a doutrina clássica “Historicamente, a doutrina dos atos
a interferência do Poder Judiciário no que políticos foi introduzida pelo Con-
diz respeito à conveniência e oportunida- selho de Estado francês (talvez uma
de do ato administrativo, não podendo o das escassas máculas de sua história
mérito do ato administrativo ser objeto de exemplar) no momento crítico da Res-
controle judicial. tauração bourbônica, quando estava
Quanto à questão da legitimidade, em risco, como criação napoleônica,
entendem alguns autores que ela não a subsistência da grande instituição e
abrange apenas a conformação do ato com de suas funções. O Conselho se negou
a lei, mas, também, sua adequação com a sistematicamente a conhecer aquelas
moralidade administrativa e o interesse pú- reclamações que tinham relação com
blico, elementos estes que devem permear os problemas políticos derivados da
todos os atos do administrador público. extinção do regime napoleônico (por
Assim, aqueles atos que vão de encontro à exemplo, arrêt Laffite, 1822) e mais
moral administrativa ou não satisfazem ao adiante com os que se referiam às dis-
interesse coletivo, atendendo a interesses tintas mudanças e conflitos políticos
privados de indivíduos, grupos ou par- que se sucederam. Chegou-se assim
tidos, devem ser considerados ilegais ou à teoria do móbil político, segundo
ilegítimos, sendo passíveis de anulação. É o qual, fosse qual fosse o objeto ma-
incumbência do Poder Judiciário examinar terial do ato, sempre que os gover-
os aspectos relacionados à legitimidade do nantes o ordenassem em função de

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um fim político, tornava-se com isso natureza. Os atos de governo são aqueles
isento do contencioso administrativo. assim designados pela jurisprudência, sen-
O sistema funcionou com todos os re- do esta complementada pela enumeração
gimes até 1875. Nesta última data, já contida em lei, como: defesa do território
estabelecido o sistema de jurisdicção nacional, relações internacionais, segurança
delegada (desde 1872), que reconhe- interna do Estado, mando e organização
ceu ao Conselho de Estado toda a militar.
sua independência, pela primeira vez Entretanto, não há como se pretender
tomando conhecimento da reclama- a insindicabilidade desses atos políticos,
ção do príncipe Jerônimo Napoleão sob pena de se admitir que o administra-
contra sua suspensão como general dor detenha um poder arbitrário no que
de divisão. O critério se mantém em tange a essas matérias, passando por cima
1880, a propósito de assuntos relacio- dos direitos fundamentais dos cidadãos,
nados com a expulsão dos jesuítas, e sem que estes possam ingressar perante o
em 1887, arrêt PRINCE D’Orléans e Judiciário para exigir o respeito à lei. A dou-
Prince Murat. Desde então se mantém trina dos atos de governo foi superada no
ainda a tese dos atos políticos ou de direito francês. Restaram como limitações
governo unicamente enquanto se re- ao controle judicial as relações governo-
firam a um lista concreta de matérias, parlamento e as relações internacionais,
que a jurisprudência posterior foi ficando os demais atos chamados políticos
reduzindo. Esta lista, já desvinculada ou de governo sujeitos à sindicância pelo
por completo da origem da doutrina, Judiciário.
compreende hoje as relações inter- Como bem lembra Cristina M. M. Quei-
nacionais, as relações interconstitu- roz (1990, p. 199), em sua obra Os actos
cionais do Executivo com os demais políticos no Estado de Direito,
poderes e as questões de perdão e “essa mudança funcional observada
anistia. A isenção jurisdicional des- nos direitos fundamentais não é de
tas hipóteses é explicável por razões tipo meramente nominal. Indica, pelo
próprias, pelo que a arcaica doutrina contrário, que a relação que intercede
dos atos de governo se declara hoje entre o Estado e a sociedade, regula-
introuvable (Virally)”. da pelos direitos fundamentais, não
De acordo com a doutrina clássica, tais pode já ser descrita adequadamente
questões políticas não poderiam ser objeto recorrendo-se às categorias abstractas
de exame pelo Poder Judiciário. No direito e formais da ‘autoridade do Estado’,
francês, surgem com fundamento na dou- de um lado, e da ‘submissão’ dos
trina do móvel ou do fim; o ato político, cidadãos, do outro. Como observa,
desse modo, teria finalidade móvel, de com grande penetração intelectual,
natureza política. Vistos por esse aspecto, Peter Häberle, há que se colocar a
os móveis políticos poderiam ser aplicados cabeça do absolutismo tardio sob pés
a qualquer ato administrativo e, consequen- democráticos, ou seja, que os direitos
temente, dada a dificuldade de averiguar, fundamentais inerentes à pessoa
no caso concreto, o motivo último do ato, humana não podem ser unilateral-
poder-se-ia chegar à subtração da maior mente reduzidos a uma dimensão
parte dos atos administrativos do controle supratemporal de validade absoluta,
pelo Judiciário. antes se ordenam em função de esfe-
Essa possibilidade levou o Conselho de ra de vida social que se manifestam
Estado francês a substituir essa teoria pela como especialmente necessitadas
dos atos de governo, considerando-se sua de protecção. Daí que as formas e

