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Pussetti, Chiara. As - Razoes - Do - Coracao - Entre - Neurociencias
Pussetti, Chiara. As - Razoes - Do - Coracao - Entre - Neurociencias
As razões do coração
Entre neurociências culturais e antropologia das emoções
Chiara Pussetti
Resumo: Este artigo pretende pôr em diálogo a antropologia das emoções com as
contribuições mais recentes das neurociências culturais e afetivas, apresentando portanto
uma abordagem biocultural, que tenha em conta os aspetos socioculturais e os
mecanismos neuronais que controlam as respostas emocionais. A partir das teorias que
consideram o ser humano como um ser incompleto e em continua construção, propomos
uma crítica ao reducionismo biológico e cultural, repensando o conceito de incorporação
do ponto de vista da neuroantropologia. A partir desta leitura biocultural das emoções,
consideraremos alguns processos voluntários de auto-construção na direção de
específicos modelos de humanidade, apresentando o debate bioético ligado ao emprego –
massivo e em continuo crescimento - da psicofarmacologia cosmética na construção
cultural das emoções. Palavras-chave: emoções, neurociências culturais, antropologia,
psicofarmacologia.
A
Os primeiros sustentam que as
s últimas décadas vi-
emoções são essências universais, ina-
ram surgir um reno-
tas e geneticamente determinadas: fe-
vado interesse acadê-
nômenos biológicos, passivos e invo-
mico para o tema das emoções em
luntários, respostas instintivas aos
diferentes campos disciplinares, como
estímulos do ambiente, ligados mais à
a antropologia, a filosofia, a sociologia
memória filogenética do que a a-
e a história. O debate atual sobre as
prendizagem individual, independen-
emoções continua porém, tirando
tes portanto da cultura e fora dos inte-
algumas raras exceções, a reproduzir
resses e das possibilidades de com-
dicotomias que têm pro-fundas raízes
preensão dos cientistas sociais. O
históricas na nossa tradi-ção cultural
mundo das emoções e dos sentidos
tais como mente/corpo, razão/emoção
pertenceria completamente, nesta ótica,
e cultura/natureza. Podemos recondu-
por um lado à esfera da biologia, que
zir a maior parte dos estudos que até
se ocupa da estrutura genética do ho-
agora foram produzi-dos sobre as
mem, e pelo outro às disciplinas psico-
emoções a duas escolas de pensamento
lógicas: a estas compete a tarefa de
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GA, IVRY e MANGUN, 1998; OLI- nais de curto e de longo prazo, que
VERO 1998; ROBERTSON, 1999). podem estar relacionadas a mudanças
Apesar de, já desde o século hormonais, a alterações na densidade e
passado, as neurociências considera- comprimento dos dendritos (a parte de
rem o cérebro como um sistema aberto recepção dos neurônios), à germinação
e mutável, a pesquisa empírica sobre a de axônios (a expansão das termina-
influência que os contextos sociocul- ções nervosas responsáveis pela pro-
turais exercem nos mecanismos neuro- dução de impulsos elétricos), ao au-
biológicos começou só nos últimos mento da atividade sináptica, e a varia-
anos, graças ao desenvolvi-mento das ções meta-bólicas, entre outros fatores
técnicas de neuroimagem. (KOLB e WISHAW, 1998).
A noção de plasticidade ocupa O cérebro plástico é portanto
hoje um lugar central no âmbito das “um órgão culturalmente específico”
neurociências e as experiências con- (CLARK e CHALMERS, 1998), “um
duzidas confirmam que o cérebro hu- cérebro ecológico ou cultural, depen-
mano não é um órgão definiti-vamente dente, para toda a sua vida da relação
formado à nascença, mas antes uma com o ambiente natural, social e
entidade dinâmica, moldada pelo am- cultural” (SHORE, 1996 , p. 3, 5). É
biente e pela experiência individual e porém um cérebro incompleto e não
capaz de criar continuamente novas funcional à nascença, dependente da
configurações. Se antes pensava-se na intervenção da cultura (CHANGEUX,
plasticidade como uma caraterística só 1983; EISENBERG, 1995; NELSON,
dos primeiros meses ou anos da vida e 1996; O’LEARY, 1996; MOUNT-
de determinadas partes do cérebro, os CASTLE, 1998; LALAND et al. 2000;
neurocientistas agora comprovaram JOHNSON, 2001; CROMBY, 2004;
que a plasticidade se aplica a todo o MACHAMER e SYTSMA, 2004,
cérebro e para todo o curso da vida MALABOU, 2008).
(MOUNTCASTLE, 1998; HART e A tese da incompletude onto-
RISLEY, 1995; KITAYAMA, 2000; lógica do homem e da interação pro-
MONTGOMERY et al., 2003; STERN funda da sua biologia com fatores
e CARSTENSEN, 2000). A plasti- culturais e ambientais tem uma longa
cidade incide sobre múltiplos proces- tradição filosófica, que vê entre os seus
sos de função e estrutura cerebral. A- precursores, por quanto distantes his-
lém da influência das expe-riências na toricamente e distintos na formu-lação
plasticidade neuronal e sináptica, nos das suas teorias, “pensadores como
últimos anos descobriu-se que os con- Michel de Montaigne, Johannes Niko-
textos sociais causam também mu- laus Tetens, David Hume, Johann
danças não neuronais, por exemplo nos Gottfried von Herder, Friedrich Niet-
astrócitos, na mielinização e na vas- zsche, St. George Jackson Mivart e
culatura cerebral (GROSSMAN et al. Reinhard Gehlen” (REMOTTI, 2005).