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os conceitos jurídicos transmitidos como desde há muito foi notado.
nem sempre sejam suficientes para Defensores da Constituição são todos
caracterizar de forma mais adequada os órgãos constitucionais e todos os
a situação actual. É o que se passa, por cidadãos com ‘vontade de Consti-
exemplo, com a cláusula do Estado de tuição’”.
direito democrático da Constituição Não mais se pode conceber que o mérito
da República”. do ato administrativo fique completamente
O aperfeiçoamento do Estado de Direi- fora de controle judicial, diante dos princí-
to implica a diminuição da esfera de atos pios da moralidade e eficiência insculpidos
políticos juridicamente insindicáveis. É no art. 37 da Constituição. A Constituição
verdade que há conflitos de natureza pura- de 1988 instituiu a moralidade e a efici-
mente política, alheios ao controle jurídico ência como princípios autônomos. O ato
do Judiciário. Outros, entretanto, escapam administrativo, para que seja tomado como
a essa abrangência, transcendem o âmbito válido e eficaz, deve também se sujeitar
meramente político, para sujeitar-se ao aos princípios da boa administração. A
controle judicial. fim de garantir o atendimento ao interesse
É necessário, contudo, que, no controle e aos anseios da coletividade, bem como
jurídico dos atos políticos que a ele se su- a obediências à lei por parte do adminis-
jeitarem, o magistrado aja com certa dose trador público e ao bem comum, os atos
de autocontenção, a fim de não incidir em administrativos se subordinam ao controle
uma usurpação de poderes. Nesse sentido, do Poder Judiciário.
citamos mais uma vez os comentários de
Cristina M. M. Queiroz (1990, p. 218), nos
8. O conceito moderno de controle da
seguintes termos:
“O jogo recíproco entre a direção nor-
atividade administrativa
mativa do processo político e as reac- Modernamente, existem diversos direi-
ções das idéias e força políticas que tos e garantias fundamentais que têm con-
constituem a ordem normativa real dicionado a construção e consolidação da
ou constituição efectiva não podem democracia atual. Em face desses direitos e
ser suprimidos nem para um lado garantias fundamentais, o Judiciário passa
nem para o outro. No conflito entre a ter novo papel na ordem democrática,
o princípio do Estado de direito e o tendo em vista a necessidade de propiciar
direito de governar, a máxima mon- aos cidadãos o respeito a esses direitos
tagem de controles ‘inter-orgânicos’ constitucionalmente estabelecidos, diante
não significa sempre um resultado do que a discricionariedade administrativa
ótimo. A institucionalização de me- sofre mais um golpe, diminuindo-se seu
canismos de controle jurídico do po- campo de incidência.
der apresenta-se como um elemento Não há qualquer discricionariedade em
necessário e indefectível do Estado benefício do administrador ou do Poder
de Direito. Mas seria puro engano Público. A discricionariedade deve sempre
pressupor que o manejo de todo esse ser pautada pelo interesse público, pela so-
instrumentário jurídico pudesse algu- berania popular, pela democracia, de modo
ma vez resolver todos os problemas que toda ação administrativa respeite inte-
concernentes à justiciabilidade do gralmente a vontade do povo que elegeu
político. Numa ordem constitucional seus representantes para exercer os atos da
livre e democrática, o controle jurí- vida pública em seu nome e proveito.
dico não é tudo. Controles ‘sociais’ e É por isso que a Constituição estabelece
‘políticos’ também se desenvolvem um quadro extenso de princípios, quer

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explícitos quer implícitos, de modo que tivo procede a um juízo de valor. O exame
toda atividade administrativa seja por eles do mérito do ato administrativo envolve
regulada, daí poder-se falar em ato vincula- uma abordagem axiológica da realidade
do e elementos discricionários do ato. Não social e administrativa, envolvendo uma
existe a rigor nenhum ato discricionário, noção não do ser, mas do dever ser.
no campo da atividade administrativa pú- O mérito administrativo diz respeito a
blica. Os atos administrativos são, por sua elementos não vinculados do ato adminis-
vez, todos vinculados. Todavia, na prática trativo, situando-se, assim, no campo dos
desses atos, verificam-se alguns procedi- atos administrativos discricionários, em
mentos, algumas particularidades de cunho que a lei confere à administração pública a
discricionário, que, entretanto, ao final, se escolha e valoração dos motivos e do objeto
transformarão em elementos vinculados, do ato. Refere-se o mérito à conveniência
pois farão parte de um todo que será sem- e à oportunidade do ato, elementos estes
pre vinculado, e nunca discricionário. O submetidos à apreciação do administra-
ato é a totalidade, o elemento discricionário dor público. Ao decidir sobre o mérito, o
é uma fração, uma parte desse todo. Por administrador público aprecia o critério de
isso, ao final com o todo se confundirá e a conveniência, oportunidade, razoabilidade,
ele estará estreitamente ligado, assumindo justiça, economia, acerto, utilidade, boa
suas feições legais e normativas, ou seja, de administração e moralidade. Trata-se de
ato vinculado. valoração, de juízo de valor.
O mérito do ato administrativo diz A oportunidade do ato administrativo
respeito à valoração intrínseca do ato com atina ao momento, ao melhor tempo para
vistas à delimitação da conveniência e sua prática, dadas as circunstâncias que o
oportunidade, podendo o administrador envolvem. Neste ponto, cabe a apreciação
optar, inclusive, entre ação ou abstenção, subjetiva do administrador para determi-
tendo em vista o atendimento ao interesse nar qual o momento mais adequado, mais
público. Nesse sentido, a lição do professor oportuno, para a prática do ato. Desse
Celso Antônio Bandeira de Mello (1992, p. modo, resulta que um ato tido por oportu-
82), para quem no, em dado momento e em certa circuns-
“o mérito do ato administrativo não tância, pode revelar-se inócuo e inoportuno
pode mais que o círculo de liberda- em época e situações distintas.
de indispensável para avaliar, no No que tange à conveniência, esta re-
caso concreto, o que é conveniente sulta da apreciação quanto àquilo que é
e oportuno à luz do escopo da lei. adequado, justo, razoável, eficaz, eficiente,
Nunca será liberdade para decidir em apropriado e moral. O vício de mérito diz
dissonância com este escopo”. respeito à inoportunidade e à inconveniên-
Na apreciação da conveniência e opor- cia do ato, resultantes da apreciação equi-
tunidade, o agente pondera sobre a hora, vocada dos fatos, em face dos fins visados
o lugar, justiça, economicidade, razoabili- pelo legislador. Assim, mesmo que tais atos
dade, moralidade, utilidade, eficiência, pro- se ajustem ao campo estrito da legalidade,
bidade, obediência aos princípios da boa não serão hábeis ao atendimento do inte-
administração e, sobretudo, o atendimento resse público tutelado pelo ordenamento
ao interesse público. O estudo do mérito do jurídico.
ato administrativo não se restringe apenas Segundo ensinamento de Vitta (apud
ao aspecto jurídico: vai além deste, invadin- DIEZ, 1961, p. 246), o vício de mérito
do o campo da Filosofia, da Sociologia e da abrange o procedimento administrativo
Moral. Isso acontece porque, no âmbito do que se revela em oposição aos preceitos
mérito administrativo, o agente administra- de equidade, havendo injustiça manifesta