2002; MAGUIRE et al., 2000; Ao contrário dos outros ani-
DRAGANSKI et.al., 2006; DRA- mais, que são geneticamente equipados
GANSKI e MAY, 2008). O cérebro dos instintos necessários para a sua
pode criar conti-nuamente novas sobrevivência e a sua adaptação, o ser
células (neurogênese) e novas cone- humano nos primeiros meses ou anos
xões sinápticas entre os neurônios (si- de vida é um organismo prematuro,
naptogénese), e fortalecer ou enfra- vulnerável e indefeso. Justamente por
quecer as conexões já estabelecidas esta indefinição, representada pela re-
(modulação sináptica). Podem verifi- dundância extrema de seu sistema ner-
car-se alterações nas conexões neuro- voso, no momento do nascimento o
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cia de psicopatologia. Querem ser mais (AA.VV, 2003). A ideia à base era
extrovertidos e socialmente atraentes, formar desde já indivíduos destinados
mostrar boas performances intelec- ao sucesso escolar, profissional e à
tuais, ser mais focados e rápidos no uma favorável integração social. O
trabalho. poder transformador do Prozac, como
A utilização de extractos de Kramer escreve no seu livro mais
plantas ou enzimas de fungos que famoso, é o de ser uma “pílula da
atuam ao nível sináptico, interagindo felicidade”: se a medicina e a cirurgia
com um ou mais mecanismos res- estética moldam os corpos, os
ponsáveis pela transmissão do sinal de fármacos consentem ter um desem-
nervoso, para estimular ou inibir pro- penho intelectual excecional e per-
cessos cerebrais dedicados a funções mitem às pessoas ser agradáveis e lidar
específicas do comportamento, como com as situações do quotidiano de
as emoções ou as percepções, é cer- forma positiva (RATNER, 2004).
tamente uma das mais antigas práticas Num mundo com exigências
da história humana. Do mesmo modo, cada dia mais altas, torna-se impera-
estes fármacos exercem os seus efeitos tivo - para ser bem sucedidos – satis-
ao nível sináptico, intervindo dire- fazer critérios seletivos de beleza,
tamente no processo de trans-formação desempenho escolar, realização profis-
dos sinais nervosos de elé-tricos em sional e comportamento social. Não só
químicos, isto é interferindo na o corpo torna-se um capital sobre o
interação entre neurotransmissores e qual investir, mas também as nossas
receptores. emoções e capacidades intelectuais
O que torna o caso da psico- têm que ser manipuladas para
farmacologia cosmética particular- progredir na escada social. Alguns
mente interessante é o crescimento ex- autores falaram explicitamente da
ponencial nos últimos dez anos da psicofarmacologia cosmética como de
utilização de medicamentos como an- uma prática de auto-construção,
siolíticos, antidepressivos, hipnóticos e indicando emblematicamente o caso do
estabilizadores do humor em con- Prozac como estratégia de mani-
sumidores sem manifestações clínicas pulação das emoções segundo os
de doença. Em 2002, o mercado mun- modelos culturais e as específicas
dial de Prozac ascendeu a um valor de exigências sociais, políticas e econó-
cerca de 17 bilhões de dólares e se mica (DE GRAZIA, 2000, 2004,
tornou o segundo medicamento mais 2005a, 2005b). Se altos requisitos do
vendido no mundo. As estratégias de sucesso impõem transformações rápi-
marketing da empresa farmacêutica Eli das, todavia a psicofarmacologia
Lilly são fascinantes: em 1997, entrou cosmética (do grego kosmeo, arrumar,
em comércio uma variedade de Prozac embelezar, harmonizar) enquanto
pediátrica com sabor hortelã ou prática de maquiagem emocional, é
morango. Os comprimidos, até em considerada de forma negativa como
versão chiclete, tiveram um enorme um engano ou uma ficção. Se práticas
sucesso, juntamente com a Ritalina, autopoiéticas como a educação, a
para construir crianças serenas, bem meditação ou a oração, são consi-
dispostas, atentas e produtivas na deradas naturais ou até mesmo
escola. Um estudo de dezembro de virtuosas, porque implicam esforço
2003 relata que cerca de 50.000 individual, o atalho que a farmacologia
crianças com menos de 12 anos de oferece é considerado como uma
idade na Inglaterra estavam a ser falsificação, uma manipulação
tratados regularmente com o Prozac artificial da personalidade e, portanto,
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The reasons of the heart: between cultural neuroscience and anthropology of emotions
Abstract: This article intends to present a biocultural approach to emotions through a di-
alogue between anthropology and the latest contributions of cultural and affective neuro-
science, taking into account the socio-cultural aspects and the neural mechanisms that
control emotional responses. From theories that consider the human being as an incom-
plete being always in construction, we propose a critique of biological and cultural re-
ductionism, rethinking the concept of incorporation from the perspective of
neuroanthropology. Through this biocultural approach, we consider some voluntary pro-
cess of self-construction in the direction of specific models of humanity, presenting the
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