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no ato administrativo. A inconveniência Se trata de la apreciación que debe
e inoportunidade do ato, neste aspecto, hacer el bueno administrador sobre
revela-se por meio da má valoração, da la eficacia del acto. Señala Fiorini que
análise equivocada dos fatos, tendo como los vicios em mérito se refiren a los
parâmetro os fins objetivados pela lei. actos que realiza la administración
Há de se notar, ainda, a estreita relação em el ejercicio de sus facultades dis-
existente entre o mérito administrativo e crecionales, ya que no pueden incidir
os princípios de boa administração. Estes sobre las normas de la actividad legis-
impõem ao administrador público o de- lativa, porque ello implicaria valorar
ver de alcançar o máximo de vantagens e condicionamentos juridicos em los
benefícios com o mínimo de sacrifício dos que la administración há intervenido
direitos e interesses dos administrados. em su creación.
Encontra-se, implícito no conceito de mé- La administración, em ejercicio de
rito administrativo, um sentido teleológico, sus facultades discrecionales, puede
finalístico, ligado à satisfação do fim perse- resolver que debe hacerse, como debe
guido pelo legislador, o que se perfaz com hacerse. Los resultados de esta apre-
a eleição, pelo administrador, dos meios ciación se valoran teniendo n cuenta
idôneos mais eficientes para atender ao el el contenido del acto.
interesse público. El acto ineficaz, vale decir com vi-
O administrador está obrigado, portan- cios de mérito, puede ser también
to, à obediência, à observância ao princípio ilegitimo, sin que ello implique uma
da boa administração, procedendo a uma identificación entre el mérito y la
apreciação adequada dos fatos, para con- legitimidad. Entiende Ranelletti que
cretizar o atendimento ao interesse público, el acto administrativo com vicio de
dentro das diretrizes que lhe foram traçadas mérito es inválido.”
pelo legislador, relacionadas aos poderes A doutrina italiana aborda os vícios dos
discricionários da administração pública. atos administrativos, indicando aqueles de
Quando o administrador decide se deve mérito como espécie distinta dos vícios de
ou não praticar o ato, qual o momento legitimidade, entendendo-se como mérito
oportuno e como deve ser realizado, deve o campo da conveniência e utilidade do ato
avaliar os fatos e as circunstâncias que o administrativo, bem como aspectos relacio-
envolvem, com vistas ao conteúdo do ato, nados com sua adaptação à obtenção dos
tendo sempre como parâmetro o interesse fins genéricos e específicos a serem alcan-
público. Nesse sentido a lição de Manuel çados pelo administrador, no uso de suas
Maria Diez (1961, p. 414-415), que assim se faculdades discricionárias. Na concepção
pronuncia sobre a questão: de Fiorini (1969, p. 213),
“Frente al vicio de legitimidad está “el juicio de mérito fluye del acto ad-
el vicio de mérito que implica la ministrativo como uma consecuencia
inoportunidad del acto. La inoportu- necesaria del mismo, e no surge del
nidad o inconveniencia significa uma proceso de lavoluntad formadora.
apreciación errónea de los hechos El acto es meritorio cuando satisface
em relación com los fines que la ley pleenamente los valores de oportuni-
se há propuesto, excluidos los casos dad, conveniencia, utilidad y justicia
considerados como de desciación de em la realización de los fines públi-
poder. El acto no es entonces idóneo cos. Puede econtecer que nasciendo
para cumplir los fines señalados por meritorio deja de serlo al correr del
el legislaro aun quando no pueda ser tiempo. Los valores sobre el mérito
considerado como contratio e ellos. del acto deben siempre jugarse em

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congruencia com los fines públicos princípio da reserva legal, bem como aos
que satisface. El ámbito donde se princípios da soberania do interesse popu-
cotejan los valores de méritos circuns- lar e da sua indisponibilidade. O controle
cribe en los intereses públicos; los do ato administrativo impõe-se por força
intereses particulares no concurren dos princípios da soberania do interesse
para fijar el criterio de apreciación popular sobre o interesse dos particulares e
del mérito. Éste siempre se regula em da indisponibilidade de tais interesses pela
función del interés público”. administração pública.
A administração pública, no âmbito A soberania do interesse popular sobre
completo de sua atuação, está vinculada à o dos particulares e sua indisponibilidade
lei. O administrador público não pode fazer por parte da administração pública têm-se
aquilo que a lei permite, mas apenas o que revelado como pilares básicos da relação
ela determina, na forma, tempo e moldes jurídica da administração pública com os
por ela traçados. Nisso reside um ponto es- administrados. Tal soberania do interesse
sencial de distinção entre o agente público e popular é postulado inarredável e neces-
o sujeito privado. Mesmo nos atos discricio- sário à construção do sistema do Direito
nários, a legitimidade deve permear a con- Administrativo, por meio do qual se ga-
duta do administrador público, de forma rantem e resguardam as necessidades pú-
que as normas pertinentes à sua atuação, blicas tuteladas, os direitos e interesses da
bem como a finalidade e o interesse público, coletividade administrada. Disso decorre
sejam plenamente atendidos na realização que todo e qualquer privilégio concedido
do ato administrativo, alcançando-se as pelo ordenamento jurídico à administração
exigências do bem comum. pública não é em prol do administrador,
Caso a administração pública desrespei- como se fora um privilégio pessoal, mas
te as normas legais, agrida o ordenamento dos administradores.
jurídico, desconsidere os preceitos básicos A situação de autoridade e de comando
da administração, desborde da sua compe- em que se encontram a administração pe-
tência, desvie-se da finalidade, o ato admi- rante o particular tem como objetivo, tão-
nistrativo estará inquinado e, consequen- somente, proporcionar-lhe os meios ade-
temente, sujeito à anulação pela própria quados para gerir os interesses públicos da
administração ou pelo Poder Judiciário, melhor forma. O administrador público, no
por meio da ação adequada. O Estado de exercício de suas funções administrativas,
Direito pressupõe a fixação da competência está obrigado a se valer dos instrumentos
de seus órgãos e agentes e a determinação colocados ao seu alcance, com a finalidade
dos tipos e formas de controle dos atos, única de realizar os interesses públicos, de
em prol da defesa da administração e dos se desincumbir, da melhor forma possível,
direitos e garantias individuais. de suas responsabilidades como agente de
O Estado possui deveres e direitos em um poder cujo titular é o povo, do qual
relação aos indivíduos, os quais, por sua emana e em cujo nome é exercido, na forma
vez, desfrutam de direitos e possuem obri- do que dispõe a Constituição Federal.
gações em face da atuação do Estado. No O interesse administrado, gerido, não
desenrolar dessas relações, podem surgir é o do administrador público, mas o da
violações de direitos, por ação ou omissão, coletividade, do povo, do titular do poder:
ocupando os indivíduos e o Estado posições o interesse público. Todas as prerrogativas
antagônicas. que decorrem do princípio da soberania do
Todos os atos da administração, no interesse popular sobre o do particular só
Estado de direito, encontram-se subordi- se explicam e justificam, na medida em que
nados ao império da ordem jurídica, ao postas a serviço, única e exclusivamente,

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dos interesses populares, e não para atin- direitos e interesses públicos da livre
gir fins diversos, como, por exemplo, a disposição da vontade do administrador.
satisfação de interesses e conveniências da A administração pública não dispõe dos
administração ou do próprio administrador interesses públicos tutelados, antes revela-
público. se verdadeiro instrumento utilizado pelo
Aqui se apresenta a eficiência da ati- Estado, para a realização da vontade po-
vidade administrativa como vetor funda- pular, para o atendimento às necessidades
mental, no sentido de eliminar os modelos públicas da coletividade.
ultrapassados, as fórmulas arcaicas, que se
perpetuam como tradição administrativa,
9. Sistemas de controle da
sem qualquer benefício aos jurisdicionados.
Em relação a esse aspecto da ação admi- atividade administrativa
nistrativa, o pronunciamento de Dromi O controle judicial pode evidenciar-se
(1998, p. 35) se mostra bem apropriado de duas maneiras: por intermédio da ju-
para a compreensão do princípio da efici- risdição comum e por meio de jurisdição
ência administrativa, conforme passamos especial. Na primeira hipótese, o controle
a transcrever: dos atos administrativos é feito pelo Poder
“Outra señal que orienta la Consti- Judiciário. Trata-se de um controle exercido
tución de lo que llamamos la ‘con- pelos tribunais. O sistema de jurisdição
cepción eficientista’, es que ella especial pressupõe a existência de tribunais
abandona y elimina aquellos modelos especialmente instituídos com a finalidade
de gobierno y modelos de cotrol que de examinar as contendas surgidas entre
respondían a fórmulas arcaicas del a administração pública e os indivíduos.
manejo de la administración, del É o chamado contencioso administrativo.
funcionamiento de la justicia, de las Nesse caso, conta o Estado com uma justi-
tareas parlamentarias. A su vez evita ça própria, a qual não faz parte do Poder
convertir al control em uma simple Judiciário.
pieza de museo como alguna vez Esse sistema é originário da França
se dijo. El control, como elemento e adotado atualmente em outros países,
esencial de la organización política, como a Itália, o Uruguai e a Alemanha. O
no puede quedar em lo meramente avanço do controle judicial sobre o mérito
formal, sino que la Consitución lo administrativo permite uma aproximação
instaura d tal modo que lo transforma do sistema brasileiro com o sistema de jus-
em uma herramienta real y efectiva, tiça administrativa, diante do que faremos
diseñando um sistema eficaz, integra- algumas considerações a seguir a respeito
do y confiable (...) La eficiencia es um dessa modalidade de controle da adminis-
requisito vital, pues va implícitmente tração pública.
ligada a las cláusulas del progreso
tradicional de la sociedad (...) y a las
10. Conclusão
cláusulas del nuevo progreso eduta-
tivo, cultural, tecnológico, personal, Todos os poderes conferidos à adminis-
científico y humano que debe procu- tração pública esgotam-se no atendimento
rar la comunidad(...) Va íntimamente do interesse público, em conformidade com
vinculada a la prontitud, a la transpa- os princípios da soberania dos interesses
rencia del hacer gubernativo...” populares e da indisponibilidade de tais
Quanto à indisponibilidade desses interesses pela administração pública. O ato
interesses populares pela administração administrativo tem por base a lei e é dentro
pública, é princípio que protege os bens, de sua orientação, diretrizes, limites e prin-

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cípios que se deve exercer, para que possa te: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ,
ser considerado legítimo. Qualquer atitude 2002.
tomada pelo administrador público que não DIEZ, Manuel Maria. El acto administrivo. Buenos
seja conforme à lei ou aos seus princípios Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1961.
será injurídica e passível de anulação. FIORINI, Bartolome A. Teoria juridica del acto adminis-
O princípio da legalidade, regente de trativo. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969.
todos os atos da administração à lei. Para DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 7 ed. actual.
que essa submissão se torne efetiva, uma Buenos Aires, 1998.
realidade concreta, e não apenas um prin-
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNANDEZ,
cípio em abstrato, torna-se necessário que Thomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. 3 ed.
a ordem jurídica estabeleça mecanismos São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
hábeis de controle das atividades da ad- GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Justiça administra-
ministração pública. O controle judicial é tiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1986.
realizado pelo Judiciário, exclusivamente,
MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública.
competindo a este o exame dos atos admi- São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993.
nistrativos dos Poderes Executivo, Legisla-
tivo e do próprio Judiciário, nos casos em MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. São Paulo, 1994.
que este realiza atividade administrativa.
Os atos discricionários não estão isentos ______. Discricionariedade e controle jurisdicional. São
Paulo: Malheiros Editores, 1992.
do controle pelo Judiciário, cabendo a este
o seu exame, a fim de constatar se tais atos, QUEIROZ, Cristina M. M. Os actos políticos no estado
em vez de discricionários, desbordam para de direito: o problema do controle jurídico do poder.
Coimbra: Livraria Almedina, 1990.
o campo da arbitrariedade. Assim, haverá
controle judicial do ato administrativo TATE, C. N. Why the expansion of judicial power? In:
sempre que o Judiciário for provocado VALLINDER; TATE, Torbjorn; C. Neal. The global ex-
pansion of judicial Power: the judicialization of politics.
a apreciar as lides entre a administração
New York University Press, 1995.
pública e os administrados. Visa-se, com
isso, a proteger os direitos e garantias dos VALLINDER; TATE, Torbjorn; C. Neal. The global ex-
pansion of judicial Power: the judicialization of politics.
indivíduos diante da atuação do Estado. New York University Press, 1995.
WERNECK VIANNA, Luiz (Org.). A democracia e os
três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Referências Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002.

CITADINI, Antônio Roque. Controle externo da adminis-


tração pública. São Paulo: Max Limonad, 1995.
CITTADINO, Gisele. WERNNECK VIANNA (Org.).
A democracia e os três Poderes no Brasil. Belo Horizon-

Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 103

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